domingo, abril 26, 2009

MÍRIAM LEITÃO

Risco democrático


O GLOBO - 26/04/09


A coluna de quarta-feira começou assim: “A democracia brasileira está funcionando muito mal.” Era otimismo. O barraco no Supremo, no dia seguinte, foi um sintoma de que o país pode estar em situação pior. Crises institucionais são normalmente conflitos entre os poderes. No nosso caso, a crise institucional é dentro de cada um dos poderes. Eles estão se perdendo em seus labirintos.

O Senado tem, atualmente, quase o mesmo número de senadores biônicos que tinha no governo militar. A Câmara dos Deputados não parece ter função institucional, vive em torno de si mesma, discutindo e defendendo seus vários benefícios e salários indiretos. O Supremo Tribunal Federal toma decisões confusas, seus ministros têm refregas públicas desconcertantes e seu presidente tem falado demais. O Executivo tem uma lista extensa e perigosa de erros e omissões.

O episódio do bate-boca entre os ministros do Supremo foi grotesco e marcou a semana. Mas ele foi apenas um sintoma do mau funcionamento da instituição. Pior do que isso são as decisões estranhas dos tribunais superiores tomadas nos últimos tempos, como a proibição de uso de algema, a interpretação de que o criminoso só vai preso depois de esgotado o último recurso — que abre caminho para as chicanas e manobras dos advogados habilidosos e caros — e a ideia esdrúxula de que o derrotado na eleição deve ser empossado no lugar de governadores afastados.

O ativismo judicial da Suprema Corte deveria se limitar aos casos que estão sendo julgados, que já são muitos. Os casos das células-tronco ou da demarcação de terras indígenas mostraram uma decisiva atuação do órgão máximo do Judiciário. Nestas e em outras situações em que o país esteve dividido, a Corte falou pelos autos e encaminhou a solução.

O Supremo Tribunal Federal fala pelos autos, não pelos cotovelos. Concordando-se ou não com ideias defendidas pelo presidente Gilmar Mendes, o fato é que, quando ele emite tantas opiniões sobre assuntos tão diferenciados, acaba criando uma confusão institucional. Pelo cargo que ocupa, cada palavra dele é ouvida como uma manifestação do Judiciário.

Por outro lado, o Judiciário sofre o efeito da omissão do governo em áreas pantanosas. Agora, por exemplo, estão sendo julgadas – diante de uma espantosa omissão do Executivo – as ações dos correntistas contra os bancos por causa das decisões tomadas pelos planos econômicos. Elas exigem dos bancos indenizações equivalentes a 65% do patrimônio liquido de todas as instituições financeiras, inclusive as estatais, como Banco do Brasil e Caixa Econômica. O governo lavou as mãos porque o assunto é impopular e quer que o Supremo tire a brasa do fogo. Governos não podem se omitir num caso que põe em risco a solidez do sistema bancário no meio de grave crise financeira internacional.

O Legislativo é fonte de escândalos e dissabores. No governo Geisel, em abril de 1977, o Congresso foi fechado e um pacote autoritário estabeleceu que um terço dos senadores seria indicado pelo governo. Atual-mente, quase 20% dos senadores não receberam voto algum dos eleitores, mas apenas o do titular da cadeira. E como diz o indigesto biônico Wellington Salgado, é melhor ser suplente do que disputar eleições.

A Câmara dos Deputados discute a defesa de si mesma e de suas várias formas de remuneração: o uso extravagante da verba de passagens aéreas, a aplicação da verba indenizatória, a manutenção dos mais variados “auxílios”. Tudo é estranho ao cidadão comum. Como entender que, no Brasil, paga-se um volume mensal de dinheiro para “indenizar” os deputados pelo exercício do mandato. Melhor acabar com a hipocrisia, definir-se o salário do parlamentar, revogando-se os ganhos indiretos e suas falsas justificativas.

Um taxista me disse recentemente: “O Maradona disse que cada gol da Bolívia foi um ‘golpe em mi corazón’. Pois eu digo: cada decisão desse Congresso é um ‘golpe em mi corazón’.

Os parlamentares fazem as mais disparatadas declarações que só mesmo um coração forte para conseguir aguentar. “Esta-mos ferrados”, disse um deputado sobre o controle das passagens aéreas. “Ele não vem trabalhar aqui porque é muito feio”, disse um senador sobre seu funcionário fantasma. Soterrado por medidas provisórias, olhando para o seu próprio umbigo, fora de qualquer agenda relevante, o Congresso Nacional hoje, para o cidadão, é desimportante. Amanhã, será visto como um estorvo.

No Executivo, a coleção de impropriedades ditas pelo presidente da República é imensa. Com os ditos, quase já nos acostumamos. Piores são os feitos. Os gastos excessivos com despesas de custeio, os 300 mil funcionários públicos contratados, a ocupação partidária da máquina pública que não respeita nem os melhores centros de pesquisas, o uso das estatais para sustentar um projeto partidário, o uso dos bancos públicos no socorro a empresas que tomaram decisões empresariais erradas.

O cidadão que tudo paga, e tudo vê, pode se perguntar se vale a pena manter isso. A História não se repete. Os militares não sairão dos quartéis. Isso já vivemos e foi o começo de uma longa noite. Agora, o risco é o desinteresse e a revolta silenciosa pelos contínuos golpes no “corazón”. Isso cimenta a pista de algum aventureiro, algum “salvador da pátria”, que tenha eloquência populista, soluções simplistas e maus propósitos.

Com Leonardo Zanelli

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