Neste outro Ocidente
FOLHA DE SÃO PAULO - 01/01/10
Talvez falte à sociedade brasileira a percepção das responsabilidades inevitáveis em relação à segurança regional
QUANTO MAIS o Brasil se desenvolver, melhor ele terá que lidar com seus vizinhos no continente e assumir o seu peso específico na relação com os Estados Unidos no hemisfério. Felizmente, há mais expectativas a preencher do que confrontos a esperar. Mas talvez ainda falte à sociedade brasileira a percepção da impossibilidade de um desenvolvimento estanque em relação aos seus vizinhos, bem como das responsabilidades inevitáveis em relação à segurança regional, não só perante eles mas também perante a superpotência que habita o hemisfério.
Diferentemente do destino manifesto norte-americano no século 19 -messiânico, nacional e bioceânico- , o destino brasileiro no século 21 é a integração sul-americana: aberta, cultural e continental. Como objetivo de Estado, ela necessita, no plano político, de poder gerado com a aplicação consentida pelos vizinhos dos recursos nacionais excedentes e, no estratégico, da capacidade de lidar com os jogos de parceiros e concorrentes facilitados pela visibilidade da meta brasileira.
Os parceiros já aprenderam a extrair preventivamente do Brasil o máximo de vantagens que naturalmente obteriam com o avanço de uma agenda de integração, enquanto os concorrentes propõem áreas e alternativas que sabem muito bem não caber ao Brasil, mas que servem muito bem para dificultar qualquer consenso a ele convergente. Por isso, a despeito de todas tentativas do atual governo, particularmente neste segundo mandato, de reescrever a história e de ideologizar a integração regional, o Brasil vem atuando nas últimas décadas de maneira coerente com os seus interesses.
Faz sentido, hoje, o Brasil propor uma estruturação regional de defesa e de segurança que esvazie a componente militar de qualquer tensão local, enfrente as ameaças comuns aos países da região e previna agressões externas, objetivos que só podem ser atingidos com o decisivo engajamento do país.
O que não faz sentido é transformar essas iniciativas em escapatória para a tácita aceitação pelo PT no governo da agenda econômica que historicamente rejeitou. Além de causar desnecessário desgaste político, essa atitude tem gerado erros de avaliação flagrantes, que afetam negativamente a imagem da nossa diplomacia, um ativo importante em qualquer pretensão internacional do país.
No sensível meio-campo da segurança e da diplomacia, onde talvez ainda nos falte certa cancha, vale a pena serem considerados pelos nossos formuladores de política os preceitos do realismo e do pragmatismo, a se lerem sensatamente como não antiamericano e não antiocidental. A América do Sul tem a sua identidade nesse outro Ocidente que é a América Latina e, por não deixar de sê-lo nas suas origens, haverá de contribuir para que a civilização ocidental seja mais tolerante e plástica, mas não menos brilhante e criativa. No bom combate que se trava em todos os quadrantes do mundo contra a violência anárquica que ceifa vidas e desconstrói sociedades, o Brasil tem alguma coisa a ensinar a fracos e a poderosos com o "equipamento" cultural que seus soldados e fuzileiros navais carregam nas escaramuças, patrulhas noturnas, escolas e peladas em Cité Soleil e outros bairros de Port au Prince.
Conversando a respeito do fim da vida útil dos excelentes aviões de transporte militar que prestaram tantos serviços na América do Sul, ouvi de um experiente piloto chileno: "Vocês (brasileiros) têm que construir um!". Um pouco antes, durante os protestos de trabalhadores da indústria siderúrgica norte-americana, ouvi uma garçonete do interior do Estado da Virginia perguntar que língua bonita era aquela que falávamos à mesa. Ao lhe dizerem que era português do Brasil, refletindo um pouco, respondeu: "Brasil? Sei que é um competidor nosso, mas é um país muito simpático".
O avião está pronto para ser construído, e a internacionalização das empresas brasileiras se consumou. Para quem pretende uma integração em sua verdadeira acepção, aí estão dois bons exemplos para qualquer governo brasileiro.
Será que estamos perdendo alguma coisa?
SÉRGIO PAULO MUNIZ COSTA, 56, é historiador. Foi delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa, órgão de assessoria da OEA (Organização dos Estados Americanos) para assuntos de segurança hemisférica.
Um comentário:
Parabéns pelo artigo "Singularidade": coerente e reveladora análise da historiografia oficial ideologizada predominante no meio acadêmico e na imprensa. Como costumo dizer: é a versão da Sogra.
http://olapaazul.com/2011/06/13/a-versao-da-sogra/
Abs,
Durval
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