sexta-feira, fevereiro 01, 2008

DEU NA VEJA
André Petry
Adão deixa o Carnaval
"A pílula do dia seguinte não é abortiva. É o que mostram todos os estudos sérios. Os homens de batina não ligam a pílula ao aborto por ignorância. Fazem-no de propósito. Eles entendem de fé e agem com má-fé"
Adão é como eu: nunca passou o Carnaval no Recife, nem em Olinda. Nunca fez parte da multidão de 1,5 milhão de pessoas que sai a dançar no Galo da Madrugada, festejado como o maior bloco carnavalesco do mundo. Adão, tal como eu, agora já faz planos de ir ao Carnaval do Recife. A novidade é que, se a Arquidiocese de Olinda e Recife estiver certa, quase todo mundo que for ao Carnaval de lá vai fazer sexo. Sexo sem proteção, ainda por cima. Será a maior orgia do mundo. A maior orgia do mundo sem camisinha. Vale a pena conferir?
Talvez não, porque talvez a Arquidiocese de Olinda e Recife não esteja certa. O pessoal da arquidiocese ficou uma arara com a iniciativa da prefeitura do Recife de distribuir a pílula do dia seguinte durante o Carnaval – uma iniciativa sensata, correta e que deveria ser copiada por todo administrador de saúde responsável. A Igreja Católica é contra a pílula do dia seguinte. Entre outras coisas, diz que estimula o sexo. Que até estimula o sexo sem camisinha... Na sua cruzada de agora, a arquidiocese mandou carta ao prefeito do Recife lembrando que a 13ª Conferência de Saúde reafirmou que o aborto é crime e não deve ser legalizado. É verdade. A conferência cometeu mesmo essa asneira. Mas só isso é verdade.
A capciosa associação da pílula do dia seguinte com o aborto, como faz a arquidiocese na carta, é apenas mais uma rasteira que os homens de batina aplicam na honestidade intelectual. A pílula do dia seguinte não é abortiva. Ingerida até 72 horas após uma relação sexual desprotegida, impede a fecundação do óvulo. Se o óvulo já estiver fecundado, não tem efeito. Não é o que diz Adão, nem eu. É o que mostram todos os estudos científicos sérios no Brasil e no exterior. Ou seja: os homens de batina não associam a pílula ao aborto por ignorância. Fazem-no de propósito, movidos por milênios de ojeriza à liberdade sexual. Entendem de fé, como se supõe, e agem com má-fé, como se vê.
Na cruzada, a arquidiocese mobilizou uma entidade para entrar na Justiça contra a distribuição da pílula. A tal Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistemas de Saúde (Aduseps) cumpriu a tarefa, mas se deu mal. A Justiça, com serenidade e autoridade, manteve a distribuição. A Aduseps apresentou-se como quem quer apenas defender seu público. Lorota. A presidente e fundadora, Renê Patriota, é católica, participa da Pastoral Carcerária. Só se meteu no rolo por motivo religioso. Mas, claro, nada disse sobre sua real motivação. A dedução não é de Adão, nem minha. Na sua autopropaganda, a Aduseps diz: "O conceito de saúde, adotado pela Aduseps, segue a definição da Organização Mundial de Saúde". Não diga!? A OMS é entusiasta da pílula do dia seguinte. Em seus documentos, disponíveis na internet, a OMS afirma que a pílula não é abortiva e ainda recomenda enfaticamente seu uso.
Diante da acurácia dos conceitos da arquidiocese e sua força auxiliar, Adão desconfia que o Carnaval do Recife não será aquela orgia. Como queria pôr à prova sua histórica incapacidade para resistir à sedução feminina, Adão decidiu que não vai ao Carnaval do Recife. Nem eu. Adão diz que só vai no dia em que o Carnaval virar o apocalipse sexual de rua que a Igreja alardeia todos os anos. Eu estou pensando. Tenho tempo de sobra.
Escreva para o autor no endereço
REVISTA VEJA

Nenhum comentário: