Desde que se instaurou o debate sobre a adoção de cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas brasileiras, este jornal se tem manifestado inequivocamente contrário à iniciativa - e não vê motivos para mudar de opinião pelo fato de a Câmara dos Deputados ter acrescentado ao projeto que estabelece nas faculdades federais uma reserva de vagas para negros e indígenas, oriundos da escola pública, uma subcota para estudantes com renda familiar per capita de 1,5 salário mínimo, qualquer que seja a sua autodeclarada etnia. O trecho incluído na proposta que já havia sido aprovada no Senado, para onde voltará em razão disso, foi claramente um esforço de mitigar o que de outro modo seria um malefício absoluto. Ciente de que não conseguiria impedir o pior - ainda mais numa votação marcada, com deslavado oportunismo, para coincidir com o Dia da Consciência Negra -, a oposição aceitou contribuir para a consumação do inevitável se a maioria concordasse com a emenda apresentada pelo deputado tucano e ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza, implantando a chamada cota social.
Fechado o acordo, passou em votação simbólica a destinação de pelo menos 50% das vagas nas universidades federais a candidatos que tenham feito os três anos do ensino médio em escolas públicas; destas 25% serão preenchidas por critérios raciais (conforme a proporção dos que, em cada Estado, se tenham declarado negros ou indígenas no censo mais recente do IBGE) e 25% por critérios de renda familiar (o que não impede que um candidato se beneficie tanto de uma coisa como de outra). O mesmo princípio valerá para as escolas técnicas - nesse caso, o aluno deverá ter cursado o ensino fundamental na rede pública. Na pressa de aprovar o projeto na quinta-feira, para fazer boa figura perante o movimento negro, os deputados deixaram passar um artigo que deixa dúvidas sobre a necessidade de os cotistas prestarem vestibular; bastaria “a média aritmética das notas ou menções obtidas no ensino médio”. O item decerto cairá no Senado. Evidencia, de todo modo, a sofreguidão da Câmara em se curvar ao politicamente correto.
Assim vai em frente um esquema não apenas equivocado como tentativa de promover a democratização do acesso à educação superior, mas, principalmente, tóxico do ponto de vista das relações sociais entre os brasileiros. Equivocado porque o suposto remédio para a iniqüidade não ataca o foco do mal que a origina: a péssima qualidade do ensino fornecido pela escola pública brasileira, depois de vencida a etapa da universalização do ensino, confirmada pelos resultados do último Enem, por coincidência divulgados ontem. Mantida essa situação, ascenderão à universidade, por meio do perverso mecanismo das cotas, contingentes de todo despreparados para o que ali os espera, dadas as suas deficiências acumuladas ao longo de anos de mau ensino. Se a idéia é promover a população negra, promova-se - mediante a melhora radical da educação pública - a população pobre de que ela é parte. São negros, afinal, mais de 2/3 dos que recebem até 3 salários mínimos. E serão eles os maiores beneficiários da boa escola gratuita, quando e se o Estado conseguir proporcioná-la.
Além de equivocado, o esquema é tóxico por separar os brasileiros por raças: em nome da reparação de um passado atroz, erige-se a etnia como credencial de acesso a uma hipotética via expressa para o progresso. Isso se chama discriminação racial - às avessas, mas discriminação do mesmo modo. É certo que a busca da igualdade de oportunidades, a pedra de toque das sociedades decentes, pressupõe o nivelamento do terreno da competição. Quando se dá a um estudante a garantia de ascensão por ele pertencer a uma “raça”, aumenta-se o desnível. Quando se lhe dá um estímulo para avançar por ele pertencer à maioria indiferenciada, em desvantagem em relação aos que podem pagar para aprender, está-se aplainando o terreno social. Essa a distinção irredutível entre a solução falsa e fácil das cotas e os programas de ação afirmativa. É o caso do sistema de pontuação acrescida pelo qual os vestibulandos da USP vindos do ensino médio público ganham um bônus de 3% nas suas notas. A compensação é um incentivo ao esforço individual. Premia o mérito e não separa os universitários pela cor da pele ou origem étnica. |
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