quarta-feira, maio 06, 2020

O espelho no banheiro - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 06/05

É preciso ter esperança... e mãos limpas colaboram para a ética e para evitar doenças


Nos banheiros do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), existe um cartaz dizendo: “Aqui você é livre para usar o banheiro correspondente ao gênero com o qual se identifica”. No rodapé, indica-se a Resolução Federal número 12, de 16 de janeiro de 2015, e outro parecer de um conselho de combate à discriminação (CNCD/LGBT 01/2015). O texto é fruto de uma transformação no enfoque sobre o que seria sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Porém, gênero não é o tema de hoje. Quero falar da percepção de masculino e feminino em banheiros.

Vamos sair da redoma do IFCH. Em um restaurante elegante da Rua Amauri, em São Paulo, fui ao toalete e encontrei, em uma porta, a sílaba “blá”. Em outra porta, multiplicada em muitas formas gráficas, “blá blá blá blá blá”. O sentido era óbvio: o masculino era de poucas palavras, sobriedade retórica e objetividade. O feminino reforçava a ideia de que mulheres falam demais. Caso restasse alguma dúvida, bonecos de Adão e Eva ilustravam cada porta.

Bem, o mundo é mais complexo do que há 50 anos. Banheiros são simbólicos. Quando Margaret Thatcher se tornou membro do Parlamento Britânico, em 1959, descobriu que não havia um banheiro feminino porque... não existia uma bancada feminina! Nas visitas guiadas ao Pentágono, em Washington, descobrimos que há muitos banheiros no prédio porque foram construídos de forma dobrada para brancos e negros durante o período do “separados mas iguais”. Ao anunciar um banheiro específico para o grupo LGBT, a escola Unidos da Tijuca causou muitos debates na sua quadra, em 2011. Apartheid gay! foi um slogan frequente contra a iniciativa. Com a invenção da ideia de intimidade, os banheiros foram se multiplicando. Ter seu próprio banheiro virou um sonho expressivo das pessoas contemporâneas. Esse desejo não existia nos séculos anteriores. Banheiros são metáforas fortes ou espelhos de como o mundo se constitui.

Se o banheiro é seu e, ali trancado, finalmente, caem suas máscaras e representações sociais. Muitos cantam no espaço íntimo. Já ouvi relatos de dança. O adolescente trancado no seu ambiente sanitário encontra o refúgio para sua individualidade, seu medo e seu prazer. Muitos homens e mulheres adultos também...

Banheiro também é arte. Marcel Duchamp revolucionou o conceito de estética colocando um mictório sobre um pedestal. O urinol de 1917, batizado A Fonte, é uma peça icônica da dessacralização assinada pelo pseudônimo R. Mutt. A obra é uma chave do Dadaísmo e está avaliada em mais de três milhões de euros. Já sofreu mais de um ataque, sinal claro da sua “aura” respeitável. No último atentado, com martelo, o agressor alegou estar usando o mesmo princípio de desconstrução que o autor fizera.

Se a arte é o sublime, uma maneira de desconstruí-la é apelar a um subproduto dos banheiros. Piero Manzoni enlatou, em 1961, suas próprias fezes em recipientes bem acondicionados. Cada lata vale uma fortuna hoje. Cumpre-se o traço de “épater le bourgeois” que marca tantas vanguardas. Escandalizar o burguês foi um grito de poetas como Rimbaud ou Baudelaire. Talvez a burguesia já não se choque tanto e uma nova geração de artistas faz outras intervenções no universo do banheiro e seus significados. No Museu Guggenheim (Nova York), o italiano Maurizio Cattelan colocou um vaso sanitário de ouro maciço: América. A peça podia ser utilizada (com algumas regras) pelo público. Se antes a burguesia se retirava horrorizada com o vanguardismo de artista, hoje há fila para selfies. Sentar-se sobre sólidos quilates não choca mais, apenas aumenta likes em redes sociais. Ao ser exposta no Palácio Blenheim, em Oxfordshire (Inglaterra), a obra foi roubada. Banheiro metáfora, banheiro chocante e banheiro com valor de revenda... Quando Winston Churchill nasceu naquele palácio, a 30 de novembro de 1874, havia poucos banheiros na propriedade. Volto ao ponto: sanitários são documentos de uma época.

Os banheiros individuais são espaço de uma sonhada liberdade. Os que comportam mais gente produzem relações ambíguas e corporativas. Homens falam de forma mais decidida e máscula no banheiro, talvez como reação ao ambiente de exposição do corpo. Desde o colégio, fantasiávamos o que as meninas faziam no banheiro. Acho que o jogo permanece.

Assim, passados séculos de transformações sociais e de identidades de gênero, preste um pouco mais de atenção nas gramáticas que antecedem ao simples uso do sanitário. A arte usou banheiros. O debate de gênero ilustra portas. O que é masculino e feminino e quais os limites da intimidade estão fora e dentro dos espaços sanitários. Gosta da ideia? Abomina? Acha que é o fim do mundo? Sem problema. O que eu peço a libertários e conservadores, esquerda e direita, anarquistas e monarquistas é o mesmo: lavem bem a mão depois de usar o banheiro. Contaminações não respeitam barreiras. É preciso ter esperança... e mãos limpas colaboram para a ética e para evitar doenças.

Fantasmas Brasileiros - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 06/05

No Brasil, visíveis e invisíveis sempre tiveram uma nobre, ainda que tortuosa convivência

Toda sociedade tem seus fantasmas: os fantasmas que merece. Eles eram vistos todos os dias quando andávamos pelas ruas de nossas grandes cidades. Hoje, com a quarentena, sentimos sua falta porque os fantasmas são seres resolutamente anônimos e absolutamente impessoais que sustentam a nossa celebrização, sucesso e posição social superior. Sem eles nas sombras e na rua, não existiríamos na paz de nossas casas. Um dos problemas críticos da pandemia é que casa e rua se confundem e, com o vírus, corremos o risco de ver a casa tão perigosa quanto a rua.

Fantasmas são manifestações de quem perdeu o corpo – a realidade pessoal e cívica que exige água, educação, roupa, comida e um lugar para ficar consigo mesmo.

Para tanto, é imperativo falar em trabalho e emprego e nas suas compatibilidades e afastamentos ou até mesmo aversões que são parte da história de nosso País fundado por aristocratas absolutistas fugidos de Napoleão, servidos servilmente por burocratas funcionários letrados e plenamente “empregados” (ou arrumados), enquanto o “trabalho” – cozinhar, lavar, varrer, consertar, plantar, construir, prender, inventar, ensinar etc. – era (e ainda é) um castigo a ser evitado e, em muitos casos, como assinala em meados de 1800 o americano Thomas Ewbank, um insulto para os “brancos” de família que jamais consideraram o trabalho no seu sentido honrado e inclusivo como vocação ou chamado.

Na nossa cosmologia ou cultura (e pouco importa o que você acha, porque ela existia antes de você nascer e vai continuar depois de sua morte...), somos todos feitos de corpo e alma. O corpo é visível e atualmente promove vergonha porque a pandemia e a incapacidade patente de enfrentá-la – porque a doença exige ação médica decisivamente honesta e não “política” (que sempre deseja a autoridade que, entre nós, serve para enricar a casa) – fizeram surgir os milhões de fantasmas que os jornais chamam de “invisíveis”. Esses viventes com corpo e alma, mas sem pessoalidade cívica – sem CPF ou registro – e cuja impessoalidade plena os torna certamente mais invisíveis ainda como a aparições. Com a diferença que eles são mais do que reais, são concretos e não somem ou surgem em meio ao denso negrume da noite ou nos pesadelos.

No Brasil, os visíveis e os invisíveis sempre tiveram uma nobre, ainda que tortuosa, convivência. Os visíveis obviamente por cima de um denso solo pavimentado pelos invisíveis que, como criados, servos, cativos e escravos, eram pseudo pessoas ou seres mais ou menos viventes, pois existiam plenamente somente em certas áreas da vida, mas não tinham presença ou voz em outras. Como os fantasmas, eram mortos sociais, conforme remarca Orlando Patterson num livro importante (Escravidão e Morte Social) – e foram eles, aos milhões, que moveram as engrenagens do nosso sistema.

Um punhado de senhores cujo modelo era absolutista e uma multidão de cativos de toda ordem (eles são hoje representados pelos empregados domésticos, faxineiras e diaristas que fazem tanta falta em tempos de isolamento) constituíam um sólido sistema fundado na subordinação.

Seguramos esses invisíveis pelas cordas de todos os populismos enquanto pudemos, mas as difíceis rotinas democráticas que obrigam à transparência, e um vírus invisível, os torna concretos. Eles são o resultado nu e cru do sistema de patrocinado e clientelismo que consolidamos como um estilo de vida no qual o estado, divorciado da sociedade, deve ser o responsável por tudo, inclusive pela mais-valia paga aos seus mais “altos” funcionários por ele aristocratizados mas sem as obrigações tradicionais dos nobres porque somente o Estado seria responsável por sua invisibilidade, pobreza e fome.

*

Espanta-me descobrir que os tais “invisíveis” chegam a milhões. Não posso deixar de, mundo digital, me indignar com essa quantidade de fantasmas cívicos depois de sucessivos governos eleitos com o compromisso explícito de “cuidar” do “povo” e dos “pobres”. Como distribuir um óbvio auxílio socorro sem as filas que são, como Alberto Junqueira e eu revelamos no livro Fila e Democracia (Rocco, 2017), o fundamento do comportamento público igualitário, se nem sequer sabemos o número desses subcidadãos – desses “invisíveis”?

Confiante no dispositivo - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 06/05

Antes de Bolsonaro, outro presidente acreditou às cegas nas Forças Armadas


Do alto de seu palanque presidencial, Jair Bolsonaro espuma, impreca, manda calar a boca e, em seguida, faz-se de indignado e urra que "chega", "sua paciência se esgotou" e que as Forças Armadas estão "com o povo" —leia-se, com ele, Bolsonaro. Dá a entender que, a um comando seu, tanques, aviões e navios se porão em marcha e arriarão o peso de suas armas sobre o STF, o Congresso, a imprensa e quem mais discorde dele. Cita a Constituição, as instituições, a liberdade e a democracia, mas deixa implícito que, para garanti-las, será preciso primeiro destruí-las. E, para isso, está escorado pelos militares.

Muita gente já acreditou nisso no passado. Em 1964, outro presidente, João Goulart, foi levado por uma claque palaciana e sindical a tomar atitudes contra sua natureza de homem tíbio e inseguro, como a de propor reformas "na lei ou na marra", permitir a instabilidade política e insuflar a intranqüilidade nos quartéis. E tudo porque o convenceram de que estava protegido por um "dispositivo militar" organizado pelo general Assis Brasil, chefe da sua Casa Militar.

Segundo o dispositivo, todos os comandos de tropas estavam alinhados com Jango. Os generais A, B e C eram "nossos"; X, Y e Z também; o general K, de São Paulo, era "compadre do presidente"; e Fulano, Beltrano e Sicrano estavam "enquadrados". Tudo nos conformes. Não só as esquerdas acreditaram nisso. A direita também --daí o golpe.

No dia 1º de abril, o golpe marchou, e o fabuloso dispositivo era uma miragem. Seus tanques não saíram, aviões não voaram, navios continuaram boiando. Os generais com que ele contava ficaram em casa, de pijama, ou traíram. O próprio K —Amaury Kruel—, compadre ou não, foi um. O dispositivo existia, mas era o do inimigo.

Bolsonaro já deixou Jango no chinelo em matéria de barbaridades contra a ordem legal. Está confiante em seu dispositivo militar.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Os limites de um presidente - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 06/05

Nem o voto nem a Constituição deram a Jair Bolsonaro poderes absolutos

Ao criticar decisões do Legislativo e do Judiciário que lhe desagradam, o presidente Jair Bolsonaro raramente traz argumentos relativos ao mérito da questão. Em geral, a fala de Bolsonaro consiste em denunciar uma suposta subtração dos poderes do presidente da República. Nessas críticas, nota-se um clima de perseguição pessoal. As decisões do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) contrárias ao governo federal são vistas como ofensas pessoais por Jair Bolsonaro. Eleito com uma campanha antissistema, ele seria perseguido continuamente pelo tal “sistema”, interessado em não deixá-lo governar.

Em junho de 2019, por exemplo, Bolsonaro criticou uma lei aprovada pelo Congresso sobre nomeação de diretores de estatais (Lei 13.848/19), questionando: “Pô, querem me deixar como a rainha da Inglaterra?” Na ocasião, o presidente apôs vetos a alguns trechos da lei, que foram mantidos pelos parlamentares.

Neste ano, Bolsonaro intensificou o discurso de que o Legislativo e o Judiciário o perseguem. “Chegamos no limite”, disse o presidente no domingo, avisando que “daqui para frente não tem mais conversa”. Referia-se à nomeação do diretor-geral da Polícia Federal (PF). Na semana anterior, decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da PF, por entender que a escolha presidencial contrariava os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público. Nesse caso, não houve nenhuma usurpação das competências do presidente da República. A decisão liminar apenas reconheceu que o exercício dessas competências deve respeitar a Constituição.

Se estivesse seguro de que a nomeação de Ramagem cumpria os requisitos constitucionais, o presidente Bolsonaro poderia tê-la defendido perante o plenário da Corte. Em tese, a Corte poderia adotar um entendimento diverso do proferido pelo relator em sua decisão liminar. No entanto, antes que o processo fosse analisado pelo plenário do STF, Bolsonaro revogou a nomeação de Ramagem, em clara manifestação de que continuava exercendo suas competências presidenciais. Mesmo assim, valeu-se do caso para atacar o Supremo.

Observa-se uma manipulação da linguagem no modo como o presidente Bolsonaro se refere à Constituição. “Não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição”, disse Bolsonaro no dia 3 de maio. No entanto, o tal cumprimento da Carta Magna defendido por Bolsonaro ignora os limites que a própria Carta delineia. Ou seja, em vez de ser uma defesa da Constituição, o discurso equivale a negar o texto constitucional.

É uma exigência do Estado Democrático de Direito, tal como definido pela Constituição de 1988, que o Judiciário e o Legislativo exerçam controles sobre o Poder Executivo. Um exemplo é o mandado de segurança, remédio para proteção de direito líquido e certo em caso de ilegalidade ou abuso de poder. Vale lembrar que também o Executivo exerce controles sobre o Legislativo; por exemplo, apondo vetos num projeto de lei, aprovado pelo Congresso.

Ao classificar como abuso de poder qualquer decisão que lhe imponha freios, Jair Bolsonaro ignora a Constituição, que define limites claros a todos os poderes. E o pior é que, com frequência, Bolsonaro faz essa distorção da Constituição apelando a um populismo barato. Em seu discurso, decisões do Legislativo e do Judiciário que ele entendeu serem contrárias ao governo federal são apresentadas como manobras para minar o mandato que ele recebeu do povo. Em sua tresloucada lógica, não basta transformar em afronta pessoal decisões que simplesmente fazem cumprir a Constituição. Bolsonaro as qualifica como antidemocráticas.

O voto que Bolsonaro recebeu nas urnas em 2018 deu-lhe o cargo de presidente da República, a ser exercido dentro das regras e limites previstos na Constituição. Por isso, na cerimônia de posse o presidente eleito jura solenemente cumprir a Constituição. Nem o voto nem a Constituição deram-lhe poderes absolutos, o que significa que é do normal funcionamento da democracia que seus atos estejam sujeitos ao controle de constitucionalidade e de legalidade. O presidente da República não é um monarca absoluto.


Fila única - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 06/05

Poderemos piorar em vez de otimizar a oferta de vagas.


Com hospitais públicos lotados, e os privados com vagas ociosas, devemos adotar uma fila única para leitos de UTI? A igualdade de acesso a ventiladores apela a nosso senso de justiça. Constitui um argumento poderoso em favor da fila única, mas talvez ele seja forte demais.

Eu me explico. Há décadas vemos todos os dias pacientes do sistema público morrendo —de câncer, doenças cardíacas e até de infecções em tese fáceis de tratar— por falta de vagas para atendimento, enquanto elas sobram na rede privada. A menos que enxerguemos na Covid-19 uma particularidade metafísica que não exista nas outras moléstias, é difícil sustentar que a regra de acesso igualitário deva valer só durante a epidemia e não sempre.

Quem abraça o argumento deve estar pronto a aceitar suas consequências lógicas, que são as de que precisamos investir num sistema público universal de saúde (até aí quase todos chegamos) e proibir qualquer tipo de medicina privada que permita acesso diferenciado (o que nenhum país democrático faz).

Meu ponto é que qualquer um que não seja um socialista à antiga admite algum desequilíbrio. O que precisamos discutir é em que grau o toleraremos. Não há dúvida de que devemos otimizar a utilização dos recursos disponíveis, não só durante a epidemia, mas sempre. Se houver vagas ociosas na rede privada e superlotação na pública, é legítimo e necessário que haja algum tipo de compartilhamento, mas ele deve ser negociado, e é preciso assegurar que os hospitais sejam remunerados tempestivamente de acordo com seus custos, ou muito em breve poderemos ver unidades fechando por falta de viabilidade econômica.

Tratando-se de Brasil, porém, podemos esperar um processo bem mais caótico, que combine judicialização com decretos de requisição "ad hoc" de autoridades do Executivo, que ignorarão a sustentabilidade do negócio. Ou seja, poderemos piorar em vez de otimizar a oferta de vagas.

Pergunte ao presidente - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 06/05

Presidente se recusa a explicar as 4 tentativas de trocar chefe do órgão em seu estado



Jair Bolsonaro saiu descontrolado do Palácio da Alvorada. Esbravejou contra a imprensa e disse que não interferia na Polícia Federal. "Não tenho nada contra o superintendente do Rio", afirmou.

O presidente só não explicou por que, então, tentou forçar a substituição do chefe do órgão no estado quatro vezes em menos de um ano e meio. Segundo o ex-juiz Sergio Moro, o presidente fez pressões pela mudança em agosto de 2019 e em janeiro, março e abril deste ano.

Na quinta tentativa, seus desejos foram atendidos. Ele precisou atropelar o Ministro da Justiça e demitir o diretor-geral da Polícia Federal, mas finalmente conseguiu mexer no órgão em sua base política. A recusa do presidente em explicar os motivos desse lance é reveladora.

O depoimento de Moro sobre a intervenção de Bolsonaro na PF, tornado público nesta terça (5), foi considerado "fraquíssimo" por quem acompanha o inquérito. O ex-juiz se negou a imputar crimes ao presidente e apresentou poucas provas da intromissão do antigo chefe.

As oito horas de declarações do ex-ministro evidenciaram apenas a fixação de Bolsonaro com um único posto. Embora a PF tenha 27 superintendências regionais, Moro afirmou que o presidente dizia querer "apenas uma, a do Rio de Janeiro".

Em agosto, Bolsonaro disse que a justificativa era a baixa produtividade do órgão. Moro disse que aquele era um "motivo inverídico". Depois, o presidente citou como causas investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco que só ocorreram meses depois de suas primeiras investidas pela troca.

Quando a mudança se concretizou, Bolsonaro se enfureceu com jornalistas que perguntavam sobre a interferência. Pela manhã, mandou os repórteres calarem a boca. No fim da tarde, deu uma resposta pela metade: "O Rio é o meu estado".

Moro disse dez vezes à PF que os motivos da pressão de Bolsonaro "devem ser indagados ao presidente". Dessa vez, ele não poderá mandar os investigadores se calarem.

Toffoli defende a liberdade de expressão de canhões, mas não a dos teclados - REINALDO AZEVEDO

UOL - 06/05

O que dizer de um presidente do Supremo que se cala quando profissionais de imprensa são espancados, no exercício de sua função, num ato político em defesa de um golpe militar, mas se dá a perorações em defesa da liberdade de expressão ao defender o direito que teriam ministro e chefes militares de exaltar um golpe de estado em uma página oficial?

É fácil saber quando uma pessoa está perdida ou, quem sabe?, se deu por achada. É o caso do ministro Dias Toffoli.

Indicado para o cargo em razão de sua proximidade com o PT, errou e acertou ao longo de quase 11 anos de tribunal. Mas, vá lá, assim acontece com todos. Já critiquei e elogiei votos seus — e, por óbvio, críticas e elogios dependem, é evidente, dos valores do crítico. Procuro fazê-lo sempre tendo a Constituição e as leis como referência. O que me move são palavras e atos, não afinidades pessoais. Já o defendi quase em absoluta solidão na imprensa. Fiz porque quis. Porque achei certo. Se voltar a acertar, elogio outra vez.

Toffoli vive, sem dúvida, um mau momento. Ou, então, vive seu "momentum" — aquele em que o indivíduo finalmente se encontra com a sua verdade. Ou em que esta lhe surge à frente, revelada. E a sua verdade, à diferença do que sua história pregressa sugere, parece estar não com o PT e com as esquerdas, mas com Jair Bolsonaro e suas milícias digitais, que o atacam dia sim, dia também. Por mim, estaria apenas com a Constituição, com a democracia, com o estado de direito.

Ou, então, sente especial prazer intelectual em evidenciar que nada deve àqueles que tiveram influência definitiva em fazer dele quem é. O ministro sabe que, sem o amparo político com que contou, ou não teria ido tão longe ou teria de ter empregado muito mais tempo e energia para chegar aonde chegou.

A guinada não é um acontecimento assim tão raro. Trata-se de uma espécie de "Síndrome de Lacombe Lucien", em que a vítima se deixa convencer inteira e irremediavelmente pelas verdades opostas àquelas que o fizeram ser quem é — ou quem era, já que um novo indivíduo vem à luz, e o que havia antes se torna uma casca descartável. Tudo indica ser esse o caso de Toffoli. Jovem ainda, talvez corrija o rumo. Nada indica.

No domingo, mais uma vez, Jair Bolsonaro estimulou um ato, e o prestigiou pessoalmente, às portas do Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo, em que se pregou abertamente o fechamento do Congresso e do Supremo. Se, com certa largueza de juízo, pode-se livrar da imputação de crime aqueles que simplesmente compareceram à manifestação, o mesmo não se aplica a seus organizadores.

São criminosos. Atacam os fundamentos da Constituição e incidem em crimes tipificados, por exemplo, pela Lei de Segurança Nacional. Não é diferente com o presidente da República, que estimulou e prestigiou a manifestação. Falando a seus seguidores em "live" transmitida na rampa do Palácio do Planalto, Bolsonaro exaltou os manifestantes que defendiam golpe de Estado e ameaçou ele próprio o país, e o Supremo em particular, presidido por Toffoli, com os canhões. Lá se via o chefe do Executivo a anunciar que as Forças Armadas estavam com ele. Além dos crimes comuns, incidia também em crime de responsabilidade.

Tão acintosa foi a atuação do presidente e tão evidente a ameaça, falando em nome das Forças Armadas, que o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, teve de emitir mais uma nota. Defendeu, claro!, a independência entre os Poderes, mas também rechaçou qualquer possibilidade de as Forças Armadas se desbordarem de sua função constitucional.

Na ocasião, dois profissionais do Estadão — o fotógrafo Dida Sampaio e o motorista Marcos Pereira — foram agredidos a socos e pontapés. Dida chegou a cair. No chão, não cessaram as agressões. Ministros do Supremo se manifestaram, acusando a agressão covarde: Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Até Hamilton Mourão, vice-presidente e general reformado, expressou seu inconformismo.

De Dias Toffoli, ouviu-se apenas um eloquente silêncio. As razões por que se cala são insondáveis. Ou nem tanto. É sabido ser ele o principal interlocutor de Jair Bolsonaro no tribunal. É preciso saber até onde essa interlocução mais confunde do que elucida as ideias do próprio presidente. Digamos, para efeitos de pensamento, que o doutor não queira banalizar o recurso da nota oficial, reservando-a para situações mais graves. Quais?

Contra eventual golpe de estado, é certo, uma nota seria de suprema inutilidade, não é mesmo?

A DEFESA DA DITADURA

Na segunda, quando seu silêncio ecoava ou como concordância com o que se viu ou como covardia ou alienação, ele, no entanto, preparava um pronunciamento. Redigia, na verdade, uma espécie de repto contra a decisão de Alexandre de Moraes, que havia suspendido a posse de Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal. E escolhia como instrumento para contraditar o colega de tribunal o pior meio, a pior causa, a pior tese. A que me refiro?

A juíza Moniky Mayara Costa Fonseca, da 5ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, havia determinado que o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, que foi assessor de Toffoli, retirasse da página do ministério uma manifestação assinada pelo próprio ministro e pelos três chefes militares exaltando o golpe de 1964, chamado, pateticamente, de "marco da democracia". Houve recurso, e a decisão da magistrada foi ratificada pelo TRF-5.

A questão foi parar, então, nas mãos de Toffoli. Ele não hesitou: cassou a liminar (íntegra de sua decisão aqui). Será que, numa democracia, deve-se permitir que um ministro de Estado e três chefes militares façam a defesa aberta de um regime que fechou o Congresso, pôs fim às liberdades públicas e individuais, suspendeu eleições, torturou e matou? Vocês sabem a resposta: é claro que não! Em que outra democracia do mundo se assistiria a exotismo assim?

Mas nem vou lhes tomar o tempo com isso. É evidente que uma democracia não pode ser democrática a ponto de abrigar sabotadores de seu próprio ordenamento. O único regime em que tudo pode — e, pois, nada do que diga respeito às liberdades é admitido — é a tirania.

A DECISÃO DE TOFFOLI

Se o mérito da decisão é lamentável, os termos em que ela veio a público pela pena do presidente do Supremo são uma agressão ao bom senso.

Toffoli foi incapaz de censurar um ato em defesa do golpe militar, que contou com a participação entusiasmada do presidente e em que profissionais da imprensa foram espancados. Mas, em defesa do direito que teria o ministro e os chefes militares de defender um regime ditatorial, escreveu o presidente do Supremo:

"Não parece assim adequado exercer juízo censório acerca do quanto contido na referida ordem, sob pena de indevida invasão, por parte do Poder Judiciário, de seara privativa do Poder Executivo e de seus Ministros de Estado.
(...)
As decisões judiciais ora atacadas, destarte, representam grave risco de violação à ordem público-administrativa do Estado brasileiro, por implicar em verdadeiro ato de censura à livre expressão do Ministro de Estado da Defesa e dos Chefes das Forças Militares, no exercício de ato discricionário e de rotina, inerente às elevadas funções que exercem no Poder Executivo e sobre o qual não parece adequada a valoração efetuada por membros do Poder Judiciário.
"

É realmente comovente ver o cuidado e o zelo com que Toffoli trata do direito à livre expressão dos que dispõem de canhões, lastimando que sejam alvos de "censura", mesmo quando usam uma página do Estado brasileiro para defender a ditadura. Não obstante — ou por isso mesmo? — silencia quando profissionais desarmados, no exercício de sua função, são espancados por outros defensores da... ditadura!

É evidente que o ministro está fazendo uma escolha.

RECADO E VOTO FORA DO LUGAR

Alheio à defesa da ditadura contido na tal nota, alheio ao ato do dia anterior em defesa do golpe militar, alheio à presença do presidente em tal ato, alheio à agressão sofrida pelos jornalistas, o "professor" Dias Toffoli resolveu dar uma lição aos contemporâneos sobre as esferas de competência dos Poderes, num claro recado a Moraes, seu colega de tribunal:

"Como tenho reiteradamente falado, sempre que me deparo com situações como esta, descrita nesta contracautela, nosso país vive um momento de excessiva judicialização, decorrente, em grande medida, da alta conflitualidade presente em nossa sociedade, a qual se torna cada vez mais complexa e massificada.
Apesar disso, não se pode pretender que o Poder Judiciário interfira e delibere sobre todas as possíveis querelas surgidas da vida em sociedade. E o caso ora retratado me parece um exemplo clássico dessa excessiva judicialização. Reitero, ainda uma vez, meu entendimento, agora aplicado ao caso concreto ora em análise, de que não cabe ao Poder Judiciário decidir o que pode ou não constar em uma ordem do dia, ou mesmo qual a qualificação histórica sobre determinado período do passado, substituindo-se aos historiadores nesse mister e, no presente caso, aos legítimos gestores do Ministério da Defesa, para redigir, segundo a compreensão que esposam, os termos de uma simples ordem do dia, incidindo em verdadeira censura acerca de um texto editado por Ministro de Estado e Chefes Militares.

Apenas eventuais ilegalidades ou flagrantes violações à ordem constitucional vigente devem merecer sanção judicial, para a necessária correção de rumos. Mas não se mostra admissível que uma decisão judicial, por melhor que seja a intenção de seu prolator ao editá-la, venha a substituir o critério de conveniência e oportunidade que rege a edição dos atos da Administração Pública, parecendo não ser admitido impedir a edição de uma ordem do dia, por suposta ilegalidade de seu conteúdo, a qual inclusive é muito semelhante à mesma efeméride publicada no dia 31 de março de 2019."

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO

Eis aí. Se eu tinha alguma dúvida sobre o acerto da decisão de Moraes -- e conheço bons juristas que a contestam --, Toffoli as eliminou com seu despacho destrambelhado e sua omissão diante dos crimes cometidos no domingo.

Levasse a sério o que diz, defenderia que os historiadores, então, se encarregassem de definir, cada um a seu gosto, o caráter do golpe de 1964, não cabendo a ministros e chefes militares, regidos por uma Constituição democrática, fazer a apologia da ditadura. O veto não procurava impor aos gestores de bens públicos uma visão determinada de história, mas impedir que impusessem a sua, em clara agressão ao fundamento do documento que nos rege.

A "simples ordem do dia" poderia, ora vejam, ter exaltado os valores democráticos. Em vez disso, chamou um golpe de "marco da democracia".

Para o ministro, "cuida-se, assim, de ato inserido na rotina militar e praticado por quem detém competência para tanto, escolhidos que foram pelo Chefe do Poder Executivo, para desempenhar as elevadas funções que ora ocupam."

Assim é nas questões que dizem respeito à rotina militar e às tarefas concernentes às Três Forças. Fernando Azevedo e Silva foi escolhido, claro!, para executar em sua área a política do presidente. A de Bolsonaro é promover proselitismo golpista em quarteis? Pergunto de novo: que democracia do mundo toleraria essa afronta?

Mas vejo que já me estendo sobre o mérito da nota, que nem é objeto deste texto. Parece que vou, definitivamente, me interessar, doravante, pelo entendimento perturbado que se tem no Brasil, à direita e à esquerda, do que sejam independência e harmonia entre os Poderes num regime presidencialista. É possível que parte dos nossos males derive do fato de que se supõe que a legitimidade das urnas confere ao mandatário de turno o direito de violar os valores consagrados pela Carta sob cujo signo ele se elegeu. Comigo, não, violão!

É um debate de longo prazo.

No momento, lastimo o presidente do Supremo que se preocupa com a liberdade de expressão de quem tem canhões, mas não se ocupa de defender a liberdade de trabalho de quem dispõe só de um teclado ou de uma câmera fotográfica; que avalia que a ordem para a retirada de uma nota em defesa da ditadura pode "acarretar grave lesão à ordem público-administrativa da União", mas não vê mal nenhum em que um presidente da República, num ato ilegal em defesa do golpe militar, ameace, com os tais canhões, a própria corte que ele integra.

Toffoli se perdeu?

Talvez tenha, finalmente, se encontrado.

Resta como alternativa a rota do estado DEMOCRÁTICO E DE DIREITO.

A economia Frankenstein - CRISTIANO ROMERO

Valor Econômico - 06/05

Modelo brasileiro é aberração por não superar passado



O longo período de instabilidade entre meados das décadas de 1970 e 1990, seguido de tentativas frustradas (ou incompletas) de implantação aqui de uma economia competitiva, equilibrada do ponto de vista fiscal e menos desigual no que diz respeito à distribuição da renda, criou no Brasil uma espécie de Frankenstein. No fundo, o país nunca superou modelos que, aparentemente, sucederam num determinado momento, mas, em outros, tornaram-se uma das principais razões do fracasso do nosso Produto Interno Bruto (PIB) em crescer de forma mais rápida.

A longa batalha contra a superinflação nos fez pensar apenas no dia de hoje. O planejamento de longo prazo, uma característica presente nas nações ricas e marcante nas economias asiáticas de crescimento acelerado, perdeu relevância na Ilha de Vera Cruz desde a crise da dívida, em 1982.

Parece mentira, mas, no início daquela década, o governo tinha órgãos públicos para avaliar permanentemente, por exemplo, a qualidade de rodovias federais construídas na década anterior. O objetivo era verificar se o impacto do aumento do tráfego ao longo do tempo não estava diminuindo a eficiência daquela estrada, elevando os custos dos produtores de grãos e de bens industriais. Na ocasião, um engenheiro brasileiro desenvolveu, para facilitar essa tarefa, um software que se tornou referência no mundo.

A urgência do combate à inflação turvou a visão de empresários, consumidores e formuladores de políticas públicas. Nada era mais importante do que domar o processo inflacionário, que, desde a primeira crise global do petróleo, em 1973, tornou-se uma preocupação, uma vez que o Gigante do Atlântico Sul era fortemente dependente de importação de óleo bruto.

A coexistência de mecanismos distintos usados não só nos planos de estabilização, mas também em modelos de desenvolvimento, forjou contradições que atolam esta enorme economia numa espécie de areia movediça. Daí, a referência ao famoso personagem da escritora Mary Shelley.

Na Ilha de Vera Cruz, convivem lado a lado um sofisticado mercado financeiro, dotado de instituições capazes de competir com seus pares internacionais, especialmente nas áreas de gestão de recursos e estruturação de operações no mercado de capitais, com uma injustificável rede de bancos estatais, seis no total. Justamente por não conseguirem competir com os rivais do setor privado, esses bancos custam caro ao Estado.

Tendo sido, ao lado dos bancos estaduais, uma das fontes da superinflação nas décadas mencionadas, continuam funcionando 26 anos após o lançamento do Plano Real, sujeitos a pressões políticas e à geração de prejuízos cobertos pelo suor de todos os brasileiros. Isto, sem falar da fatura recorrente que temos que honrar, decorrente de rombos dos fundos de pensão vinculados a essas instituições, originados de gestão temerária ou corrupção. A pergunta que fica é a seguinte: se a maioria dos congêneres estaduais foi privatizada, por que não se deu a mesma destinação, senão a todos, a quatro ou cinco dos federais?

Banco do Brasil e Caixa detêm quase 50% do volume de depósitos do sistema bancário. No fundo, a concentração faz a alegria dos grandes bancos privados, uma vez que isso é a garantia de que jamais haverá competição real no segmento de bancos de varejo. Isso explica os juros altos cobrados por todos os bancos, as taxas injustificáveis aplicadas a coisas como avaliação de imóvel, à resistência ignominiosa das instituições financeiras de renegociar dívidas, alongar prazos de débitos, enfim, de dar uma contribuição aceitável e indolor (face a seus lucros) à sociedade no momento mais trágico da humanidade em mais de cem anos.

Na semana passada, esta coluna relatou, de forma bastante sintética, as gestões da economia brasileira desde 1964. O objetivo é mostrar como o vai-e-vem de modelos, conceitos e experiências nos paralisa. Naquela edição (29/04/2020), foram retratadas as administrações até o último governo militar. Por um problema técnico, a conclusão desse relato e a informação de que o relato continuaria na edição seguinte foram suprimidos.

A crise da dívida, em 1982, solapou o modelo de substituição de importações adotado até então. Dali emdiante, o governo não teve mais condições de investir em obras públicas e mesmo na manutenção dos investimentos realizados em setores como os de telefonia e energia. O modelo estatal não funcionava mais e, na verdade, tornou-se fonte da perda do controle da inflação. A insistência em ressuscitar o defunto custou e ainda custa caro ao país. Senão, vejamos:

1. Em 1986, o governo Sarney lançou o Plano Cruzado, a primeira tentativa de se derrubar a inflação, no período de redemocratização, por meio de um choque; preços e salários foram congelados, “tablitas” foram aplicadas sobre prestações de crediário (criando-se um efeito ilusório para o consumidor, de que sua dívida diminuíra quando, na verdade, o valor era o mesmo, descontado dos juros embutido na prestação); a inflação despencou, os trabalhadores tiveram ganho real de renda no início do plano, mas, à medida que o consumo expandiu-se de forma veloz, houve desabastecimento, cobrança de ágio etc; dois fatores já condena riam o Cruzado ao fracasso: o fato de termos uma economia fechada, herança do governo Geisel; e a situação fiscal precária da União; fracassado o plano, Sarney ainda lançou duas tentativas que não deram certo, os planos Bresser e Verão;

2. Em março de 1990, eleito como o “outsider” que na verdade não era, Fernando Collor de Mello valeu-se do ataque mais radical e ousado da história do país para debelar a inflação: o confisco dos depósitos; toda a dívida pública era, grosso modo, reemitida a cada 24 horas; isso criou o que os economistas chamam de “quase-moeda”, tornando inútil qualquer esforço de controle monetário na economia, logo, era impossível controlar a evolução dos preços; o plano, chamado por Collor de “bala de prata”, isto é, a última do tambor, fracassou, mas seu governo lançou agenda liberalizante para o país superar o modelo de substituição de importações.

Na próxima edição, a coluna tratará das gestões seguintes.

Más notícias sobre o tamanho da crise - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 06/05

Indústria cai mais que previsto; ritmo ainda forte da epidemia trava mais o PIB

Aos poucos, as notícias da epidemia caem pelas tabelas. São substituídas pelo conta-gotas dos vazamentos do "caso Moro", pelas ameaças semanais de golpe presidencial e pelas evidências diárias de tutela militar. Sim, tutela, pois os generais soltam comunicados em que pressupõem seu poder moderador e afirmam em público e oficialmente o que entendem ser a justa medida das relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

Parece até que a epidemia se tornou uma rotina inevitável de morte e destruição econômica. Foi para escanteio o debate das medidas extras para atenuar a crise. Foi para a lateral a conversa sobre a necessidade de mais UTIs, ventiladores, testes.

A economia afunda? Quanto? Não se sabe bem, e pouca gente parece querer saber. Em março, a produção da indústria caiu mais de 9% ante fevereiro. A estimativa média era de queda de uns 4%. Parece faltar informação sobre o tamanho da desgraça e, portanto, medida razoável da reação necessária para atenuá-la.

Abril deve ter sido pior na indústria, pois foi um mês inteiro de paradão da pandemia. Projeção preliminar de economistas do Bradesco indica uma baixa de outros 6%, sobre março. Despiora? Ressalte-se: é queda sobre queda, cava-se dentro de um buraco.

Os serviços são um setor muito maior na economia; pode ser que uma despiora salve abril de um desastre geral maior. Mas não sabemos.

Os economistas do departamento de pesquisa macroeconômica do Bradesco também fizeram um primeiro exercício sobre o que pode ser a queda da renda em meses de epidemia. Isto é, o que dá a soma dos rendimentos totais do trabalho, dos benefícios sociais habituais e os benefícios sociais específicos para os tempos de epidemia?

No exercício, é considerada a massa mensal dos rendimentos do trabalho (soma de todos os "salários"). Supõe-se que o rendimento médio dos trabalhadores formais caia 25%; o dos informais, 50%. Haverá compensação parcial dessa perda, com seguro-desemprego extra e o auxílio emergencial para os informais. Os benefícios sociais rotineiros continuam na mesma.

A perda total de massa de rendimentos seria então de pouco mais de 8% por mês, neste exercício ainda muito preliminar e pouco balizado por dados reais de salários, que tão cedo não vão existir, aliás. Caso essa situação se estendesse para o ano todo, o consumo das famílias cairia quase 6%. O PIB, mais de 6%.

Não é o cenário desses economistas, que ora preveem queda de 4%, pois imagina-se alguma recuperação na segunda metade do ano.

A gente só pode imaginar, porém. O ritmo da economia depende também do ritmo da epidemia, com ou sem isolamento social. Faz mais de dez dias que há dúvidas sobre o ritmo do espalhamento da doença e suas mortes. Não sabemos desde fins de abril se o ritmo da doença parou de fato de desacelerar (se a taxa de crescimento de mortes está caindo).

Caso a epidemia não desacelere de modo relevante, medidas de isolamento e o medo recessivo da doença vão durar por mais tempo: mais mortes por mais tempo, mais meses desespero nos hospitais, mais medo nas ruas e nos negócios, mais dificuldade de retomada de alguma vida normal. Mais do que a pior da história conhecida, a recessão seria convulsiva.

Como se diz faz dois meses, a desaceleração da epidemia depende de isolamento e outras políticas de contenção do espraiamento da doença, para qual não há plano do governo federal, que sabota de resto as medidas regionais e locais mais sensatas. Pouca gente ainda parece ligar.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Jogo de assombrações - ROSÂNGELA BITTAR

ESTADÃO - 06/05

Provocar a cizânia na tropa é o pior dos ataques a um comando militar


Sabe-se, com certeza, apenas que golpe não é. Mas não se conhece o significado real da invocação do presidente Jair Bolsonaro às Forças Armadas, cujo apoio ele alardeia para ameaçar, exatamente, com o golpe.

Os comandos militares não atendem ao convite à intervenção consentida. Este é o modelo reclamado nos domingueiros e violentos piqueniques golpistas da Praça dos Três Poderes. As manifestações, animadas pelo presidente, sua família e amigos, descomprometidos com a civilidade, alimentam falsa tensão política.

Desviam, com crueldade, o foco da dura e letal realidade da pandemia que mata brasileiros e brasileiras. Até que ponto não passa de blefe o compromisso incondicional da força militar que o presidente propaga?

Os escalões profissionais das Forças pretendem manter-se no papel constitucional que cumprem, à risca, há décadas. Para o que pretende Bolsonaro, aí está o problema.

Por enquanto, ainda não se cansaram de redigir notas reafirmando a observância rigorosa das atribuições constitucionais. É um texto esperado, que surge sempre em seguida às manifestações de que participa o presidente, à frente de um grupo de fanáticos. Assim, de ameaça em ameaça, e explicação em explicação, o suspense é mantido. Por mais que se reúnam com Bolsonaro nas vésperas dos atos extremistas, permitindo-lhe mostrar força, os militares não parecem dispostos ao papel de algozes da democracia.

Reforça o enredo do terror o fato de terem quadros e indicações para todas as funções. Hamilton Mourão, Braga Neto e Fernando Azevedo constituem praticamente uma “junta” natural. Luiz Eduardo Ramos, da ativa, é regra três para assumir o comando da tropa, em substituição a Edson Leal Pujol. Apesar do seu veemente desmentido, a notícia de que daria a rasteira já havia cumprido seu objetivo de confundir. Em evidente relevância aos temores lançados nos comícios em que paira a ameaça de intervenção militar. Tudo se encaixa, nada é por acaso. Se a interpretação é exagerada, o que significam as insinuações de Bolsonaro de que dispõe dos militares para o que der e vier?

Selecionemos duas hipóteses de explicação adequadas à conduta do presidente. Numa, é possível concluir que os militares são vítimas e estão sendo provocados para aceitarem se engajar nas esquisitices do governo. Embora não estejam dispostos a tudo, não têm meios para reagir às pressões públicas de Bolsonaro.

Como resistem, ficam na mira. De quem? Do Gabinete do Ódio, o operador oficial, de dentro do Palácio, desse tipo de enredo. Atua sempre sob o comando do filho vereador e do professor virtual que, de Richmond, tutela o governo, em Brasília.

Bem-sucedido, o grupo já conseguiu, para ficar apenas no tema em questão, demitir Santos Cruz, abalar Hamilton Mourão, denegrir Rocha Paiva (melancia), irritar Villas Boas, e iniciar, agora, uma guerra contra Pujol. Acham que ele não atua politicamente e não coloca sua tropa a serviço do interesse do governo. Confiam que, se não conseguirem arrastar o comandante para o embate político, pelo menos promovem a divisão, pois consideram os escalões intermediários já engajados na dialética presidencial. Provocar a cizânia na tropa é o pior dos ataques a um comando militar.

Uma segunda hipótese, de significado também realista, mostra o presidente atormentado por inquéritos que o colocam, bem como a sua família, no alvo da incursão em crime. Ameaçado, ele ameaça.

E o que acossa Bolsonaro são, sobretudo, as investigações em três frentes: as das fake news, cujo aprofundamento pode retroagir a sua eleição; a dos gabinetes parlamentares controlados pela família e suas conexões, no Rio; e a das denúncias do ex-ministro Sérgio Moro.

De assombrado, Bolsonaro partiu para cima e virou assombração.


Conjuntura vai definir potência da bomba deixada por Moro a Bolsonaro - IGOR GIELOW

FOLHA DE SP - 06/05

Peça depende de subjetivismo para ter valor jurídico apreciado, mas cenário político é o central

O depoimento do ex-ministro Sergio Moro (Justiça) sobre a interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal é uma peça sem meio-termo: ou será vista no futuro como uma bomba ou como um traque.

A grande incerteza no cenário político é determinante para avaliar o impacto das acusações, que agora Moro espertamente diz que não se tratam de imputação de crime —claro, se o fossem, ele poderia ser pego prevaricando por não ter denunciado os fatos antes.

Juridicamente, não é uma bala de prata incontestável, mas certamente muito ruim para Bolsonaro.

Os cuidados tomados pelo ex-ministro ao longo do depoimento explicitam o risco que corria, e conforme a Folha ouviu de integrantes de tribunais superiores, muito dependerá de subjetividade.

Dois pontos embasam a acusação de obstrução de Justiça, mais um dos inúmeros crimes de responsabilidade que Bolsonaro vem acumulando no exercício do cargo.

A obsessão clara pela mudança da Superintendência da PF no Rio, seu quintal político, e a referência à necessidade de retirar Maurício Valeixo da direção-geral do órgão ao comentar inquérito no Supremo que teria chegado a "10 ou 12 deputados bolsonaristas".

Nos tempos em que a Lava Jato estava no auge, o então procurador-geral Rodrigo Janot chegava a pedir prisão por bem menos que isso. Não se espera o mesmo de Augusto Aras, mas a pressão estará sobre ele.

Bolsonaro nem faz questão de desfazer a narrativa, tanto que o primeiro ato de seu novo chefe da polícia foi remover o superintendente do Rio. A quem o perguntou sobre isso, respondeu com insultos apopléticos.

Mas serão critérios subjetivos que apontarão se isso foi uma ingerência passível de denúncia ou apenas o exercício de prerrogativas presidenciais.

Moralmente, a resposta está dada, mas a paisagem é bem mais nebulosa. O Supremo, onde Bolsonaro será ou não denunciado, vive mais um momento de tensão interna.

Ministros, a começar pelo presidente Dias Toffoli, acharam que Alexandre de Moraes ultrapassou a linha ao barrar o favorito de Bolsonaro, Alexandre Ramagem, para a PF em decisão provisória na semana passada.

Mas a queixa de Toffoli, devidamente transparecida a público, também incomodou colegas. Afinal de contas, a corte havia se unido quando o Moraes foi atacado por Bolsonaro, e agora isso seria um sinal de dissenso.

Além disso, como lembrou um ministro, a decisão de Moraes só existiu porque o Supremo havia autorizado a investigação da acusação de Moro de que o presidente queria mexer na PF. A vinculação da liminar à apuração é automática, o que dificulta o argumento bolsonarista de que Moraes conspira contra si.

Notável, nesse caso, é a economia de palavras dos togados mais próximos do pensamento lava-jatista encarnado por Moro. Um deles, Luiz Fux, será o novo presidente do Supremo em setembro.

O desempenho do presidente na rampa do Planalto no domingo, apoiando manifestantes que pediam o fechamento do Judiciário e do Congresso, e os agora sucessivos episódios de violência bolsonarista pelo país, engrossam o caldo de má vontade institucional com o mandatário máximo.

O presidente tem aberto o balcão de negócios para atrair os 200 votos do centrão que impediriam, em tese, um impeachment de prosperar. Dilma Rousseff (PT) também o fez antes de cair em 2016, sem sucesso como se sabe.

O que não há neste momento é ambiente político para tal iniciativa de impedimento, o que não quer dizer que uma continuidade do desastre humanitário da Covid-19 e a cada vez mais indefensável posição do Planalto no trato da pandemia não possam minar apoio público a Bolsonaro.

Com o inevitável agravamento da crise econômica, os estratos mais pobres que substituiram parte da classe média no contingente de 1/3 do eleitorado que aprova o presidente tendem a ser os mais afetados.

Isso tudo qualificará o calibre do tiro disparado por Moro no sábado, com um ajuste de tempo insondável em meio a tanta turbulência capitaneada por um vírus e por um presidente que obriga seu ministro da Defesa a dizer que não é golpista duas vezes em um mês.

Um enfraquecido presidente pode ser do agrado de políticos do centrão e de ministros militares, na ilusão de controle, mas também ficará mais suscetível a um evento sísmico maior, como a aceitação de uma denúncia pelo Supremo.

Para Moro, candidato a candidato a algo, a começar a Presidência em 2022, todas as fichas foram colocadas na mesa. Com uma base seguidora tão fiel quanto a de Bolsonaro, talvez se o caso no Supremo não der em nada bastará a ele gritar "fake news!" e ir em frente, a exemplo do seu ex-chefe.

O autogolpe - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 06/05

Presidente cumpre o roteiro de um autogolpe


O depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à Polícia Federal é como aqueles aftershocks, pequenos tremores de terra que acontecem depois de um grande terremoto, que foi o seu pedido de demissão do ministério da Justiça e Segurança Pública.

O terremoto tirou o chão do presidente Bolsonaro, que desde então está desvairado, sem controle de si e dos acontecimentos, que se sucedem sem que se possa saber aonde nos levarão.

Mas o aftershock, se não tiver o poder de provocar uma denúncia contra Bolsonaro, pela pouca disposição aparente do Procurador-Geral da República Augusto Aras, tem força política para desgastá-lo mais ainda.

Evidente a intenção de Bolsonaro de controlar a Polícia Federal do Rio, e seria óbvio que a investigação dos procuradores de Aras fosse na direção desses interesses, num Estado que é a base eleitoral dos Bolsonaro e tem sérios problemas de segurança pública, de crime organizado e milícias, público alvo da família presidencial em termos eleitorais.

Se o ex-ministro Moro não acusou Bolsonaro de crimes em seu depoimento, eles estão tão evidentes que o próprio Procurador-Geral os elencou quando pediu a abertura do inquérito. Caberia a ele investigar um a um para ver se ocorreram: obstrução de justiça, falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, corrupção passiva.

Na verdade, o único crime de deveria ser descartado seria o de denunciação caluniosa incluído contra Moro. Mas o depoimento é uma bomba política, que só desmoralizará quem não quiser investigar. O presidente Bolsonaro parece saber exatamente o que pode ser descoberto em uma investigação criteriosa, não apenas nesse inquérito, como nos dois outros que correm no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre fake news e manifestações antidemocráticas.

A gritaria com que atacou os jornalistas ontem pela manhã na frente do Palácio da Alvorada mostra uma pessoa completamente desesperada, sem noção do que sejam instituições, nem a real separação de poderes e o papel de cada um deles. Não admite que o STF tenha a palavra final, mas tem. Descontrolado, conta com a leniência de militares inclusive da ativa, que trabalham com ele.

Toda vez que passa dos limites, o ministério da Defesa dá uma nota oficial colocando as coisas no seu devido lugar, mas sendo condescendente com o presidente, considerando que as manifestações são atividades políticas, e a livre expressão tem que ser protegida.

Mas não se pode proteger quem pede o fim da democracia. Isso não é política, é tentativa de golpe. Assim como a lei não deixa defender o nazismo em praça pública, não se pode defender intervenção militar.

Certos grupos militares têm tanto medo do comunismo que aceitam a ideia de que a atuação de Bolsonaro é no sentido de enfrentar comunistas, para não deixar o PT voltar ao poder, e assim vamos indo a uma situação limite.

Vai chegar o dia em que as notas oficiais dos militares serão dispensáveis, por não terem efeito prático no comportamento do presidente Bolsonaro. Não vejo no mundo ambiente para um golpe militar tradicional, mas constato que Bolsonaro está constrangendo os poderes que o limitam, com a compreensão de militares.

Tudo o que o Congresso faz é contra ele, no STF a mesma coisa. A imprensa profissional independente virou saco de pancadas de Bolsonaro e seu acólitos. Temo que Bolsonaro esteja indo para um caminho tipo Chavez na Venezuela, não botando tanque na rua, mas tentando controlar o STF, o Congresso e a imprensa.

Está cooptando o centrão, com métodos que já se mostraram prejudiciais ao país e à democracia, para tentar eleger o próximo presidente da Câmara ano que vem, na substituição de Rodrigo Maia, que tem sido um garantidor da independência da Câmara.

Se conseguir, unindo o centrão e outros que certamente aderirão - porque o poder atrai - pode controlar a Câmara pelos métodos da velha política. O presidente do STF, Dias Toffoli tem uma posição muito conciliadora com ele. Com a desculpa de querer agregar, fazer acordo para preservar a “governabilidade”, vai aceitando os avanços de Bolsonaro, que já cometeu crimes suficientes para ser impedido. Impeachment é solução democrática para evitar um autogolpe.

Xadrez com um pombo - VERA MAGALHÃES

FOLHA DE SP - 06/05

Moro dá depoimento cirúrgico e calculado, enquanto Bolsonaro vocifera contra si


A internet, com todas as suas contribuições às ciências humanas, também produziu, vejam só, uma teoria “psicológica”. Trata-se do complexo do pombo enxadrista, um fenômeno que tem tudo a ver com o espírito do tempo bolsonarista.

Diz esse conceito, comumente empregado para descrever a inutilidade do debate científico com os negacionismos de todas as espécies, que argumentar com certas pessoas é o mesmo que jogar xadrez com um pombo: ele vai defecar no tabuleiro, sair voando e derrubando todas as peças e ainda alardear que venceu a partida.

A dinâmica entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro desde o pedido de demissão do ex-ministro até o ato da última terça-feira, 5, com a divulgação da íntegra do depoimento de Moro à Polícia Federal, é em tudo idêntica a uma partida de xadrez entre um humano e um pombo.

De forma sucinta e extremamente calculada, Moro tratou de: 1) entregar provas, evidências, testemunhas e caminhos de investigação para todas as suas declarações do dia 24 de abril e 2) evitar dizer que Bolsonaro cometeu algum crime.

Essas duas primeiras estratégias visam evitar que o ex-juiz e ex-ministro: 1) seja acusado de ter praticado denunciação caluniosa e 2) seja acusado de ter prevaricado diante do que sabia ser pedidos ilícitos do então chefe.

Tomado esse cuidado, Moro passou a executar seu outro grande objetivo com o depoimento: enredar o presidente e desenhar para a PF e o Ministério Público Federal o caminho das pedras e do xeque-mate no pombo.

Frisou, inclusive numerando (talvez tenha grifado com caneta marca-texto ao final e marcado com post-its, daí a demora do depoimento de oito horas), os elementos de prova e o caminho par buscar novas: 1) o próprio depoimento; 2) mensagem de WhatsApp de Bolsonaro a ele em 23 de abril dizendo que o inquérito do STF sobre fake news era um motivo para trocar o diretor-geral da Polícia Federal; 3) o histórico de pressões passadas e recentes para a troca de Maurício Valeixo e o superintendente da PF no Rio, inclusive dizendo que Bolsonaro mentiu publicamente sobre as razões para a troca no Rio (e apontando dados públicos que desmentem o presidente); 4) declarações de Bolsonaro se autoincriminando em pronunciamento após sua demissão; 5) a reunião de ministros gravada em que Bolsonaro fez pressão pública pela troca na PF; 6) relatórios da Abin mostrando que já havia relatórios de inteligência da PF para a Presidência e que, portanto, a justificativa de Bolsonaro não para em pé; 7) que os relatórios podem ser pedidos à PF se a Abin não fornecer; 8) mais mensagens de WhatsApp de seu celular.

Mais: Moro evoca o testemunho de vários ministros, com destaque proposital aos militares. Mexe com o senso de disciplina e senso de dever das Forças Armadas e aposta que os generais não vão mentir para proteger o presidente.

O golpe fatal: Moro deixa claro que a verdadeira preocupação de Bolsonaro era com o inquérito do STF, tanto que dá a cereja do bolo do depoimento, quando diz que tem outra mensagem do presidente para si sobre esse assunto (ainda inédita).

Na sua vez de mover as peças, o que fez Bolsonaro? Como um pombo, estufou o peito, abriu as asas e desandou a falar no cercadinho em frente do Alvorada. “Produziu mais elementos para se autoincriminar”, comentou um frio observador da partida.

Além de ter um pombo como adversário, Moro tem outro trunfo: à frente do inquérito está Celso de Mello, que decidiu que a partida será transmitida ao vivo, sem cortes nem jogadas sigilosas. Isso inclui depoimentos dos senhores generais e o aguardado áudio da reunião ministerial – que, aliás, o presidente tinha ameaçado divulgar, antes de ser dissuadido pelos pacientes pajens de farda.

Um mau militar - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 06/05

Jair Bolsonaro nada aprendeu nas aulas sobre respeito e civilidade ministradas nas escolas militares. No modelo do general Ernesto Geisel, ele é “um mau militar”, que deixou pela porta dos fundos esta honrada profissão

As Forças Armadas desfrutam do merecido apreço da maioria dos brasileiros, como há tempos atestam pesquisas de opinião. Merecido porque, desde a redemocratização do Brasil, souberam manter-se à margem do desgastante processo político, limitando-se às suas elevadas funções constitucionais. “Se a política entra pela porta da frente de um quartel, a disciplina e a hierarquia saem pela porta dos fundos”, disse, com razão, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, ao comentar o movimento grevista da Polícia Militar do Ceará, em março passado.

O comportamento do presidente Jair Bolsonaro, contudo, vem impondo um complexo desafio para as Forças Armadas. O presidente Bolsonaro, ele mesmo um oriundo dos quadros do Exército, cercou-se de militares em seu gabinete, alguns inclusive na ativa – como o ministro da Secretaria-Geral de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

Tornou-se inevitável, assim, uma associação entre a imagem das Forças Armadas e a do governo, mesmo que a maioria dos militares que hoje servem ao presidente seja da reserva e mesmo que a cúpula das Forças reafirme constantemente seu distanciamento da cozinha política do Palácio do Planalto. Mais do que isso: em muitos momentos, Bolsonaro se refere às Forças Armadas como “as nossas Forças”, modo nada sutil de indicar uma unidade de pensamento e ação entre ele e os quartéis.

No domingo passado, em mais um de seus comícios de caráter golpista, o presidente foi ainda mais longe e, depois de dizer que “acabou a paciência” em relação àqueles que, seguindo a Constituição, impõem limites a seu poder, declarou que “as Forças Armadas estão do nosso lado”.

Com isso, o presidente Bolsonaro explicitamente tenta vincular seu governo às Forças Armadas e, pior, em oposição ao Judiciário e ao Congresso – cujo fechamento a militância bolsonarista defende dia e noite, estimulada pela retórica agressiva de seu líder. Ante o mal-estar causado pelas declarações autoritárias de Bolsonaro, o Ministério da Defesa teve de emitir uma nota em que afirma que “Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado” – o que seria uma platitude se o presidente não fosse Jair Bolsonaro, que confunde o Estado com o quintal de sua casa.

Bolsonaro cercou-se de militares na presunção de que estes lhe dedicariam absoluta lealdade, à moda dos quartéis. Essa exigência ficou clara com a demissão, em junho do ano passado, do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, então ministro da Secretaria-Geral de Governo, depois que este ousou atravessar o caminho do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente e eminência parda do regime. O episódio serviu para mostrar aos demais ministros, inclusive os militares, que ninguém no governo pode colocar os interesses de Estado acima dos interesses do clã Bolsonaro.

Assim, os militares que aceitaram cargos no governo, tidos como os “adultos na sala”, isto é, aqueles que temperariam o comportamento explosivo e errático do presidente, tornaram-se instrumentos de Bolsonaro em seu projeto autoritário de poder. O passo seguinte, no roteiro bolsonarista, é enredar as Forças Armadas.

Certamente é do mais absoluto interesse dos comandantes militares do País preservar a imagem de respeito e dedicação à Constituição, sem falar nos princípios civilizatórios. Se assim é, urge deixar claro que um presidente que ataca a imprensa diariamente – e manda jornalistas calarem a boca, como fez ontem com duas repórteres que insistiram, ora vejam, em lhe fazer perguntas – não representa os valores dos quartéis; urge deixar claro que Bolsonaro, ao desdenhar seguidamente dos mortos na pandemia de covid-19, agride princípios humanitários compartilhados pelos militares; urge deixar claro que tratar os Poderes Judiciário e Legislativo como inimigos e estimular manifestações golpistas, como fazem Bolsonaro e os bolsonaristas a todo momento, ofende a ordem democrática que os militares juraram respeitar; urge, por fim, deixar claro que as grosserias de Bolsonaro demonstram que ele nada aprendeu nas aulas sobre respeito e civilidade ministradas nas escolas militares. É, no modelo do general Ernesto Geisel, “um mau militar”, que, é bom não esquecer, deixou pela porta dos fundos esta honrada profissão.

Bolsonaro semeia a anarquia militar - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP  -  06/05

Influência da família no governo é ingrediente tóxico

Quando Jair Bolsonaro falou que “o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade e da verdade, também estão ao nosso lado”, não disse coisa nenhuma. Foi apenas uma construção astuciosa mas, como o capitão não consegue parar, acrescentou: “Não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos. Faremos cumprir a Constituição. Será cumprida a qualquer preço.” Logo ele, que se julga “realmente, a Constituição” e se referiu às “minhas Forças Armadas”. Ganha um resfriadinho em Caracas quem não conseguir juntar lé com cré.

Para quem vive uma pandemia com a marca dos dez mil mortos batendo à porta e uma inédita recessão já instalada na economia, esse tipo de encrenca não era necessária.

O capitão passou mais tempo no baixo clero da Câmara do que no Exército, onde conheceu melhor as sendas da indisciplina do que as normas da corporação. Nelas também não se enquadrava, por exemplo, o major e ex-deputado Curió do Araguaia. Levado ao Planalto por um sentimento antipetista, Bolsonaro flerta com a anarquia militar.

Essa anarquia, resultante de divisões dentro das Forças Armadas, se fez sentir na política brasileira do século passado, até que perdeu ímpeto em 1977 e desapareceu com a redemocratização.

Na crise que Bolsonaro incentiva misturam-se ingredientes tóxicos. O primeiro deles é a influência de sua família no governo.

O que restava do prestígio militar do marechal Henrique Lott, poderoso ministro da Guerra de 1954 a 1959, esvaiu-se em 1962, quando sua filha Edna elegeu-se deputada estadual. Com três dos cinco presidentes-generais (Castello Branco, Emílio Médici e Ernesto Geisel) a história foi outra, e seus familiares não se metiam no governo. Castello demitiu um irmão porque aceitou um presente e não moveu um dedo quando a Marinha negou ao seu filho a promoção a almirante.

O segundo ingrediente tóxico vem a ser o “núcleo militar” formado no Planalto. É composto por militares da reserva e por um general da ativa agregado. Governos que não tiveram essa bizarrice funcionaram: José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Os que a tiveram: Costa e Silva e, de certa forma, Figueiredo, deram-se mal. Fora da linha de comando só há a bagunça.

O terceiro ingrediente é a simpatia de Bolsonaro pela opinião de sargentos e suboficiais, somada ao expresso apoio dado a policiais militares amotinados. A ele se junta uma militância parruda e agressiva.

Nos últimos 50 anos o Brasil teve dois tipos de chefes militares no Exército, aqueles de quem se sabia o nome e aqueles de quem não se sabia. Orlando Geisel e Leônidas Pires Gonçalves estiveram no primeiro grupo. Um enquadrou os generais depois da anarquia de 1969, na crise da doença de Costa e Silva. O outro, comandou-os no governo Sarney, quando baixou o chanfalho no capitão Bolsonaro. Depois, no segundo grupo, vieram dois chefes que comandaram a Força por treze anos. Deles não se fala e eles também não falam. Quem cruzar com os generais Gleuber Vieira e Enzo Peri na rua, não saberá quem são.

A ambos aplica-se a lição que Ernesto Geisel deu a um paisano que lhe perguntou quem era um general que ele promoveu à quarta estrela.

“Um grande oficial, e a prova disso é que você não sabe quem é.”

Chamava-se Jorge de Sá Pinho.

Sem saídas mágicas - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 06/05

Emissão de moeda e uso maciço de reservas criam riscos; há como baixar juros

A pandemia impõe a tarefa de lidar de modo urgente com uma crise de características tão desconhecidas quanto, provavelmente, de dimensão inédita na história documentada. Exige ideias ambiciosas, mas não desmedidas.

A consternação, o medo e a ansiedade, decerto justificados, não podem dar lugar ao pânico e a tentação de soluções salvadoras, ainda menos quando faltam implementar providências mais imediatas e planejar o futuro.

Nas semanas que correm, ouvem-se ideias tais como a intervenção do Banco Central no financiamento do governo —“imprimir dinheiro”— e o saque maciço das reservas em dólar para reduzir dívidas ou bancar investimentos.

É bem-vindo, claro, o debate de alternativas, mas cumpre qualificá-lo. As opções em pauta dependem de circunstâncias e objetivos.

Pode ser que, em dado momento, o Banco Central venha a comprar títulos de longo prazo do Tesouro Nacional, a fim de reduzir as taxas de juros de vencimento mais distante. Assim talvez se permita reduzir os custos de novos déficits e dívidas. No limite e na prática, o BC acabaria por financiar o Tesouro por meio de emissão de moeda.

Agora, no entanto, mesmo a taxa básica de curto prazo, a Selic, ainda está em ora elevados 3,75% ao ano. A discussão de medidas heroicas do BC não pode ocorrer antes da redução da Selic.

Outra tentação salvadora diz respeito ao uso de reservas internacionais, os ativos em moeda forte sob a guarda do BC. O montante delas caiu de cerca de US$ 383 bilhões para os presentes US$ 339 bilhões em um ano, devido a intervenções no mercado por parte da autoridade monetária na tentativa de enfrentar momentos de disparada das cotações do câmbio.

A venda de dólares diminui a dívida bruta do governo, tudo mais constante. Por quase todas as medidas de adequação e nas comparações internacionais, as reservas permanecem em nível alto; o custo de mantê-las, porém, baixou muito.

Nos cálculos da Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado, esse custo (decorrente dos juros dos títulos emitidos para a compra de dólares) chegou a 2,7% do Produto Interno Bruto em 2015, caindo para perto de 0,3% em 2019.

Altíssimo, porém, é o desconhecimento das necessidades financeiras externas do Brasil em um mundo conturbado. O país precisará de mais ou menos divisas próprias a depender do nível de organização macroeconômica que conseguirá manter. Ficar no limite de segurança é imprudente em momento de tamanhos riscos e incertezas.

A hora é de implementar medidas de preservação possível de empregos e empresas; de repensar com mais realismo e precisão a trajetória da política macroeconômica, de juros e contas públicas, mirando a retomada da atividade.

Esse deve ser o esforço inicial, que começou mal e mal começou a ser realizado com competência.