quarta-feira, abril 29, 2020

A revolução do corpo - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 29/04

Viva Isadora Duncan e Anitta! Viva todo ser que diz que o corpo pode expressar, protestar e ser


No dia 29 de abril, segundo determinação da Unesco, celebra-se o Dia Internacional da Dança. Foi escolhida a data por ser aniversário do professor, coreógrafo e bailarino francês Jean-Georges Noverre (1727-1810). Noverre representou a passagem do ballet formal de corte e de teatro para o estudo da gestualidade das ruas para uma “dança em ação”. Assim, o ato de dançar seria mais natural e expressivo. Era admirado pela elite londrina, por Maria Antonieta e por Frederico da Prússia. Foi amigo de Voltaire e de Mozart. Era uma celebridade em toda a Europa.

Leio com admiração biografias como a de Noverre. Vim ao mundo sem habilidades de desenho e de dança. Na minha família, o mal é coletivo e corre, entre nós, o adágio que “se um Karnal souber desenhar ou dançar, é bastardo”. Mais de uma vez, disse que só dançava para acasalamento, ou seja, na fase da conquista e, depois, revelava minha inaptidão absoluta para o bailado. Das musas que presidem ao ato artístico, Terpsícore (da dança) foi a que se recusou a assistir ao meu nascimento. Admiro o corpo falando pela dança, admiro a técnica e a expressividade daquelas mulheres e homens que exibem um ato árduo de trabalho prévio parecer leve. No aniversário de 80 anos da minha mãe, fiz o último e debalde esforço: treinei uma valsa. Felizmente, não foi filmada a pantomima. Os mais generosos diziam que eu parecia aqueles bonecos de posto de gasolina com vento que os ergue e, imediatamente, os derruba. Existe certa honra em reconhecer limites. Dançar e desenhar são limites pétreos meus.

Um dia, usei a imagem de um pé de bailarina em uma palestra. Estava machucado, com entorses e hematomas. Era o fruto de horas pesadas de treino e de muita dor, choro e sacrifício. Quando vemos a graciosa bailarina voando, delicada e ágil, poucos imaginam que a estrada até ali seja tão complicada. A dança é de uma exigência enorme. É verdade, sei como músico amador, que o estudo prolongado de piano causa dor nas costas, cansaço visual e até exaustão das mãos. A dança demanda a dor nas costas, nas mãos, nos pés, no pescoço e na alma. O ato de se entregar a um público é sublime e... exaustivo.

Falei de dança clássica, porém, admiro todas as formas de movimento de corpo. Os passos desconstruídos da street dance, o gingado do samba, os maracatus ritmados, a sensualidade do tango e a coreografia da valsa (não dançada por mim, claro). Nas cortes antigas, saber dançar um minueto e outras formas coreografadas era tão importante quanto a boa conversação e o uso dos talheres. Dançar, para homens e mulheres, era parte da educação formal que se exigia para o convívio.

Admirei imagens ou vídeos de Márcia Haydée e de Mikhail Baryshnikov. Assisti ao vivo à força cigana da dança de Joaquin Cortés. Vi ballets tradicionais (O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes, Dom Quixote, etc.) no Alla Scala de Milão, em Nova York e em São Paulo. Minha incapacidade pessoal aumenta minha admiração pela sincronia e pelo domínio de cada fibra do corpo com elegância e arte.

Vou ultrapassar algumas fronteiras e chocar os mais pudicos. Admiro, também, as dançarinas de funk em trios elétricos. Sim, sei que muitos colegas intelectuais dirão que é uma coisificação do corpo feminino. Discordo. Acho um empoderamento expressivo uma mulher como Anitta dirigir um cortejo com centenas de milhares de pessoas mesmerizando com um gesto de se abaixar e balançar o quadril. Podem existir excessos em bailes funk? Tenho certeza que sim, como podem existir em sofisticados apartamentos que ouvem jazz melódico e se locupletam de drogas. Há um traço de demofobia no julgamento do funk. O corpo livre vira um manifesto político e o corpo é a área por excelência para o exercício da repressão. Isso vai da barriga gestante de Leila Diniz à minissaia de Mary Quant; da liberdade da primeira-dama Nair de Tefé dançando o Corta-Jaca no palácio presidencial ao ritmo empreendedor de Larissa, mais conhecida como Anitta. O corpo livre incomoda as mentes acorrentadas. O corpo livre da mulher é ainda mais escandaloso. Faz milênios que se ouve o mesmo brado: “As mulheres de hoje em dia estão cada vez mais peladas e mais fáceis. No meu tempo, elas sabiam ter decoro”. Essa é uma frase encontrável no Baixo Império Romano, no Renascimento, ao longo do século passado e no carnaval de 2020.

Dançar pode ser libertador. Escrevo e imagino se me inscreverei na desconfiança da bastardia da família. Aprenderei a dançar tão próximo à data em que poderei utilizar fila especial de melhor idade nos aeroportos? Talvez sim. No meu caso, trata-se de questão pessoal de relevância discutível. No caso da sociedade em geral, enquanto houver um corpo voando no Lago dos Cisnes ou agitando um trio elétrico, haverá esperança de que ainda exista vida, disciplina da liberdade e projetos vitoriosos. Viva Isadora Duncan! Viva Anitta! Viva todo ser que diz que o corpo pode expressar, protestar e ser sem depender do azedume alheio. Esperança sempre! A esperança faz dançar.

Da nossa conta - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 29/04

Podemos pagar pelos que não abrem mão do lazer e continuam a sair às ruas


Minha empregada está em casa no subúrbio, com marido, filhos e netos. Amigos meus fecharam seus escritórios, ateliês ou pequenos negócios, e também estão em casa. Atores e músicos que conheço estão igualmente parados, e em severa quarentena. Muitas dessas pessoas vivem em apartamentos modestos, que lhes bastavam quando podiam sair à vontade. Confinadas, as paredes começam a pesar-lhes. Elas gostariam de dar um pulo lá fora. Mas, conscientes que são, sabem que, enquanto as mortes pelo vírus não chegarem ao pico e só então declinarem, não é hora de abrir a guarda.

Em contrapartida, de minha janela, vejo jovens e velhos caminhando no calçadão da praia, pedalando ou correndo na ciclovia e até indo mergulhar. Sei pelo noticiário que em São Paulo também é assim. Uma coisa são os prestadores de certos serviços, que não podem parar de trabalhar. Outra são os que decidiram não abrir mão do lazer --nem querem privar disso seus garotos, a julgar pelos festivos playgrounds que também vejo daqui.

Não conheço a cor política dessas pessoas, mas quem continua a flanar, contra as recomendações dos agentes da saúde, está repetindo, até sem saber, o gesto de Jair Bolsonaro, para quem ninguém cerceará o seu direito de ir e vir. Por mim, Bolsonaro pode ir até para o diabo que o carregue, nem é da minha conta a saúde de quem sai em carreatas ou com ele partilha celulares, abraços e perdigotos.

Mas é da conta de todos nós, que estamos em casa, a saúde dos que continuam nas ruas como se tivessem passaportes de imunidade. O passeio de um deles, hoje, pode render uma internação só daqui a 15 dias. O problema é o que, por uma cadeia perversa, esses 15 dias custarão a quem ficou em casa.

Um amigo paulista, pioneiro da quarentena, está muito mal. Pode ter sido infectado pelo netinho assintomático. Não haverá tragédia maior para uma família.


O pessoal contra o impessoal - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 29/04

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos

Somos editados por nossas culturas e sociedades. Por nossas épocas, moralidade e – eis um óbvio ululante sempre olvidado – por nossos idiomas que inventam a nossa realidade. Ter consciência do mundo, como ensina Shakespeare, é saber que se entra num drama que existia antes de nós, que nele atuamos e que um dia vamos deixá-lo.

Para variar, eis mais uma crise: o presidente usou mais uma vez contra si mesmo o seu bacamarte. Eu já sugeri nesta coluna como o suicídio político faz parte do inconsciente brasileiro. Sua data oficial é 1808, quando a corte portuguesa fugiu de Napoleão e aqui consolidou um estilo de vida aristocrático e escravista, mas a isso se seguiram outras “renúncias” e impedimentos.

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos. Nas monarquias absolutistas, como a de d. João VI e a do modelar Luiz XIV, o Rei Sol, estado e sociedade estão integrados. O governo é uma família: ser rei não é um cargo disputado, é um papel predestinado. Na realeza, o legal e o circunstancial se fundiam no “sangue azul” e num indiscutível “direito divino”. Reis e nobres eram donos do reino. Não se governava por consentimento eleitoral, mas através de um elo com o sagrado.

O republicanismo mudou tudo. Como revela Tocqueville na sua etnografia da América, a democracia criou uma sociedade movediça e consciente de si mesma. As motivações pessoais entram em óbvia colisão com as demandas dos cargos públicos. Nos Estados Unidos, cargos públicos não podem ser acumulados e são vistos como serviços – quem os aceita deve abrir mão de sua vida privada.

Nas repúblicas, cada papel público tem sua área de decisão protegida de interferências. Foi essa igualdade livre de pessoalíssimos que tanto assombrou o lado nobre de Tocqueville quanto o meu lado relacional e familístico de brasileiro branco, machista e de classe média quando vivi a experiência americana. Chocou-me saber que era bom ficar sozinho e que o ideal era ter sua própria opinião e não ser um papagaio de sabedorias alheias. Assustou-me, igualmente, a vivência rotineira do limite e, sobretudo, do concordar em discordar. Algo inédito, mas que – espero – esteja nascendo no Brasil.

Não sei quantas vezes um presidente interferiu com superintendentes da PF. Noto, porém, que foi esse diálogo espúrio entre Estado e empresas que inventou a Operação Lava Jato, conduzida impecavelmente por Sérgio Moro. As interferências corroem a igualdade e o anonimato relativo, mas crítico das democracias. Quando ele é obscurecido ou ideologizado, como foi o caso dos governos petistas, viu-se que constituem o tumor de protagonismos escusos e o berço da corrupção.

Eu fiz um estudo pioneiro do “você sabe com quem está falando?”. Lívia Barbosa analisou o seu contraponto: o “jeitinho” que tudo resolve. Tais brasileirismos rejeitam o impessoal e o anonimato imprescindíveis numa república.

O conflito do magistrado com o presidente tem a ver não com a intenção de mudar. Não há como esconder que o projeto intenta “blindar” as investigações dos filhos de um presidente eleito para liquidar privilégios, mas que insiste em governar de modo absolutista.

Numa república nada é mais delicado do que os cargos ligados aos limites da liberdade. Se as polícias sofrem interferências e têm elos extraoficiais com os poderosos, cria-se uma democracia selvagem, muito pior que o capitalismo que nasceu sem pai e, principalmente, sem mãe. Mas cujos abusos são corrigidos pela fidelidade à igualdade contra a sua brutal e constitutiva impessoalidade. A crise reitera esse combate do pessoal e de um aberto familismo, contra a impessoalidade estruturante das democracias.

Assistir em pleno século 21 a um enredo já equacionado no século 19, um filme protagonizado por um presidente referendado com a promessa de liquidar esse personalista pilar da “velha política”, contra o ministro sem o qual ele jamais teria sido eleito, já que ambos queriam o controle do familismo aristocrático e ilegal, não é apenas ofensivo e deprimente. É uma merda!

Bolsonaro sobre 474 mortos: "E daí?" E o tédio mortal do ministro Teich - REINALDO AZEVEDO

UOL - 29/04


"E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre".


Essa foi a reação do presidente Jair Bolsonaro nesta terça ao ser informado do número de mortes por Covid-19.

Como viemos parar nesse buraco moral? O fato é que estamos nele.

O Brasil registrou nesta terça um recorde de mortes em razão da doença: 474. Já são 5.017 os mortos contabilizados pelo Ministério da Saúde, que reconhece uma lista de apenas 1.156 óbitos em investigação. A subnotificação, no entanto, é brutal e autodemonstrável, por exemplo, no caos que enfrentam os sistemas de saúde e funerário de cidades como Manaus e Belém. Na capital fluminense não há mais leitos disponíveis. Belo Horizonte mandou abrir 1.900 covas. Estão começando a se popularizar os contêineres frigoríficos para estocar carne humana, essa carne brasileira que tem sido tão barateada.

Assistimos a cenas inéditas, com caixões sendo empilhados em covas coletivas, a exemplo do que se vê na capital do Amazonas. O país da "gripezinha", como Bolsonaro chamou a doença, ocupa o 9º lugar no ranking de mortos — já superou a China (4.512) nesse particular — e o 14º em número de contaminações: 71.886. E, no entanto, as autoridades federais, entre perplexas e raivosas, não conseguem nem mesmo se solidarizar com as famílias atingidas.

Além da Covid-19 e das outras moléstias que já matavam no país, há uma doença ainda mais grave que anda por aí a nos assombrar e que, esta sim, pode nos inviabilizar porque nada de útil sairá de uma vivência assim: a impiedade, a falta de empatia, o desrespeito com a vida, o alheamento, a alienação. Já vimos grandes correntes de solidariedade se formar no país em momentos de tragédia. Hoje, no entanto, assistimos a uma espécie de suspensão coletiva do juízo e do padrão mínimo de decência.

É claro que não é um sentimento generalizado. Talvez nem seja majoritário. Mas é escandalosamente perceptível para que não seja apontado. Assim como os pulmões do doente de Covid-19 assumem, nos exames de imagem, o aspecto de um vidro fosco, parece que os espíritos também estão se deixando ofuscar pela estupidez, pelo dane-se, pelo "quer que eu faça o quê?"

No caso da indagação de Bolsonaro, a resposta é bastante simples. Bastaria que não tivesse ideologizado a questão, insistindo numa insana e homicida exortação a que as pessoas saíssem do isolamento social. Bastaria que não tentasse convencê-las de que deveriam levar uma rotina normal em nome da economia porque, afinal, "todo mundo vai morrer um dia". Bastaria, na condição de chefe de Estado, a expressão de alguma solidariedade, de algum compadecimento genuíno, de alguma, enfim, empatia.

Mas o presidente que temos parece incapaz de se colocar um pouco que seja no lugar do outro que sofre. Por isso justificou e defendeu a tortura em reiteradas declarações. Para o torturador ou para quem faz a apologia de tal prática, o que é o torturado? É uma "coisa" da qual se deve arrancar uma confissão. Assim como os corpos empilhados em Manaus. É claro que Bolsonaro está também fazendo história e escrevendo a sua biografia. As vítimas potenciais do caos, no entanto, não têm como esperar pelo ajuste de contas.

Os sistemas de saúde de todos os grandes centros estão sob pressão. Não era uma gripezinha. A cada dia, descobrimos que sabemos ainda pouco sobre a doença. Todas as teses de Bolsonaro estavam erradas. Só não nos tornamos um vale de desgraçados de dimensões continentais porque a sua pregação não triunfou — embora ele certamente tenha prejudicado em parte a eficácia do isolamento horizontal. A doença atrapalhou os seus planos. E, por isso, parece que ele não perdoa os doentes.

Na entrevista desta terça, o ministro Nelson Teich, com o aspecto de burocrata de funerária de filme B, afirmou, como um autômato, que as mortes cresceram, contrariando sua expectativa, e tratou do assunto, ele também, com a compaixão que a gente sente por um bloco de gelo. Ninguém espera certamente de um médico que se deixe tomar de emoção quando está examinando um paciente ou fazendo uma cirurgia. Tudo o que esperamos dele é racionalidade, técnica, frieza, apego à ciência, ao saber firmado, à memória científica de casos afins etc. Não é fácil. Por isso mesmo, é preciso ter um espírito especialmente talhado para a função.

Ocorre que, além de médico, Teich é agora um homem público, que lida com a saúde e o destino de milhões de pessoas. Seu despreparo para exercer a função — que não é a de estatístico, ainda que ele fosse bom nisso, mas não parece ser — é de tal sorte evidente que chego quase a me compadecer do da sua falta de identificação com a condição humana. Nem se trata de acusá-lo de desprezo olímpico, o que se exerceria com retórica agressiva. Não! Acho que devemos temer o seu tédio diante dos corpos empilhados.

Todos terão, fiquem certos, suas respectivas histórias contadas.

Há, sim, uma guerra contra o vírus. E haveremos de identificar os generais da morte.

Entre chiquês e glacês - ROSÂNGELA BITTAR

O Estado de S.Paulo - 29/04

Integrantes do Centrão podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes



Sai o impeachment, temporariamente retirado das hipóteses de trabalho da oposição (PSDB, MDB, DEM), entra a denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro, medida que, antes de chegar ao Congresso, ganha arrazoado no Supremo Tribunal Federal.

A aposta de solução para içar o País da crise, agora, é judicial. Informado, o governo intensifica a articulação de defesa, cuja operação mais radical, que abalou instituições como a Polícia Federal e o Ministério da Justiça, foi a investida sobre o controle dos inquéritos e relatórios policiais.

Diante disso, a oposição reage, apressando-se em definir sua forma de atuação.

Os processos que se seguiram às denúncias do procurador-geral da República contra o ex-presidente Michel Temer, todos derrubados pelo Congresso, são os modelos na expectativa de governo e oposição.

Esta é a principal inspiração na mudança do pensamento do presidente quanto às alianças políticas. O caminho das pedras é a conquista do Centrão, grupo de partidos que fazem as votações do Legislativo penderem para o norte ou para o sul, sem explicações.

Cerca de 70 votos, se tanto, é a avaliação da atual bancada de Bolsonaro na Câmara, como demonstrou recente votação do interesse dos Estados e municípios. A oposição formal ou eventual, contando com os partidos que há décadas dominam de fato o jogo no Parlamento, somados a alguns da esquerda, poderá chegar a pouco mais de 100. Ficariam os demais, em torno de 200 das duas Casas, sob a liderança do Centrão. Que não é um só, são muitos.

Dividem-se os parlamentares centristas em muitas alas. O forte eixo Nordeste é liderado por Ciro Nogueira (PI), Arthur Lira (AL) e Aguinaldo Ribeiro (PB), e a sigla dominante é o PP. Embora o alagoano Lira seja atualmente o mais citado por estar em campanha para a sucessão de Rodrigo Maia, é Ciro Nogueira quem organiza o movimento e orienta o carnaval.

Há o “Centrão Chic”, do paulista Gilberto Kassab (PSD), que fala pouco e opera muito. Tanto que, embora formalmente aliado do governador João Doria, negocia com o presidente Jair Bolsonaro. Está caracterizado até mesmo um “Centrão Glacê”, ala que contribui com nuances da esquerda, na qual se situa, por exemplo, o deputado Orlando Silva (PCdoB). Sem aceitar cargos no governo, os parlamentares deste grupo evitam o isolamento, articulando-se com os mais numerosos para fazer política no Congresso.

O ex-deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP) foi, durante muito tempo, uma espécie de logotipo do Centrão. Ainda controla seu partido com firmeza e tem fama de cumpridor de acordos. O PRB, “Centrão dos Bispos”, saiu um pouco da cena depois do revés do grupo na CPI dos Sanguessugas, mas se recuperou com Bolsonaro.

Já o DEM, agora um caso à parte, é o “Centrão Sofisticado”. Criou uma boa imagem e persegue a posição que já teve um dia, de legenda com um projeto político próprio.

Os motivos do governo para obter o apoio do Centrão, todos sabem: criar um lastro de apoio no Congresso para, em alguns momentos, aprovar projetos do seu interesse. Em outros, como agora, evitar a queda.

E o Centrão? Oferecer aos seus membros meios de sobrevivência. Um lema-síntese, colecionado por político criativo para fugir ao clichê, revive um refrão do cancioneiro do cangaço: “o Centrão é ‘tu me ensina a fazer renda que te ensino a namorar’”.

O governo se obriga a entregar a mercadoria negociada. Por exemplo, o Centrão sempre está de olho em duas casas bancárias da Esplanada dos Ministérios, a Funasa, na Saúde, e o FNDE, na Educação.

Não existe a hipótese de enganar o Centrão. Diante dos dribles, seus elementos de significativa base parlamentar podem bandear-se para o inimigo antes que o galo cante três vezes.

Símbolos de uma República em crise - FERNANDO EXMAN

Valor Econômico - 29/04

Trégua entre as alas do governo não deve ser duradoura


Nas cortes, aprende-se nos livros de história e manuais de cerimonial, os gestos têm tanta força quanto as palavras. É o que ocorre em Brasília, onde frequentemente as mensagens não são passadas de forma explícita por meio de sentenças completas, frases com sujeito, verbo e predicado.

O simbolismo é um costume político e as autoridades usam atos públicos para, mesmo sem abordar diretamente um assunto, enviar recados. Auxiliares são prestigiados ou colocados no ostracismo, dependendo dos lugares que ocupam à mesa ou no palco. Destinos são definidos muito antes das nomeações ou das exonerações chegarem ao “Diário Oficial da União”. Em alguns momentos, contudo, os gestos são feitos tarde demais ou não apresentam a naturalidade necessária para ganharem credibilidade. As aparições públicas do presidente Jair Bolsonaro e de alguns ministros de Estado nos últimos dias estão repletas desses exemplos e, por isso, merecem atenção.

Depois de praticamente ceder o Palácio do Planalto para o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta retomar sua carreira política em grande estilo, com entrevista e discursos de despedida, Bolsonaro forçou a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. Houve desgaste com sua base eleitoral, mas o cálculo parece outro. O ex-juiz da Lava-Jato é odiado por grande parte da classe política tradicional, a mesma que o presidente sempre criticou e agora tenta se aproximar num momento em que está isolado.

Um isolamento que a própria Presidência tentou relativizar ao cercar Bolsonaro de todos os demais ministros, quando ele foi fazer um pronunciamento para se defender das acusações de Moro. Os ministros que podiam tentavam se esconder atrás dos mais altos e os que ocupavam a primeira fila da tropa de choque, olhavam para o infinito. O governo perdia um dos seus pilares. Um ato que seria para demonstrar força acabou evidenciando as fragilidades e as preocupações do ocupante do principal cargo da República.

Esse é o tipo de comportamento que foge ao controle dos membros do cerimonial, encarregados de garantir que seja observado todo um roteiro previamente estabelecido para as festas oficiais, as solenidades ou as visitas ao chefe do governo. Uma missão desafiadora quando o presidente costuma negligenciar protocolos de segurança e expor a vida palaciana nas redes sociais.

A internet é o ecossistema em que Bolsonaro conseguiu deixar de ser um deputado do baixo clero para emergir como uma das principais forças políticas de um país dividido. Um ambiente praticamente sem regras de etiqueta. Propício a discursos radicais e à proliferação de notícias falsas, ou seja, o lugar perfeito para que um outro gesto de aproximação fosse executado.

Após atacar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), Bolsonaro surpreendeu até os ministros mais próximos e apareceu ao vivo, vestindo bermuda e chinelos, em seu perfil nas redes sociais. Assistia a uma transmissão feita pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).

O tema da “live” era um suposto golpe parlamentar em curso. E o espectador não estava em um local qualquer, mas em uma sala da residência oficial, o que deu ainda mais dramaticidade ao episódio. A imagem transmitida pelo presidente o mostrava acompanhado apenas de seguranças, todos em silêncio. A apatia dos presentes só era quebrada quando um garçom, também devidamente uniformizado, oferecia pães de queijo ou algum sanduíche.

O pivô do escândalo do mensalão voltava ao Palácio do Planalto, desta vez virtualmente, para prometer apoio incondicional a um presidente que aparecia nas telas de computadores e telefones celulares praticamente sozinho. Uma prévia de como será o relacionamento do presidente com os partidos do Centrão: sem intimidade, uma troca de interesses que ninguém sabe ainda aonde vai chegar.

Bolsonaro e os líderes do Centrão se conhecem muito bem. Em seus 28 anos na Câmara, o presidente passou por algumas dessas siglas e pode-se dizer sem medo de errar que não há confiança entre os lados. O então deputado nunca seguia as orientações de bancada, mas também não fazia exigências. Pedia apenas que o ajudassem a ter espaço na tribuna semanalmente para fazer seus discursos. Queria também ser indicado como membro titular da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

Bolsonaro era bom nas urnas e não atrapalhava o relacionamento desses partidos com o governo da ocasião. Nunca foi de agregar, talvez por isso não tenha percebido a relevância simbólica da ausência de integrantes da ala que diverge do ministro da Economia, Paulo Guedes, no ato de desagravo que promoveu ao chefe da equipe econômica nesta semana. Com isso, se por um lado reafirmou a autoridade de Guedes, por outro ficou explícito agora quem de fato pode ser considerado aliado de primeira hora do ministro.

Diante de um próximo choque entre desenvolvimentistas e liberais, existe o risco concreto de antecipação de um processo de desembarque de autoridades desiludidas com os rumos do governo. Não é o caso dos militares, que servem o Estado e possuem o senso de missão e o compromisso com a hierarquia como princípios. Mas nada impede que funcionários de carreira tirem licença para trabalhar na iniciativa privada, aproveitando para ganhar dinheiro num momento em que seus conhecimentos são valiosíssimos.

É difícil acreditar que a trégua será permanente. O armistício terá um fim quando o próprio presidente começar a impacientar-se com os resultados da economia, o colapso do sistema de saúde em algumas regiões metropolitanas e o aumento da miséria. Teme-se pelo pior, o caos social, mas muito antes disso já haveria quem defendesse a necessidade de reformulação da política econômica.

A ala derrotada sairia do governo dizendo que tentou fazer o melhor para o Brasil, mas foi impedida. Os que ficarem precisarão dos cerimonialistas para promover uma solenidade em que a coesão e o otimismo do governo serão de novo apresentados à sociedade, mas rapidamente depois colocados à prova pelos fatos.

Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília

Bolsonaro: 'Quer que faça o quê?' Simples: Presida - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 29/04


Já se sabia que o homem evoluiu do macaco. Graças a Jair Messias Bolsonaro, descobre-se que alguns já fazem o caminho de volta.

Uma repórter pediu ao presidente que comentasse a notícia mais impactante do dia: o Brasil ultrapassou a China em número de mortes por coronavírus.

E Bolsonaro, de chofre: "E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre."

Se estivesse vivo, Cacaso, como era conhecido o poeta Antonio Carlos de Brito, diria que Bolsonaro já realiza milagres, só que às avessas.

Ficou moderno o Brasil do messias Bolsonaro. Nele, a água já não vira vinho, vira direto vinagre.

Bolsonaro e a sensatez são duas coisas inconciliáveis. Mas o capitão exagerou. É como se quisesse avisar aos seus devotos que quem ama o feio leva muito susto.

O presidente do Brasil decidiu desrespeitar o luto dos brasileiros. Fez isso num dia em que chegou a 5.017 o número de cadáveres do coronavírus.

"Quer que faça o quê?", indagou Bolsonaro. Talvez seja inútil. Mas vão abaixo algumas sugestões:

Cale a boca:
Os problemas de Bolsonaro estariam resolvidos se ele seguisse o seguinte conselho: Nunca deixe para amanhã o que você pode calar hoje.

Feche o cercadinho:
O cérebro de Bolsonaro começa a funcionar no momento em que ele acorda. E não para até que ele converse com a plateia do cercadinho do Alvorada. Se passar direito, será mais feliz.

Saia da bolha:
Sempre que estiver prestes a arrancar a carótida de algum governador pró-isolamento ou chupar o próprio sangue, saia das redes sociais e converse um pouco.

Suma com a fila:
Se Deus criasse um socorro de R$ 600, Ele não se atreveria a aparecer para os pobres em outra forma que não fosse o dinheiro. Fila na Receita é covardia. Na Caixa, é tortura.

Aprenda matemática:
Candidato que belisca 57,7 milhões de votos num universo de 147 milhões de votantes chega ao Planalto carregado por 39% dos eleitores.

Os números pedem humildade. Quem acha que pode salvar a pátria sozinho, revela-se incapaz de todo. Acertando com o centrão, mostra-se capaz de tudo.

Numa palavra: presida, presidente. Não há de ser tão difícil. O horário é civilizado, o salário é razoável, viaja-se muito...

E há sempre a possibilidade de demitir o Abraham Weintraub e o Ernesto Araújo, o que deve proporcionar uma grande sensação de alívio.

Se de todo modo não for possível governar, há sempre a possibilidade da renúncia. É melhor bater em retirada do que sapatear sobre lápides.

Epidemia voltou a piorar no Brasil? - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 29/04

Ritmo de aumento do número de novos casos vinha caindo até a semana passada; não mais



O número de mortes por Covid-19 no Brasil e em São Paulo parecia crescer mais devagar até o começo da semana passada, por aí. Até então, com todas as ressalvas de praxe, parecia haver uma despiora, como vinha acontecendo em países grandes da Europa, no que diz respeito à redução do ritmo do avanço do número de casos e mortes, considerados dias equivalentes de duração da epidemia.

Desde a semana passada, embatucamos. O ritmo parou de diminuir.

O que houve? Há mais registros de casos e mortes porque há mais testes ou notificações mais rápidas? Ou há um problema na contenção da doença, programa que mal e mal parecia funcionar?

Como está claro, epidemiologistas e outros estudiosos da doença estão com dificuldades ou indisposição de avançar opiniões, que dirá análises ou projeções. Mas alguns deles dizem temer que a desordem no distanciamento social possa ter abalado a tendência de despiora no ritmo de avanço da doença. Mas esperariam mais uma semana, pelo menos, antes de assinar o comentário.

As medições disponíveis de isolamento caíram, cidades reabrem a atividade econômica ou jamais as fecharam de fato, há propaganda federal contra o isolamento. Pessoas mais pobres, sem auxílio, procuram meios de ganhar vida, as pessoas em geral começam a se cansar do isolamento e fogem. Para piorar, ainda estamos muito longe de ter um sistema amplo e ágil de rastreamento de doentes e possíveis contaminados.

Temos ainda problemas com os dados mais elementares. Não sabemos quando as pessoas ficaram doentes (com sintomas) ou morreram. As notificações diárias são de confirmações de casos que podem ter ocorrido faz dias.

O problema vai, pois, muito além da subnotificação, que sempre há e haverá. E subnotificação do quê? De infecções em geral, de doentes leves, de casos hospitalares, de mortes? De resto, uma subnotificação mais ou menos constante permite que se acompanhe o ritmo da progressão da doença, embora não o nível do número de casos.

Há agora uma corrida para saber da subnotificação _é útil, ajuda a pressionar os governos a fornecerem dados melhores. Vários dados indicam subnotificação, mas não dizem muito mais do que isso.

No estado de São Paulo, o número geral de mortes em março de 2020 superou a média dos últimos quatro anos em 1.481. O número oficial de mortes por Covid-19 naquele mês foi de 731, mas várias mortes ainda estavam pendentes de confirmação ainda em abril (os dados de mortalidade de abril ainda são imprestáveis, por vários motivos).

O que podemos concluir? Nada além do óbvio. Existem mais casos, não se sabe bem quantos, quando e em que ritmo de notificação ou sub.

Além do risco do fetiche do número da subnotificação, falta qualidade nos dados elementares da doença. Parece que o país se cansou de falar no assunto, saiu de moda, embora o problema esteja explodindo. Ainda não temos informação precisa de UTIs, ventiladores, testes, detalhamento da gravidade dos casos e da evolução desses números.

Compramos mais, produzimos mais, temos mais equipamentos?

Deveria haver equipes supervisionando isso com precisão, de modo a tentar evitar mais desgraça. Que essas informações não existam ou que os governos se recusem a divulga-las, COMO TEM FEITO, é um escândalo que deveria ser objeto de campanha, talvez campanha do Ministério Público.

É uma zorra criminosa.

Guedes herdou a carta branca de Sergio Moro - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 29/04

Ministro poderá ser descartado com a mesma argumentação usada contra o ex-juiz



Fica combinado que "o homem que decide a economia" no Brasil é Paulo Guedes.

Afinal, Sergio Moro tinha carta branca e a política do toma-lá-dá-cá com o centrão era coisa dos passado. Cartas brancas não existem e as tais bancadas temáticas que substituiriam as negociações com os partidos eram um delírio.

Assustado com a ruína de seu governo, Bolsonaro bateu à porta do centrão. Repete Dilma Rousseff e Fernando Collor.

A fé de Bolsonaro em fantasias é inesgotável. Pena que a capacidade de Paulo Guedes de criar debates inconsequentes seja incontrolável.

Diante de uma epidemia, de uma recessão e do teatrinho do lançamento do Pró-Brasil, Paulo Guedes resolveu encrencar com os servidores: "Precisamos também que o funcionalismo público mostre que está com o Brasil, que vai fazer um sacrifício pelo Brasil, não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia e assistindo a crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego".

Boa ideia. Que tal um programa de sacrifícios gradativos, começando pelos magistrados e procuradores que embolsam acima de R$ 30 mil por mês? O general da reserva Augusto Heleno já disse que tinha vergonha do seu salário de R$ 19 mil líquidos.

Guedes tomou uma bolada nas costas e partiu do oficialismo a pecha de que ele é um "inimigo dos pobres". Teria surgido até uma banda "desenvolvimentista" no Planalto. Isso é falso por três razões.
Primeiro, porque o Pró-Brasil é apenas teatralista, como o foram seu pai, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e seu avô, o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).

Também porque esse desenvolvimentismo seria encarnado pelo ministro Rogério Marinho. Como secretário para Previdência e Trabalho de Guedes, o doutor teve a ideia de taxar os desempregados que recebem um seguro do governo. Justificando a tunga, disse que com isso o desempregado continuaria na Previdência Social. Só não explicou por que a medida seria compulsória. Se fosse voluntária, tudo bem.

Finalmente, porque o teatrinho do Pró-Brasil nunca foi coisa nenhuma. Revela apenas um governo desorientado. Quando Bolsonaro diz que Paulo Guedes é "o homem que decide a economia", isso significa que, quando for o caso, poderá ser descartado, com a mesma argumentação usada para defenestrar Sergio Moro.

Até o mês passado, Paulo Guedes queria reformar a economia brasileira com 40 milhões de invisíveis e 11 milhões de desempregados.

Na segunda-feira, ele reafirmou a vitalidade de seu projeto e encrencou com a geladeira dos servidores.
Na recessão americana de 1929 o secretário do Tesouro Andrew Mellon também viu um renascimento a partir da ruína e propôs ao presidente Herbert Hoover: "Liquide os sindicatos, liquide o papelório, liquide os fazendeiros, liquide o mercado imobiliário. Isso purificará a podridão do sistema. (...) As pessoas trabalharão mais e levarão uma vida com mais moral". Felizmente, Hoover não o ouviu.

Em 1933, Franklin Roosevelt assumiu a Presidência, olhou para o andar de baixo e mudou a cara dos Estados Unidos.

Em tempo, o andar de cima americano nada tem a ver com o de Pindorama: Andrew Mellon doou ao povo o prédio da National Gallery de Washington e mais de mil peças de sua coleção. Coisa de dezenas de bilhões de dólares em dinheiro de hoje.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Sombras sobre Jair Bolsonaro - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 29/04

A nomeação de um amigo para a PF ajuda Bolsonaro a se proteger de investigações, mas sombras cercam seu mandato

Três investigações cercam o presidente da República e pessoas próximas pessoal ou politicamente. Todos os inquéritos passam pela Polícia Federal. Ele nomeou um delegado, amigo dele e dos seus filhos, para a diretoria-geral. E daí? Daí que o Brasil é uma democracia e uma república em que somos todos súditos da lei, lembrou o ministro Celso de Mello. Há muitas portas pelas quais o presidente pode escapar. Uma é ter um amigo na PF, outra é ter um ministro submisso no Ministério da Justiça, outra é contar com os favores do procurador-geral da República . E se nada disso funcionar ele pode comprar apoio no Congresso. Bolsonaro está blindando os quatro cantos do campo para terminar seu mandato.

O PGR Augusto Aras foi se encontrar com o presidente logo no dia em que o ministro Celso de Mello estava decidindo a instauração do inquérito. Podem ter conversado sobre assuntos outros, mas esse encontro é indevido. Aras chegou à PGR contornando a lista tríplice e com ofertas explícitas de uma procuradoria com a qual o presidente pudesse contar. Tem cumprido a sua parte. Até no pedido de abertura de inquérito para apurar as denúncias contra o presidente fez de tal forma que investigasse também quem denunciou os fatos.

Bolsonaro e seu entorno são alvos do inquérito aberto pelo STF sobre fakenews, de outro, sobre os atos antidemocráticos, e agora, pelas suspeitas de ter pressionado pela demissão do diretor-geral da Polícia Federal, porque queria ter notícias de investigações em andamento. O da fakenews pode chegar nos seus filhos e no “gabinete do ódio”. O dos atos antidemocráticos pode investigar deputados bolsonaristas, como contou Merval Pereira. O último inquérito é direcionado a Bolsonaro mesmo.

O que o ministro Celso de Mello fez foi vigoroso. Segundo a definição de um colega: “O relator reafirmou o império da lei. Proclamou a todos os ventos que à Constituição todos estão submetidos.” Essa é a causa que faz Celso de Mello se agigantar e ele fez isso numa peça forte. O problema é que dificilmente o inquérito termina antes de ele deixar a toga em novembro. O tempo começa com 60 dias para se intimar o ex-ministro Sergio Moro. Mello também pediu que avaliasse o pedido do senador Randolfe Rodrigues e periciasse o celular da deputada Carla Zambelli.

O ministro Celso de Mello deixou claro que nem a imunidade do presidente, prevista no artigo 51, nem a cláusula de exclusão do artigo 86 impedem que ele seja investigado para se buscar “elementos de prova” e apurar “materialidade”. Quem fará isso? A Polícia Federal. E daí? Daí que o amigo dele estará lá no posto-chave de diretor-geral.

Depois da investigação, ele só será denunciado se o procurador da República assim decidir. E, depois, a Câmara terá que autorizar. Durante o governo Temer, duas denúncias foram negadas. Se Celso de Mello chegar ao fim do seu período no STF e o inquérito não tiver terminado, quem herdaria seria o ministro que Bolsonaro vai indicar. Quando Teori Zavascki morreu, o então presidente Temer avisou que só nomearia depois de o STF decidir o relator da Lava-Jato. Dessa forma, poupou o país de qualquer constrangimento. Não se espera de Bolsonaro a mesma atitude. No STF, um ministro me contou que, se Celso de Mello se aposentar antes do fim do inquérito, ele deve ser distribuído imediatamente, sem esperar o novo ministro, “já que o envolvido é aquele que indica o novo juiz”.

Sombras cercam o presidente Jair Bolsonaro e ele trata de abrir as portas para escapar ileso. Há muitas portas. Mas a opinião pública pode fechar algumas delas. A pesquisa DataFolha trouxe péssimas notícias para o presidente: só 20% acreditam na versão de Bolsonaro na briga com Moro — o ex-ministro convenceu 52% —, 56% acreditam que ele queria interferir na PF. Em 11 dias, subiu de 38% para 45% os que reprovam sua condução da crise do coronavírus. Caiu 21 pontos a avaliação positiva do Ministério da Saúde, depois que ele demitiu Luiz Mandetta. O governo prefere olhar a avaliação geral dele, que subiu de 30% a 33%, apesar de todas as crises que provocou. Os sinais de piora, contudo, estão em todas as outras perguntas. Jair Bolsonaro pode passar o resto do seu mandato lutando contra sombras.

Sem saída imediata - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 29/04

Curva de casos mostra que não será simples reativar a economia


É muito mais deletério do que conseguimos mostrar em texto de análise política o efeito que pregações irresponsáveis como as do presidente Jair Bolsonaro contra as estratégias de distanciamento social provocam no efetivo combate à pandemia do novo coronavírus.

Essa influência perniciosa não só atiça a natural e justificável ansiedade das pessoas por retomar suas vidas “normais”, como se fosse possível prever qual será o novo normal a partir de agora. Ela também, é possível perceber agora, acabou por criar nos governadores e prefeitos, mesmo naqueles conscientes dos riscos reais da pandemia, uma pressão para dizerem quando e de que forma reabririam comércio, escolas e outros estabelecimentos, o que se deu, desde a semana passada, de forma claramente irrefletida, precipitada e inócua.

Os casos de contaminação e as mortes continuam em ritmo acelerado, sem que nenhuma das condições necessárias para que se comece a falar em saída das quarentenas esteja dada. Não começamos a testar de forma mais sistemática e massiva, para ter números mais fiéis a refletir em que momento da epidemia estamos, a ocupação dos leitos de hospitais e de UTIs não está em curva decrescente na maior parte do País, os casos (mesmo esses que conseguimos confirmar, uma fração ínfima do total) não estão estabilizados e, mais assustador de tudo, mesmo os países que fizeram tudo certo e começaram a abrir estão experimentando más notícias.

É ilusório imaginar que em São Paulo, que na terça-feira, 28, conheceu um novo e sinistro recorde de casos e de mortes, 224 em 24 horas, perfazendo mais de 2 mil óbitos em pouco mais de um mês, vai voltar a funcionar, ainda que parcialmente, a partir de 10 de maio.

Se a ocupação dos leitos e a progressão do contágio continuarem no ritmo dessas duas semanas, ao contrário, é muito provável que o governador João Doria Jr. e o prefeito da capital, Bruno Covas, tenham de anunciar restrições ainda mais severas, e não relaxamento do distanciamento social. Foi assim em Milão, Nova York e outras cidades com as características de São Paulo.

Mesmo lugares de populações e circulação mais restritas e controláveis, como Brasília, talvez tenham relaxado as regras cedo demais. Afinal, basta que a capital do País volte a receber fluxos de viajantes, a começar dos políticos, de outros Estados para que uma nova onda de contaminação seja não apenas possível, como provável.

Basta ver que países que chegaram a ser citados como exemplos de combate à covid, como Cingapura (que testou massivamente) e Alemanha (que tinha proporção confortável de leitos de UTI por milhões de habitantes e fez um isolamento social rigoroso), tiveram ou terão de anunciar a volta de medidas restritivas porque os casos voltaram a subir.

Diante de um quadro tão grave e imprevisível, é ainda mais bizarro que o presidente do Brasil esteja dedicado única e exclusivamente a aparelhar ministérios e cargos públicos, demitir ou desautorizar os poucos ministros que passariam num psicotécnico e em confronto aberto com as instituições.

Desde que trocou Luiz Mandetta pelo desarvorado e desanimado Nelson Teich, Bolsonaro parece ter esquecido que há um vírus matando seus governados aos milhares. Não fala mais sobre coronavírus (o que pode até ser bom, dado o nível de patacoada que ele costuma dizer a respeito) nem cobra ações efetivas para achatar uma curva que ameaça colapsar o País tanto no plano médico-sanitário quanto no tão temido aspecto econômico.

Não vai dar para reabrir o Brasil na marra, como a essa altura até Teich já deve ter conseguido se dar conta. Que os governadores parem de ficar com medo do bafo quente das ruas e ajam com responsabilidade. De irresponsável já basta um.

Homicídios voltam a crescer - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 29/04


No momento em que o presidente Bolsonaro se envolve em mais uma polêmica armamentista, revogando portarias do Exército que instituíam normas mais eficazes para controle e rastreamento de armas e munição, o governo vai se deparar com a notícia de que os homicídios voltaram a crescer em todo o país.

Dados de janeiro e fevereiro analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram a tendência de crescimento. Os números não estão fechados ainda, mas a situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano.

O envolvimento do Exército em questões políticas, pois o presidente Bolsonaro anunciou pelo Twitter a decisão de mandar revogar as portarias, atendendo a pressões da indústria armamentista apoiada pela bancada da bala na Câmara, já incomoda ala de militares, que consideram que o trabalho técnico do Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados interessa à proteção da sociedade como um todo, e não a um grupo especifico, como disse em sua carta de despedida o General de brigada Eugênio Pacelli Vieira Mota, que foi para reserva logo depois do cancelamento das portarias.

Rastreamento de armas e marcação de munições para que possam ser identificadas interessa ao Judiciário, para esclarecimento de crimes, interessa ao combate às milícias. Num país em que 80% das mortes são por armas de fogo, é fundamental que o Estado tenha capacidade de rastrear armas e munições.

Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal quer incluir o caso no inquérito que foi aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as denúncias do ex-ministro Sergio Moro sobre interferências ilegais do presidente Bolsonaro na Policia Federal. Esse seria um outro exemplo de interferência, desta vez no Exército. Aliás, Bolsonaro acusou Moro de ser “desarmamentista” no seu pronunciamento sobre sua demissão.

O maior problema que os críticos vêem é a repolitização dos quartéis com a chegada ao governo de vários oficiais-generais, alguns inclusive da ativa, como Luiz Eduardo Ramos na Secretaria de Governo e o almirante Flavio Rocha na Secretaria de Assuntos Estratégicos. O fato de oficiais-generais da ativa fazerem parte do governo é simbólico dessa mudança, e grande número de militares em vários escalões do governo, indicam que o Exército voltou ao centro da política.

Recentemente, houve um princípio de desentendimento entre a ala de militares com gabinete no Palácio do Planalto e o ministro da Economia Paulo Guedes, em torno do programa Pró-Brasil, uma proposta incipiente de retomada econômica feita sem a participação da equipe de Guedes.

O ministro da economia aparentemente venceu o primeiro round, depois de estar quase fora do governo, mas terá ainda que enfrentar resistências da política. Os partidos que formam o centrão estão interessados no plano dos militares de retomada de obras públicas, e se incomodam com a insistência de Guedes de manter o controle dos gastos dentro do possível na situação de crise social em que vivemos devido à pandemia da Covid-19.

A tese de que o momento é de o governo gastar é tentadora para políticos fisiológicos, e faz sentido para militares com uma visão estatista da economia. A mistura de militares nacionalistas com políticos da estirpe de Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto é outro estranhamento para os que não vêem com bons olhos a participação de militares na atividade politica. O pragmatismo prevalece na saída de Sergio Moro, que tinha o apoio dos militares.

Há os que consideram que os militares estão desfazendo um trabalho de 30 anos, em que foram “o grande mudo”, granjeando respeito da opinião pública. Inicialmente, os militares que aderiram mais diretamente à candidatura de Bolsonaro achavam que ele, por ser popular, abriria espaço para os militares voltarem à vida pública com um selo de legitimidade da eleição presidencial. O problema é que funções de governo são essencialmente políticas, e as Forças Armadas são instituições de Estado, de acordo com a Constituição. Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pelo outro.

Será que eles não enxergam? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 29/04

Apesar dos absurdos que já fez e disse, Bolsonaro tem apoio de um terço do eleitorado


Jair Bolsonaro disse e fez absurdos durante a epidemia de Covid-19, traiu algumas de suas principais bandeiras de campanha e, apesar disso, segue com o apoio de cerca de um terço do eleitorado, como mostrou pesquisa Datafolha.

Sei que vão me xingar por dizer isso, mas o paralelo com os petistas é inevitável. Lula também conservou o apoio de mais ou menos outro terço do eleitorado. Nem entro no mérito jurídico da sentença que condenou o ex-presidente, mas, no mínimo, o fato de ter tolerado altos níveis de corrupção e estabelecido relações pessoais absolutamente promíscuas com empreiteiros configura um desastre ético que contraria tudo o que o PT sempre defendera.

O que acontece com o cérebro do militante político, que parece perder a capacidade de ver o óbvio? O jornalista Ezra Klein, autor de "Why We´re Polarized", oferece uma boa resposta a esse enigma. Ele obviamente não fala nada de bolsonaristas e petistas, mas recorre à literatura psicológica e da ciência política para esmiuçar as mentes de democratas e republicanos. Com as devidas adaptações, muitas de suas conclusões valem para o Brasil.

O mais surpreendente é constatar que não há nada de irracional no comportamento desses eleitores. Eles apenas decidiram colocar suas identidades políticas à frente de outros valores que possam alimentar. Na esfera individual, faz sentido. Quem age dessa forma reforça os vínculos sociais que tem com seu grupo, o que é fonte de satisfação pessoal.

O problema é que, no plano coletivo, essa supervalorização da identidade de grupo leva à polarização, que raramente é saudável para a política, e mesmo a posições claramente disfuncionais, como o apoio acrítico a líderes populistas que colocam sua agenda pessoal à frente dos interesses do país. Não há reparo simples para essa dinâmica, que vem colocando sob estresse algumas das mais sólidas democracias do planeta.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Aparelho familiar - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 29/04

Nomeação, por Bolsonaro, de amigo do filho investigado para a PF é escandalosa

O desenrolar dos acontecimentos vai dando razão à acusação mais grave feita pelo ex-ministro Sergio Moro contra o presidente da República, de que Jair Bolsonaro age motivado pelo objetivo de reduzir a Polícia Federal a um instrumento pessoal do ocupante do Planalto.

Os primeiros indícios de confirmação constavam das palavras do próprio chefe do governo na sexta-feira (24). A propósito de defender-se do que pouco antes havia dito o ex-juiz da Lava Jato, o presidente admitiu que fazia pressões sobre o Ministério da Justiça para arrancar informações da Polícia Federal.

Na sequência, Moro divulgou mensagens trocadas com Bolsonaro em que o mandatário citava repercussões de um inquérito para apurar fake news e ameaças a magistrados, que corre no Supremo Tribunal Federal, como motivo para substituir o diretor da PF.

No sábado (25), esta Folha revelou que a apuração, presidida pelo ministro Alexandre de Moraes, havia identificado o vereador Carlos Bolsonaro como um dos articuladores do esquema criminoso de intimidação. O ciclo se fechava, mas ainda não se completara.

O delegado nomeado pelo presidente da República para assumir a Polícia Federal, Alexandre Ramagem, é amigo do filho Carlos.

Um outro conviva da família Bolsonaro, Jorge Oliveira, teria sido indicado para a pasta da Justiça não fosse uma forte pressão palaciana para demover o chefe de Estado. Acabou sendo indicado para o cargo André Mendonça, que era o titular da Advocacia-Geral da União.

Escandalosa é pouco para qualificar a promoção de Ramagem à chefia da Polícia Federal nesse contexto. Por mais que cautelas, como a tomada por Alexandre de Moraes ao proibir a troca dos delegados que conduzem o inquérito das fake news, possam evitar danos pontuais, a intenção de aparelhar o órgão policial ficou clara e parte do presidente da República.

Não à toa, ações para anular a posse do indicado a diretor-geral da PF começaram a chegar às cortes federais, inclusive ao Supremo. Alegam que Bolsonaro cometeu abuso de poder e desvio de finalidade na nomeação do amigo.

Na cartilha do neoautoritarismo em voga em algumas partes do planeta, aparece como item de destaque a lenta cooptação dos órgãos independentes do Estado pelos tentáculos do candidato a caudilho.

Jair Bolsonaro segue mestres como Nicolás Maduro, da Venezuela, e Victor Orbán, da Hungria, ao tentar transformar a PF num birô a serviço da família presidencial.

Precisa ser contido pelas instituições. A PF hoje exige mais, e não menos, garantias —como um diretor-geral submetido ao escrutínio do Legislativo— para a sua atuação técnica e republicana.

Polícia Federal, uma santinha de pau oco - JOSÉ NÊUMANNE

ESTADÃO - 29/04

Alçar PF ao altar, como fizeram Bolsonaro e Moro em bate-boca, é ledo engano

Emendar a Constituição com tradições ou ambições corporativistas, como escolha do procurador-geral da República e autonomia administrativa e financeira da Polícia Federal (PF), não garante combate lícito e justo ao crime e à corrupção nem as torna preceitos do Estado de Direito. Tal discussão, que parecia vencida depois da autorização ao presidente Jair Bolsonaro para nomear o procurador Augusto Aras chefe do Ministério Público Federal (MPF) sem que este fizesse parte da lista tríplice encaminhada pelos colegas ao chefe do governo, é reaberta na rumorosa troca do diretor-geral da polícia judiciária da União. As revelações de abusos feitas pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro ao ex-chefe não bastam para legitimar demandas de autonomia dos servidores da instituição.

São abjetas e próprias de um governante que ignora o significado em cada uma de suas letras do termo “impessoalidade”, previsto no Texto Magno, as alegações do ocupante do mais poderoso posto da República. Mais chocante do que o relato de crimes de responsabilidade e outros delitos previstos no Código Penal, a serem usados num processo de impeachment pelo Senado sob a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), ou numa ação penal de apelo à mesma Corte, em ambos os casos com prévia autorização de três quintos da Câmara dos Deputados, foi a forma desrespeitosa como o alvo reagiu. A confirmação abusiva de que a demissão de Maurício Valeixo da direção da PF atendia a uma intervenção política, traduzida pelo eufemismo “interagir”, foi assumida na expressão de desprezo com que ele respondeu à questão em rede social: “E daí?”. O capitão de gravata encerrou o assunto da nomeação do chefe de uma instituição de Estado com o refrão do samba-canção de sucesso de Miguel Gustavo, cujo subtítulo parece profético: “Proibição inútil e ilegal”. E o estilo cafona (que lhe é peculiar) de sertanejo sofrência em queixumes de bolero piorou algo que já parecia cheirar mal.

A resposta dura a essa afronta será dizer: e daí é que acusador e acusado incorreram num erro comum aos dois e generalizado ao tratarem tanto o MPF quanto a PF como se fossem instituições acima das fraquezas humanas. Esse é um engano sesquipedal, principalmente por ter sido cometido por um político que passou 28 anos no Legislativo e por um magistrado de longa carreira que se tornou para alguns um herói nacional e para suas vítimas, um réprobo em batidas de martelo.

Márcio Thomaz Bastos, que também foi ministro da Justiça (de Lula), rotulou a PF de “republicana” para fantasiá-la de instituição acima das querelas partidárias e esconder o fato notório de que nas gestões do PT a repartição pública foi usada para proteger aliados e perseguir adversários, na era pré-Carlos Bolsonaro. A briga pelo acesso aos segredos de inquéritos que devassam práticas criminosas da prole presidencial não dota o departamento de uma imagem de madeira maciça. Ela é a versão envernizada da santinha de pau oco usada por contrabandistas de ouro de Minas colonial para a metrópole.

A PF autônoma à época do PT, louvada por Moro, era apenas uma instituição indisciplinada, com virtudes e defeitos da alma humana dos seus membros, remunerados pelos cidadãos. O louvável trabalho executado por agentes que participaram com ele da Lava Jato não apaga as evidências de sórdidas batalhas intestinas e episódios de indisciplina em outras operações. Se o deputado Eduardo Bolsonaro tivesse dado expediente de rotina no departamento, em vez de fazer carreira política à sombra de papai, recebendo sem trabalhar em gabinete do PTB de Roberto Jefferson, que ora volta a servir ao clã, poderia ter informado a Jair que a associação de delegados que deste cobra autonomia institucional, funcional e financeira vive às turras com outras duas, de agentes e peritos. Autonomia para qual, caras-pálidas? E para quê?

Se o delegado Alexandre Ramagem não tivesse construído sua biografia de policial em cargos decorativos no Parlamento e na Agência Brasileira de Inteligência (quanta inteligência!), talvez pudesse ter informado ao chefão que queixas de cansaço de Valeixo em reunião com superintendentes não justificariam o “a pedido” do decreto de sua demissão. Se nem nisso ele foi capaz de ajudar, como poderia saber que a gestão quase impossível da direção-geral passa mesmo é pela habilidade para fugir ao naufrágio no mar dos cardumes de tubarões? Estes ainda disputam carniça na condição de viúvas de Tuma, PT-raiz dos tempos de Paulo Lacerda, PT grã-fino liderado por Luiz Fernando Corrêa (fiel ao legado de Bastos), PSDB de Marcelo Itagiba e bolsonaristas, que ainda não são capazes de garantir a realização dos sonhos de blindagem dos filhotes pelo dono (provisório) da caneta Bic. Como diria Romário, o craque, não o delegado dos inquéritos que assombram as noites no Palácio da Alvorada, os últimos “chegaram ainda agora e já querem se sentar perto da janela”.

E tem mais: nenhuma instituição armada pode ser autônoma, porque representaria um risco para a liberdade, valor fundamental.

JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Ninguém acima da lei - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/04

Há muito a ser investigado nas denúncias feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro contra o presidente Jair Bolsonaro

O ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello autorizou a abertura de inquérito, pedido pela Procuradoria-Geral da República, para investigar as denúncias feitas pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro contra o presidente Jair Bolsonaro. Há muito o que investigar. De acordo com Sérgio Moro, Bolsonaro o pressionou para colocar na direção da Polícia Federal (PF) um delegado que fosse “do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, que ele pudesse colher relatórios de inteligência”.

Em seu pedido de investigação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, relacionou uma série de crimes supostamente cometidos por Bolsonaro nesse caso, entre os quais advocacia administrativa e prevaricação.

O presidente garante que não queria nenhuma informação além daquelas necessárias para o exercício de sua função, “para bem decidir o futuro da Nação”, como disse recentemente. Mas essas Bolsonaro já deve receber regularmente pelo Sistema Nacional de Informações; a julgar pelo que disse o ex-ministro Moro, no entanto, o presidente queria acesso a informações sigilosas sobre investigações em curso.

Considerando-se que o clã Bolsonaro é o centro de algumas dessas diligências, compreende-se a aflição do presidente – que, sem que Sérgio Moro tivesse dito nada a esse respeito em seu pronunciamento, garantiu “nunca” ter pedido que a PF “blindasse” sua família, isso é, que poupasse os filhos ou a si mesmo de investigações.

E o que não faltam são investigações que envolvam os Bolsonaros – não só na Polícia Federal, mas também no Supremo e na Câmara dos Deputados. A nova investigação autorizada pelo Supremo, no entanto, será certamente mais rumorosa, pois não é trivial que um presidente seja acusado de querer manipular a PF para fins inconfessáveis.

Nada disso, contudo, parece constranger Bolsonaro. Depois de ter demitido Maurício Valeixo da direção da PF porque este não lhe franqueou acesso a informações sigilosas sabe-se lá sobre o quê, o presidente confirmou que o substituto de Valeixo será o delegado Alexandre Ramagem, que se destaca não por seu currículo, mas por ser amigo íntimo da família Bolsonaro. E teme-se que um bom amigo não negue um favor ou outro ao presidente.

Com isso, mais uma vez, Bolsonaro coloca os assuntos pessoais acima dos interesses nacionais, razão pela qual mesmo a nomeação do qualificado André Mendonça, ex-advogado-geral da União, para o Ministério da Justiça, acabará sendo vista como uma manobra do presidente para ter controle completo do aparato policial federal – coisa típica de regimes autoritários, em que governante e Estado são uma coisa só.

Por esse motivo, fez bem o ministro Celso de Mello em lembrar, em sua autorização para que as denúncias contra Bolsonaro sejam investigadas, que, “não obstante a posição hegemônica que detém na estrutura político-institucional do Poder Executivo, ainda mais acentuada pela expressividade das elevadas funções de Estado que exerce, o presidente da República – que também é súdito das leis como qualquer outro cidadão deste País – não se exonera da responsabilidade penal emergente dos atos que tenha praticado, pois ninguém, nem mesmo o Chefe do Poder Executivo da União, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

O presidente, como qualquer cidadão da República, tem deveres antes de direitos. E, como presidente, diferentemente dos cidadãos comuns, tem ademais o dever da transparência e da prestação de contas. Nada que envolve a Presidência da República pode ficar ao abrigo da luz, seja o simples resultado dos exames de covid-19 ao qual o presidente Bolsonaro se submeteu – que, conforme diz liminar concedida pela Justiça a pedido deste jornal, deveria ser público para que todos saibam qual é o real o estado de saúde do presidente –, sejam os verdadeiros motivos que o levaram a trocar a cúpula do aparelho policial do Estado e ali aboletar seus amigos.

Felizmente, a democracia brasileira, malgrado suas inúmeras fragilidades, parece preservar o sistema de freios e contrapesos – ao qual mesmo presidentes com ares de Messias devem se submeter.