domingo, janeiro 31, 2021

O bê-á-bá do chavismo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 31/01

Jair Bolsonaro já fez rasgados elogios ao ditador Hugo Chávez e do defunto caudilho venezuelano pegou vários cacoetes.


Os fanáticos camisas pardas bolsonaristas costumam dizer que “Bolsonaro sempre tem razão”, não por acaso uma das divisas do fascismo italiano. Mas a inspiração do movimento extremista liderado pelo presidente Jair Bolsonaro está bem mais próxima no tempo e no espaço: é o chavismo.

Os bolsonaristas podem não querer se lembrar, mas Bolsonaro já fez rasgados elogios ao ditador venezuelano Hugo Chávez, a quem hoje trata como demônio. Em entrevista ao Estado, em 1999, Bolsonaro disse que Chávez era uma “esperança para a América Latina” e que “gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil”.

Do defunto caudilho venezuelano, de fato, Bolsonaro pegou vários cacoetes: o profundo ódio pela imprensa livre, o desprezo pela democracia representativa, a militarização do governo, o apreço pelas teorias da conspiração e a mendacidade sistemática como política de Estado.

A afinidade é tanta que, enquanto Bolsonaro receita a inócua cloroquina como elixir mágico contra a covid-19, o atual tirano chavista, Nicolás Maduro, anunciou a fabricação de um certo “carvativir”, suposto antiviral que, em suas palavras, são “gotinhas milagrosas” que “neutralizam 100% o coronavírus”.

Nada disso, é claro, faz do Brasil sob Bolsonaro automaticamente um congênere da Venezuela chavista, mas há sinais evidentes de que o presidente está estudando com afinco a cartilha de Chávez – em especial os capítulos referentes ao modo como o chavismo tomou o Estado de assalto e subjugou o Legislativo e o Judiciário.

“Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara”, informou Bolsonaro, sem meias-palavras, na quarta-feira, dia 27, em referência à sucessão no comando da Câmara dos Deputados. Para o presidente, isso é necessário “para que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil”.

Por “relacionamento pacífico e produtivo” o presidente certamente entende como subserviente e caudatário. Praticamente desde a posse de Bolsonaro, o Congresso tem sido uma barreira razoavelmente sólida para as pretensões autoritárias do presidente, graças ao perfil democrático e reformista de sua atual liderança.

Mas a eleição para a presidência da Câmara, na próxima segunda-feira, pode alterar drasticamente esse quadro em caso de vitória do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), explicitamente apoiado por Bolsonaro. Fina flor do Centrão, com robusta ficha corrida e igualmente expressiva desenvoltura para angariar apoio em troca de favores, verbas e cargos, o parlamentar, se eleito, será a cabeça de ponte de Bolsonaro para conquistar o Congresso.

Se a cidadela da Câmara cair, o bolsonarismo terá removido um obstáculo crucial para avançar na tomada institucional do Estado, tal como fez o chavismo. Outros já ficaram pelo caminho: a Procuradoria-Geral da República é comandada por um fiel servidor de Bolsonaro e o bolsonarismo se espraia entre policiais e militares. É só o começo.

Profundo conhecedor do baixo estrato do Congresso, pois fez parte dele por três décadas, Bolsonaro sabe como ninguém o que faz brilhar os olhos de parlamentares que mercadejam o voto. Graças a essa habilidade e ao poder da caneta que preenche cargos e libera verbas, Bolsonaro conseguiu cooptar deputados de partidos que não estão em sua base, como DEM e PSDB.

Consta que alguns correligionários do próprio presidente do DEM, ACM Neto, decidiram votar no bolsonarista Arthur Lira porque este lhes prometeu manter apadrinhados em cargos na máquina federal. O fato de uma vitória de Arthur Lira representar enorme risco para a independência da Câmara, com consequências funestas para o País, não lhes pareceu relevante.

Cada um tem o lugar na História que merece: Bolsonaro já assegurou o dele, como o mais nocivo presidente do Brasil; já os parlamentares que elegerão o presidente da Câmara ainda podem escolher como querem ser lembrados, se como políticos responsáveis que honram o mandato que receberam ou como aqueles que, em troca de uma boquinha, entregaram o Congresso de bandeja ao Chávez de Eldorado.

O teorema da narrativa e o populismo do século XXI - GUSTAVO FRANCO

O GLOBO - 31/01/21

Por que as pessoas acreditam em astrologia, homeopatia, terraplanismo, vida emocional das plantas, abdução por alienígenas, entre tantos temas que os cientistas se recusam a levar a sério?


Há muitas maneiras de contar a história da ascensão de líderes populistas dessa variedade nova iniciada por Donald Trump e que se alastrou por diferentes continentes. Narrativas e redes sociais sempre fazem parte das explicações.

Mas mesmo antes de Trump a palavra “narrativa” vinha ganhando estranha popularidade, quase sempre para expressar uma velha máxima do jornalismo político: a versão importa mais que o fato.

Entretanto, essa simples ideia de aspecto inocente se transformou em um fenômeno nefasto na Era Trump: a “pós-Verdade” foi a palavra do ano para o Dicionário Oxford em 2016.

Mas por que exatamente esse conceito contagiou tanta gente e tão profundamente?

A explicação tem a ver com um tema antigo e intrigante, a popularidade da pseudociência.

Por que as pessoas acreditam em astrologia, homeopatia, terraplanismo, vida emocional das plantas, abdução por alienígenas, entre tantos temas que os cientistas se recusam a levar a sério?


Três respostas:

(1) são coisas para as quais é difícil, ou inútil, organizar uma refutação (ou uma prova) simples e conclusiva, e facílimo de montar uma conspiração;

(2) são credos inofensivos;

e (3) que apelam às ansiedades e emoções das pessoas, frequentemente lhes dando uma sensação de inserção em um grupo de iniciados portadores da Verdade.

Agora vamos ao enunciado de um teorema: quando uma narrativa sem pé nem cabeça é afirmada pela liderança política e atende a essas três condições (todas as três, não apenas uma ou duas) diz-se que se constituiu a chamada “pós-Verdade”.

Segue-se que o indivíduo testará positivo quanto à doença de pós-Verdade quando for pilhado apoiando ou propagando a ideia pela qual não existe a Ciência, apenas a narrativa, sendo que vai valer a que tiver mais clicadas.

É fácil ver que a pós-Verdade foi fundamental para a construção política e sucesso eleitoral de líderes desse populismo do século XXI, pela direita e pela esquerda.

Não se imaginava que a pandemia pudesse ser um choque muito fundamental para esse modus operandi, mas é o que temos, uma vez que, na pandemia, as condições essenciais para o curso tranquilo da pós-Verdade não mais se verificam.

É tolo, além de ser irresponsável, tratar uma emergência médica como se a doença fosse “narrativa”. Não se pode tratar a Covid-19 chamando o especialista em marketing digital.

O teorema das narrativas deixa de ter validade porque duas de suas três premissas deixam de valer:

(1) as comprovações são possíveis, ou seja, é simples organizar uma refutação simples e conclusiva das virtudes milagrosas da cloroquina, por exemplo, como das insanidades que se espalha sobre vacinas; mas, fundamentalmente porque

(2) o negacionismo deixou de ser um credo inofensivo, uma mera diferença de opinião, sem consequência, a estupidez mata.

Continua sendo verdadeiro que é fácil inventar uma conspiração e que a crença na liderança apela às ansiedades e emoções das pessoas e lhes dá uma sensação de pertencimento a um grupo de iniciados.

A Guerra Cultural determina em que metade do estádio você vai sentar, no meio da torcida, docemente constrangido a não discrepar do que se passa à sua volta. Assim é a vida em sociedade, ainda mais com redes sociais funcionando como torcidas organizadas.

Por isso ainda existem tantos americanos que acreditam que a eleição foi “armada” e brasileiros que acreditam nas loucuras que chegam pela internet sobre vacinas.

A mitologia populista se vê destruída quando as comprovações são possíveis e quando a “narrativa alternativa” deixa de ser um credo inofensivo. A cretinice é um direito constitucionalmente assegurado (salve Nelson Rodrigues), mas desde que não fira o vizinho. Quando o faz, há um outro elemento que agrava sobremodo a situação de líderes que exageraram em “narrativas alternativas”: a responsabilização.

Se a liderança sustentou um credo comprovadamente falso e que causou danos às pessoas: como não haver responsabilização pelo ocorrido?