sábado, agosto 27, 2011

O Poderoso Chefão - REVISTA VEJA


O Poderoso Chefão 
REVISTA VEJA

O ex-ministro José Dirceu mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da presidente Dilma
Há muitas histórias em torno das atividades do ex-ministro José Dirceu. Veja revela a verdade sobre uma delas: mesmo com os direitos políticos cassados, sob ameaça de ir para a cadeia por corrupção, o chefe da quadrilha do mensalão continua o todo-poderoso comandante do PT. Dirceu é um homem de negócios, mas continua a ser o homem do partido.
O “ministro”, como ainda é tratado em tom solene pelos correligionários, mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com senadores, deputados, o presidente da maior estatal do país e até ministro de estado — reuniões que acontecem em horário de expediente, como se ali fosse uma repartição pública.
E agora com um ingrediente ainda mais complicador: ele usa o poder e toda a influência que ainda detém no PT para conspirar contra o governo Dilma — e a presidente sabe disso.
O que leva personagens importantes e respeitáveis, como os que aparecem nas imagens que ilustram esta reportagem, a deixar seu local de trabalho para se reunir em um quarto de hotel com o homem acusado de chefiar uma quadrilha responsável pelo maior esquema de corrupção da história do Brasil? Alguns deles apresentam seus motivos: amizade, articulações políticas, análise econômica, às vezes até o simples acaso. Há quem nem sequer se lembre do encontro.
Outros preferem não explicar. Depois de viver na clandestinidade durante parte do regime militar, o ex-ministro José Dirceu se tornou habitué dos holofotes com a redemocratização do país. Foi fundador e presidente do PT, elegeu-se três vezes deputado federal e comandou a estratégia que resultou na eleição de Lula para a Presidência da República. Como recompensa, foi alçado ao posto de ministro-chefe da Casa Civil.
Foi um período de ouro para ele. Dirceu comandava as articulações no Congresso, negociava indicações de ministros para tribunais superiores, decidia o preenchimento de cargos e influenciava os mais apetitosos nacos da administração federal, como estatais, bancos públicos e fundos de pensão. Dirceu se jactava da condição de “primeiro-ministro” e alimentava o próprio mito de homem poderoso.
Sua glória durou até que ele fosse abatido pelo escândalo do mensalão, em 2005, quando se descobriu que chefiava também um bando de vigaristas que assaltava os cofres públicos.
Desde então, tudo em que Dirceu se envolve é sempre enevoado por suspeitas. Oficialmente, ele ganha a vida como um bem-sucedido consultor de empresas instalado em São Paulo. Mas é em Brasília, na mais absoluta clandestinidade outra vez, que ele continua a exercer o seu principal talento.
A 3 quilômetros do Palácio do Planalto, Dirceu mostra que suas garras estão afiadas. Ainda é chamado de “ministro”, mantém um concorrido gabinete num quarto de hotel, tem carro à disposição, motorista, secretário e, mais impressionante, sua agenda está sempre recheada de audiências com próceres da República — ministros, senadores e deputados.
As autoridades é que vão a José Dirceu. Essa inversão de papéis poderia se explicar por uma natural demonstração de respeito pelos tempos em que ele era governo. Não é. É uma efetiva demonstração de que o chefão ainda é poderoso.
Dirceu tenta recuperar o prestígio político que tinha no governo Lula, usando como arma muitos aliados que ainda lhe beijam o rosto. Convoca-os como soldados, quando necessário, numa tentativa de pressionar a presidente Dilma a atender a suas demandas. Ou torná-la refém por meio da pressão dos partidos.
Esse trabalho de guerrilha — e, em alguns momentos, de evidente conspiração — chegou ao paroxismo durante a crise que resultou na queda de Antonio Palocci da Casa Civil.
Naquela ocasião, início de junho, Dirceu despachou diretamente de seu bunker instalado na área vip de um hotel cinco-estrelas de Brasília, num andar onde o acesso é restrito a hóspedes e pessoas autorizadas. Foram 45 horas de reuniões que sacramentaram a derrocada de Antonio Palocci e durante as quais foi articulada uma frustrada tentativa do grupo do ex-ministro de ocupar os espaços que se abririam com a demissão.
Articulação minuciosamente monitorada pelo Palácio do Planalto, que já havia captado sinais de uma conspiração de Dirceu e do seu grupo para influir nos acontecimentos que ocorriam naquela semana — acontecimentos que, descobre-se agora, contavam com a participação de figuras do próprio governo.
Em 8 de junho, numa quarta-feira, Dirceu recebeu no hotel a visita do ministro do Desenvolvimento, o petista Fernando Pimentel. Conversaram por 28 minutos. Sobre o quê? Pimentel diz não se lembrar da pauta nem de quem partiu a iniciativa do encontro. Admite, no entanto, falar com frequência com o ex-ministro sobre o contexto brasileiro.
É uma estranha aproximação, mas que encontra explicação na lógica que une e separa certos políticos de acordo com o interesse do momento. Próximo a Dilma desde quando era estudante, Pimentel defendeu, durante a campanha, a ideia de que a então candidata do PT se afastasse ao máximo de Dirceu.
Pimentel e Dirceu estavam em campos opostos. Naquela ocasião, o atual ministro do Desenvolvimento nutria o sonho de se tornar o futuro chefe da Casa Civil.
Perdeu a chance depois de Veja revelar que funcionários contratados por ele para trabalhar na campanha montaram um grupo de inteligência cujas tarefas envolviam, entre outras coisas, espionar e fabricar dossiês contra 
os adversários, principalmente o concorrente do PSDB à Presidência, José Serra.
No novo governo, Pimentel foi preterido na Casa Civil em favor de Palocci. O mesmo Palocci que, no primeiro mandato de Lula, disputava com Dirceu o status de homem forte do governo e de candidato natural à Presidência da República.
Um cacique petista tenta explicar a união recente de Pimentel com José Dirceu: “No PT, é comum adversários num determinado instante se aliarem mais à frente para atingir um objetivo comum. Isso ocorre quando há uma conjução de interesses.”
Será que Pimentel queria se vingar de Palocci, a quem considerava um rival dentro do governo?
Dois dias antes, na segunda-feira, Dirceu esteve com José Sergio Gabrielli, presidente da Petrobras. Gabrielli enfrenta um processo de fritura desde o fim do governo Lula. A presidente Dilma não cultiva nenhuma simpatia por ele. Palocci pretendia tirar Gabrielli do comando da estatal.
Gabrielli precisava — e precisa — do apoio, sobretudo do PT, para se manter no cargo. Dirceu é consultor de empresas do setor de petróleo e gás. Precisa manter-se bem informado no ramo para fazer dinheiro. É o famoso encontro da fome com a vontade de comer — ou conjunção de interesses.
O presidente da Petrobras, que trabalha no Rio de Janeiro, chegou à suíte ocupada pelo ex-ministro da Casa Civil, no 16º andar do hotel, ciceroneado por um ajudante de ordens. Permaneceu lá exatos trinta minutos. Ao sair, o presidente da Petrobras, que chegou ao quarto de mãos vazias, carregava alguns papeis consigo.
Perguntado sobre a visita, Gabrielli limitou-se a desconversar: “Sou amigo dele há muito tempo, e não tenho que comentar isso com ninguém”.
Naquela noite de segunda-feira, a demissão de Palocci já estava definida. O ministro não havia conseguido explicar a incrível fortuna que acumulou em alguns meses prestando serviços de consultoria — a mesma atividade de Dirceu.
Na terça-feira, horas antes da demissão de Palocci, Dirceu recebeu para uma conversa de 54 minutos três senadores do PT: Delcídio Amaral, Walter Pinheiro e Lindbergh Farias. Esse último conta que foi ele quem pediu a
audiência.
Qual assunto? Falaram do furacão que assomava à porta da Casa Civil. “O ministro Dirceu nunca falou um ‘ai’ contra o Palocci. Pelo contrário, sempre tentou resolver a crise com a ajuda da nossa bancada”, garante Farias.
De fato, a bancada foi decisiva — mas para sepultar de vez a tentativa de Palocci de salvar a própria pele. Logo após o encontro com Dirceu, os três senadores foram a uma reunião da bancada do PT e recusaram-se a assinar uma nota em defesa do então ministro-chefe da Casa Civil. Alegaram que a proposta não havia sido combinada com o Planalto.
Existiam outros motivos para a falta de entusiasmo: o trio também estava insatisfeito com Palocci. Delcídio reclamava do fato de não conseguir emplacar aliados em representações de órgãos federais em Mato Grosso do 
Sul, seu estado natal e berço político. “Num momento tenso como aquele, fui conversar com alguém que está sempre bem informado sobre os acontecimentos”, explicou Delcídio sobre o encontro com o poderoso chefão.
Pinheiro estava contrariado com a demissão de um petista do comando da Polícia Rodoviária Federal na Bahia. “O encontro foi para fornecer material para que ele publicasse um artigo sobre o projeto de lei que trata da produção audiovisual no país”, disse ele.
Lindbergh Farias, por seu turno, ainda digeria as tentativas fracassadas de ser recebido por Palocci. No fim da tarde de terça-feira, o ministro-chefe da Casa Civil entregou sua carta de demissão. E teve início a disputa pela sua sucessão.
Quando Gleisi Hoffmann já havia sido anunciada como substituta de Palocci, no mesmo dia 7 de junho, Dirceu recebeu o deputado petista Devanir Ribeiro. Foram 25 minutos de conversa. Já era sabido que, no rastro da saída de Palocci, Luiz Sérgio, um aliado de Dirceu, deixaria o ministério das Relações Institucionais.
Estava deflagrada a campanha para sucedê-lo — e Dirceu queria emplacar no cargo o deputado Cândido Vaccarezza, líder do governo na Câmara.
Procurado por Veja, Devanir, que é compadre do presidente Lula, negou que tivesse ido ao hotel conversar com Dirceu. Um lapso de memória, como deixa claro a imagem nesta reportagem. “Faz muito tempo que eu não o vejo.”
Na quarta-feira, 8 de junho, pela manhã, as articulações de Dirceu continuaram a pleno vapor. Ele recebeu o próprio Vacarezza. Durante 25 minutos, trataram, segundo o líder, do congresso do PT que será realizado em setembro.
“Converso com o Dirceu com regularidade. Como o caso do Palocci era palpitante, é possível que tenha sido abordado, mas não foi o tema central”, afirma o deputado — que, no início do governo Dilma, chegou a dar entrevistas como o futuro presidente da Câmara, mas acabou convencido a desistir de disputar o cargo por ter perdido apoio dentro do PT.
A agenda do chefão não se limita aos companheiros de partido. Duas horas depois do encontro com Vacarezza, foi a vez de o senador peemedebista Eduardo Braga adentrar o hotel.
Segundo o parlamentar, ele e Dirceu se encontraram por obra do acaso, no lobby, uma coincidência. O senador conta que aproveitou a coincidência para auscultar os ânimos do PT sobre o projeto do novo Código Florestal: “Queria saber como o PT se posicionaria. Ninguém pode negar que a máquina partidária petista foi arquitetada e construída pelo Dirceu. Ele respira o partido”.
O PMDB também respira poder. Com o apoio de Dirceu, peemedebistas e petistas fecharam um acordo para pressionar o Planalto a indicar Vacarezza ao cargo de ministro de Relações Institucionais no lugar de Luiz Sérgio. A substituição nessa pasta foi realizada três dias depois da queda de Palocci.
Informada do plano de Dirceu, a presidente Dilma desmontou-o ao nomear para o cargo a ex-senadora Ideli Salvatti. A presidente já havia sido advertida por assessores do perigo de delegar poderes a companheiros que orbitam em torno de Dirceu.
Mas Dilma também conhece bem os caminhos da guerrilha política. Chamada de “minha camarada de armas” por ele quando lhe foi passado o comando da Casa Civil, em 2005, a presidente não perde de vista os passos do chefão. Como? Pedindo a algumas autoridades que visitam Dirceu em Brasília informações sobre suas ambições.
“A Dilma e o PT, principalmente o PT afinado com o Dirceu, vivem uma relação de amor e ódio. Mas hoje você não pode imaginar um rompimento entre eles”, diz um interlocutor de confiança da presidente e do ex-ministro.
E amanhã? Se Dilma se consolidar como uma presidente popular e, mais perigoso, um entrave a um novo mandato de Lula, o tal rompimento entra no campo das possibilidades. “Nunca a turma do PT foi tão lulista como hoje. Imagine em 2014”, afirma um cardeal do partido. Ele é mais um, como Dirceu, insatisfeito com o fato de a legenda não ter conseguido, como previra o ex-ministro, impor-se à presidente da República.
Dilma está resistindo bem. Uma faxina menos visível é a que ela está fazendo nos bancos públicos. Aos poucos, vem substituindo camaradas ligados a Dirceu por gente de sua confiança. E o chefão não está nada contente com isso. Tanto que tem alimentado o noticiário com denúncias contra pessoas muito próximas à presidente, naquele tipo de patriotismo interessado que lhe é peculiar.
Procurado por Veja, Dirceu não respondeu às perguntas que lhe foram feitas. A suíte reservada permanentemente ao “ministro” custa 500 reais a diária. Para chegar de elevador, é preciso um cartão de acesso especial. Cada quarto do andar recebe uma única cópia.
Qualquer visita ao “ministro”, portanto, tem de ser conduzida ao andar. Esse trabalho de cicerone é feito por Alexandre Simas de Oliveira, um cabo da Aeronáutica, que foi assessor de Dirceu na Câmara dos Deputados até ele ter o mandato cassado.
Hoje, o cicerone é empregado do escritório de advocacia Tessele & Madalena, que tem como um dos donos outro ex-assessor de Dirceu, o advogado Hélio Madalena. O advogado já foi flagrado uma vez de caso com a máfia — a russa. Escutas feitas pela Polícia Federal mostraram que, na condição de assessor da Casa Civil, ele fazia lobby para conceder asilo político no Brasil ao magnata russo Boris Berezovski (mafioso acusado de corrupção e assassinato).
E Madalena foi flagrado outra vez na semana passada. É o seu escritório que paga a fatura do “gabinete” de José Dirceu. Na última quinta-feira, depois de ser indagado sobre o caso, Madalena instou a segurança do hotel Naoum a procurar uma delegacia de polícia para acusar o repórter de Veja de ter tentado invadir o apartamento que seu escritório aluga e, gentilmente, cede como “ocupação residencial” a José Dirceu.
O jornalista esteve mesmo no hotel, investigando, tentando descobrir que atração é essa que um homem acusado de chefiar uma quadrilha de vigaristas ainda exerce sobre tantas autoridades. Tentando descobrir por que o nome dele não consta da relação de hóspedes. Tentando descobrir por que uma empresa de advocacia paga a fatura de sua misteriosa “residência” em Brasília.
Enfim, tentando mostrar a verdade sobre as atividades de um personagem que age sempre na sombra. E conseguiu. Mas a máfia não perdoa.

IVAN ANGELO - Três aninhos



Três aninhos
IVAN ANGELO
REVISTA VEJA - SP



Helena chega aos 3 anos. Parece pouco, parece que não foi nada, mas aquela pessoinha ali, de bico armado para soprar as velas do bolo, já assimilou informações e conceitos e desenvolveu capacidades em volume maior do que um adulto faria em vinte anos.

Uma criança nasce e já começa a aprender. Choro faz vir o peito, peito é bom. Instinto? Sugar, sim, é instinto, mas chamar o peito já é elaboração. Ela olha, olha em volta e aprende; no começo, ela e o mundo são uma coisa só. Agora olha a mão — que se passa naquela cabecinha quando tantas vezes ela olha a própria mão? Ela aprende. A separar de si os objetos, os brinquedos, o berço, os bonecos, as pessoas; constrói a noção de corpo, seu corpo. Isso não é pouca coisa.

Virar-se no berço. Que quantidade de músculos e cálculos e experimentações e coordenações inaugurais foi necessária para isso? Levantar-se no berço, outra façanha. Arrastar-se, engatinhar, avançar em um espaço, chegar a alguma coisa que está além, já significa ter entendido o que é a distância. São operações complicadas para quem não tinha essa noção e teve de construí-la por si.

Brilhantemente aprende relações entre os objetos. Atrás da cadeira tem a mesa. Dentro do caixote tem brinquedos. Enriquece-se com noções de sobre, fora, em cima, dentro, ao lado, diante, tirar, pôr, jogar. Constrói o entendimento de que os objetos ficam no lugar, as pessoas não ficam, vão embora. Confia na permanência dos objetos, desconfia das pessoas. A ausência destas a angustia, ela chora, terá de aprender que elas voltam, e isso é mais complicação.

Levantar-se, equilibrar-se e andar são dificuldades que a aventura encoraja, mas que põem em ação um sem-número de processos musculares, nervosos e emocionais, como seria para um adulto andar na corda bamba, e ainda exigem da pessoinha observação e imitação para se inserir no mundo dos caminhantes.

Falar! Milhares de operações mentais de ouvir, assimilar conceitos, relacionar, compreender, articular músculos, compatibilizar sons, imitar tons até conseguir emitir uma palavra, primeiro milagre que a leva à conquista da linguagem verbal.

Ela constrói a sua memória, operação fabulosa! Desde o nascimento, Helena e seus milhões de iguais empregam sua percepção para armazenar conceitos e eventos, e criam um banco de dados que é de cada um e só de cada um. Aí ela busca conhecimento para fazer associações, se inserir. Memoriza palavras, canções, histórias, fatos. “O cachorro mordeu mamãe”, ela pode contar, socializar-se; e pode cantar, fazer parte de, encantar. Seu repertório a ajuda a seduzir.

Aos 2 anos, a criança compreende de 200 a 300 palavras. Aos 3, mais de mil. A aquisição de comportamentos é rápida e não para. Ela assimila uma novidade, vê se se acomoda bem a ela, guarda-a para uso futuro e vai buscar mais. É como um pássaro que constrói um ninho, acomodando-se aos gravetos que traz, tornando-os úteis e confortáveis.

Vive a mágica do pensamento, e inventar histórias vividas por objetos sem vida também exige repertório e criatividade. Joga a boneca no chão, é sua filha, xinga-a, bota-a no castigo — ah, está brigada com a mãe. Imita. Lá vem a empregada arrastando a perna, dor no joelho, mão nas cadeiras — e ela atrás, arremedando. Observa a professora grávida na escolinha, trabalham isso na classe, e ela anuncia para todo mundo: “Tem um neném na minha barriga”. O real e o fantástico se misturam, e separá-los será uma das suas tarefas para os próximos anos.

Aprender o que pode e o que não pode é penoso trabalho, e ela se rebela. Também, se não se rebelasse, que pessoa seria? Passiva seguidora? Se não brigasse, enfrentasse, criasse, como poderia, no futuro, anunciar auroras?

RUTH DE AQUINO - Os padrinhos do atraso



Os padrinhos do atraso
RUTH DE AQUINO
Revista Época


Está difícil segurar. As baratas vão voar. Se aposenta, Sarney! Desencarna, Lula!



RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
A idade avançada talvez cobre um preço alto a sua memória recente. Como o presidente do Senado, José Sarney, pôde endossar os supersalários, apenas dois meses depois de ser obrigado a limitá-los ao teto do funcionalismo público? A decisão é inconstitucional, ilegal, imoral. Beneficia uns 700 servidores, que poderão voltar a ganhar acima de R$ 26.723,15, mais que os ministros do STF. Vamos todos doar para a campanha “servidor-esperança”. 
Entendi. Sarney escutou Dilma dizer que o foco de seu governo não é a ética, mas “a faxina contra a pobreza”. E resolveu seguir o conselho da presidente à risca. Seus servidores no Senado ameaçavam greve. Não conseguiriam viver dignamente com menos de R$ 26 mil por mês. Estavam com medo de não poder voar mais de primeira classe. Com a caça às bruxas até no ar, não são todos os que têm o direito de usar helicópteros da PM e jatinhos de empresários para lazer pessoal.
“É como na música do Caetano: é o avesso do avesso do avesso”, disse Ricardo Ferraço, do PMDB do Espírito Santo. Ferraço é relator da reforma administrativa do Senado. Mas que reforma é esta que não resiste à influência do padrinho maranhense sobre um tribunal de Brasília? “É inacreditável”, disse ele. “O teto está na Constituição.” O assombro de Ferraço é o mesmo de todos nós. Essa limitação salarial existe desde 1998. Com todo o respeito, alguém precisa chamar o presidente do Senado à razão.
Sarney consegue, no ocaso de sua vida política, personificar todo o atraso de um país. Lula um dia o chamou de ladrão e depois beijou sua mão. A rima é inofensiva. Mas a blindagem de Sarney é nociva. Ele é o líder de um clã que enriqueceu à custa do povo sofrido do Maranhão, um dos Estados mais miseráveis do Brasil. Imagino que, na faxina contra a pobreza da diarista Dilma, o Estado do sinhozinho Sarney seja uma das prioridades.
O episódio do helicóptero da PM, cedido por Roseana para levar o pai a sua ilha particular de Curupu, é até menor. Ministros do STF desaprovaram como “um desvio de finalidade” o uso pessoal de uma aeronave destinada à segurança e à saúde do povo. Mas a maior contribuição de Sarney para o atraso do Brasil é agir como se fosse o ditador líbio de uma capitania hereditária. É como se estivesse descolado do atual processo nacional. Vive num outro tempo.
Está difícil segurar. As baratas vão voar. Se aposenta, Sarney! Desencarna, Lula! 
“Tenho direito a transporte de representação, e não somente a serviço. É chefe de Poder.” E assim o intocável Sarney ignora a lei de improbidade. Políticos que usam bens públicos em “obra ou serviço particular” podem ser punidos com a perda da função e suspensão de direitos políticos. Sabemos, porém, que nada vai acontecer com o oligarca. Como disse Lula, ele “não é um homem comum”.
Os descaminhos levam ao padrinho-mor, Lula, que não consegue desencarnar do poder. Deveria ser inconstitucional um ex-presidente da República despachar com ministros para tratar assuntos de governo. É escandaloso que Lula crie um governo paralelo, com base em São Paulo, para cobrar ações de ministros de Dilma. Não satisfeito em montar um ministério bichado por escândalos, Lula aponta o candidato do PT à prefeitura de SP. E freia o combate presidencial à corrupção.
Coincidência? Na semana em que Lula volta ao palco como eminência nada parda, os ministros Negromonte, das Cidades, e Novais, do Turismo, ganham uma sobrevida. Esses dois estão por um peteleco. Exonerar Paulo Bernardo das Comunicações é mais complicado, por ser casado com Gleisi. E ele “só” pegou carona na farra aérea.
Com a guerra deflagrada entre congressistas que se chamam de “débil mental” e “safado”, a folha corrida de políticos continuará a vazar. A do PP está às claras: 18 deputados respondem por irregularidades. Os dois Cunha, Eduardo (PMDB) e João Paulo (PT), não vão mais comandar a reforma da Justiça, por serem réus. A OAB acaba de lançar o site Observatório da Corrupção.
Está difícil comprar briga com a sociedade. Vai ser difícil segurar. As baratas vão voar. Se aposenta, Sarney! Desencarna, Lula!   

EDITORIAL - O GLOBO - Quando o Itamaraty era profissional



Quando o Itamaraty era profissional 
EDITORIAL 
O GLOBO - 22/08/11


Errou quem, diante da posição tíbia da diplomacia brasileira na carnificina em curso na Síria, praticada pela ditadura dos Assad, pensou tratar-se de "um ponto fora da curva", algo a não ser considerado. Por esta visão benevolente e otimista, estaria valendo o firme discurso da presidente Dilma Rousseff, antes e logo depois da posse, em defesa dos direitos humanos.

Pois a confirmação de que o "ponto fora da curva" eram aquelas declarações veio em seguida, com a mesma leniência aplicada ao caso da Líbia, no reconhecimento do Conselho Nacional de Transição (CNT) como representante do país, na retirada de cena do ditador Muamar Kadafi, considerado "amigo e irmão" pelo ex-presidente Lula. A explicação para a tibieza, dada pelo chanceler Antonio Patriota, é que o Brasil "reconhece estados, não governos". Jogo de palavras. Ficou visível a dificuldade de Brasília para admitir o fim de um ditador que fez parte de uma constelação de autocratas afagados pelo lulopetismo, a começar por Fidel Castro e Hugo Chávez, em nome de um antiamericanismo fossilizado. Entende-se, nesta questão, por que o governo Dilma é de "continuidade". Tudo indica que será mantido o truque de se conceder ao PT o regozijo de uma diplomacia terceiro-mundista de republiqueta de banana, para se tentar debelar uma inflação que exige uma política econômica minimamente séria, à altura das complexidades de uma das dez maiores economias do mundo.

Nada abala o Itamaraty dos companheiros. O fato de países árabes como a Arábia Saudita e Kuwait terem retirado os embaixadores de Damasco não foi levado em conta, por exemplo. São tantos os melindrosos cuidados de Antonio Patriota para afinal reconhecer um novo governo na Líbia que transmite a sensação de que o melhor, para o Itamaraty de hoje em dia, seria não precisar tomar esta decisão. Não por motivos externos - todos escancaradamente a favor do reconhecimento do CNT -, mas devido à grande influência companheira interna.

O Itamaraty já foi profissional, e ganhou fama mundial por isso. Hoje, não há condições de se repetir o reconhecimento do novo governo de Angola, no final de 1975, instituído pela organização guerrilheira marxista MPLA, com apoio também de Cuba. Por entender quais eram os verdadeiros interesses nacionais, o governo militar de Ernesto Geisel, com a assessoria do então competente Itamaraty, foi o primeiro a reconhecer o governo de Agostinho Neto, apoiado, na luta contra a organização de Jonas Savimbi, Unita - financiada pelos EUA e o apartheid sul-africano -, por tropas cubanas. Se Geisel fosse se guiar pela própria ideologia, jamais ouviria conselhos de embaixadores como Ítalo Zappa e Antônio Azeredo da Silveira (Silveirinha), então ministro, para dar aquele passo, do qual resultou grande influência brasileira no país africano, com dividendos econômicos colhidos até hoje. Ficar do lado de Fidel Castro não o impediu de tomar a decisão certa sobre Angola, em defesa daquele frágil governo, e não um "Estado", ainda inexistente. Tanto que, formado o governo, começou longa guerra civil.

Hoje, seria impossível. A alergia "anti-imperialista" no estilo Unctad contaminou a política externa, atrofiou tanto a capacidade de análise do Itamaraty que a lerdeza na tomada de decisões sobre de que lado se deve estar na Primavera Árabe coloca o Brasil com a mesma estatura do irrelevante Hugo Chávez, para quem Kadafi continua no poder.

ANCELMO GÓIS - CALMA, GENTE

CALMA, GENTE 
ANCELMO GOIS
O GLOBO - 27/08/11

Com direito a uma citação do teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), o jornal Opinião Socialista, do PSTU, voltou a tachar de “degradante” o quadro do humorístico Zorra Total, da TV Globo, com a travesti Valéria e a faxineira Janete num vagão de metrô, que conquistou o Brasil.

SÓ QUE... 
Falta humor aos trotskistas. Com todo o respeito.

RÁDIO COMÉRCIO 
Além do GP, mais dois grupos financeiros namoram a Leader Magazine.

Ó, RIO DE JANEIRO 
Ontem, Eduardo Paes ligou para Aécio Neves e, enquanto aguardava na linha, ouviu, como música de espera, “Copacabana, princesinha do mar” em vez de “Ó, Minas Gerais”.

RETRATOS DA VIDA 
A mãe da cantora e atriz Soraya Ravenle morreu às 18h de sexta da semana passada.
Três horas depois, Soraya estava no palco do Teatro Casa Grande, no Rio, brilhando em “Um violinista no telhado”, um dos sucessos da temporada.

JESUS NAS ALTURAS 
Terça, no voo 3099 da TAM, uma senhorinha se virou para um comissário e perguntou se no avião tinha... Jesus. O tripulante estranhou, mas disse que sim, pois imaginou que a tiazinha era uma cristã. Mas ela queria, na verdade, o Guaraná Jesus, fabricado no Maranhão.

COISA NOSSA 
Affonso Beato, 70 anos, fotógrafo de filmes de Glauber e de Almodóvar, é a capa da última American Cinematographer. A revista, bíblia dos fotógrafos de cinema mundo afora, exalta seu trabalho no documentário americano Cinema verité.

ORWELL, PAULO COELHO... 
O alquimista, de Paulo Coelho, está entre os livros recomendados a estudantes de escolas americanas pelo órgão controlador dos EUA. Na lista, além do mago, há autores como George Orwell, Mark Twain e Shakespeare.

TEMPOS MODERNOS 
O economista José Roberto Afonso está lançando seu primeiro livro solo (é autor de 54 capítulos em muitos outros, mas jamais publicou um só dele). Chama-se “Crise, Estado e economia brasileira” (Agir). Mas... só sai, veja só, em versão digital.

FUTURO DA CRIAÇÃO 
Com prefácio de Leonardo Boff, a Editora Mauad lança esta semana o livro “O futuro da criação”, dos teólogos Jürgen Moltmann, alemão, e Levy Bastos, seu discípulo brasileiro.

FAVELA BUSINESS
Não são apenas estádios de futebol e casas de shows que ganham nomes de anunciantes. A antiga estação de Bonsucesso da Central do Brasil, onde fica o acesso aos teleféricos do Complexo do Alemão, no Rio, passará a se chamar... TIM Bonsucesso. Além de novo visual, terá carregadores de celular disponíveis e internet sem fio.

DUELO DE TITÃS 
A disputa de samba-enredo na Vila Isabel, para o carnaval 2012, promete.
Entre os candidatos, há composições de Mart’nalia e de Arlindo Cruz.

EU APOIO 
Eike Sempre Ele Batista vai doar quarta agora um cheque de R$ 30 milhões para a conclusão das obras do Hospital Pró-Criança Cardíaca, idealizado pela batalhadora médica Rosa Célia.

ILIMAR FRANCO - Reação cautelosa

Reação cautelosa 
ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 27/08/11

O PMDB não pretende abrir mão da liderança do governo no Congresso, mas não quer tratar do tema em praça pública porque não quer dar a impressão de que bota a presidente Dilma contra a parede. O vice Michel Temer recebeu a tarefa de tratar do tema. "A presidente não iria distinguir a Câmara e o PMDB com a liderança do governo no Congresso por apenas 45 dias", reclama o líder do PMDB na Câmara, Henrique Alves (RN).

Oposição irada com Pedro Simon

Os partidos de oposição estão irritados com o senador Pedro Simon (PMDB-RS). O motivo foi aquela sessão do Senado em que dezenas de senadores deram apoio à faxina promovida pela presidente Dilma, diante de casos de corrupção no governo. “O movimento liderado pelo Simon é um desserviço”, queixa-se o líder do DEM na Câmara, ACM Neto (BA). O que mais incomoda a oposição é que a ação desencadeada por Simon inibe novos apoios para convocar a CPI da Corrupção. Além disso, estão indignados com a percepção de parcela da opinião pública de que o mais responsável é apoiar a presidente contra a corrupção.

"O governo precisa abrir os ouvidos para dialogar com os que querem colaborar. A oposição que faço não é apenas da crítica. Tenho procurado contribuir votando matérias do governo” — José Agripino, presidente do DEM e senador (RN)

Melhor hora
Depois que a União Africana e a Liga Árabe reconheceram o governo de transição da Líbia, há dentro do governo quem diga que o Brasil não deveria esperar pelo Conselho de Segurança da ONU para adotar a mesma atitude.

Na geladeira
São três os quadros do PMDB que ainda esperam para serem aproveitados, em cargos de peso nacional, pelo governo Dilma: os exgovernadores José Maranhão (PB) e Orlando Pessuti (PR), e o ex-prefeito de Goiânia Iris Rezende.

Correlação de forças no PT de São Paulo
O ex-presidente Lula não é o único obstáculo à candidatura da senadora Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo. A correlação de forças dentro do PT também é desfavorável às suas pretensões. A Construindo um Novo Brasil, tendência de Marta, tem cerca de 15% do diretório municipal petista. A PT de Luta e de Massas, do précandidato Jimar Tatto, tem 30% do diretório. A Novos Rumos, de Carlos Zarattini, tem 25%.

Excluído
Ligado a Marina Silva, o deputado Alfredo Sirkis (PVRJ) não foi convidado pelo partido para o encontro com a presidente Dilma Rousseff anteontem. Sirkis e o líder do PV, deputado Sarney Filho (MA), estão em pé de guerra.

Centralismo
O deputado Danilo Forte (PMDB) quer que a direção nacional do partido intervenha no diretório de Fortaleza. Ele quer disputar a prefeitura, e o senador Eunício Oliveira (PMDB), apoiar o candidato do governador Cid Gomes (PSB).

 O SAMBISTA Martinho da Vila e o deputado Edson Santos (PT-RJ) foram anteontem ao Itamaraty pedir apoio para a Vila Isabel, cujo enredo será Angola.
 CIUMEIRA. Depois que a presidente Dilma jantou com o PMDB na terça-feira passada, agora o PT também quer. Ela deve jantar com todos os partidos.
● O PRESIDENTE da Academia Brasileira de Defesa, o tenente-brigadeiro Ivan Frota, escreve para informar que os Clubes Militares são constituídos de oficiais da reserva e da ativa das Forças Armadas.

GOSTOSA


DRAUZIO VARELLA - Viagem ao passado

Viagem ao passado
DRAUZIO VARELLA 
FOLHA DE SP - 27/08/11

Fui há pouco a Portugal e à Espanha. Não existe comparação com a vida que forçou meus avós a emigrar


Nasci no Brás durante a Segunda Guerra Mundial. Não havia outro bairro que encarnasse a quintessência da vida paulistana daquele tempo: imigrantes italianos, portugueses e espanhóis, operários e casas de cômodos.
As ruas eram de paralelepípedos, cinzentas como os muros das fábricas. Para achar uma árvore era preciso andar até a igreja de Santo Antônio, em que meus pais e meus tios casaram e batizaram seus filhos.
Meu avô paterno emigrou sozinho para o Brasil com a sabedoria dos 12 anos de idade. Nos ombros, a responsabilidade de enviar dinheiro à mãe e aos irmãos mais novos, que haviam acabado de perder o pai na Galícia, norte da Espanha. Em São Paulo, casou com uma conterrânea e tiveram três filhos. Homem à antiga, proibiu minha avó de falar espanhol em casa, com medo de que os filhos um dia quisessem mudar para o país ibérico.
Meus avós maternos chegaram jovens e nunca mais retornaram a Portugal. Ele, baixo e atarracado, tinha uma escrivaninha com tampo de correr e uma caligrafia bordada que lhe havia garantido o posto de telegrafista no glorioso Corpo de Bombeiros. Ela, mulher de presença forte, andava sempre de preto. Todo fim de tarde, entretida com o bordado, ouvia as poesias de Bocage e os romances de Eça de Queiroz que o marido lia em voz alta.
Minha infância foi marcada pelo futebol na calçada da fábrica em frente de casa, pelos operários que saíam cedo com a marmita, pelas mães que berravam o nome dos filhos na hora das refeições e pelas brigas das mulheres nos cortiços aos domingos, ocasião em que se tornava mais acirrada a disputa pela posse do tanque, do varal e do banheiro coletivo.
Por descender de imigrantes que romperam laços com a península Ibérica, jamais tive nenhum compromisso com seus países de origem. Com exceção da afinidade cultural transmitida pelos costumes familiares, nunca me passou pela cabeça que, além de brasileiro, eu pudesse estar associado a outra nacionalidade.
Muitos anos atrás, fui ver "Bodas de Sangue", filme do espanhol Carlos Saura. Fiquei espantado diante daqueles bailarinos esguios com o mesmo tipo de calvície que eu e com a semelhança física entre eles e as pessoas que frequentavam a casa dos meus avós. Evidentemente, meus genes chegaram até mim graças à competição e à seleção natural que deu origem aos povos ibéricos.
Consciente dessa aventura evolutiva, estive há pouco tempo em Portugal e no norte da Espanha. Não existe comparação entre a vida nesses lugares e aquela que forçou meus avós a emigrar. A adesão à Comunidade Europeia revitalizou a economia, tornou as cidades seguras e bem cuidadas, criou empregos e mecanismos sociais para amparar os mais frágeis.
Se no início do século passado esses países dispusessem de tais recursos para proteger seus agricultores, meus avós teriam permanecido em suas aldeias.
Nessas circunstâncias, caro leitor, quem sairia prejudicado?
Este que vos escreve. Primeiro, porque meus pais teriam vivido a quilômetros de distância um do outro, circunstância pouco favorável à minha concepção. Depois, porque, ainda que tal encontro porventura ocorresse, eu não teria experimentado as alegrias e agruras de ser brasileiro.
Você argumentará que eu não viveria num país com tanta desigualdade, corrupção institucionalizada, impunidade, falta de educação e violência urbana.
É verdade, nos países ricos esses problemas são incomparavelmente menos graves, mas há outro lado: eles estão empenhados em manter a qualquer preço o bem-estar já conquistado. O futuro deles é lutar pela preservação do passado, enquanto o nosso está em construção.
Entre eles, as relações humanas são mais cerimoniosas, e o cotidiano, repetitivo e previsível. Não lhes sobra espaço para o inesperado, o encontro com a felicidade exige planejamento prévio: o e-mail para visitar um irmão, as férias na praia em 2014, o ingresso para um espetáculo que acontecerá dez meses mais tarde. A vida lá não pulsa como aqui.
Organização, serviços públicos de qualidade, leis rigorosas e aposentadorias decentes são privilégios que asseguram conforto e segurança, bens invejados pelos que não têm acesso a eles, mas que não parecem trazer alegria aos povos que deles desfrutam.

RUY CASTRO - De pato a marreca

De pato a marreca
RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 27/08/11 

RIO DE JANEIRO - Os atores sabem: não se deve contracenar com crianças e animais. Eles roubam a cena. E não importa quem você -ou o animal- seja. Vide, na antiga Hollywood, o cavalo Trigger, o chimpanzé Chita e o mulo Francis. O próprio James Stewart perdeu para um coelho invisível em "Meu Amigo Harvey" (1950). O único empate até hoje foi entre Ronald Reagan e o macaco Bonzo, em "Bonzo no Colégio" (1951).
Esta semana fiz minha estreia (e simultânea despedida) como ator de cinema. Vou aparecer em "Agamenon - O Filme", a cinebiografia do jornalista Agamenon Mendes Pedreira, uma espécie de Chateaubriand moderno, só que corrupto. É uma produção do "Casseta & Planeta", o que explica minha presença no elenco ao lado de profissionais como Luana Piovani e Fernanda Montenegro. Faço o "biógrafo não autorizado" de Agamenon.
Por artes do enredo, há uma cena em que contraceno com um pato. Um pato de verdade chamado Vítor, já com razoável experiência em cinema. Nas várias vezes em que errei e tivemos de repetir, Vitor foi tolerante comigo. Além de me roubar a cena take após take.
De repente, um choque. Patrícia, veterinária responsável por Vítor, me confidenciou que ele não é bem um pato, mas um marreco. E o que costumamos ver no cinema como patos, por causa do pato Donald, são quase sempre marrecos -a começar pelo próprio Donald! (Patos de verdade têm uma membrana vermelha no bico; Donald, não.) Outro choque: não será surpresa se Donald, além de marreco, for... fêmea! Só os marrecos-fêmeas têm aquele rabicho proeminente e sacolejante, como o que Donald exibe em seus desenhos animados.
O criador de Donald para Walt Disney foi o grande Carl Barks. O qual, como tantos empregados da Disney, odiava Walt. Se foi de propósito que Barks fez de Donald uma marreca, que sublime vingança.

JOSÉ SIMÃO - Buemba! Micareta na Líbia!

Buemba! Micareta na Líbia!
JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SP - 27/08/11

E eu tenho a foto de um rebelde que é a cara do Bell Marques. Acho que vai ter show do Chiclete!

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E olha esta placa numa lanchonete: "COMA À VONTADE. Homens R$ 9. Mulheres R$ 8". Comer mulher tá mais barato! Rarará! E o suco é grátis!
E o Google Portugal demitiu 80% dos funcionários. A empresa alega que eles passavam o dia inteiro na internet. Rarará! E o filho do Neymar? O Gansinho! O filho do Neymar, quando nasceu, não chorou, pediu falta. E diz que o filho do Neymar caiu do berço e pediu pênalti.
E sabe o apelido de mulher que tem filho com jogador? RASPADINHA PREMIADA! E mais piada pronta da Líbia: "Hotel Corinthia é palco de tiroteio!". Normal! Rarará! Ontem foi esta: "Jornalistas libertados foram transferidos pro Hotel Corinthia". Então continuaram presos. Itaquerão colchonete cinco estrelas.
E eu tenho a foto de um rebelde que é a cara do Bell Marques. Acho que vai ter show do Chiclete.
Micareta na Líbia! E amanhã tem micareta em Cuparaque, Minas: CUPARAFOLIA! E os rebeldes invadindo a mansão do Kagadafi? Parece um bordel de luxo, o Bahamas! Então não é Trípoli, é TRÉPOLI! Trepo-lhe! O Kaidafi vivia em Trepo-lhe! Rarará! Pior, ele escondia álbum da Condoleezza Rice. Ele nunca viu a "Playboy" da Cleo Pires ou da Mulher-Melancia? Rarará! E eu não quero o Kagadafi nem vivo nem morto, eu só quero ficar com aqueles caftans exóticos e aquele banco dourado em forma de sereia com a cara da filha do ditador! Ditadura kitsch!
E esta: "Steve Jobs deixa comando da Apple". E o Piauí Herald: "PMDB quer a vaga do Steve Jobs". Rarará!
E olha o que um cara escreveu no meu Twitter: "Ministério da Saúde adverte: logo mais ficaremos sem ministro também". Rarará! E adorei a charge do Cícero: "Dilma, para com a faxina, estamos ficando sem políticos". Rarará! É isso: a Dilma parou com a faxina, senão iríamos ficar sem políticos no Brasil. É mole? É mole, mas sobe!
Momentos Cachorros! Eu tenho uma amiga que tava tão barriguda, mas tão barriguda, que fez uma lipodesesperação. Toucinho-aspiração. E um amigo meu foi pro motel, tirou a cueca e disse pra mulher: "É pequeno, mas é de coração". Rarará! E agora no Brasil só tem dois tipos de piadas. Aquela que termina com o Sarney. E aquela que começa com o Sarney. UFA! Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

MERVAL PEREIRA - Distorções


Distorções
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 27/08/11

Antes mesmo de se discutir uma reforma que dê mais sentido ao nosso sistema político, é preciso considerar que, no presidencialismo, o presidente é o chefe do Executivo, e a "direção" do país é indicada pelo Congresso. É possível dizer que o presidencialismo é o "inventor", ou o melhor tradutor, do princípio da independência entre os Poderes, base do sistema de pesos e contrapesos da democracia.

A Constituição não prescreve o emprego de membros do Legislativo como auxiliares do Executivo; essa prática exacerbada em nosso "presidencialismo de coalizão" é um desvio de finalidade, e os efeitos estão à vista de todos.

Está faltando a nossos políticos a noção de que o Executivo presidencialista ter de nomear deputados e senadores como seus ministros é, como diz um amigo meu, uma "novidade tropical", e como tal só pode redundar em distorções da função pública, tornada o mais das vezes em função que atende a interesses privados.

A briga no Congresso por vagas no Ministério, da maneira como se dá, é uma deturpação dos valores do presidencialismo, sintoma de tendência ao patrimonialismo e ao fisiologismo.

Um parlamentar que vai para o Ministério abre mão de exercer seu mandato como membro de um dos Poderes da República para aceitar papel secundário em outro poder, a maioria das vezes com interesses subalternos, como está se revelando rotineiramente nesses primeiros meses de governo Dilma.

Não é que não houvesse essa deturpação em governos anteriores, mas desestruturação cada vez maior dos partidos políticos, e a sempre ampliada base governista, formam um agrupamento que não faz liga programática e levam a que a composição ministerial obedeça cada vez mais a interesses esparsos e pessoais - e os políticos se tornem posseiros de "feudos" onde reinam, soberanos, não para implementar projetos, mas para se beneficiar, e aos seus apaniguados.

O próprio aumento do número de ministérios colaborou para a redução da importância deles, que se transformaram em grande parte em fontes de negociatas.

Como não estamos no parlamentarismo, onde os programas de governo são defendidos pelos partidos que ganharam a eleição, a maneira como os partidos aqui negociam seus pedaços de poder os transforma em atores que não desejam opinar nas diretrizes que vierem a ser adotadas pelo governo a que aderiram por mero desfrute.

Todos os políticos que se digladiam por uma vaga na Esplanada dos Ministérios deveriam, em teoria, renunciar aos mandatos, não podem servir ao Poder Executivo no exercício do cargo para o qual foram eleitos.

Mas apenas se licenciam, e têm a prerrogativa de retornar ao Congresso quando deixam o Ministério, além de continuar a receber o salário de parlamentar, maior que o de ministros, como aconteceu recentemente com o senador Alfredo Nascimento, saído dos Transportes e devolvido sem honra ao plenário do Senado.

O sistema presidencialista oferece ao chefe do Poder Executivo muitas alternativas legais para contornar o Legislativo, e os presidentes têm mais flexibilidade para montar seus ministérios.

Enquanto no parlamentarismo os governos são organizados essencialmente pelos componentes dos partidos que formam sua base parlamentar, no presidencialismo é possível escolher ministros de acordo com critérios próprios, e até mesmo levando em conta apenas as relações pessoais.

Na teoria, uma das virtudes que devem ser evitadas ao se montar uma boa equipe de governo é, paradoxalmente, a lealdade do escolhido, o que leva inevitavelmente a que pessoas não qualificadas, mas leais ao presidente da República, assumam postos importantes nos governo com o único compromisso de que não se voltarão contra quem os escolheu.

Há quem defina o hiperpresidencialismo como uma ditadura disfarçada, cuja fronteira para a ditadura de fato é a liberdade de imprensa, que geralmente não existe em países que já adotam esse sistema de governo, como a Venezuela e a Rússia.

A partir do caso da Rússia, os estudiosos dos sistemas de governo dizem que a fragmentação partidária pode levar a que o Executivo estimule uma maioria circunstancial que favoreça a aprovação de sistemas autoritários.

Seria o mesmo fenômeno que acontece na América Latina, com governos se utilizando dos mecanismos democráticos para aprovar leis que lhes conferem superpoderes, colocando o Executivo acima dos outros Poderes, fazendo com que o sistema democrático perca sua característica de contrapesos.

Nós ainda estamos em um estágio anterior, em que essa desagregação dos partidos facilita apenas o predomínio do Executivo sobre o Legislativo às custas de vantagens fisiológicas que estão sendo reveladas quase que cotidianamente.

É o que chamo de uma "maioria defensiva", que só serve mesmo para evitar a convocação de ministros, a realização de CPIs e, no limite, processos de impeachment.

E, mesmo quando o Legislativo decide "mostrar a sua força", o faz quase sempre na base da chantagem política, e não na defesa de uma posição ideológica ou programática.

No presidencialismo, deputados e senadores eleitos governam o país no Parlamento, no Congresso, como parte principal de um dos Poderes da República.

Abrindo mão do mandato, passam a exercer papel secundário do Poder Executivo, mais secundário ainda quanto mais forte for o presidente da República.

Mas raros são os que têm essa percepção ou essa visão da política para rejeitar essa submissão. A maioria, infelizmente, quer usufruir as vantagens que a "lealdade" ao poder central lhe garante.

BOTA O MARRONE!


FELIPE SALTO e JOSÉ EMYGDIO DE CARVALHO NETO - Pelo voto distrital no Brasil


Pelo voto distrital no Brasil
 FELIPE SALTO e JOSÉ EMYGDIO DE CARVALHO NETO
FOLHA DE SP - 27/08/11

Somos contrários à proposta de reforma do sistema eleitoral do deputado Henrique Fontana (PT-RS), pois, se aprovada, pioraria os já conhecidos problemas de nosso sistema eleitoral. Segundo a proposta, o eleitor votaria duas vezes.

O primeiro voto seria computado como hoje; no segundo voto, em lista, o eleitor perderia o direito de eleger diretamente seus candidatos. Mas quem escolheria essa lista? Os caciques dos partidos.

A proposta não parece ser produto de estudos de sistemas eleitorais, mas de uma tentativa de acomodação de interesses.

Nossa proposta é bastante distinta e com objetivos bem claros.

Vemos no voto distrital uma poderosa ferramenta para reduzir o custo das campanhas eleitorais e motivar uma maior fiscalização por parte do eleitor sobre o trabalho do político. A sociedade tem se mostrado propensa a esse debate. Tal propensão ao "novo", como temos chamado, é o que se vê no movimento #EuVotoDistrital.

O sistema eleitoral proporcional, que é o atualmente empregado no Brasil, permite que votemos em candidatos a deputados federal, estadual e a vereador, mas também em suas legendas, se desejarmos.

Extremamente confusa, a mudança para proporcional misto só pioraria um sistema em que já é difícil entender como nosso voto contribui para eleger representantes.

Com o voto distrital, seria fácil entender os caminhos do voto, e o custo de acompanhar o processo eleitoral, pela facilidade do sistema (o mais votado em dois turnos ganha no distrito), seria bem menor.

Na prática, o eleitor precisaria acompanhar apenas um representante. Também o eleito teria incentivos para lutar pelas demandas do distrito, aproximando representante e representado.

Pelo lado dos custos das campanhas, os candidatos não teriam que percorrer todo o Estado, mas apenas uma região muito menor (o distrito), de modo que a demanda por financiamento cairia, segundo alguns estudos, de 50% a 70%.

Como funcionaria o sistema distrital (ou majoritário)? O país todo seria dividido em distritos -áreas com limitações geográficas parecidas e número similar de eleitores - de acordo com o número atual de deputados a que cada Estado tem direito. São Paulo, por exemplo, continuaria a eleger 70 representantes para a Câmara (70 distritos, sendo um por distrito).

Aliás, estamos às vésperas das eleições municipais. Por que não alterar nosso sistema eleitoral para a escolha dos próximos vereadores? Funcionaria como no caso dos deputados federais. Isto é, o eleitor escolheria seu representante distrital como se fosse o vereador do bairro (ou regiões que englobariam alguns bairros).

A sociedade quer e busca a mudança. Ela se organiza para isso. Diretas-Já, Ficha Limpa e tantos outros exemplos. Resta-nos potencializar a força que emana desse novo poder, dessa força pela mudança e pela Política (com "P" maiúsculo).

Eis a inflexão que queremos ver na política nacional -fruto de uma nova postura, que é a expressão do desejo de construir um país melhor.

É essa a causa que guarda e defende o movimento livre, apartidário, que surgiu da sociedade civil e que nesse momento angaria assinaturas - o #EuVotoDistrital (www.euvotodistrital.org.br).

Milhares de cidadãos de todos os Estados do Brasil já se apresentaram para essa mudança. Agora, buscamos seu apoio para que o Congresso seja compelido a realizar a verdadeira reforma política e, acima de tudo, para que façamos da nova política que queremos ver a próxima grande mudança liderada pela sociedade em benefício da democracia no Brasil!
FELIPE SALTO, economista pela EESP/FGV-SP e mestrando em administração pública e governo também pela FGV, é analista da Tendências Consultoria e cofundador do Instituto Tellus.
JOSÉ EMYGDIO DE CARVALHO NETO, formado pela FGV em administração pública e graduado pela Universidade Georgetown (EUA) em seu Global Leadership Program, é cofundador do Instituto Tellus e coordenador de mobilização do Centro de Liderança Pública. Ambos são membros do movimento #EuVotoDistrital.

FERNANDO DE BARROS E SILVA - ABC da miséria nacional


ABC da miséria nacional
FERNANDO DE BARROS E SILVA
FOLHA DE SP - 27/08/11 

SÃO PAULO - Pela primeira vez, uma pesquisa de âmbito nacional mediu conhecimentos básicos das crianças que acabaram de concluir o 3º ano do ensino fundamental (antiga 2ª série). Os resultados obtidos pela Prova ABC (Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização) são muito desanimadores.

Metade das crianças do país não aprendeu o mínimo esperado para essa etapa de sua formação. Apenas 43% tiveram rendimentos satisfatórios em matemática; 53% em escrita; 56% em leitura. Em termos concretos, metade dos alunos não identifica o tema e os personagens centrais de um texto, não consegue ler as horas num relógio digital, não reconhece o centímetro como medida de comprimento.

Se o resultado do conjunto é ruim, são as disparidades entre as regiões e entre os ensinos público e privado que revelam o tamanho real do buraco educacional do país.

Enquanto nas escolas particulares 79% dos alunos têm desempenho satisfatório em leitura, nas públicas eles são apenas 49%. O mesmo abismo se reproduz em relação à escrita (82% contra 44%) e à matemática (74% contra 33%).

É preciso ter claro que, dos 32 milhões de alunos matriculados no ensino fundamental, 88% estão concentrados na rede pública. Os filhos do ensino privado pertencem a uma pequena elite nacional.

As diferenças entre regiões também são escandalosas. Por exemplo: na rede pública do Nordeste, apenas 21% dos estudantes foram aprovados no teste de escrita. No Sudeste, 54% conseguem passar. Mas, na rede privada do próprio Sudeste, a aprovação é de 98%!

Para o leigo, fica a sensação de que a pesquisa vem confirmar aquilo que já sabemos: o país é muito desigual, as crianças mais pobres recebem uma educação de péssima qualidade e mesmo entre os mais ricos há razões para preocupação.

Sabemos também que essa situação já foi pior. Mas, diante da tragédia disponível, seria cínico demais dizer que isso serve de alento.

MARCELO RUBENS PAIVA - Dar: o dilema



Dar: o dilema
MARCELO RUBENS PAIVA
O Estado de S.Paulo - 27/08/11

Peço desculpas ao leitor. Pensei muitas vezes no verbo a ser utilizado no relato abaixo. "Ceder" seria menos ofensivo. Mas "dar" foi exaustivamente utilizado pelas personagens em questão. É com ele que elas costumam pontuar suas aventuras e seus segredos.

Numa mesa de bar com três mulheres: uma carioca, uma mineira e uma paulista. Na faixa dos 30 anos. Profissionais liberais, que moram sozinhas, donas de si. Rodadas. Com alguns matrimônios interrompidos nas costas.

A mineira teorizou. Se você sai com um carinha três vezes, terá que dar na quarta. Seria uma afronta às regras da corte. Afinal, há uma ética no jogo da sedução.

Ela aprendeu com a mãe que é sempre vantajoso para o espelho ter uma legião de admiradores. Mulheres adoram ser paparicadas, lembrou. Se rolar a quarta vez, seu papel de diva a obrigará a ceder aos óbvios interesses masculinos. Se não, perde-se o trono. E, para o horror das mulheres, a maior heresia: será malvista.

A paulista contou. Que no começo do ano saiu com um cara, mas não ficou tão a fim. Não rolou nada. Ele insistiu para que houvesse um outro encontro. Ela dispensou com carinho e educação. Porque sabia que, se desse, ele poderia se apaixonar, e ela não conseguiria encarar tamanho paradoxo. Então, quebrou o encanto já na raiz.

A carioca contou. Que tem filhos, ex-maridos, dois empregos, o que filtra consideravelmente o assédio, para o bem. Se depois de todas as informações, o carinha continua a saga da conquista e ultrapassa as etapas da prova, ela dá. Afinal, um cara como esse merece consideração.

E ela não se preocupará com o grau de paixão do admirador, pois os filhos, os ex-maridos e os dois empregos já trarão muito trabalho pela frente, e será natural o termômetro do amor cair ao nível baixo. Ela dará e se esquecerá naturalmente. E esperará que ele também siga por outra trilha.

As três falavam sem parar o que para elas seguia uma lógica incontestável, comum, apesar do UF de seus documentos serem distintos. Cigarros e mais chopes contribuíam para a enumeração das convicções femininas. Contavam casos esdrúxulos com carinhas sem noção, experiências fracassadas, xavecos tolos, excessos improdutivos.

Enquanto eu, pasmo, só acompanhava em silêncio, com muita pena da minha categoria, dos meus camaradinhas, aprisionada pelas garras da lógica feminina, perdida num mar sem vento. Até a carioca contar a sua última bizarrice:

Foi muito cortejada por um músico que não se dispensa. Daqueles que manipulam as palavras e ideias com capricho, para obter o suspiro incontrolável de uma garota carente, viciada em elogios doces e pensamentos bem encaixados.

Carinha com um tremendo prestígio no meio, idealista, que milita em causas justas. Que se educou no exterior. Cuja produção é sempre bem recebida, premiada, elogiada, invejada. E que fala da alma da mulher, consegue penetrar no desconhecido, seduzir e encantar.

Ela saiu com ele duas vezes. Descobriu, como ela descreveu, que era meio "afeminado", termo incorreto que só utilizamos quando o grau de álcool no sangue beira o nível de ser repreendido numa blitz da Lei Seca. O que foi uma surpresa, já que o currículo do carinha era digno de matéria de capa da revista Vogue. Aliás, ilustrada por algumas de suas conquistas.

Apesar de não corresponder aos elementos da paixão, nem de estar tanto a fim, acabou vencida pela curiosidade. Foi a um motel com o músico-poeta, quando, não mais que de repente, o sangue dele parou de fluir nos dutos do desejo, impedindo a vascularização das veias dorsais e da artéria profunda do seu membro.

O prepúcio não se deslocava, nem a glande se expunha, levando pânico ao córtex cerebral dele, induzindo a uma infeliz, incontestável e categórica broxada!

Dilema da minha amiga. Mesmo não querendo, refletiu diante do fracasso, terei que sair com ele outra vez, não poderei deixar uma mácula no seu inconsciente, sua produção artística será afetada, decairá, seu talento passará a ser questionado, o mercado o considerará o artista promissor que, de repente, do nada, perdeu o eixo.

Ela saiu com ele de novo. Quase por obrigação. Foram ao mesmo motel. Escolheram o mesmo quarto e, no mesmo ambiente, repetiram a coreografia da cobiça. Dessa vez, o chamado corpo cavernoso, ou esponjoso, foi preenchido devidamente pelo pulsar e sangue do macho. Rolou. Ele cumpriu o seu papel. Ela, idem, e disse um penoso adeus, convicta de que a arte não imita a vida.

Neste momento, elas pararam de falar e me olharam indignadas com o meu "não acredito!" Pediram explicações diante da minha exclamação. Queriam minha opinião a respeito do que acabara de ouvir.

Eu disse, sem pestanejar: "Como vocês racionalizam o sexo! Sempre têm explicações, motivos extras. Não é tesão que comanda? Não basta se sentir atraída, ir lá e, como vocês dizem, dar?"

Se seguiu aquele blablablá sonolento das diferenças de gênero, que uma mulher tem que ceder, um homem, apenas penetrar, que uma mulher tem que se abrir, um homem, introduzir, e por aí foi, o mesmo de sempre, apesar de vivermos numa nova era, de a emancipação comandar grandes transformações.

As revoluções não mudaram as explícitas diferenças entre querer e poder. Aliás, qual homem já não escutou "quero, mas não posso", e, em seguida, a promessa de quem sabe numa outra ocasião?

Quantos questionamentos, indecisões, cálculos. O amanhã é muito mais importante para as mulheres do que para nós, machos ligados no aqui e já. Ainda bem que existe a diferença. Se não, esta aliança não teria tanta graça.

Narrei a conversa para uma campineira esclarecida, estudante de filosofia da Unicamp, lésbica, conhecedora do gênero; já foi casada com outra garota.

"Ah, mulher é tão maternal...", justificou. E contou que estava numa festinha de universitários esclarecidos de Barão Geraldo, louca para fumar um baseado. Descobriu que um carinha tinha. Foram até o carro dele, cometer o ato ilícito. No caminho, ela pensava, "terei que dar". Seria uma troca de gentilezas. E foi o que aconteceu. Mulheres...

RUBENS FIGUEIREDO - A presidente Dilma e o governo-conluio



A presidente Dilma e o governo-conluio
RUBENS FIGUEIREDO
O Estado de S.Paulo - 27/08/11

Nem tudo que é bom para o Brasil é bom para o governo. A presidente Dilma Rousseff, ao se empenhar em resgatar princípios republicanos, promovendo a famosa faxina nos ministérios, certamente beneficia o País. Mas, ao mesmo tempo, expõe o ex-presidente Lula e o PT, gerando, de quebra, um imenso descontentamento nos partidos da base aliada. E passa para a sociedade a ideia de um governo instável, imerso em corrupção.

Dilma é cria de Lula, o presidente ídolo, o presidente show, o rei dos discursos, o comunicador talentoso e o pai moderno dos pobres. Em pouquíssimo tempo, Dilma conseguiu imprimir uma marca à sua gestão e criou um estilo todo próprio de conduta. Para alguém que sucede a um fenômeno e era totalmente desconhecida pelo eleitorado há um ano, trata-se de verdadeira epopeia.

O quadro é complexo. A presidente ganhou a simpatia da classe média tradicional, aquele conjunto de cidadãos de escolaridade mais alta e mais informado sobre política. Sua avaliação, entretanto, piorou no conjunto da sociedade, segundo todas as pesquisas recentes divulgadas. Ainda é alta, pois Lula entregou o governo nos píncaros da glória. Mas caiu.

A performance de um governo, entretanto, não é medida apenas pela ação do chefe de governo. Precisa ter projetos, prestar bons serviços, melhorar a vida das pessoas, aprovar leis importantes. Num sistema político de presidencialismo de coalização, no qual os governos são formados com a participação de partidos coligados, fazer uma boa administração significa ter uma excelente relação com os grupos aliados. Um governo paralisado ou em "marcha lenta" jamais será inscrito no rol dos mais eficientes.

Isso criou, no Brasil, a ideia do governo-conluio. Em nome da governabilidade, aceita-se uma pletora de nomeações de políticos de caráter duvidoso e cria-se uma espetacular rede de proteção corporativa, que nos governos anteriores era capitaneada pelo próprio presidente. Combater corrupção, as pesquisas mostram, não é prioridade para a ampla maioria dos eleitores. Pode vir a ser, se a presidente Dilma conseguir dar às suas ações um caráter educativo e convencer a sociedade de que, pelo menos no caso da sua faxina, o que é bom para o Brasil pode ser bom também para o governo.

GOSTOSA


MÔNICA BERGAMO - MARINA NO NINHO

MARINA NO NINHO
MÔNICA BERGAMO
FOLHA DE SP - 27/08/11

Marina Silva tenta fortalecer seu projeto político em SP. Ela agendou para a próxima semana conversa com Walter Feldman. Fundador do PSDB, ele anunciou há alguns meses, com estardalhaço, que deixaria o partido. Os dois vão conversar sobre os planos da ex-presidenciável, que devem desembocar na criação de uma nova legenda. Da qual Feldman provavelmente fará parte.

NINHO 2
Feldman integra a equipe do prefeito Gilberto Kassab. Ele é secretário da Articulação de Grandes Eventos. Está em Londres para estudar a preparação da cidade para a Olimpíada. Desembarca de lá na próxima semana para a conversa com Marina.

UMBIGO
José Dirceu foi internado anteontem no hospital Sírio-Libanês. O ex-ministro fez cirurgia para a retirada de uma hérnia umbilical.


Operado por Raul Cutait, já recebeu alta.

SOA O GONGO
Deve acontecer em dezembro a luta entre o americano Evander Holyfield e o brasileiro Raphael Zumbano. O lutador que teve um pedaço da orelha arrancada por Mike Tyson é esperado para defender seu título da Federação Mundial de Boxe contra Zumbano, primo de Éder Jofre. A equipe do brasileiro negocia com patrocinadores para que o combate ocorra em São Paulo ou no Rio.

MENINAS DA VILA
Em seminário sobre adoção na FMU, em SP, o padre Júlio Lancelotti criticou a abordagem do caso das meninas detidas por furto na Vila Mariana. "Estão mais preocupados com a Vila Mariana do que com as meninas, porque ninguém fala das meninas de Cidade Tiradentes, do Campo Limpo, do Jardim Brasil [bairros da periferia]."

SEGUNDA LEVA
A Secretaria de Desenvolvimento quer lançar mais 30 mil vagas no programa Via Rápida Emprego. Os primeiros 30 mil alunos, já selecionados, começarão os cursos de capacitação até setembro.

O TABU PARTE DOIS
Fernando Henrique volta a falar sobre o tema drogas em outro filme, "Cortina de Fumaça", de Rodrigo Mac Niven. "Quando a sociedade começar a discutir mais abertamente a questão das drogas, o político vai sentir a necessidade de se posicionar. Hoje a necessidade dele é de se omitir, não falar na droga. E quando fala é para repetir o tabu", diz o ex-presidente. O longa estreia no dia 15.

DANDO PINTA
O artista Nate Lowman, de 32 anos, ex-namorado da atriz Mary Kate-Olsen, desembarca em SP no fim de setembro. Ele montará a exposição "Em Nome dos Artistas - Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley", na Bienal. Apresentará 15 obras, entre instalações e pinturas que mesclam linguagens e referências da cultura pop.

GLOBAL
A atriz Ana Petta participará da próxima novela das 18h da TV Globo, "A Vida da Gente", dirigida por Jayme Monjardim.

SOM CUBANO
O festival TelefônicaSonidos contou com apresentações do cubano Chuco Valdés e Hamilton de Holanda no seu primeiro dia, na quarta-feira, no Jockey. Os atores Leonardo Miggiorin e Bianca Comparato conferiram os shows.

ROCK NO PALCO
O musical "Hedwig e o Centímetro Enfurecido", com direção de Evandro Mesquita e adaptação de Jonas Calmon Klabin, estreou anteontem no Teatro Frei Caneca.

CURTO-CIRCUITO

A ceramista Hideko Honma e o banqueteiro Viko Tangoda comandam hoje, às 18h30, sopa em prol da Associação Travessia, no Jardim Petrópolis.

Ricardo Kalili faz show hoje na Livraria da Vila do shopping Cidade Jardim.

O bingo da Obra do Berço será amanhã, no Itaim.

com DIÓGENES CAMPANHA, LÍGIA MESQUITA e THAIS BILENKY

LUIZ VIANNA WERNECK - Quando o passado deixa de iluminar o futuro



Quando o passado deixa de iluminar o futuro
LUIZ VIANNA WERNECK 
O Estado de S.Paulo - 27/08/11

Não foram poucas as vezes em que a obra de Marx e a herança do seu pensamento foram declaradas como peremptas e anacrônicas, não sendo capazes de explicar a natureza do nosso tempo. A queda do Muro de Berlim significaria a demonstração fática de que o augúrio de tantos afinal encontrava a sua confirmação: na melhor das possibilidades, Marx seria um pensador prisioneiro das circunstâncias do século 19 e da filosofia da história de Hegel, com a qual, apesar dos seus esforços, jamais teria conseguido romper.

Sobretudo estaria por terra o princípio que, na sua teoria do materialismo histórico, assentava o primado da instância econômica na determinação da vida social, cujo desenvolvimento o levou a seus estudos sobre o capitalismo em sua obra maior, O Capital, quando identificou o processo de subsunção da economia real ao sistema financeiro como o foco de crises especulativas que o ameaçariam persistentemente de colapso.

Estamos bem longe da queda do Muro e, apesar do diagnóstico, ora vencedor, que condenou Marx ao anacronismo, desde o setembro negro de 2008 o mundo parece estar fora dos seus eixos, vítima dos mecanismos da intermediação financeira, pondo em xeque hegemonias, moedas, conquistas sociais e políticas. Este pós-2008 é diverso dos acontecimentos dos idos de maio de 1968, pois, em vez de gravitar em torno de valores culturais, trata-se de uma crise que, sem deixar de incluí-los, tem o seu epicentro na natureza do sistema capitalista e nas dificuldades que enfrenta para a sua reprodução ampliada. O seu tema dominante não é o dos libertários que, em 1968, bradavam que "é proibido proibir", e o papel dos seus filósofos de ontem tem encontrado o seu equivalente funcional nos economistas de hoje e nos comentaristas versados na crítica da sociabilidade. A matéria é outra: é econômica, falta de emprego e de oportunidades de vida.

Não há observador qualificado da cena contemporânea que se recuse à hipótese de que estamos diante de uma mudança epocal. O capitalismo, mais uma vez, poderá sair renovado da crise atual, mas o preço da sua reprodução parece exigir algo bem além de uma retomada do experimento keynesiano. Os custos de uma saída para os ciclos depressivos se tornam cada vez mais pesados, e já importam a necessidade de uma inédita ordenação do sistema financeiro em escala mundial, com a efetivação de mecanismos de cooperação internacional que a todos obrigue. Estamos longe dos tempos de Hegel, quando se podia conceber a transferência da tocha da civilização de um Estado para outro, e, definitivamente, a China não parece ser o lugar mais adequado para o seu novo endereço.

Aqui, do extremo Ocidente onde nos situamos, e do alto da nossa História bem-sucedida, com seus valores de paz, de comunidade, que, bem ou mal, tem resistido aos avanços da mercantilização da vida social, muito particularmente pela convivência que se soube criar entre diferentes etnias e religiões, todas protegidas constitucionalmente, e pelo fato capital dos nossos êxitos no processo de modernização, estamos dotados de condições para o exercício de voz nos desafios ora presentes no mundo.

Nossas credenciais têm, portanto, um duplo registro: o das ideias e o dos interesses. E o que ainda nos falta é um projeto de nação que se afirme de baixo para cima, rompendo com décadas de modernização pelas vias do pragmatismo, de Vargas a Lula, passando por JK e pelo regime militar, sempre em busca de ajustamento ao mundo. A linguagem da modernização foi e segue sendo a da economia, tudo o mais devendo ceder lugar a ela e aos imperativos de luta contra o tempo na superação do atraso de suas forças produtivas. O desenvolvimento político e social seria sucedâneo do sucesso no front econômico, com que se justificava uma política de tutela das associações dos trabalhadores e o autoritarismo político que confiava às elites na chefia do Estado a missão de nos conduzir, com o pé no acelerador, a novos patamares de acumulação.

A nova época que se abre diante de nós, se imediatamente promete ser de escassez e de destruição criadora de ativos, como dizem os economistas, também pode ser a da oportunidade para a política e para a reconstituição do tecido social, esgarçado depois de décadas de exposição nua aos automatismos do mercado. O tempo é de riscos e de novos rumos. Como disse um grande autor, na História de um povo há momentos em que o passado deixa de iluminar o futuro, como agora, em que a tradição do nosso processo de modernização não nos serve para o enfrentamento da crise atual, que está a exigir um novo repertório, uma vez que o antigo, que nos levaria a uma tentativa de fuga solitária, nos pode excluir ou subalternizar a nossa presença nos fóruns de cooperação internacional de onde deve sair uma nova engenharia para a operação da economia-mundo.

Tal repertório é o do moderno, estimulada a autonomia dos seres sociais e o adensamento da sua participação na esfera pública, especialmente os de origem subalterna, com uma radical desprivatização do Estado, lugar do interesse público e da universalização de direitos, e da afirmação, inclusive no cenário internacional, da democracia como um valor universal. Ainda imersos em trevas, como na metáfora de Tocqueville, o autor há pouco citado, aqui e ali se distinguem riscas de luz, tênues, é verdade, como na liberação de poderes públicos capturados, por meio de uma intermediação política não republicana, por interesses privados, e no encontro, em São Paulo, da presidente Dilma com líderes e importantes personalidades da oposição.

Aí podem estar sinais de que a estratégia da presidente estaria considerando a possibilidade de fazer frente à crise com a política do moderno.