quinta-feira, agosto 13, 2020

Bolsonaro é o Brasil de sempre - WILLIAM WAACK

O Estado de S.Paulo - 13/08

A debandada da equipe econômica sinaliza a perda de ênfase em reformas


A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.

Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.

Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.

Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.

Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.

A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.

Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.

Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.

Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é.

quarta-feira, agosto 12, 2020

Com debandada, Guedes assume condição de corpo estranho no governo - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 12/08

Ministro corre risco de se tornar bibelô liberal, na contramão de interesses do presidente



Paulo Guedes nem tentou pintar com tons pastéis a demissão simultânea de dois secretários de sua equipe. Ao anunciar a saída dos auxiliares, o ministro foi obrigado a admitir que duas das propostas mais emblemáticas de sua agenda liberal estão politicamente interditadas.

O chefe da equipe econômica quis distribuir a culpa e lançou dúvidas sobre as motivações do que chamou de “debandada”, mas foi obrigado a reconhecer uma das razões desse bloqueio tem as chaves do Palácio do Planalto.

A demissão dos secretários responsáveis pelo programa de privatizações (Salim Mattar) e pela reforma da máquina administrativa (Paulo Uebel) atira Guedes na condição de corpo estranho no governo de um presidente que se livra das vestes que usou como figurino de campanha.


Em 2018, Jair Bolsonaro (sem partido) recitou os sonetos liberais sussurrados pelo economista e conquistou a boa vontade de investidores e empresários. Guedes foi recompensado com superpoderes na montagem do governo, mas jamais recebeu do chefe um apoio genuíno aos projetos que pretendia implantar.

No primeiro ano de mandato, o ministro precisou arrancar do presidente um compromisso pela reforma da Previdência. Bolsonaro cedeu, mas vetou a proposta inicial de Guedes para estabelecer uma idade mínima de aposentadoria igual para homens e mulheres.

A vitória suada deu ilusões de grandeza à equipe do ministro, que preferiu não enxergar a cara feia do presidente para o remédio amargo das reformas econômicas. Embalado pela mudança na Previdência, Guedes orientou seu time a preparar uma reforma ousada da máquina estatal, com regras novas e austeras para o serviço público.

Ainda em novembro, veio o primeiro baile. Bolsonaro foi à portaria do Palácio da Alvorada, anunciou que o projeto estava em elaboração, mas pisou no freio: disse que a proposta seria “a mais suave possível”. O texto foi prometido meia dúzia de vezes para a “semana que vem”. Em junho, o presidente avisou que a ideia estava engavetada até 2021.

Paulo Uebel levou dois meses para perceber que sua razão de permanecer no cargo não existia mais. O secretário pediu demissão, segundo Guedes, em sinal de “insatisfação” com o comportamento do próprio governo.

“Se o presidente da República quiser mandar uma reforma, ela é mandada. Se ele não quiser, não é mandada”, disse o ministro, nesta terça (11). “O outro [o presidente] está dizendo: ‘Vai no ritmo que eu quiser. Eu sou o presidente da República, eu tive o voto. Se você quiser, você sai.”

O secretário decidiu sair, explicitando um projeto econômico cada vez mais desgastado. Bolsonaro resiste à reforma administrativa para evitar problemas com a bancada do funcionalismo no Congresso. Guedes, por outro lado, é o economista ultraliberal que chegou a comparar servidores a “parasitas”.

As resistências ao programa de privatizações também ficam na conta de Bolsonaro. Guedes gostava de anunciar que venderia mais de R$ 1 trilhão em ativos, mas nunca recebeu apoio político para engordar o caixa do governo.

O ministro pode ter acreditado que havia conseguido instalar um verdadeiro apologista dessa agenda na Presidência da República, mas todos os sinais em contrário estavam visíveis.

Em janeiro deste ano, ao falar sobre a proposta de venda dos Correios, Bolsonaro mostrou o que pensava sobre o assunto. “A gente pretende [privatizar ainda em 2020]. Se pudesse privatizar hoje, privatizaria, mas não posso prejudicar o servidor dos Correios”, declarou.

Quando anunciou a saída de Salim Mattar do cargo, nesta terça, Guedes disse que o ex-auxiliar atribuiu sua demissão à dificuldade de tocar esse plano. “O establishment não deixa haver a privatização”, afirmou.

Guedes queria jogar a responsabilidade para a classe política de maneira geral, mas cometeu um excesso de sinceridade e incluiu o governo no bolo.

“O secretário especial vai dizer: ‘Olha, o governo não está me ajudando’. O governo pode dizer: ‘Olha, você tem que se empenhar mais’. Os dois juntos podem reclamar e dizer: ‘Puxa, o Congresso pode nos ajudar mais’. São narrativas, cada um vai ter uma”, justificou.

O ministro que emprestava credenciais econômicas para um presidente sem planos claros nessa área corre o risco de se transformar num bibelô, um objeto decorativo de valor simbólico.

Bolsonaro nunca absorveu a agenda vendida por Guedes e passou se sentir cada vez mais confortável para definir suas posições de acordo com interesses políticos. Em pouco tempo, ele percebeu que a pauta impopular defendida pelo ministro poderia criar embaraços para a reeleição e para sua própria preservação no cargo.

Já a sobrevivência de Guedes será um produto dessas pressões. Além das privatizações e da reforma administrativa, o ministro trava uma batalha pela conservação do limite de despesas públicas, na contramão de outros auxiliares de Bolsonaro.

Antes de confirmar a debandada na pasta, ele avisou que jamais apoiará a flexibilização do teto de gastos. “Se tiver ministro fura-teto, eu vou brigar com ministro fura-teto”, afirmou. O aviso tem cara de ultimato. O próprio Bolsonaro, afinal, sonha em arrumar mais dinheiro para financiar seus planos políticos.

Liberalismo é uma loja de conveniência do governo, não um posto Ipiranga - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 12/08

Debandada é sintoma de que Guedes e reformas fraquejam sob Bolsonaro


A debandada no ministério da Economia vai dar a impressão de que Paulo Guedes está se desmilinguindo, pelo menos em um primeiro momento. Pode ser que, a seguir, o governo dê algum indício de que o ministro está firme, a fim de evitar salseiro imediato no mercado financeiro. Afinal, donos do dinheiro acreditam que, mal e mal, Guedes é por ora a garantia de que Jair Bolsonaro não vai rasgar o contrato do produto que compraram na eleição: o teto de gastos e algumas “reformas”.

Talvez até seja assim. Talvez o ministro venha a ser “prestigiado” nos próximos dias, mas o pessoal do dinheiro vai ter de fazer algumas provisões extras para perdas, para um calote, embora um estelionato eleitoral pareça ainda fora do radar, no caso do programa econômico. Mas Guedes se enfraquece.

No fundo, fundo raso, Bolsonaro é indiferente ou avesso à ideia de reformas liberais ou a qualquer ideia propriamente dita, por falar nisso. Guedes é uma conveniência. Se outro valor mais alto se alevantar, como um plano amalucado para dar sobrevida a Bolsonaro, o ministro pode até ser rifado, embora o mais provável é que seja levado na conversa, amaciado, podado; que continue largado à própria sorte.

Boa parte do ministério de Bolsonaro e vários de seus velhos e renovados amigos do centrão querem dar uma furada no teto de gastos, como tem ficado cada vez mais claro. Parte do centrão não gosta de privatizações em geral e menos ainda quando se pode cavar uma boquinha em estatais. Bolsonaro não quer bulir com servidores públicos. Desgosta de qualquer ideia de Guedes que possa lhe dar dor de cabeça política, tanto faz a relevância (ou não) do plano.

Ameaças ao teto, às privatizações e à reforma administrativa foram alguns dos motivos da debandada no ministério da Economia, embora não apenas. Alguns desses assessores de Guedes que vêm se demitindo desde julho dizem que o ministério é uma confusão, que é muito grande, que falta coordenação e que tem muita fofoca, “tem gente se matando lá dentro”.

O próprio ministro comentou a saída de alguns de seus principais auxiliares como se não soubesse o que se passa na sua cozinha. Algo na linha “ah, eles dizem que estão com dificuldades para privatizar”; “ah, tem de perguntar para eles o motivo da demissão”. Guedes parece de resto desorientado, perdido em negociações “ad hoc”, de varejo, meio maníacas (como a CPMF), sem um plano geral organizado. Começa a cair na boca do povo, como o ministro do “vem aí”, do ministro da “semana que vem”, da piada do “imposto Ipiranga”.

Mais importante, no entanto, é notar que o ministério da Economia sobrevive como um corpo algo estranho no governo, um protetorado provisório de Guedes, uma repartição que trata de assuntos de que Bolsonaro não entende e dos quais em geral não quer saber. Sustenta-se em parte devido ao interesse da atual liderança da Câmara de tocar as “reformas”, ao apoio de Rodrigo Maia. O programa do “parlamentarismo branco”, ora meio encardido e moribundo, é o das “reformas”. Quanto vai durar?

Sim, caso Guedes caísse ou se tornasse um dois de paus, o sururu econômico-financeiro poderia colocar em risco o mandato de Bolsonaro. Logo, o ministro não pode ser rifado sem mais. Pelo menos em tese, de uma perspectiva racional interesseira, não pode ser posto para fora enquanto o governo se reorganiza (isto é, faz a campanha da reeleição) e a economia está ainda entre o buraco e o pântano. Mas o bolsonarismo não frequenta o universo da razão, talvez nem mesmo a interesseira.

Quando Sérgio Moro foi expelido do ministério da Justiça, em abril, muita gente escreveu que o governo perdia um pilar e que estaria meio arruinado. Hum. Como ficou mais claro deste então, Moro era um outdoor da campanha eleitoral, agora apenas um cartaz desbotado e rasgado. No mais, o expurgo do lavajatismo foi uma decorrência de Jair Bolsonaro, de seu plano real de governo, de seu desejo de interferir em órgãos de controle, do Coaf à Procuradoria-Geral da República, passando pela Polícia Federal e pela reorganização de serviços de espionagem.

Guedes e “as reformas” são algo mais do que mera fantasia econômica liberal do governo, pois rebuliços nessa área podem ter consequências materiais muito imediatas. Mas são também uma conveniência, como Moro, na verdade uma loja de conveniência no posto Ipiranga. O combustível do governo Bolsonaro é outro, é a guerra cultural autoritária. O resto é acessório.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

domingo, agosto 09, 2020

A luta do nosso bravo Jair contra os moinhos de vento - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 09/08

Tão inútil quanto combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato


Na última terça-feira, 4/8, o presidente Jair Bolsonaro declarou que seu sonho é livrar o Brasil da esquerda. Minha primeira reação foi tentar saber o que ele entende por esquerda.

Nas redes sociais, a resposta mais comum, quase única, foi a de que esquerdistas são os adeptos do marxismo. Ora, se é isso, o presidente não terá muito trabalho. Comecemos com uma distinção: os marxistas que pegaram em armas e os que vêm os escritos de Karl Marx como uma filosofia, uma teoria da História ou mesmo uma teoria econômica rigorosa. No Brasil, grupos comunistas pegaram em armas duas vezes, evidenciando em ambas uma patética fragilidade. Nos anos 1930, quando o Partido Comunista era dirigido por Luís Carlos Prestes, o levante que se tornou conhecido como a Intentona, anterior à implantação da ditadura getulista, facilmente desbaratado pelo governo da época. Depois de 1964, a luta armada encetada contra o regime militar por Lamarca e Marighella, principalmente. Teve consequências mais profundas, levando os militares a arrochar ainda mais o regime, notadamente no período que ficou conhecido como os “anos de chumbo”.

Atualmente, nada faz crer que existam grupos comunistas inclinados a pegar em armas. Lula e alguns satélites de seu PT, o melhor exemplo sendo João Pedro Stédile, recorreram ocasionalmente a uma retórica beligerante, apresentaram-se como admiradores do chavismo e do regime cubano, mas não foram além disso. Aliás, definir o lulismo não é tarefa para principiantes. Para mim, Lula é uma variante do nosso velho populismo, uma cepa de políticos que acreditam mais no gogó social, prometendo paraísos terrestres (e de vez em quando metendo a mão em algum, que ninguém é de ferro), do que em aprimorar a economia e a administração pública. Aprimorar a economia, nem pensar; o próprio Lula declarou diversas vezes (talvez invocando Noel Rosa) que bons governos nascem é do coração. Esse singelo aparato é suficiente para enganar os incautos – acenando-lhes com um “socialismo por construir” – que proliferam nas universidades, no clero e até certo ponto na imprensa e nos corpos legislativos.

Voltar um pouco no tempo pode tornar mais proveitosa esta nossa inquirição. Jair Bolsonaro estaria empenhado em “livrar o Brasil da esquerda” quando alguns dos maiores símbolos dela desfrutavam imenso prestígio nacional. Oscar Niemeyer, por exemplo, morreu aos 103 anos sem jamais abdicar de sua devoção ao tirano russo Joseph Stalin. Foi, como todos sabemos, o arquiteto de Brasília e quem lhe conferiu tal encargo foi o mineiríssimo e conservadoríssimo presidente Juscelino Kubitschek. Bolsonaro incluiria JK em sua lista dos que, ao ver dele, precisam ser afastados? E Jorge Amado, o grande escritor baiano, consagrado e cultuado em todo o mundo como um de nossos maiores romancistas?

Os casos citados devem ser suficientes para evidenciar que combater a esquerda marxista, a esta altura do campeonato, é uma atividade quase tão inútil quanto arremessar o bravo corcel do Estado contra algum moinho de vento. O enredo melhora bastante se, em vez de circunscrever o conceito de esquerda ao marxismo, fizermos dele uma base mais ampla para um reexame sério dos programas de crescimento econômico que pusemos em prática desde a 2.ª Guerra Mundial. Aqui estaremos falando do nacional-desenvolvimentismo, do horror à economia de mercado, da burocracia pública e da inflação como demiurgos do progresso, da resistência ao investimento estrangeiro, e por aí afora. Ou seja, estaremos nos referindo ao modelo que se tornou conhecido como ISI – de industrialização por substituição de importações –, que de fato acelerou o crescimento enquanto era fácil fazê-lo e depois nos legou a prolongada estagnação de que, salvo melhor juízo, tão cedo não nos conseguiremos livrar. Livrar o Brasil dessa linha de esquerda seria uma excelente ideia, mas salta aos olhos que o presidente Bolsonaro dificilmente conseguirá fazê-lo. Embora se tenha afastado do Exército no posto de capitão, Jair Bolsonaro deve ter ciência de que o modelo a que me refiro sempre contou com ampla simpatia no meio militar. No vídeo da reunião ministerial realizada no Planalto em 22 de abril, vimos o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, sugerindo um retorno ao nacional-estatismo, no que foi prontamente contestado pelo ministro da Fazenda, que parece ser no atual governo o único consciente da arapuca em que a ISI nos meteu.

A visão do futuro brasileiro corporificada no nacional-desenvolvimentismo remonta, como sabemos, ao debate de 1944 entre o economista Eugênio Gudin, favorável a uma economia balanceada, com maior atenção à agricultura, e o historiador Roberto Simonsen, adepto da industrialização a qualquer preço. Decorridos três quartos de século, o panorama é meridianamente claro: temos uma agricultura moderna, pujante, internacionalmente competitiva, e um setor industrial em escombros, não obstante todas as “bondades” de que se beneficiou durante quase todo esse período.

CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

sábado, agosto 08, 2020

Luto - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 08/08

Mortos pelo vírus chegam aos 100 mil, e Bolsonaro segue indiferente à tragédia


Aos poucos o país vai voltando ao normal ­—um normal de incúria diante do sofrimento da população. Alcançamos a marca de 100 mil mortos por Covid-19, e por toda parte se vê o abandono progressivo do distanciamento social.

Cem mil mortos em cinco meses. Nessa marcha, o novo coronavírus terminará 2020 como terceira maior causa de morte no país, atrás somente das doenças cardiovasculares e do câncer.

Governadores e prefeitos que se jactavam de sucesso, a exemplo de estados da região Sul, assistem impotentes à alta descontrolada de casos, já nos 3 milhões, e óbitos.

O Brasil ocupa a segunda posição em número absoluto de contaminados e mortos, após os EUA, que chegam a 160 mil falecimentos (em proporção populacional, já os alcançamos). Não é improvável que os ultrapassemos, pois aqui ainda se testa pouco e mal, e a epidemia segue fora de controle em várias localidades.

A cada sete mortos no mundo, um é brasileiro. A média diária de mais de mil mortos por dia se repete por dois meses inteiros. Não é, não deveria ser normal.

O péssimo desempenho do poder público no enfrentamento da pandemia se mostra tanto mais revoltante por evitável. Afinal, o primeiro caso no país se registrou dois meses após o vírus começar a grassar na China; na primeira morte, em meados de março, a Covid-19 já tinha prostrado a Itália.

Os governos tiveram tempo e tinham o Sistema Único de Saúde a postos para uma reação coordenada. Não foi tampouco falta de recursos, em que pese a crise orçamentária, porque agora se despejam dezenas de bilhões em ajuda emergencial sem que se tenha visto prevenção mais eficiente.

O maior responsável pela tragédia se chama Jair Bolsonaro. Em vez de liderar uma ação nacional, negou a gravidade da emergência de saúde pública, promoveu aglomerações e falsas terapias, como a cloroquina, e colheu oito casos de ministros infectados (outro provável recorde mundial), além de si próprio e da primeira-dama.

Alguns comemoram, no presente, o suposto advento de uma imunidade coletiva como chamado para arrebanhar clientes desgarrados de bares, restaurantes, academias e centros de compras —não das escolas, paradoxalmente. Epidemiologistas, entretanto, descartam que se tenha alcançado tal limiar.

Não há panaceia nem vacina por ora. Infeliz a nação que tem necessidade de heróis, disse Bertolt Brecht; mais que infelicidade, a desdita do Brasil é nem mesmo poder contar com um presidente e um ministro da Saúde efetivo neste momento de luto.