REVISTA VEJA
Ideias mortas
"Não temos um serviço público capaz de prestar
serviços ao público. Mas se há alguma coisa que
temos de sobra, em praticamente qualquer área
da atividade humana, são ‘políticas públicas’"
Os países desenvolvidos do mundo podem estar na frente do Brasil em muita coisa, mas perdem de longe em pelo menos uma: nossa capacidade de criar "políticas públicas". Faltam ao Brasil redes de esgoto, água tratada, coleta de lixo, transporte público, portos, ferrovias e estradas asfaltadas. Faltam aparelhos de raios X em hospitais, sistemas para conter enchentes e escolas capazes de ensinar a prova dos noves. Não temos confiança em políticos, juízes e autoridades em geral. Não temos um serviço público capaz de prestar serviços ao público. Mas se há alguma coisa que temos de sobra, em praticamente qualquer área da atividade humana, são "políticas públicas", quase sempre descritas como as "mais avançadas do mundo"; é difícil entender, francamente, por que os demais 190 países que repartem a Terra conosco ainda não copiaram todas elas.
Ninguém ignora que o Brasil conta com o que há de mais moderno no planeta em matéria de proteção ao menor abandonado, direitos humanos (nossos assassinos, por exemplo, têm o direito de cumprir apenas um sexto das penas a que forem condenados), defesa do meio ambiente e legislação de trânsito. Temos o melhor modelo mundial não só de reforma agrária, mas também de reforma aquária, como nos garantiu tempos atrás o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não há quem nos supere em leis de proteção ao trabalhador, ao deficiente físico e aos direitos do consumidor – e por aí afora, numa lista que não acaba mais. É verdade que funcionários do Incra, repartição pública encarregada de aplicar a reforma agrária, vivem sendo presos por corrupção, que os menores começam a matar gente cada vez mais cedo e que o trânsito nas grandes cidades é uma piada. Mas aí também já seria querer demais – não se pode exigir que este país, depois de toda a trabalheira que teve para montar políticas tão admiráveis, seja também obrigado a mostrar que elas produzem resultados práticos.
O ano de 2008 se encerrou com mais dois grandes momentos na história da criação de "políticas públicas" para o Brasil. O primeiro desses feitos é a Estratégia Nacional de Defesa, uma coleção de planos que vão dar ao Brasil, como nas áreas citadas acima, uma nova oportunidade de se colocar entre os países "mais avançados" do mundo. É perfeitamente correta, no caso, a ideia de melhorar o equipamento das Forças Armadas; não adianta nada dar a elas uma missão e não dar os meios. Mas, junto com providências possivelmente racionais, indispensáveis ou urgentes, vem todo um tropel de desejos tumultuados – a transformação do Brasil em potência militar, o desenvolvimento de caças de quinta geração, a criação do "soldado do futuro", taxas a ser pagas por empresas que seriam beneficiadas pela ação das Forças Armadas e até um submarino nuclear, no qual a Marinha trabalha desde 1979 e que ficará pronto, se tudo correr bem, no remoto ano de 2024. Por qual motivo o Brasil precisaria, por exemplo, de um submarino nuclear? Fala-se vagamente, em voz baixa e linguagem obscura, em "ganhos de tecnologia". Mas daí não se passa – talvez por se tratar de um segredo de estado, talvez porque não haja mesmo ninguém, no governo, capaz de explicar isso de forma coerente. O presidente Lula disse que é preciso defender a Amazônia e o petróleo das águas profundas. Muito justo, mas os principais inimigos da Amazônia, até hoje, têm sido os próprios brasileiros e seu principal problema, a pobreza, também é de criação puramente nacional; quanto ao petróleo, ninguém atacou até hoje as plataformas em alto-mar para roubar as riquezas da Petrobras, desde a perfuração do primeiro poço na Bacia de Campos, trinta anos atrás. Não há sinal de mudança em nenhuma dessas duas realidades.
O segundo grande momento foi a finalização do Plano Nacional de Cultura, que, segundo o governo, vai desenvolver as "políticas culturais" do Brasil nos próximos dez anos, com o fortalecimento da ação do estado na área cultural, "participação social" em sua gestão e outras ameaças parecidas. Mas, segundo o ministro da Cultura, Juca Ferreira, o plano se baseia em "300 diretrizes" – e a partir daí não vale a pena dizer mais nada. Não existe neste mundo projeto algum que precise de 300 diretrizes para funcionar e, caso existisse, não haveria governo capaz de aplicá-las. Não o brasileiro, com certeza.
No mais é esperar que a habitual combinação de inépcia, preguiça e burocracia da máquina estatal leve o grosso do plano para o depósito geral das ideias mortas. Nessas horas a incompetência do poder público é uma verdadeira bênção.
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