quinta-feira, outubro 10, 2024

Por que os EUA apostam nas armas? - BRENO ALTMAN

FOLHA DE SP -  10/10

Dinâmica da acumulação capitalista se degrada em extrema concentração de renda e riqueza, empobrecimento de trabalhadores e colapso ambiental
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O mundo vive a crise da ordem estabelecida em 1991, após o colapso da União Soviética e a quebra do campo socialista. Vencida a Guerra Fria, os Estados Unidos conquistaram a hegemonia planetária em todos os terrenos: militar, político, econômico e cultural.

Parecia tão indestrutível esse novo contexto que, para muitos, fazia todo o sentido a afirmação de Francis Fukuyama, renomado cientista político norte-americano: chegara-se ao "fim da história", não haveria alternativa além da democracia liberal e da economia de mercado.

Trinta anos depois, esse horizonte de pedra está abalado. Os Estados Unidos lutam para manter seu comando, acantonados por fatores degenerativos internos e externos. A dinâmica da acumulação capitalista se degrada em extrema concentração de renda e riqueza, empobrecimento das classes trabalhadoras, colapso ambiental e adoecimento físico-mental. O regime político perde legitimidade e funcionalidade, dissociado de qualquer perspectiva sustentável de prosperidade. A coesão social se desfaz a olhos vistos.

Apesar das imensas reservas de poder, os EUA acompanham seu protagonismo ser ameaçado pelo desenvolvimento chinês, cuja aceleração seduz países de quase todos os continentes. Novas articulações e instituições multipolares, além de nações e blocos ambicionando autonomia, despontam à margem da arquitetura imperialista erigida após a Segunda Guerra. Dois dos pilares hegemônicos fundamentais são confrontados: a dominância do dólar nos fluxos financeiros e o monopólio da guerra sobre as relações internacionais.

Uma coalizão heterogênea de Estados vai sendo tecida para superar a ordem pós-soviética. A coluna vertebral dessa aliança está na crescente associação entre a pujança econômica da China e o reerguimento do exército russo. Torna-se cada vez mais difícil a manutenção do modelo copérnico estabelecido no final do século 20, pelo qual todas as nações deveriam girar ao redor de um centro único ou sofrer as consequências por qualquer indisciplina.

O certo é que as classes dirigentes dos EUA estão decididas a pagar qualquer preço para impedir que a decadência se transforme em bancarrota. Contam com a solidariedade incondicional de seus vassalos, especialmente europeus e japoneses, para uma luta de vida ou morte.

Mas não é na economia que o Ocidente imaginário localiza sua principal plataforma de sobrevivência, mas sim na guerra. Seus dirigentes acreditam que ainda conservam posição predominante no aspecto militar, capaz de impor limites a seus oponentes, além de impulsionar um dos setores mais lucrativos, o complexo bélico-industrial.

A sustentação da Ucrânia e do Estado de Israel, armados até os dentes pelos Estados Unidos e a União Europeia, comprova a opção de incentivar potências regionais como cabeças de ponte que ajudem a preservar ou conquistar, na marra, liderança sobre zonas estratégicas.

No outono de sua hegemonia, a Casa Branca empurra a humanidade para a beira do precipício. Sem ilusões com republicanos e democratas, somente uma firme posição anti-imperialista, em defesa da paz e da soberania, poderá livrar países como o Brasil de acabarem sequestrados por um sistema que prefere a guerra e a destruição como mapa da estrada.

domingo, setembro 08, 2024

Musk alia interesses comerciais a inclinações políticas sob o manto da liberdade de expressão - Patrícia Campos Mello


Musk alia interesses comerciais a inclinações políticas sob o manto da liberdade de expressão

Bilionário, que está em embate com STF, se alinha a políticos de direita que defendem desregulamentacão e abertura de mercados para Tesla e Starlink


FOLHA DE SP 08/09/24


Patrícia Campos Mello
São Paulo


Enquanto se apresenta como o paladino da liberdade de expressão no mundo, o bilionário Elon Musk protege seus interesses comerciais e promove seus aliados políticos no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.

Homem mais rico do mundo e pioneiro nos campos de viagens espaciais (SpaceX), satélites de baixa altitude (Starlink), carros elétricos (Tesla) e implantação de chips no cérebro (Neuralink), o sul-africano de 53 anos mantinha posições políticas discretas e tendia para a centro esquerda. Cidadão americano desde 2002, declarava voto no Partido Democrata.

A conversão de Musk de gênio excêntrico em megafone da extrema direita global se deu a partir da pandemia de Covid-19, em 2020. "O pânico com o coronavírus é idiota", disse Musk em um tuíte. Naquela época, como conta seu biógrafo Walter Isaacson em "Musk", o bilionário se insurgiu contra as ordens de fechar sua fábrica da Tesla na Califórnia e desafiou o delegado local a prendê-lo.

Ao longo de 2021, o bilionário fez várias postagens em redes sociais criticando Joe Biden e o governo por supostas injustiças contra suas empresas.

O fato de Biden ter recebido na Casa Branca montadoras de Detroit para celebrar carros elétricos –e ignorar a Tesla, maior fabricante desses veículos no país– acabou de azedar a relação. A Tesla havia instituído várias medidas que desestimulavam os funcionários a se sindicalizarem, e Biden não queria irritar o poderoso sindicato.

Até então, Musk tinha sido um grande apoiador de políticos progressistas. Na eleição de 2020, ainda declarou apoio a Biden.

Mas já estava migrando gradualmente para a direita. Iniciou uma cruzada contra o "woke", expressão usada de forma pejorativa para designar os exageros do politicamente correto.

"A menos que o vírus da mentalidade woke, que é anticiência, antimérito e anti-humano, seja contido, a civilização jamais se tornará multiplanetária", disse a Isaacson.

Um dos motivos para essa guinada foi sua oposição à transição de gênero da filha Vivian Jenna, que rompeu relações com o pai.

Em maio de 2022, abandonou oficialmente os democratas. "No passado, votei nos democratas, porque eram (na maioria) o partido da gentileza", tuitou. "Mas se tornaram o partido da divisão & do ódio, por isso não posso mais apoiá-los e vou votar nos republicanos".

Segundo Isaacson, Musk escreveu isso quando estava a caminho do Brasil para se reunir com o então presidente Jair Bolsonaro (PL).

Pouco depois, o bilionário afirmou que iria votar nos republicanos na eleição legislativa de novembro de 2022 já que "houve ataques gratuitos de líderes democratas contra mim e esnobaram a Tesla e a Space X".

Com a conclusão da compra do Twitter, que ele rebatizou de X, em outubro de 2022, sua transformação em profeta da nova direita se completou. Na época, ele acusou plataforma de ter um "forte viés de esquerda" e disse que iria reduzir a moderação de conteúdo para defender a liberdade de expressão.

Uma das primeiras medidas ao assumir foi restabelecer a conta de Trump. O republicano havia sido suspenso após usar as redes para incitar seus apoiadores a contestar os resultados da eleição presidencial de 2020. O movimento culminou no ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, que deixou 5 mortos.

Também começou a se pronunciar sobre questões internacionais e interagir com o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban. Abraçou vários temas caros à extrema direita –críticas a um suposto racismo contra brancos, à "ideologia de gênero" e a imigrantes.

Disseminou a teoria conspiratória de que Biden estimula a imigração indocumentada para "criar eleitores de esquerda". Outra obsessão é a queda da taxa de natalidade da população branca. Ele tem 12 filhos. "Estou fazendo o melhor que posso para combater a crise de subpopulação", disse.


No Reino Unido, amplificou postagens de extremistas anti-imigração após um ataque contra meninas em uma escola de dança que levou a protestos violentos. Advertido pelo comissário europeu Thierry Breton, respondeu com um meme e um xingamento.

De acordo com um levantamento do jornal Wall Street Journal, as postagens de Musk sobre política aumentaram 230 vezes em 2024 na comparação com 2019. Antes, ele publicava principalmente informações sobre suas empresas, piadas e memes.

Musk tem 196,5 milhões de seguidores no antigo Twitter. O fato de ele fazer campanha abertamente a favor de Trump e contra Kamala Harris tem gerado discussões sobre o potencial do bilionário influenciar na eleição americana, ao desequilibrar a disputa. Como dono da rede social, ele já determinou a engenheiros que ampliassem alcances de seus posts e os promovessem.

Ele anunciou apoio a Trump em julho, logo após o republicano sofrer uma tentativa de assassinato em comício. Em agosto, bajulou o republicano em uma entrevista de mais de duas horas no Spaces do X. E contratou um estrategista republicano para ajudá-lo a incentivar votos em Trump.

Considerações empresariais explicam parte da conversão de Musk. Como outros bilionários do Vale do Silício, principalmente os amigos que criaram com ele o PayPal, Musk se tornou crítico de Biden pela política mais intervencionista dos democratas na economia, especialmente tentativas de regulação de tecnologia.


No governo Biden, a Tesla foi investigada pelo Departamento de Justiça e a Comissão de Valores Mobiliários. A percepção é que Trump repetiria o ímpeto desregulatório de seu primeiro mandato. Musk até se ofereceu para participar de uma "comissão de eficiência" no governo que Trump promete implementar se for eleito.

Sua defesa da liberdade de expressão é seletiva. Musk não critica a muralha digital que proíbe o acesso ao X e outras plataformas na China —50% dos veículos da Tesla são produzidos na fábrica em Xangai.

Na Índia e na Turquia, onde os líderes são de direita, o bilionário removeu inúmeras contas e postagens a pedido do governo, muitas vezes sem ordem judicial, e não reclamou. "Nós não podemos violar as leis do país", disse Musk sobre a Índia, em abril de 2023.

Nos EUA, segundo o Washington Post, o X está restringindo ou classificando como "spam" contas de apoio a Kamala.

"Musk é um absolutista da liberdade de expressão quando convém", diz Caio Machado, pesquisador das universidades Harvard e Oxford. "E ele se sente autorizado a usar a infraestrutura que detém (satélites, rede social) para coagir países e governos."

Também na América Latina os negócios do bilionário andam de mãos dadas com sua cruzada anti-esquerda. "Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso", escreveu Musk em 2020 ao responder a um post acusando Washington de ter deposto o então presidente esquerdista Evo Morales para se apropriar das reservas de lítio.

A Bolívia tem 29% das reservas mundiais do minério, essencial para baterias de carros elétricos. A Tesla tentou entrar no mercado boliviano, onde operam hoje empresas chinesas e russas.

Em abril deste ano, Musk e o presidente argentino Javier Milei se encontraram no Texas e prometeram promover o "livre mercado" e projetos de exploração de lítio –a Argentina é outra com grandes reservas.

Também no Brasil, seus interesses comerciais misturam-se com suas inclinações políticas.

Em novembro de 2021, o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, se reuniu com Musk na sede da Tesla nos EUA e anunciou que o governo queria fazer parcerias com a Starlink para uso de satélites no monitoramento da Amazônia e conexão de escolas.


Pouco depois, em janeiro de 2022, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovou o uso de satélites da Starlink.

Dali a quatro meses, Musk veio ao Brasil para se reunir com Bolsonaro e empresários em um hotel de luxo perto de São Paulo. O bilionário foi condecorado com a medalha da Ordem do Mérito da Defesa pelo Ministério da Defesa.

Em julho de 2022, o governo Bolsonaro baixou o decreto 11.120, que facilita a exportação de lítio do país. O Brasil detém a oitava maior reserva de lítio do mundo.

A Tesla expressou interesse em investir na Sigma Lítio, que opera na exploração do minério no vale do Jequitinhonha. A BYD, fabricante chinesa de veículos elétricos, também entrou no páreo. Nenhum acordo foi divulgado até agora.

Em março de 2022, ainda durante o governo Bolsonaro, a Tesla assinou um acordo com a mineradora brasileira Vale para fornecimento preferencial de níquel, outra matéria-prima para baterias de veículos elétricos. O minério é proveniente das operações da brasileira Vale no Canadá.

A Starlink teve crescimento meteórico –passou de 26.694 acessos em abril de 2023 para 224.458 acessos em agosto deste ano (alta de 740%), segundo a Anatel. É a única maneira de acessar a internet em várias localidades da Amazônia e é usada por produtores agrícolas em diversas regiões.

Já no mandato de Lula, Musk apareceu de surpresa em uma reunião por Zoom com integrantes do governo logo após os ataques de 8 de janeiro de 2023. Apesar de pedidos, não retirou postagens incitando à destruição do Congresso e intervenção militar. Durante a conversa, ele teria ressaltado "a importância de defender a liberdade de expressão".

Desde então, os embates do bilionário com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o governo vêm escalando.

Em abril, após Moraes ameaçar tirar o X do ar se Musk não cumprisse ordens de remoção de contas e posts, o bilionário chamou o juiz de "ditador do Brasil" e disse que descumpriria decisões judiciais brasileiras.

Bolsonaro fez uma live afirmando que o bilionário havia encampado a luta pela liberdade no país. "A nossa liberdade, em grande parte, está nas mãos dele", disse.

Em maio, a área técnica da Anatel abriu procedimento para avaliar impactos da possível expansão de serviços de internet via satélite da Starlink no Brasil.

O descumprimento de ordens judiciais pelo X culminou na ordem de Moraes para bloquear o aplicativo no país, no dia 30 de agosto.

Enquanto isso, algumas das promessas de Musk no país empacaram. Após se reunir com Bolsonaro em maio de 2022, Musk anunciou pelo X "o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas" na Amazônia.

Procurado, o Ministério da Educação afirmou que o projeto não saiu do papel. O Ministério das Comunicações informou que não tem contrato com a Starlink e nenhum dos seus programas utiliza atualmente o serviço.

quinta-feira, agosto 15, 2024

Moraes não é Moro - THIAGO AMPARO

FOLHA DE SP -15/08/25


Folha acerta ao expor as mensagens, mas errará se não explicar que são situações distintas


Brasília acordou e se deparou com um elefante na sala: a correspondência em que o gabinete de Alexandre de Moraes ordenou —"por mensagens e de forma não oficial", nas palavras desta Folha— a produção de relatórios pelo TSE, que presidia à época, para fundamentar a investigação de fake news no STF, que ele mesmo conduzia na corte (com o aval do plenário do Supremo, aliás).

O jornal afirmou que a atuação de Moraes estaria fora do rito. O rito era Moraes (STF) oficiar o Moraes (TSE). Qualquer análise precisa partir do fato de que as instituições estavam lidando com um campo político que queria implodir a democracia e literalmente o fez no fatídico 8 de janeiro. Sem essa clareza histórica, o que é análise vira inocência.

Nem tudo que cheira mal é ilegal, mas nem por isso deixa de ser pouco transparente e esquizofrênico. É o caso. Moraes não é Sergio Moro: não emitiu ordens a pessoas a ele não subordinadas, como promotores; o gabinete do ministro emitiu ordens para subordinados a ele em outro órgão. Ilegal não é se Moraes poderia ordenar, legalmente, ele mesmo a produção de relatórios.

A Folha acerta ao expor as mensagens; errará, no entanto, se não explicar ao leitor que são situações distintas. O problema de Moraes é a falta de transparência dos atos, por mensagem, e a eventual interferência (se houve) no conteúdo dos relatórios do TSE por seu gabinete do STF. O caso evidencia algo a que um país de pequenos poderes não está acostumado: a mesma pessoa não significa o mesmo cargo.

Parte da esquizofrenia, no entanto, é institucional e é dupla: ter um membro do Supremo presidindo a Justiça Eleitoral significa, consequentemente, ter um juiz do Supremo que acumula o poder de polícia do TSE e o poder de presidir inquérito criminal no Supremo. É incoerência e faz mal à democracia, mas não é culpa de Moraes e sim do desenho institucional da Justiça brasileira —e nisto é falho e opaco, favorecendo os corredores do poder e não seu escrutínio público.

quarta-feira, maio 15, 2024

Aumento da longevidade trará mudanças sociais profundas - Martin Wolf

FOLHA DE SP 16/05/24

Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.


Aumento da longevidade trará mudanças sociais profundas

Pessoas terão que trabalhar por mais tempo e a previdência social precisará ser transformada

FINANCIAL TIMES



Em 1965, a idade mais comum de morte no Reino Unido era no primeiro ano de vida. Hoje, a idade mais comum para morrer é de 87 anos. Essa estatística surpreendente vem de um novo e notável livro, "The Longevity Imperative" [O Imperativo da Longevidade, em tradução livre], de Andrew Scott, da London Business School.

Ele observa também que uma menina recém-nascida no Japão tem 96% de chance de chegar aos 60 anos, enquanto as mulheres japonesas têm uma expectativa de vida de quase 88 anos. O Japão é excepcional. Mas estamos vivendo mais em todos os lugares: a expectativa de vida global é agora de 76 anos para mulheres e 71 para homens (claramente, o sexo mais fraco).

Esse novo mundo foi criado pelo colapso nas taxas de morte dos mais jovens. Em 1841, 35% dos meninos morriam antes de completar 20 anos no Reino Unido e 77% não sobreviviam até os 70 anos.

Em 2020, esses números haviam caído para 0,7% e 21%, respectivamente. Nós praticamente derrotamos as causas de morte precoce, por meio de alimentos e água mais limpos, vacinação e antibióticos. Lembro-me quando a poliomielite era uma grande ameaça. Ela está quase totalmente erradicada, assim como o outrora muito maior perigo da varíola.

Essa é a maior conquista da humanidade. No entanto, nossa principal reação é nos preocuparmos com os custos de uma sociedade "envelhecida". Os jovens adultos e pessoas de meia-idade prefeririam saber que eles e, pior, seus filhos poderiam morrer a qualquer momento? Sabemos a resposta para essa pergunta.

Sim, o novo mundo em que vivemos cria desafios. Mas o principal argumento de Scott é que esse mundo também cria oportunidades.

Precisamos repensar a velhice, tanto individualmente quanto socialmente. Não devemos empurrar uma grande parte de nossa sociedade para uma "velhice" improdutiva e insalubre.

Podemos e devemos fazer muito melhor, tanto individualmente quanto socialmente. Este é o "imperativo" dele. Exceto por um desastre, haverá muito mais pessoas muito idosas: em 1990, havia apenas 95.000 pessoas com mais de 100 anos no mundo. Hoje, há mais de meio milhão, e esse número está aumentando.

Uma grande questão é como as pessoas vão envelhecer. Elas vão desfrutar de uma velhice vigorosa e depois morrer subitamente, ou viveremos "sem olhos, sem dentes, sem nada" por muitos anos impotentes e sem esperança? Scott imagina quatro cenários.

O primeiro são os Struldbruggs de Jonathan Swift, imortais, mas envelhecendo eternamente. O segundo é Dorian Gray de Oscar Wilde, que vive jovem e depois morre subitamente velho. O terceiro é Peter Pan, que é eternamente jovem. O quarto é Wolverine dos quadrinhos da Marvel, que é capaz de se regenerar.

Podemos concordar que o primeiro é terrível. No entanto, parece ser onde estamos: se vivermos o suficiente, tendemos a nos desintegrar lentamente. Mas, talvez, a combinação de uma dieta melhor, mais exercícios e avanços médicos possa oferecer outras possibilidades.

Isso, argumenta Scott, é para onde os esforços devem se concentrar agora, não apenas no tratamento ou, pior, apenas na gestão dos males da velhice, mas na busca por evitá-los.

Isso requer não apenas avanços médicos. A alta desigualdade não é apenas uma questão social e econômica, mas também um risco para a saúde.

A expectativa de vida na China agora é de 82 anos para mulheres e 76 para homens. Surpreendentemente, isso é muito semelhante aos EUA. A expectativa de vida neste país é surpreendentemente baixa para um país tão rico. Isso se deve a enormes desigualdades de saúde.

Segundo Scott: "Nos EUA, a diferença na expectativa de vida entre o 1% mais rico e o 1% mais pobre é de quinze anos para homens e dez anos para mulheres."

No entanto, precisamos mudar não apenas como envelhecemos, mas como pensamos sobre a idade.

O mundo de Dorian Gray, embora ideal, parece improvável. Mas um mundo de Struldbruggs ou Peter Pans seria horrível.

Isso é verdade para o primeiro, porque a maioria de nós não deseja terminar nossas vidas na decrepitude, impondo inevitavelmente também um grande fardo aos membros mais jovens da sociedade. Isso também é verdade para o segundo, porque poucos quererão viver ao lado de seus bisavós. A imortalidade não é para nós.

De forma igualmente clara, um mundo em que a maioria provavelmente viverá até os 90 anos, muitos até mais, precisa ser completamente repensado.

A ideia de 25 anos ou mais de educação, 35 anos de trabalho e depois, digamos, 35 anos de aposentadoria é impossível, tanto para indivíduos quanto para a sociedade. Certamente é insustentável. Também é provável que produza uma velhice vazia para vastas proporções da população.

Será necessário trabalhar por mais tempo por via de regra. Isso também exigirá várias mudanças na carreira ao longo da vida. Em vez de um período de educação, um de trabalho e um de aposentadoria, fará sentido para as pessoas misturarem os três. As pessoas voltarão a estudar, repetidamente. Elas farão pausas, repetidamente. Elas mudarão o que fazem, repetidamente.

Este é o caminho para tornar a longevidade acessível e, tão importante, suportável. Para fazer com que um mundo assim funcione, teremos que reorganizar a educação, o trabalho, as pensões, os estados de bem-estar social e os sistemas de saúde.

As pessoas não mais, por exemplo, irão para a universidade ou receber treinamento apenas quando jovens adultos. Isso será uma atividade ao longo da vida. Novamente, idades obrigatórias ou padrão de aposentadoria serão sem sentido. As pessoas devem ter opções de trabalhar e não trabalhar em várias fases de suas vidas.

Apenas aumentar as idades de aposentadoria de forma geral é ineficiente e injusto, uma vez que a expectativa de vida é distribuída de forma tão desigual. As taxas de contribuição para aposentadoria também precisarão ser alteradas. Hoje, geralmente são muito baixas.

Os sistemas de saúde também devem incorporar totalmente a saúde pública, que se tornará cada vez mais importante à medida que a sociedade envelhece.

Estamos entrando em um novo, velho mundo. Isso é fruto de um enorme sucesso. No entanto, há também um perigo realista de um futuro Struldbrugg para indivíduos e para a sociedade. Se assim for, devemos repensar nossa visão sobre a prioridade de preservar a vida.

segunda-feira, maio 13, 2024

EUA perderam a América Latina para a China

FOLHA DE SP 11/05/24


Igor Patrick

EUA perderam a América Latina para a China

Políticos latinos dizem que em Pequim encontram promessas de investimentos; de Washington, voltam com palestras


Na semana que vem, o Congresso americano vai precisar votar a renovação da concessão de fundos à Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (DFC, na sigla em inglês), o resultado de uma fusão de várias agências de promoção ao desenvolvimento criado durante o governo de Donald Trump para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota.

Acompanhei in loco o debate na Câmara e adianto: os argumentos levantados durante a audiência pública sobre o tema deixam claro que os EUA vão perder o trem na competição com a China por influência na América Latina.

Há várias razões para esta conclusão. Para começar, não acho que ninguém minimamente informado acreditou algum dia que a DFC conseguiria fazer frente aos chineses. O fundo que financia as operações da corporação chegam a US$ 60 bilhões, contra quase US$ 1 trilhão prometido pelos chineses no lançamento da Cinturão e Rota.

A distribuição do dinheiro também está sujeita a uma série de requisitos, sendo o pior o fato de que ao criar o órgão, congressistas americanos limitaram a maior parte dos recursos a países classificados de pobres pelo Banco Mundial. Essa regra não faz nenhum sentido, e mesmo os coordenadores da DFC admitem isso. Ao ranquear as economias de países ao redor do mundo, o Banco Mundial não leva em consideração questões como variação cambial, poder de paridade de compra e desigualdade. A própria instituição nem sequer usa apenas essa variável na hora de conceder empréstimos.

Consequentemente, países como o Brasil são classificados de "renda média superior", o que automaticamente nos exclui de receber investimentos substanciais por parte dos americanos. Alguém aí diria que nossa infraestrutura é semelhante à chinesa, outro país posto pelo Banco Mundial sob o mesmo guarda-chuva?

Além disso, o dinheiro que vem de Washington geralmente vem atrelado a uma série de compromissos, como a promoção de reformas políticas e melhora do ambiente de negócios. Não são regras necessariamente ruins, claro, mas atrasam significativamente a aprovação e o recebimento das verbas.

Para um país de tamanho e economia médios, faz pouco sentido esperar anos por um dinheiro que, os chineses, muito mais pragmáticos e desinteressados em interferir na governança doméstica de nações terceiras, conseguem entregar em meses. Políticos latinos também têm por tradição abraçar projetos de infraestrutura que possam mostrar em suas campanhas eleitorais —e o calendário das eleições nem sempre é compatível com o tempo necessário para garantir a sustentabilidade de tais obras.

Por fim, só agora começa a cair a ficha em Washington que a presunção ao tratar a América Latina como seu quintal de influência estava baseada em premissas frágeis. Não me entendam mal, é inegável que os EUA ainda são parceiros essenciais de vários dos nossos vizinhos, mas agora há uma nova opção: a China.

Mesmo assim, não vemos nenhuma movimentação para mudar o panorama. Os EUA estão ocupados demais resolvendo a miríade de disputas políticas internas e agora se veem às voltas com a possibilidade de eleger um candidato abertamente isolacionista.

Não há clima no Congresso para ampliar um auxílio financeiro para atenuar o enorme déficit de infraestrutura na América Latina. O dinheiro disponível está fluindo para o Indo-Pacífico, única região no mundo cuja importância é consenso bipartidário, dada a necessidade de fazer frente aos chineses.

Quando encontro fontes do governo Joe Biden, essas pessoas quase sempre gostam de defender o que vêm fazendo pelos latino-americanos e enunciam de cabeça uma série de projetos na região. É só perguntar sobre o valor empreendido em cada um deles para fazê-los corar e invariavelmente admitir que deveriam estar gastando mais se quiserem competir de verdade com Pequim.

Ao longo dos últimos meses ouvi de dezenas de políticos latinos que, quando viajam à China, voltam para casa com acordos e promessas de investimentos. Dos EUA, voltam com uma palestra sobre o que deveriam estar ou não fazendo. Os cães ladram e o dragão passa.

domingo, fevereiro 19, 2023

O mercado religioso trata a fé como commodity e usa a miséria de todos nós - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SÃO PAULO 19.02.2023

O mercado religioso trata a fé como commodity e usa a miséria de todos nós

A vida é muitas vezes insuportável e as religiões nos dão uma esperança de poder torná-la menos insuportável


A fé é uma commodity e as religiões a disputam. Alguém pode dizer que sempre foi assim. Dizer isso é como comparar as velhas feiras dos burgos onde se vendia comida e outras bugigangas com a sociedade capitalista.

A sociedade capitalista é um sistema global que se caracteriza, além de outras coisas, pelo fato de que só tem futuro o que vira produto. À medida que se agrega valor financeiro a algo, imediatamente ele começa a responder dentro da dinâmica da mercadoria. E nessa dinâmica o que importa é aumentar o PIB do player religioso.

Essa dinâmica é marcada pelo estágio da midiatização da religião que começa com o televangelismo dos anos 1970 nos Estados Unidos. Sendo a mídia o mercado de conteúdos por excelência, as religiões se transformaram em empresas de conteúdo que formam ministros religiosos no marketing mais do que na teologia ou sistemas mitológicos.

Com as redes sociais, esse processo se radicalizou e ficou mais barato. Uma das marcas da sociedade capitalista é a emergência de uma microfísica da competição que é fundamental no processo de destruição dos players dentro do mercado em questão.

Uma vantagem do mercado religioso sobre outros é seu custo relativamente baixo para quem paga pela adesão e pelo que ganha em retorno —um produto que tem a característica de ser infinito e maleável, ou seja, a fé.

A fé tem uma plasticidade gigantesca e é adaptável às mais diversas situações e narrativas. A fé nunca acaba porque ela está ancorada na experiência profunda do desamparo dos seres humanos, como diz Freud no seu memorável "Futuro de uma Ilusão".

A vida é muitas vezes insuportável e as religiões nos dão uma esperança de poder torná-la menos insuportável. Nada há de racional nisso, por isso é tão poderosa. Tudo que é ancorado na razão é frágil, já o que é ancorado na miséria é sempre poderoso.

A violência entre os players religiosos é clássica, sempre foi. Hoje, ela se tornou passível de gestão de conteúdos e comportamentos segmentados. Falar mal dos competidores, inclusive no plano das ideologias políticas, marca nichos específicos no mercado da fé.

Esse fato pode aparecer em toda e qualquer comunidade religiosa que disputa fiéis, independente da identidade de fé em questão.

Na Igreja Católica isso ocorre entre ordens religiosas, entre grupos conservadores contra progressistas, e dentro da hierarquia de carreira na instituição.

Sendo uma instituição que deita raízes profundas na antiguidade e medievo, a Igreja Católica tem mais dificuldade para se tornar uma empresa ágil em nosso admirável mundo novo. Sua lentidão pode ser mortal num futuro próximo.

O mercado evangélico é obsceno nesse aspecto porque o protestantismo já nasceu moderno. Um galpão abandonado, algumas cadeiras de plástico, um microfone, alguém que domina a retórica e um punhado de miseráveis desamparados —que somos todos nós— e o business se põe em marcha.

Abrir uma igreja de sucesso é como abrir uma loja na rua onde se compra produtos baratos. Qualquer franquia de Jesus funciona. A miséria é algo que Deus seguramente distribuiu de forma democrática entre os homens e mulheres.

Há, contudo, nichos de evangelicalismo de luxo, usualmente, de classe média alta e de esquerda.

Entre judeus não é muito diferente, apesar de ser gourmetizado. Rabinos disputam seus fiéis a pau. Falam mal um dos outros, disputam poder e espaço dentro das sinagogas, assim como as almas a disposição.

Sinagogas buscam nichar seus fiéis a partir de questões ligadas as normativas da tradição: seus pais são judeus? Pode frequentar tal sinagoga. Sua mãe não é judia? Melhor ir naquela. E por aí vai.

A segmentação segue as linhas que determinam a validade da sua identidade judaica.

Terreiros de candomblé não fogem à regra. Pais e mães de santo falam mal de concorrentes, buscam roubar seus filhos de santo, equedes e ogãs, inventam fofocas sobre seus desafetos. Ao final, o que importa é quem fatura mais.

O budismo no Brasil ainda funciona como um mercado entre restaurantes com estrelas Michelin, coisa de riquinhos descolados.

terça-feira, dezembro 06, 2022

Ruptura democrática - DENIS LERRER ROSENFIELD

 ESTADÃO - 05/12/22

Líderes autoritários ou até totalitários podem utilizar instrumentos democráticos para imporem formas de governo a serviço de seus próprios desígnios



O título pode surpreender! Há rupturas da democracia que se fazem segundo instrumentos democráticos, de modo que as aparências são mantidas, enquanto os pilares de um regime assentado na liberdade são abalados. Eleições, por exemplo, tanto podem ser um meio de alicerçar a democracia, como de fragilizá-la, o que ocorre quando se tornam ferramentas de políticos autocráticos. Lideranças autoritárias ou, inclusive, totalitárias podem se utilizar desses instrumentos para imporem formas de governo a serviço de seus próprios desígnios.

Hitler conquistou o poder democraticamente, fazendo uso de um artigo da Constituição de Weimar que lhe permitia, em determinadas circunstâncias, governar por decretos. O artigo em questão já havia sido utilizado dezenas de vezes por governos anteriores social-democratas, de modo que tinha a aparência de uma mera medida corriqueira. Ato subsequente, passou a perseguir oposicionistas, eliminando fisicamente adversários e, mesmo, amigos, aí incluindo lideranças militares, como o ex-chanceler Kurt von Schleicher e o comandante das SA, Ernst Röhm. Deu-se ao luxo de convocar eleições que eram meros referendos à sua liderança, proibindo qualquer oposição partidária e fazendo uso intensivo da censura. As massas o aclamaram.

Hugo Chávez, aclamado pela esquerda latino-americana e brasileira, seguiu o mesmo caminho. Conquista o poder democraticamente, passando a governar por meio de decretos e referendos que confirmavam sua liderança. Se o referendo lhe era desfavorável, não o seguia e logo convocava um outro, até conseguir impor a sua vontade. Deste modo, foi calando progressivamente os meios de comunicação, até o seu completo silêncio. O Congresso foi também aparelhado por etapas, até lhe ser totalmente submisso. Milícias paramilitares vieram a controlar toda a população, com o uso da violência e o assassinato de manifestantes. O Supremo foi subjugado, tornando-se um mero avalizador de seus atos. Os militares foram cooptados por intermédio do uso intensivo da corrupção. A burla foi completa.

O Brasil está saindo de um período em que as instituições democráticas foram postas à prova, embora o atual presidente e o seu movimento assegurassem fazer o contrário. E o fizeram, paradoxalmente, dizendo defender a democracia e as liberdades. Não foram poucas as tentativas de, progressivamente, criar um ambiente propício a um golpe de Estado, com o questionamento ostensivo das urnas eletrônicas e do sistema eleitoral. Prova nenhuma foi apresentada, mas inúmeras vezes disse o presidente que não seguiria os resultados das eleições se suas pretensões não fossem atendidas. Na verdade, para ele valia apenas o seguinte: em caso de vitória sua, a democracia funcionaria; em caso de derrota, a democracia não teria sido seguida. Simples assim o absurdo de tal colocação.

O resultado das eleições foi-lhe adverso. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como é de sua exclusiva competência, atestou a lisura do processo e validou toda a apuração, dando vitória ao ex-presidente Lula. Lideranças responsáveis, inclusive de partidos aliados, como o ministro Ciro Nogueira, que assegurou o gabinete de transição, e o deputado Arthur Lira, que reconheceu imediatamente o resultado do pleito, seguiram igual rumo. Os militares, no estrito cumprimento de seu dever, seguem a Constituição, afastando-se de qualquer tentativa golpista. É apenas de lamentar que generais do alto comando estejam sendo denegridos por companheiros de farda ao serem considerados como militares melancias, verdes por fora e vermelhos por dentro. Seguir a Constituição, para pessoas que assim se tornam indignas, seria uma atitude de esquerda. Disparate total.

No entanto, o ministro Alexandre de Moraes, atuando como defensor da Constituição, tem sido considerado como um bode expiatório. Soube ele compreender, ao contrário de seus críticos, que momentos excepcionais, em que a democracia está em risco, exigem medidas excepcionais. Não se pode confundir a aparência de seguir a democracia com sua subversão. Não caiu neste tipo de armadilha armada por bolsonaristas. No momento em que decidiu arquivar um pedido fake, golpista, do PL, contestando o resultado das eleições, não hesitou em lhe impor uma pesada multa por litigância de má-fé. Não cabia, aqui, nenhum tipo de tergiversação, sob pena de tais investidas se repetirem com o intuito de impedir a posse do novo presidente eleito ou sua governabilidade futura. A multa impõe um limite.

Da mesma maneira, não se pode considerar como democráticas manifestações em frente de quartéis e em rodovias exigindo uma intervenção militar. É meramente contraditório. Dizem eles: ou há intervenção ou continuaremos nos manifestando e, em casos mais extremos, impedindo o direito de ir e vir em ruas e estradas, mediante o uso de violência. Os seus autores e financiadores devem ser, sim, responsabilizados, pois democracia não significa liberdade para delinquir. Uma democracia que não reconhece limites caminha para o seu fim.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.

domingo, outubro 02, 2022

Carta a Bolsonaro: não ouse dar um golpe - JAMIL CHADE

UOL - 02/10/2022 


Senhor presidente,

Em janeiro de 2019, poucos líderes internacionais imaginavam que a destruição que o senhor promoveria seria tão profunda, perversa e dolorosa no Brasil. Mas, curiosamente, já sabiam que não deveriam compartilhar a mesa ao seu lado. Naquele mês, no Fórum Econômico Mundial de Davos, o senhor teria um almoço com os anfitriões, que também convidavam todos os líderes presentes para um encontro fechado.

Quando duas dessas lideranças mundiais se deram conta com o senhor também tinha sido convidado, uma delas combinou que fariam de tudo para encontrar um local bem distante do senhor. Mesmo que tivesse de trocar a plaquinha com os nomes que o protocolo havia posto para a disposição dos convidados. "Deus me livre sentar ao lado dele", confessou uma delas.

Quando entraram, as duas descobriram que não eram as únicas que tinham pensado nisso e, como num jogo, parte da cúpula mundial se divertia com o pavor de ter de passar uma refeição ao seu lado.

Naquele mesmo dia, o senhor esbarrou com Tony Blair, num dos corredores de Davos. Sem saber o que fazer, ele aceitou uma foto ao seu lado. Mas assim que ela foi divulgada, a assessoria do ex-primeiro-ministro do Reino Unido teve de dar explicações diante do constrangimento e das críticas que ele recebeu.

Horas depois, o senhor seria entrevistado por um grande jornal americano. Ao sair do encontro, a experiente jornalista estava em choque diante dos absurdos que ela ouviu.

Anos depois, numa outra cúpula, ouvi uma conversa entre Angela Merkel e um grupo de líderes europeus. Ao debater uma proposta, a alemã advertiu ao grupo que "os brasileiros teriam problemas" com tal ideia que seria submetida à consideração da comunidade internacional. Ela, porém, foi interrompida por outro chefe de governo que brincou: "os brasileiros têm um problema ainda maior". Todos riram.

Vou contar aqui um segredo: eles se referiam ao senhor.

Ninguém me contou. Eu vi com meus próprios olhos como no G20 em Roma, em 2021, o senhor sequer sabia quem eram os líderes ao seu lado. E eles faziam questão de virar as costas. Basta perguntar a Olaf Scholz.

Ninguém me contou. Eu vi como embaixadores estrangeiros na ONU debochavam das decisões que o senhor mandava aos diplomatas brasileiros.

Ninguém me contou. Eu vi como, no auge da pandemia, a cúpula da OMS chamava o senhor de "louco".

Ninguém me contou. Eu vi como diplomatas brasileiros pediram licença médica, afastamento ou foram para países insignificantes para não ter de servir à destruição que o senhor promoveu.

Com a mais alta liderança palestina, numa certa ocasião, um dos principais nomes de Ramallah me explicou que jamais imaginaria que um país com tal ativo de simpatia no mundo poderia passar por uma transformação tão profunda.

Pelos serviços de mensagens no celular, chanceleres estrangeiros debocham do senhor ao me escrever e torcem para um final de seu mandato.

No Parlamento Europeu, o senhor é tratado abertamente como "irresponsável" e "neofascista". No Senado americano, seu nome é sinônimo de ameaça à democracia.

Na França, o governo deu ordens para dificultar ao máximo qualquer acesso de seus representantes aos canais de diálogo com uma das maiores economias da Europa.

O senhor e seus apoiadores podem achar que diplomacia é ir a coquetéis e sair na foto ao lado de gente importante. Mas não é nada disso. Política externa é política pública e instrumento de desenvolvimento social. Destruir essa arma é prejudicar a parcela mais pobre da população, não os ricos.

O último grande constrangimento que o senhor promoveu foi usar um funeral de estado para fazer campanha eleitoral, para o espanto de todos. Mas esse não foi o único caso. Com o falecido Shinzo Abe, o senhor ensaiou uma piada fora de lugar. A sala ficou em silêncio por alguns segundos. Até que o japonês, politicamente, decidiu rir. E todos respiraram aliviados.

Desprezado pelas grandes democracias, o senhor apenas foi recebido por pessoas que foram obrigadas a fechar o nariz para conseguir atingir algum objetivo estratégico com o Brasil.

Sim, o Brasil conta no mundo. E por isso a eleição neste domingo também conta.

Escrevo essa carta ao senhor com uma mensagem que o senhor já ouviu da CIA e de governos estrangeiros: respeite os resultados das urnas.

Não existe outra alternativa. Ridicularizado, o senhor apenas tem o apoio —interessado— de líderes de extrema direita, de governos autoritários ou daqueles que querem justamente o enfraquecimento da democracia ocidental.

Se o senhor optar por contestar o voto, a urna, o TSE e o sistema eleitoral brasileiro, estará jogando o Brasil num de seus momentos mais perigosos e aprofundando o isolamento do país no mundo. Para grande parte do mundo, o senhor é um bufão. Mas um bufão perigoso.

O senhor armou milhares de pessoas em três anos, com mentiras e balas. O senhor destruiu pontes e criou inimizades com alguns dos nossos principais parceiros comerciais. Há um consenso na opinião pública internacional de que o senhor faz parte de uma das aberrações do século 21 e reflexo do colapso moral de nossa geração.

A história não poupará o senhor. Isso já é um fato. Mas se a opção for por um golpe, ganharemos um capítulo ainda mais trágico e a certeza mundial de que o futuro foi uma vez mais adiado para o Brasil.

Algumas de suas decisões jamais serão reparáveis. Como trazer de volta milhares de brasileiros que foram assassinados por uma gestão criminosa da pandemia? Como restabelecer o isolamento de indígenas que viram suas terras roubadas?

Agora, ao bombardear a eleição, o senhor está também minando a confiança da sociedade em um sistema que tantos morreram para que fosse estabelecido na América Latina: a democracia.

Não ouse. Somos muitos e não aceitaremos. O mundo, que o despreza, tampouco aceitará.

Viva a democracia,

Jamil

segunda-feira, agosto 22, 2022

Saúde mental é uma das grandes fronteiras do capital neste século - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 22/08/22

Cada vez mais haverá jovens medicados, alunos diagnosticados e seguros de saúde mais caros


A saúde mental é uma das grandes fronteiras do capital neste século 21. Mas isso não quer dizer que todos os profissionais da área sejam picaretas, como pode pensar os apressados de plantão.

Isso significa que, do ponto de vista de quem faz uso de profissionais de saúde mental, você, enquanto usuário —e pode ser aqui uma pessoa física ou uma instituição—, começa a duvidar quando esse profissional diz que é preciso "investir" em saúde mental. Porque não sabe se ele está pensando cientificamente ou financeiramente, a partir do ponto de vista de um fornecedor —ele— do mercado de bens e serviços em saúde mental. Difícil?

Sim, difícil, bem mais difícil do que pensa nossa vã filosofia. Sim, hoje há um mercado de bens e serviços em saúde mental. Ele inclui profissionais como psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos e instituições e empresas organizadas por esses profissionais para oferecer tratamentos e formação de mais profissionais em escolas, clínicas —enfim, bens e serviços gerais do mercado de saúde mental.

E, é claro, quando o assunto é um mercado, falamos também em marketing disso tudo. Logo, há ainda profissionais de marketing, publicidade, mídia, redes sociais, escrita, jornalismo. Todos eles podem ser "players" nesse mercado de saúde mental.

Inclui também diagnósticos de todos os tipos que assolam as escolas e as famílias nos tempos contemporâneos. E, não esqueçamos, agrega ainda a gigantesca indústria farmacêutica e seus remédios.

Aqui vale um parêntese. Não se trata de sair xingando a indústria farmacêutica. Lembre que ela nos deu vacinas e longevidade em geral. Trata-se de entender, antes de tudo, que ciência não é um lugar cheio de monges-cientistas que trabalham porque são pessoas especialmente voltadas ao bem do mundo, mas que a ciência é a indústria farmacêutica —as universidades só decolam de fato quando têm apoio do capital desse setor, na imensa maioria dos casos.

A ciência sempre foi vocacionada a ser uma indústria porque custa caro. Dito isso, voltemos ao tema: a saúde mental como fronteira do capital.

Cada vez mais haverá jovens medicados, alunos diagnosticados, pais desesperados —aliás, este é um dos motivos latentes para a decisão dos jovens de não terem mais filhos— e seguros de saúde cada vez mais caros. Enfim, uma enorme rede que reúne inúmeros "players" do mercado de saúde mental.

Aliás, uma das formas de você identificar quando um segmento da sociedade se transformou numa fronteira do capital é quando ele começa a gerar demandas de bens e serviços crescentes e acumulados, como é o caso em questão hoje.

As escolas, hoje imobilizadas entre alunos, professores, pais pagadores de mensalidades e a emergente judicialização das relações entre colégios e esses pais, terão que investir dinheiro na formação específica de corpos docentes, já que elas, as escolas, foram alçadas à categoria de parceiras nos cuidados com a saúde mental —que hoje só piora— dos seus alunos matriculados.
Escolas com mensalidade abaixo de R$ 1.000 crescem na crise

A análise desse sintoma histórico e econômico deve ser também feita num plano que diferencie os vários "players" desse mercado emergente.

Do ponto de vista dos profissionais, os psiquiatras de sucesso, saídos das marcas acadêmicas públicas em medicina, tendem a ser o elo mais poderoso da cadeia.

Não é à toa que se tornou comum psiquiatras ignorarem tratamentos psicoterapêuticos em andamento e indicarem colegas seus aos pacientes, a fim de eliminar a concorrência mais frágil da cadeia, que são os psicólogos.

Na verdade, os psicólogos, em geral, são os "varejistas" desse mercado, recebendo pagamento por hora de trabalho. A psiquiatria é um elo importante nessa ciranda da indústria farmacêutica, já que detém o poderoso discurso médico em suas mãos e canetas.

Pais e escolas, ambos em pânico, cada vez mais infantilizados diante do poder do discurso médico e científico, adoram ver filhos e alunos medicados.

É sempre mais seguro ter o aval do médico. Se der pau, ele será importante para outro elo dessa cadeia: o advogado. Não há saída no horizonte. Só vai piorar a violência do capital no mundo da saúde mental.

sexta-feira, junho 17, 2022

É coveiro, sim - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 17/06

O mundo inteiro, agora, sabe quem é Bolsonaro


Em 2020, no auge da Covid, Jair Bolsonaro preferia passear de jet ski a visitar os hospitais abarrotados e solidarizar-se com os profissionais que arriscavam a vida. Enquanto brasileiros morriam por falta de oxigênio, Bolsonaro imitava uma pessoa lutando para respirar. Já então eram-lhe oferecidas vacinas, que ele desprezava em função da cloroquina. E, quando os cemitérios tiveram de abrir covas rasas para comportar milhares, ele celebrou essa tragédia com uma frase: "E daí? Não sou coveiro".

Agora Bolsonaro terá de ser coveiro. Está diante de dois mortos que o mundo não deixará insepultos: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Queira ou não, são seus mortos, assassinados pelos exploradores, traficantes e pistoleiros a quem ele entregou a Amazônia. Por "ele", leiam-se Bolsonaro ele mesmo, seu cínico vice-presidente Hamilton Mourão, presidente decorativo do Conselho Nacional da Amazônia, e o ex-ministro Ricardo "Boiada" Salles.

Bruno e Dom foram mortos a tiros, esquartejados, possivelmente incendiados e enterrados na floresta. Não se sabe a que se reduziram seus corpos —ou "remanescentes humanos", como foram chamados pelas autoridades. É insuportável imaginar que dois seres humanos, até há pouco na plenitude de suas forças e virtudes, sejam neste momento material de laboratório e, pior ainda, em Brasília, não muito longe do homem que os responsabilizou pela própria morte chamando-os de "aventureiros" e "excursionistas".

Seja o que tiver restado deles, mesmo que uma unha, terá de ser entregue às suas famílias e sepultado
—Bruno, aqui mesmo, e Dom, quem sabe em seu país. Era o que Bolsonaro mais temia: a prova física do crime. A partir de agora, ninguém mais, em qualquer parte, poderá dizer que o desconhece.

Os coveiros da Covid eram heróis. O coveiro da Amazônia pode ser chamado de muita coisa —você escolhe.

quinta-feira, abril 28, 2022

Atenção, empresas, a litigância climática está chegando - RODRIGO TAVARES

FOLHA DE SP - 28/04

Processos em tribunal contra empresas que violem metas associadas às alterações climáticas devem crescer no Brasil


Ao abrir uma filial de uma empresa no Brasil, um conhecido banqueiro brasileiro sobreavisou-me: "poupe em tudo, menos nos advogados". A judicialização das atividades corporativas, juntamente com a hiperburocratização e a tributação visigótica, são o tripé cambaleante onde assentam as empresas brasileiras.

Mais de 60 milhões de ações envolvendo empresas tramitam no judiciário brasileiro, sobretudo de cunho trabalhista, civil (contratos e indenizações) e relacionadas ao Direito do Consumidor. Um CEO brasileiro tem que conhecer tão bem o chão da fábrica quanto o chão do fórum da sua comarca.

É um cenário que se agudizará com a litigância climática, uma ferramenta a ser usada pela sociedade civil para obter a responsabilização das empresas e dos governos na agenda do clima. Ainda que as primeiras ações judiciais datem da década de 90 na Austrália e EUA, foi com a vitória histórica em 2021 de um grupo ambiental contra a Shell –em que um tribunal holandês ordenou que a empresa estabelecesse o corte de 45% das suas emissões de carbono até 2030– que se abriu um novo capítulo. Foi a primeira vez que o poder judicial de um país obrigou uma empresa a se alinhar ao Acordo de Paris.

No dia de hoje, segundo a LSE, existem 548 casos em curso em tribunal contra empresas ou entidades públicas por violações associadas às alterações climáticas. No Brasil são 18, incluindo uma ação cautelar de quatro associações não governamentais –Agapan, Ingá, Coonaterra-Bionatur e Ceppa– contra uma empresa de mineração por violação das regras de licenciamento ambiental "frente à grave situação de emergência climática".

Mas no país ainda não há registo de casos semelhantes ao da Shell. E falta ativismo jurídico por parte da sociedade civil. Em Portugal, a semana passada, um grupo de 12 jovens, composto principalmente por advogados recém-graduados e estudantes de Direito, criou a associação Último Recurso. Publicamente, apresentaram como sua missão colocar o Estado português e a empresa de energia Galp em tribunal, acusando-os de serem os principais responsáveis pela crise climática no país.

Em declarações à coluna, a direção da associação salienta que a base legal dos processos deriva "da responsabilidade civil (por violação de direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos), dos deveres fiduciários, dos riscos financeiros e dos direitos humanos". Ou seja, a base legal é ampla e multidisciplinar. A questão dos direitos humanos ocupa um espaço importante porque a ONU reconheceu há poucos meses que o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano fundamental.

Mas é mais fácil um trabalhador processar uma empresa pela simples falta de pagamento de horas extraordinárias do que uma associação processar uma corporação por contribuir para o aquecimento global e operar a crédito no planeta, afetando milhares. A associação espera "resistência dos tribunais" dada a "propensão algo conservadora das decisões jurisdicionais", acrescida pela "falta de preparação da magistratura portuguesa para lidar com quesitos ambientais e climáticos," afirmam Mariana Gomes (presidente), Beatriz Cunha (vice-presidente) e Pedro Marques (tesoureiro), por email.

Tanto no Brasil paulista quanto no Portugal lisboeta, o mundo corporativo opera em espaços de confiança e camaradagem. Os jovens advogados portugueses alertam para o fato de que muitas das empresas carbónicas "estão profundamente inseridas no status quo, cuja sustentabilidade é reconhecida por estruturas e organizações também integradas nesse status quo." Para superar a crise climática é, por isso, necessário "deixar para trás o business as usual."

Jovens portugueses têm pedigree nesta área. Em 2020, quatro crianças e dois adolescentes, com idades entre os 8 e os 21 anos, foram os autores de uma ação que deu entrada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, contra 33 Estados, incluindo o português, pela falta de ações concretas para reduzirem as emissões de gases com efeitos de estufa.

O ordenamento jurídico brasileiro, à semelhança do europeu, também permite a litigância climática.

A Lei da Política Nacional da Mudança do Clima (lei 12.187/09); o Acordo de Paris, ratificado pelo Brasil em setembro de 2016; o entendimento do STF sobre o alcance jurídico do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que determina que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; o Código Florestal Brasileiro; e uma constelação de regras associadas ao Direito Ambiental, ao Direito do Consumidor e à Responsabilidade Civil instigam as empresas e o poder público a cumprirem objetivos de mitigação ou adaptação climática.

Apesar do papel indutor de organizações internacionais como a ClientEarth ou a Global Action Network (Glan), levar a emergência climática para dentro dos tribunais acarreta custos difíceis de suportar por jovens juristas ativistas. A própria Último Recurso não tem financiamento externo e irá contatar "fundações, organizações e doadores privados" para angariar recursos.

Mas que doadores privados? Se a maior parte dos filantropos brasileiros ou portugueses são empresários, não há o risco de haver conflitos de interesse? Não poderá um empresário, pelo charme da filantropia, ser tentado a financiar ações contra a concorrência? E poderão recursos públicos da União Europeia, o maior financiador da agenda climática do mundo, ser disponibilizados para a sociedade civil processar governos, incluindo os próprios membros da UE?

O caminho será árduo, mas é imparável. Se nos últimos anos o STF tem sido exortado a interferir no poder executivo para evitar calamidades políticas, também serão os tribunais a estimularem os executivos de empresas a cumprirem regras para evitarmos catástrofes ambientais.

Rodrigo Tavares
Fundador e presidente do Granito Group; professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

sábado, janeiro 22, 2022

A última dança - GUSTAVO POLI

O GLOBO - 22/01

Desde 2019, Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol são sinônimo do melhor futebol praticado no país


Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol Foto: Alexandre Vidal / Flamengo


O fantástico “Get Back”, documentário de Peter Jackson sobre os Beatles, termina com o famoso show do quarteto no terraço da gravadora Apple. No asfalto da Londres de 1969, pedestres e transeuntes olham pra cima em busca de um rock and roll que não sabem de onde vem. Ninguém sabe direito o que está acontecendo. O que acontecia era apenas a última apresentação dos Fab Four de Liverpool. John, Paul, George e Ringo jamais tocariam juntos ao vivo de novo.

A apreciação do momento histórico é um prazer de difícil fruição. Raramente temos a percepção de viver o instante espetacular. Em geral, só percebemos ter vivido algo atemporal anos depois. Faço esse preâmbulo todo porque — com o perdão da heresia — me lembrei de um quarteto que corre o risco de fazer sua última turnê em 2022.

Desde 2019, quando Jorge Jesus ajeitou a partitura, Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol são sinônimo do melhor futebol praticado no país. Tudo bem que 2021 terminou mal. Problemas físicos, convocações e desacertos levaram o Flamengo a perder Brasileirão, Libertadores e Copa do Brasil. E hoje já há quem diga que Paulo Sousa, o novo treinador luso, curte Pedro e pode querer encaixá-lo no onze titular.

Será? É possível — Pedro é ótimo jogador. E, se for assim, talvez a era já tenha terminado. E daqui a 20, 30 anos... streamers farão reacts, vídeos ou hologramas sólidos no metaverso para lembrar dos quatro do Urubu. Faz parte — bandas se separam, o futebol é dinâmico. Mas a torcida aqui é para que Giorgian, Gabriel, Bruno e Everton tenham uma última dança. Afinal, o que eles fizeram nos últimos três anos, especialmente em 2019 e 2020, merece toda sorte de aplauso.

Foi com eles, e por causa deles, que Jesus conseguiu encaixar a pressão ofensiva pós-perda que revolucionou o ludopédio tupi. Foi com eles, e por causa deles, que o Flamengo se transformou no melhor time da década brasileira. Arrascaeta é um gênio de pequenos espaços, que prestidigita mais do que joga. Everton é um cruzamento de formiga com cigarra, um operário criativo. Bruno Henrique, um furacão de intuição impressionante. Gabigol, artilheiro frio e ao mesmo tempo passional, une carisma a uma rara percepção de jogo (repare o leitor como ele raramente fica impedido). Individualmente são ótimos — mas juntos entram no proverbial outro patamar do filósofo BH.

Os Beatles continuaram produzindo beleza quando separados, mas não chegaram perto do que fizeram em grupo. O mesmo vale para os quatro rubro-negros que, em vidas separadas, chegaram a brilhar entre Cruzeiro e Santos, mas nada parecido com os discos de ouro que ganharam no Flamengo: três estaduais, dois brasileiros, uma Recopa, uma Supercopa e uma Libertadores.

Toda analogia que envolva o quarteto de Liverpool carrega um misto de heresia com hipérbole. Claro, a genialidade no campo de futebol é de outra natureza — e se fossemos pensar em hierarquia os Beatles só seriam comparáveis a algo como a Laranja de Cruyff ou à Seleção de 70. Mas não importa se Arrasca, Gabigol, BH e Everton são Beatles, Paralamas, Oasis ou Nação Zumbi. Importa a chance de apreciar talento histórico em tempo real.

Até porque um dia, adaptando as palavras de um certo beatle, o sonho vai acabar.

domingo, dezembro 12, 2021

As contradições e as lacunas de Moro - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 12/12

A senadora Simone Tebet, pré-candidata do MDB à Presidência, disse que o investidor não precisa ter dúvidas sobre o posicionamento dela na economia e acrescentou: “Minha história fala por mim”. Esse é o problema com o candidato Sergio Moro, do Podemos, ele não tem história em alguns temas decisivos do país. Em outros, acumula controvérsias. No mercado financeiro já se ouve o farfalhar dos apoios incondicionais à pessoa sem conteúdo definido, como houve em 2018. O autoengano recomeçou.

O problema em torno de Sergio Moro é o quase nada que se sabe sobre suas ideias em várias áreas. Nos 16 meses que ficou no Ministério da Justiça, Moro barrou demarcações de terras indígenas, mandou o fracassado pacote anticrime para o Congresso, embutindo nele o excludente de ilicitude, apoiou indiretamente um motim de policiais no Ceará e abonou os sinais de desvios éticos no governo Bolsonaro, quando começaram a surgir.

Para contextualizar os ditos no parágrafo anterior. Havia 17 processos de demarcação de terras indígenas prontos para serem assinados pelo ministro da Justiça. Moro devolveu tudo para a Funai e nunca demonstrou ter qualquer interesse pelo tema indígena. O apoio ao excludente de ilicitude é agressão ao Direito. Ninguém que aposte no devido processo legal pode achar natural essa licença para matar que é bandeira de Jair Bolsonaro.

Na questão da corrupção, que o levou a ser conhecido no país, Moro disse que tinha “confiança pessoal” em Onyx Lorenzoni, quando se descobriu o caixa dois do então coordenador da transição do governo Bolsonaro. Em 9 de janeiro de 2019, diante do relatório do Coaf mostrando as movimentações suspeitas de Fabrício Queiroz, ele disse que o presidente já havia esclarecido o caso do ex-assessor do filho. Até hoje o caso permanece não esclarecido.

Houve um evento assustador na sua gestão no Ministério. Greve de policial é proibida, porque é motim de pessoas armadas. E que foram armadas pela sociedade com o fim exclusivo de protegê-la. Policiais militares se amotinaram no Ceará, desafiando o governador Camilo Santana e levando medo à população. Moro enviou o coronel Aginaldo Oliveira para resolver o conflito. Lá, o coronel definiu os amotinados como corajosos e gigantes. “É muita coragem fazer o que vocês estão fazendo. Os covardes nunca tentam, os fracos ficam pelo meio do caminho.” Imagine o perigo se todas as PMs do Brasil seguissem a orientação do enviado do Ministério da Justiça ao Ceará. Moro foi padrinho do casamento de Aginaldo com a deputada Carla Zambelli e nunca o repreendeu por essa atitude temerária.

Esses são os fatos. Moro não pode ser idealizado. Ele precisa, na campanha, definir suas ideias e propostas. Ter escolhido como conselheiro um bom economista como Affonso Celso Pastore é bom, mas está longe de ser suficiente. Ele, em muitas áreas, é uma página em branco e precisa preenchê-la. Para o bem ou para o mal, os outros candidatos são pessoas com ideias conhecidas.

O ex-presidente Lula está na vida política do país há mais 40 anos e governou o Brasil por dois mandatos. Bolsonaro teve longa vida parlamentar, na qual defendeu atentados à liberdade e aos direitos humanos. Esse tétrico prontuário foi desconsiderado por muitas cabeças pensantes do país. Deu no que deu. O governador João Dória tem um histórico que não é longo, mas testado na administração da maior cidade e do maior estado do país. Ciro Gomes foi prefeito, governador e ministro. A senadora Simone Tebet foi deputada estadual, prefeita, vice-governadora e, no Senado, presidiu a Comissão de Constituição e Justiça. Todos podem dizer “minha história fala por mim”. Moro teve curta experiência administrativa e deixou lacunas e contradições.

Há muitos temas que precisarão de respostas em 2022 e não apenas a economia. O ataque de Bolsonaro à democracia exige uma defesa intransigente do pacto democrático de 1988. As ofensas aos negros, as ameaças aos indígenas, o desprezo às mulheres, o preconceito contra a comunidade LGBTQ no governo Bolsonaro aumentaram a urgência da questão da diversidade. É mais do que um debate sobre minorias, é trincheira de defesa da civilização. Os atentados à Amazônia tornaram emergencial um amplo plano de proteção do meio ambiente. A ambiguidade não será aceitável em 2022. O país vive momento dramático e decisivo.

segunda-feira, novembro 22, 2021

Alexa sabe o nome dos seus filhos e com quem você se encontrou: veja os detalhes íntimos que a Amazon coleta com assistente de voz

O Globo - 21/11/2021 





TECNOLOGIA
Alexa sabe o nome dos seus filhos e com quem você se encontrou: veja os detalhes íntimos que a Amazon coleta com assistente de voz


Empresa diz que acesso a informações permite melhorar serviços e personalizá-los. Política de privacidade tem 3.500 palavras com links para mais de 20 páginas
O Globo - 21/11/2021 


RIO - Como legislador da Virgínia, Ibraheem Samirah estudou questões de privacidade na Internet e debateu como regulamentar a coleta de dados pessoais das empresas de tecnologia. Ainda assim, ele ficou surpreso ao saber todos os detalhes das informações que a Amazon coletou sobre ele.

A gigante do comércio eletrônico tinha mais de mil contatos de seu telefone. Ele tinha registros de exatamente qual parte do Alcorão Samirah, que é muçulmano, havia ouvido em 17 de dezembro do ano passado.

A empresa conhecia todas as pesquisas que ele havia feito em sua plataforma, incluindo uma para livros sobre “organização comunitária progressiva” e outras pesquisas delicadas relacionadas à saúde que ele pensava serem privadas.

“Eles estão vendendo produtos ou espionando pessoas comuns?” perguntou Samirah, um membro democrata da Câmara de Delegados da Virgínia.

Samirah estava entre os poucos legisladores da Virgínia que se opuseram a um projeto de lei estadual de privacidade elaborado pela Amazon e favorável à indústria, aprovado no início deste ano.

A pedido da Reuters, Samirah pediu à Amazon para divulgar os dados que coletou sobre ele como consumidor.

A Amazon coleta dados sobre os consumidores por meio de sua assistente de voz Alexa, as compras em seu marketplace, os leitores eletrônicos Kindle, além da plataforma de música.

Acesso a dados sob demanda

Assim, a empresa reúne uma vasta gama de informações sobre seus clientes nos Estados Unidos e começou a disponibilizar esses dados para todos mediante solicitação no início do ano passado, depois de tentar e não conseguir derrotar uma medida de 2018 da Califórnia que exigia tais divulgações.

Sete repórteres da Reuters também obtiveram seus arquivos da Amazon. Os dados revelam a capacidade da empresa de reunir retratos incrivelmente íntimos de consumidores individuais.

Essas informações podem revelar a altura, o peso, a saúde, a etnia, tendências políticas e os seus hábitos de leitura e compra de uma pessoa. É possível saber também o paradeiro em um determinado dia e, às vezes, quem eles encontraram.

O dossiê de um repórter revelou que a Amazon coletou mais de 90 mil gravações Alexa de familiares entre dezembro de 2017 e junho de 2021 - uma média de cerca de 70 por dia. As gravações incluíam detalhes como os nomes dos filhos e suas músicas favoritas.

A Amazon capturou as crianças perguntando como elas poderiam convencer seus pais a deixá-las “brincar” e recebendo instruções detalhadas da Alexa sobre como convencer seus pais a comprar videogames.


Conversas de família

Algumas gravações envolveram conversas entre membros da família usando dispositivos Alexa para se comunicar em diferentes partes da casa. Várias gravações capturaram crianças de sete a 12 anos fazendo perguntas a Alexa sobre termos como "pansexual".

O repórter não percebeu que a Amazon estava armazenando as gravações antes de divulgar os dados que rastreava sobre a família.

A Amazon diz que seus produtos são projetados para registrar o mínimo possível, começando apenas quando a palavra "Alexa" é acionada, parando quando termina o comando do usuário. As gravações da família do repórter, no entanto, às vezes capturavam conversas mais longas.Alto-falante Echo, da Amazon, com a assistente virtual Alexa Foto: Daniel Berman / Bloomberg

Em um comunicado, a Amazon disse que tem cientistas e engenheiros trabalhando para melhorar a tecnologia e evitar a gravação antes do comando "Alexa". A empresa disse que alerta os clientes de que as gravações são armazenadas quando eles configuram seus aparelhos.


Mudança em configurações

A Amazon disse que coleta dados pessoais para melhorar produtos e serviços e personalizá-los para indivíduos. Questionada sobre os registros de Samirah ouvindo o Alcorão no serviço de audiolivros da Amazon, a empresa disse que tais dados permitem que os clientes continuem de onde pararam em uma sessão anterior.

A única maneira de os clientes excluírem muitos desses dados pessoais é encerrar suas contas, disse a Amazon.

A Amazon disse que permite que os clientes ajustem suas configurações em assistentes de voz e outros serviços para limitar a quantidade de dados coletados. Os usuários do Alexa, por exemplo, podem impedir que a Amazon salve suas gravações ou excluí-las automaticamente de forma periódica.

Um cliente pode optar por não ter suas gravações deve navegar por uma série de menus. Mas recebe os seguintes avisos: “Se você desligar isso, o reconhecimento de voz e os novos recursos podem não funcionar bem para você”.

Encontrar informações sobre como ouviu o Alcorão em seu arquivo na Amazon fez Samirah pensar sobre a história da polícia e agências de inteligência dos EUA que vigiam muçulmanos por suspeitas de ligações terroristas após os ataques de 11 de setembro de 2001.


Falta de transparência

“Por que eles precisam saber disso?” ele perguntou. O mandato de Samirah termina em janeiro, depois que ele perdeu uma candidatura à reeleição no início deste ano.

Às vezes, as agências de aplicação da lei buscam dados sobre clientes de empresas de tecnologia. A Amazon divulga que cumpre os mandados de busca e outras ordens judiciais legais que buscam dados que a empresa mantém em uma conta.

Os dados da Amazon para os três anos encerrados em junho de 2020, os mais recentes disponíveis, mostram que a empresa cumpriu pelo menos parcialmente com 75% das intimações, mandados de busca e outras ordens judiciais que buscam dados sobre clientes dos EUA. A empresa atendeu plenamente 38% dessas solicitações.

A política de privacidade da Amazon tem 3.500 palavras com links para mais de 20 outras páginas relacionadas à privacidade e configurações do usuário.

Florian Schaub, pesquisador de privacidade da Universidade de Michigan, disse que as empresas nem sempre são transparentes sobre o que estão fazendo com os dados dos usuários.

- Temos que confiar que a Amazon fará a coisa certa. Em vez de ter certeza de que os dados não podem ser mal utilizados.

domingo, setembro 05, 2021

Carta ao Leitor: Presidente de oposição - REVISTA VEJA



Turbulência provocada por Bolsonaro tem solapado a economia do país, em um processo de autossabotagem jamais visto em um ocupante do Palácio do Planalto


Quadragésimo primeiro presidente dos Estados Unidos e sucessor de Ronald Reagan, George H.W. Bush (1924-2018) teve um mandato atípico. Depois de bater em 80% de popularidade ao deflagrar a Guerra do Golfo, em 1991, ele viu sua aceitação entre o eleitorado despencar no ano seguinte, o que o levou a perder uma reeleição que muitos analistas já consideravam ganha. O motivo para a insatisfação foi uma abrupta crise econômica, que lançou o país em uma recessão. Para vencer Bush, o rival democrata Bill Clinton fustigou-o com críticas ao déficit fiscal e ao aumento nos impostos, seguindo à risca a orientação de James Carville, seu estrategista de campanha. É de Carville a frase que define esse contexto e que entrou para a história da política: “It’s the economy, stupid!” (É a economia, estúpido!).

Passados quase trinta anos, o presidente Jair Bolsonaro talvez não conheça a máxima de Carville — ou simplesmente acredite estar imune ao fenômeno que representa. Se fosse mais atento, perceberia que perigosas nuvens se alinham no horizonte a cada ataque que faz à estabilidade democrática do país, aos demais poderes constituídos e à ordem institucional. Sob o júbilo da horda de ultrarradicais que o seguem e idolatram, a turma que vai sair às ruas no próximo 7 de setembro, a crescente turbulência provocada pelo presidente tem solapado a economia do país, em um surpreendente processo de autossabotagem jamais visto em um ocupante do Palácio do Planalto. É como se tivéssemos um presidente de oposição — uma inovação esdrúxula, ridícula e altamente prejudicial ao Brasil.

Pouco afeito às questões técnicas de gestão pública ou aos fundamentos econômicos, Bolsonaro, ao subir continua­mente o tom de seus arroubos autoritários, está pulverizando a confiança dos investidores potenciais no país — e, consequentemente, piorando a vida da população brasileira. Reportagem na edição da semana mostra como e por que, impulsionados pelo destempero da autoridade máxima da nação, o dólar se mantém em patamares muito mais elevados que o esperado e o investimento estrangeiro despencou a um volume que equivale a menos de um quarto do registrado em janeiro. Em resumo: o Brasil, que poderia estar se aproveitando da alta liquidez internacional e do novo ciclo de commodities, na verdade se vê acuado diante do fantasma da inflação, dos preços astronômicos dos combustíveis e da ameaça de uma grave crise energética.

Ao promover o caos, Bolsonaro trai a maioria daqueles que cravaram 17 no último pleito presidencial. Os eleitores o elegeram para governar o país e implantar um sistema econômico liberal. Empossado, porém, ele prefere promover uma contínua confusão, sem pesar as consequências de seus atos. Na realidade paralela em que habita, as adversidades são sempre parte de um complô armado por adversários e inimigos imaginários. Em seus devaneios, acredita que passeios de moto e manifestações, associados a um pacote de obras eleitoreiras, impulsionarão sua popularidade (obviamente, em queda vertiginosa no momento). Iludido, não percebe que tais medidas podem até lhe trazer fotos e votos, mas dificilmente conseguirão impulsionar a recuperação econômica de que o país tanto precisa e que poderia representar a sua própria reeleição. Amante de armas, Bolsonaro está dando um verdadeiro tiro no pé.

quinta-feira, setembro 02, 2021

O 7 de Setembro e o burro - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 02/09

Elites dirigentes da economia discutem como se livrar de Bolsonaro


Diante dos olhos das principais elites da economia brasileira Jair Bolsonaro repete uma conhecida trajetória. De mal menor, está virando aos olhos dessas elites o pior dos males. O mesmo aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff.

Há importantes diferenças no comportamento dessas elites que, em parte, espelham a perda de coesão institucional e o esgarçamento do tecido social brasileiro, além da forte regionalização da nossa política. Refletem também a alteração dos “pesos relativos” no PIB e na política entre indústria, agroindústria, setor financeiro e varejo. E diferentes mentalidades, que impedem o surgimento de lideranças e ações comuns. Ninguém mais fala pelo “todo” das elites econômicas.

Quando se examina as posturas políticas desses grupos de dirigentes essas diferenças separam a grosso modo os segmentos que são mais “abertos” daqueles “mais fechados” em relação ao mundo lá fora. Os mais dependentes ou integrados nas grandes cadeias produtivas globais, de capital intensivo, orientados para inovação tecnológica e atrelados ao comércio exterior e aos grandes fluxos de investimento foram, por exemplo, os que abateram os ministros bolsonaristas das Relações Exteriores e Meio Ambiente.

É importante notar que nesses grupos a oposição ao governo não se deu simplesmente por ser considerado “ruim para os negócios” (caso claro do moderno setor do agro). A forte rejeição a Jair Bolsonaro facilmente detectável nesses segmentos vem de uma visão de mundo – portanto, ideológica – para a qual o presidente simboliza o contrário dos princípios fundamentais de uma sociedade aberta, tolerante e liberal no sentido europeu da palavra. Foi nessas áreas que mais rápido Bolsonaro trafegou da condição de personagem político “tolerável” à de “insuportável”.

Ele foi salvo até aqui de um destino parecido ao de seus ministros defenestrados por uma característica comum ao empresariado (desculpem a generalização, sempre perigosa): o profundo temor de se meter em política. Quando isso acontece (meter-se em política) a causa costuma ser a defesa dos próprios interesses setoriais e negócios, e só em casos excepcionais é o resultado de uma ação coletiva em torno de princípios gerais ou projetos nacionais. “Política” é vista, não sem motivos, como coisa suja por definição.

O perigo para Bolsonaro é quando a excepcionalidade da ação por motivação “ideológica” se junta à noção no empresariado de que está tudo muito ruim para os negócios, as perspectivas não parecem que vão melhorar, os problemas aumentam, diminuem esperanças de dias melhores a curto prazo, vão subir inflação, juros e os impostos, fora os custos e as despesas. E a imprevisibilidade do triste ambiente de insegurança jurídica se agrava com pandemia, crise hídrica e, para culminar, instabilidade política trazida pela incessante crise institucional.

O “tipping point” (ou palha que quebra o lombo do burro) é o momento em que o receio da severa turbulência causada por um processo de impeachment é menor do que a certeza de que com Bolsonaro vai tudo só ficar pior, e que não dá para aguentar até as distantes eleições do ano que vem, pois a velocidade e profundidade da crise encurtaram drasticamente os horizontes de tempo. É o momento no qual a crise brasileira se encontra.

As forças do centrão já dão demonstrações de que consideram Bolsonaro intragável, prejudicial aos próprios interesses (políticos e econômicos) o que não significa abraçar-se ao “outro lado”, ou seja, Lula. É um volátil processo político no qual os caciques do centrão confabulam com setores dirigentes da economia e vice-versa. Não surgiu ainda dessas conversas, que estão se intensificando, se o melhor caminho para sanar a maluquice que emana do Planalto é acelerar um impeachment ou articular uma terceira via – à qual a turma do dinheiro está, sim, se dedicando.

Com o 7 de setembro Bolsonaro está se esforçando para ver quanto o burro aguenta.

JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN

sexta-feira, agosto 27, 2021

A reação dos adultos - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 27/08

As palavras do comandante do Exército soam como a antítese do governo de Jair Bolsonaro. O alerta brota espontâneo. O País precisa urgentemente dos adultos


Jair Bolsonaro continua tratando irresponsavelmente o País. Num cenário de indicadores sociais e econômicos difíceis, o presidente da República reforça tensões, cria atritos e ameaça outros Poderes. Nota-se a sanha, completamente irrazoável, de inviabilizar qualquer possibilidade de tranquilidade e estabilidade.

O quadro é desafiador. Deve-se reconhecer, no entanto, a atuação responsável de autoridades civis e militares, em contraste com o bolsonarismo. O comportamento de Bolsonaro continua sendo grave, mas essa reação madura – recordando limites e preservando o funcionamento das instituições – evita muitos danos. Apesar do bolsonarismo, há adultos na sala.

Na quarta-feira passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, rejeitou o pedido de Jair Bolsonaro para abrir processo de impeachment contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. “Como presidente do Senado, determinei a rejeição da denúncia por falta de justa causa e por falta de tipicidade”, disse Rodrigo Pacheco.

A rápida resposta do presidente do Senado deu a exata dimensão da peça acusatória. Sem nenhum fundamento jurídico, o pedido de impeachment era tão somente expressão da birra do presidente Jair Bolsonaro contra decisões judiciais que desagradaram ao Palácio do Planalto.

“Quero crer que essa decisão (de rejeitar o pedido) possa constituir um marco de restabelecimento das relações entre os Poderes, pacificação e união nacional”, afirmou o presidente do Senado. No entanto, já no dia seguinte, Jair Bolsonaro mostrou que não se deve nutrir a expectativa de mudança de seu comportamento.

Criticou o presidente do Senado e reclamou que o pedido de impeachment não tenha sido recebido como uma ordem judicial. “Quando chegou uma ordem do ministro Barroso para abrir a CPI da Covid, ele (Rodrigo Pacheco) mandou abrir, e ponto final. Ele agiu de maneira diferente de como agiu no passado”, disse Bolsonaro à Rádio Jornal Pernambuco, em entrevista na qual também criticou o ministro Alexandre de Moraes.

Também na quarta-feira passada, o ministro Edson Fachin arquivou quatro ações propostas por Jair Bolsonaro e pelo Diretório Nacional do PTB, questionando o artigo do Regimento Interno do STF que autoriza o tribunal a abrir, em determinados casos, investigações próprias. Foi com base nesse dispositivo que o Supremo abriu o inquérito relativo às fake news e ameaças contra a Corte e seus ministros.

Na decisão, Edson Fachin lembrou que o plenário do STF já se manifestou no ano passado pela validade do dispositivo, precisamente ao analisar a instauração do inquérito das fake news. É constrangedor constatar como o Palácio do Planalto, em vez de colaborar com as investigações do Supremo sobre indícios e suspeitas de crimes, limita-se a questionar, sem nenhuma base jurídica, a existência dos inquéritos.

O bolsonarismo imita, assim, a tática do lulopetismo. Não dá explicação sobre as condutas suspeitas de crimes. A resposta à Justiça e à população é apenas uma, por sinal muito pouco convincente: Jair Bolsonaro e Lula da Silva seriam vítimas de perseguição do Judiciário. Agiu bem, portanto, o ministro Edson Fachin ao arquivar tais manobras judiciais.

Outro exemplo de maturidade e responsabilidade pôde ser visto na cerimônia de homenagem ao Dia do Soldado. Num momento em que o bolsonarismo se vale do bom nome das Forças Armadas para instigar confusão e convocar apoiadores para invadir o Supremo e o Congresso no 7 de Setembro, o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, deu um recado cristalino, assegurando que as Forças Armadas estão “sempre prontas a cumprir a missão delegada pelos brasileiros na Carta Magna”. Não há margem para golpe.

O comandante do Exército reafirmou ainda o compromisso das Forças Armadas com os “anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento”. Próprias da maturidade, essas três palavras soam como a antítese do governo de Jair Bolsonaro. O alerta brota, então, espontâneo. O País precisa urgentemente dos adultos.

quinta-feira, agosto 26, 2021

Paulo Guedes entra em choque com planos de Bolsonaro ao desdenhar de inflação - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP 26/08

Ministro fala dos custos de vida da população como se fossem detalhes desprezíveis



Paulo Guedes tem um plano para enfrentar as incertezas que levantaram a ameaça de um apagão e fizeram disparar a conta de luz. As tarifas já pressionam o orçamento da população mais pobre, mas o ministro avisou que o preço vai subir ainda mais. "Temos de enfrentar a crise de frente", resumiu. "Não adianta ficar sentado chorando."

O chefe da equipe econômica fala dos custos de vida da população como se fossem detalhes desprezíveis. Guedes já afirmou que a alta do preço do arroz era só um efeito da melhora na vida dos brasileiros de baixa renda. Na semana passada, ele disse que uma inflação de 8% neste ano não seria nenhum descontrole e que o país estava "dentro do jogo".

A demofobia do ministro é um elemento tradicional da política econômica do governo Jair Bolsonaro. Guedes fez pouco caso de empregadas domésticas que aproveitaram o dólar baixo para viajar ao exterior e dos porteiros que mandaram filhos para a universidade com financiamento público. Agora, ele diz que é preciso engolir o choro e pagar as contas.

No meio da semana, Guedes afirmou que não era preciso ter medo de encarar a crise. "Qual é o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara?", indagou, insinuando que o cenário era inflado por uma antecipação do ambiente eleitoral. Ele poderia refazer a pergunta às famílias pobres que já enfrentam uma inflação acumulada de mais de 10%, puxada pelo custo da energia.

O desdém do ministro entra em choque com as aflições políticas de Bolsonaro. O presidente já identificou a inflação como um dos maiores riscos à sua campanha pela reeleição. Guedes pode fingir que o problema não existe, mas a bomba vai explodir no colo de seu chefe.

O ministro deve mesmo achar que a inflação de 8% não é o fim do mundo e que o aumento da conta de luz é razoável, mas ignorar essas pressões atrapalha os planos eleitorais de Bolsonaro. Se o presidente realizar o sonho de dar um golpe para continuar no poder, Guedes não precisará mais se preocupar com o povo.


O Sete de Setembro de Bolsonaro - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 26/08

Um apanhado parcial do que ele terá a comemorar, capaz de lhe render 300 anos de cadeia


O Brasil de Jair Bolsonaro terá muito a comemorar a sete de setembro: pobreza, corrupção, violência, crime organizado, tráfico de drogas, racismo, homofobia, feminicídios, massacres de indígenas, ocupação de terras demarcadas, desmatamento, queimadas, destruição da natureza, desprezo pelo patrimônio histórico, políticos repulsivos, pastores evangélicos idem e uma certeza geral de impunidade. Sim, são males seculares, endógenos, do Brasil. Apenas, ultimamente, pioraram muito.

Mas há outros intransferíveis, exclusivos do governo Bolsonaro: negacionismo, 600 mil mortes pela pandemia, absoluta falta de compaixão, estímulo ao contágio, sabotagem das medidas de prevenção, venda criminosa de remédios inócuos, falta de programa para o controle da doença e, ao contrário, campanha nacional contra a vacina e a máscara —seguida da descoberta de que a compra de vacinas poderia, quem diria, enriquecer aliados, empresários, políticos, atravessadores e coronéis. Isso só no quesito saúde.

Bolsonaro nos brindou com ainda mais contribuições: prostituição das Forças Armadas, anarquia da PM, aparelhamento da Justiça, desconfiança no processo eleitoral, afrontas ao STF, indústria de fake news com dinheiro público, milícias digitais, súbito prestígio de boçais profissionais (à paisana ou fardados, com ou sem chapéu de caubói), dissolução da cultura, estrangulamento da educação (com a grave possibilidade do fechamento de colégios e universidades), aviltamento do Itamaraty e desmoralização internacional do Brasil.

Em consequência do abandono completo da administração, temos colapso de investimentos, alta do dólar, inflação sem controle, disparada dos juros, crise hídrica como se não existisse e benesses bilionárias ao centrão. Isso é que é trair seus eleitores, não?

Claro que, para se safar de, com sorte, 300 anos de cadeia, só resta a Bolsonaro —e a seus filhos calculistas e perigosos— o golpe.

Crise se agrava no setor elétrico - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 26/08


A crise no setor de energia se agravou nos últimos dois meses, mas os especialistas já haviam alertado que isso iria acontecer. Ontem o governo convocou a imprensa para anunciar que haverá três programas para redução de consumo. Um para as grandes empresas, um para os consumidores residenciais e outro para os órgãos federais. A coletiva foi marcada pelo improviso e pela falta de informações sobre o funcionamento e os custos dessas medidas. O ministro Bento Albuquerque continua errando na comunicação, ao afirmar que não trabalha com a hipótese de racionamento. Na prática, isso já começa a acontecer para os órgãos federais. O governo está atrasado porque é negacionista também nesse assunto e tem medo da queda da popularidade do presidente Bolsonaro.

Os programas de redução de consumo só foram apresentados agora, no oitavo mês do ano. As empresas dizem que levará tempo até que haja confiança para uma adesão expressiva. Os órgãos federais que descumprirem as metas não serão punidos. E o consumidor residencial não sabe quem pagará pelo seu bônus. O risco é que seja ele mesmo, com aumento de bandeira tarifária. Ganha-se um desconto de um lado, paga-se mais via encargos de outro. Os especialistas são unânimes em afirmar que não há uma campanha de comunicação que mostre a gravidade desta crise elétrica.

O nível de água dos reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste está em 22,7%, o menor patamar para agosto dos últimos 20 anos, superando inclusive 2001. Essas duas regiões representam 70% da capacidade de armazenagem do sistema. A situação é crítica. Circula a informação no setor de que o presidente Bolsonaro vetou um pronunciamento que seria feito pelo ministro Albuquerque em rede nacional na última segunda-feira. Bolsonaro não quer notícia ruim às vésperas das manifestações do 7 de Setembro. Trocou-se isso por uma coletiva transmitida pelo canal oficial do ministério nas redes sociais.

As grandes indústrias dizem que é cedo para avaliar a eficácia do programa de racionamento voluntário. O consumidor cativo pagará os custos da medida sob a forma de Encargo de Serviços do Sistema. Esse é o mesmo encargo que contabiliza os gastos com as termelétricas, que continuarão operando em carga máxima. Ou seja, um custo irá se somar ao outro. As indústrias temem que o voluntário vire compulsório.

— Como o governo é pouco confiável, se você entrar nisso ele pode te obrigar depois. É o risco de o governo forçar a mão caso a situação se agrave. Ainda não houve uma postura de real conversa com a sociedade, com abertura dos dados para todos os agentes sobre esta crise. Como confiar? — diz o representante de um setor industrial.

O ex-diretor-geral da ANP David Zylbersztajn, especialista em setor elétrico, afirma que o risco de faltar energia em horários de pico no final do ano tem aumentado. No passado, houve governantes que contaram com a sorte e a chuva os salvou, mas não se deve apostar nisso.

— Bolsonaro precisa entender que há um risco de 30% de faltar energia. É um percentual muito alto. Ele está apostando nos 70%. O Lula fez isso em 2008 e deu certo. A Dilma fez isso em 2014 e empurrou a crise para 2015. Mas é papel do governo pensar no pior cenário. Se ele acontecer, será dramático para a economia — afirmou.

O consultor Luiz Augusto Barroso, da PSR, diz que o cenário piorou muito em relação às suas análises anteriores e as previsões de chuvas para o mês de setembro não estão boas. Com o baixo nível de água, o sistema elétrico já está operando no limite, o que aumenta o risco de falhas nos sistemas de geração e transmissão. Ele acha que algumas medidas do governo têm dado certo, como a flexibilização dos limites de armazenamento e vazão de água das hidrelétricas e o aumento de importação de energia de países vizinhos. Sobre o programa de redução de consumo das residências, diz que é fundamental, mas ainda faltam detalhes.

— Disseram que o dinheiro não virá do Tesouro, mas da tarifa. Ainda está pouco claro sobre como isso vai funcionar — afirmou.

Itaipu está hoje gerando 39% da sua capacidade. Se não fosse a energia dos ventos e do sol, que não havia na crise de 2001, o Brasil já poderia estar em colapso. A eólica em agosto gerou 166% mais energia do que Itaipu no Brasil, e o sol chegou a 10 GW de potência instalada.

A crise hídrica impacta a economia dramaticamente e já está afetando as famílias pela inflação da energia. O governo ao atuar do lado da oferta — e só agora ter medidas para conter a demanda — está contratando aumentos futuros e elevando os riscos do país.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)