domingo, setembro 08, 2013

Artes do photoshop - HUMBERTO WERNECK

O Estado de S.Paulo - 08/09

Esgotada a pauta, o almoço de trabalho virou aquilo que meu amigo Fernando Paiva chama de "almoço de negócio": um diz um negócio... outro diz outro negócio... Meus companheiros de mesa eram executivos bem formais, desses cujas mães a gente pode imaginar, gestantes, a tricotar terninhos e gravatinhas de lã. Na falta de assunto que se instalou, passaram a falar do meu currículo - no qual nada lhes interessou mais do que o fato de ter eu trabalhado na redação da Playboy.

Excelentes entrevistas! - comentou um dos comensais. Ótimos artigos! - exclamou outro. Como quem não quer nada, foram se acercando, cada vez mais desinibidos, do tema inescapável da mulher pelada. Só não abriu a boca, pouco à vontade que parecia estar, o presidente da empresa, homem maduro com perfil de exemplar chefe de família.

Verdade que usávamos recursos técnicos para aplainar verrugas, estrias e celulites? - quis saber um deles. Na certeza de que iria agradar, enveredei pelo relato de bastidores da redação, onde, exagerei, não cessávamos de contabilizar façanhas na luta contra imperfeições da natureza. A história da musa de capa, por exemplo, cujos dedos, na foto, resultaram deformados, o que nos obrigou a trocar aquela mão por outra - dela mesma, garimpada entre dezenas de poses alternativas. Um caso único, talvez, de centauro montado com pedaços de um mesmo ser. E ninguém percebeu? Ninguém! - disse eu, com o orgulho de quem tivesse posto em circulação, sem levantar suspeitas, uma nota de 100 dólares feita em casa.

Para deixar claro que não nos faltava também humildade, contei do dia em que um desastrado operador do photoshop, ao retocar enorme close de nádegas, apagou o pequeno porém relevante acidente geográfico entre elas aninhado.

Ia falar do bafafá que o desastre provocou entre os leitores, ou melhor, vedores - mas para pasmo geral nesse momento o presidente da empresa, estilhaçando a circunspecção, berrou na ponta da mesa, tonitruante como um jogador de truco: "Sheila Lopes!" - para em seguida baixar o rosto e murmurar, varado de vergonha corporativa, "Os srs. me perdoem...", voltando a ser o irrepreensível chefe de família que sempre foi.

***

E agora?, me perguntei, mal pus os pés no saguão do hotel. Qual daqueles sujeitos de terno - todos, inequivocamente, pessoas jurídicas - seria o meu amigo de adolescência?

Fazia décadas que não nos víamos - desde o tempo em que (isso já contei, mas você talvez não tenha lido, ou não prestou atenção), ali pelos nossos 13 anos de idade, ele bolou e construiu, com um motorzinho de 1/4 de cavalo e tirinhas de couro, uma estrovenga cujo nome, masturbarola, já diz tudo e que na estreia por pouco não lhe custou o sacrifício de crucial apêndice de sua anatomia. Agora, ao telefone, sua voz emerge do passado: está na cidade para fechar negócios e faz questão de me ver. Poderia apanhá-lo no hotel às 8 da noite?

E lá estava eu, incapaz de distinguir na massa de executivos algum que pudesse ter inventado a masturbarola. Podia ser qualquer um - até mesmo aquele, hipopotâmico, que, preenchendo toda uma poltrona, a custo se pôs de pé e veio na minha direção, balangando mãozinhas de gordo e arrastando um corpanzil que meu abraço não daria conta de abarcar. Por pouco não conseguiu se encaixar no banco do carona de meu Corsa, que sensivelmente adernou ao acolher tamanha tonelagem.

No restaurante, eu ainda custava a crer que tinha à minha frente, empenhado em devastar a cesta de pãezinhos do couvert, o outrora frugal companheiro de colégio. Foi então que me lembrei de um velho comercial de produto para emagrecimento, desses que só encontram quem os veja no meio da madrugada e em canais nanicos. Grotesco, e só por isso inesquecível: empalada num espeto giratório, uma colossal pelota de banha se ia aos poucos derretendo, até que, despencada toda a gordura, revelava-se a esbelta Vênus de Milo. Como se exposto ao bafo quente de uma churrasqueira - ou de um photoshop? -, a figura à minha frente pareceu aos poucos liberar-se da enxúndia acumulada em anos, voltando a ser o meu comparsa de adolescência, só lhe faltando sacar do bolso o projeto de uma engenhoca que havia bolado para economizar repetitivos e gratificantes esforços manuais.

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