sábado, março 21, 2020

A peste e o apocalipse dos restaurantes - MARCOS NOGUEIRA

FOLHA DE SP - 21/03

Foi coisa de um mês atrás, talvez menos. Eu estive em um pequeno restaurante tailandês na Liberdade, no lado de lá da Conselheiro Furtado, rumo aos cortiços do Glicério.

Uma porta estreita e baixa, que os donos insistiam em fechar, era a única entrada de ar. Todas as mesas, cobertas com plástico grosso sobre uma toalha bonitinha, estavam ocupadas. Barulho e calor. Equipe monoglota (não era o português que eles falavam), comida fabulosa, preços ridiculamente baixos.

O tipo de lugar que desperta suspeitas quanto à higiene na cozinha, algo que a gente releva porque ninguém nunca morreu de comer num restaurante encardido e baratex.

Será?

Depois de uma semana de isolamento voluntário em casa, a pequena esbórnia asiática me parece uma recordação de priscas eras.

No sururu do surto de coronavírus, é implausível que alguém saia de casa e se exponha à epidemia por um mero prato de comida.

A gastronomia levou uma estocada potencialmente fatal na crise desencadeada pelo Covid-19. Ela está na vanguarda da economia, no sentido militar do termo: a infantaria que se submete primeiro ao fogo inimigo, com numerosas baixas.

As razões para isso são duas:

1) Com o perdão pela obviedade, bares e restaurantes são espaços destinados à socialização e ao consumo de bebida e comida. A saliva, que carrega o vírus, está nos pratos, nos talheres, nos guardanapos, nos copos, no vidro de azeite, nas folhas do cardápio, nas mãos de todos. Está no ar. É o cenário perfeito para o contágio.

2) Bares e restaurantes são supérfluos.

Dói escrever isso, mas é fato que ninguém precisa de um restaurante para se alimentar. Mesmo que a pessoa não entenda necas de cozinha, ela se vira em casa com miojo e pizza congelada.

O setor percebeu rapidamente que seria o boi-de-piranha da crise. Minha timeline está repleta de postagens de restaurantes anunciando rigor reforçado nas medidas de assepsia. Alguns resignados já optaram pelo fechamento total, porém (presume-se) temporário. A maioria vê uma nesga de esperança no serviço de entrega em domicílio.

Não creio que vá funcionar. As prováveis benesses fiscais dificilmente terão o efeito desejado, tampouco.

Enfim, a quebradeira promete ser avassaladora. Os representantes da categoria tentam estimar números, mas a verdade é que ninguém sabe direito o que está acontecendo. A hecatombe, por simples lógica, parece inevitável.

Quando a pandemia passar, teremos um cenário de terra arrasada. Quando a população acordar do pesadelo do apocalipse zumbi, o mundo será um lugar bem pior.

Ninguém passa incólume por meses de privação do convívio social. A alegria está nas coisas supérfluas –o resto é necessidade fisiológica.

Em tempo: a palavra “restaurante” vem do verbo “restaurar”. Restaurar é se recuperar das feridas físicas e espirituais. Para os que conseguirem atravessar a tormenta, um alento essencial.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais.

Solidários venceremos - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 21/03

A epidemia acaba, mas a solidariedade permanece e pode transformar o Brasil


Esta geração de brasileiros começa a atravessar um período de temor e privações para o qual não foi preparada pela vivência nem pelo treino. Milhões de famílias estarão progressivamente confinadas em suas residências nas próximas semanas. A liberdade de ir e vir, de sair para trabalhar ou estudar, de encontrar os amigos e de viajar será restringida severamente.

Uma vasta parcela dos concidadãos arcará com sacrifício duplo. Sua renda, pouca, depende da circulação de pessoas e mercadorias e desabará. As reservas, se é que existem, vão se esvair depressa, e os programas tradicionais de auxílio governamental passam ao largo de tais circunstâncias.

Outro contingente de compatriotas, também desprotegido, expõe-se a risco elevado com a chegada da epidemia do novo coronavírus. Idosos e indivíduos portadores de outras enfermidades sujeitam-se a sofrimento prolongado nas emergências e ao risco maior de morte se forem infectados.

É para resguardar os mais vulneráveis —seja da violência do patógeno, seja da depauperação— que toda a sociedade agora deveria se mobilizar.

Mudar os hábitos, delegar poderes limitada e temporariamente maiores às autoridades, entregar-se a jornadas extenuantes e arriscadas como têm feito os profissionais da saúde e reduzir a atividade produtiva resultará plenamente recompensador se, ao final dessa dolorosa estrada, muitos brasileiros houverem sido poupados da morte e da miséria.

Olhar para o outro que sofre e estender a mão é exercício que há de fazer bem à comunidade. Num país em que iniquidades abismais convivem desde sempre com a indiferença —quando não cumplicidade— das elites e dos governantes, um choque como esse poderá ter consequências duradouras.

Que se elevem recursos e esforços coletivos na emancipação de dezenas de milhões hoje condenados à ignorância e à baixa renda. Que cresça a intolerância a privilégios concedidos a poucos pelo Estado.

Que se cobrem dos políticos eficiência, respeito ao conhecimento científico e responsabilidade com o bem-estar desta e das futuras gerações de brasileiros.

A epidemia acaba, mas a solidariedade não vai embora e poderá transformar o Brasil.

O País que se lixe - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 21/03

Para o lulopetismo e o bolsonarismo, aflição de brasileiros não é nada senão instrumento para seus projetos de poder


Desde a campanha eleitoral de 2018 se sabe que lulopetismo e bolsonarismo são da mesma cepa. Um alimenta o outro, na expectativa de que a polarização os favoreça, e ambos só se preocupam de fato com os interesses de seus líderes messiânicos, nunca com os interesses dos brasileiros em geral – que são invocados por esses demagogos apenas para sustentar uma retórica salvacionista destinada a justificar expedientes autoritários.

Para o lulopetismo e o bolsonarismo, a aflição de milhões de brasileiros diante das catastróficas consequências da covid-19, para ficar apenas nesse dramático exemplo, não é nada senão instrumento para seus projetos de poder.

O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, sempre que se manifesta a respeito da epidemia o faz para responsabilizar terceiros, seja a imprensa, que noticia a crise, sejam os governadores, que tomaram providências duras para enfrentá-la. Chegou a dizer, no domingo passado, em entrevista à TV CNN, que “com toda certeza há um interesse econômico envolvido nisso para que se chegue a essa histeria”. Segundo o presidente, em raciocínio tão tortuoso quanto seu português, houve uma “crise semelhante” em 2009, em referência à pandemia de gripe A, mas “no Brasil o PT que estava no governo, e nos EUA eram os democratas, e a reação não foi nem sequer perto dessa que está acontecendo hoje em dia no mundo”. Traduzindo: para Bolsonaro, houve um conluio esquerdista envolvendo a imprensa e os governos do PT, no Brasil, e do democrata Barack Obama, nos Estados Unidos, para abafar a crise causada pela gripe A; agora, como tanto o Brasil como os Estados Unidos são governados por direitistas, “interesses econômicos” ocultos tentam desgastá-los.

A tática é antiga, tendo sido usada pelos mais conhecidos regimes totalitários ao longo da história: em meio a uma crise, atribui-se a responsabilidade a conspiradores que agem nas sombras com objetivos inconfessáveis, a serviço de potências estrangeiras. No caso do Brasil, o presidente Bolsonaro não disse quais eram esses “interesses econômicos” tão nefastos, mas os bolsonaristas trataram de esclarecer nas redes sociais: trata-se da China comunista.

Nesse ponto, como em tantos outros, os bolsonaristas se espelharam no presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que chamou o coronavírus de “vírus chinês”. E Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente, tratou de responsabilizar a China pela epidemia, causando um atrito diplomático com o governo chinês.

No mundo real, o comportamento de Eduardo Bolsonaro – que nada mais fez do que se inspirar no próprio pai e em Trump – irritou profundamente os representantes do agronegócio brasileiro, que depende em larga medida do mercado chinês. Mas essa consequência, para os propósitos bolsonaristas, é irrelevante; o que interessa é manter a mobilização dos devotos de Bolsonaro no momento em que o presidente vê diminuir sua popularidade.

Já o lulopetismo investe, como sempre, no cinismo desbragado. O PT, cuja passagem pelo poder ensejou a maior crise política, econômica e moral da história brasileira e que intoxicou a atmosfera democrática com um discurso de exclusão dos que questionam suas certezas ideológicas, aproveita a comoção do momento para tentar pegar carona nos protestos espontâneos contra Bolsonaro. Até a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, apareceu em vídeo no Twitter para estimular os panelaços – que, quando eram contra a presidente Dilma Rousseff, foram qualificados de “orquestração com viés golpista da burguesia” pelo partido. Como um parasita, o lulopetismo tenta extrair lucro político do terrível momento do País e aposta na falta de memória. Em vídeo compartilhado por Gleisi, a culpa da crise atual é atribuída a quem apoiou a oposição ao PT, o impeachment de Dilma e a reforma trabalhista. Não fossem esses cidadãos, não haveria nem crise nem ódio no País, é o que diz, em resumo, o vídeo divulgado por Gleisi.

Falando sozinho - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 21/03

Discurso ambíguo e inépcia para lidar com pandemia levam Bolsonaro a isolamento


A rápida disseminação do novo coronavírus empurrou Jair Bolsonaro para o isolamento político ao expor seu despreparo para lidar com a emergência e sua falta de sintonia com as aflições da população.

Poucos dias após classificar a pandemia como uma fantasia, o presidente finalmente reconheceu a gravidade da situação ao reunir seu ministério para uma entrevista coletiva na quarta-feira (18). À mudança tardia, no entanto, somou-se a inépcia.

A exposição das medidas adotadas para combater a calamidade foi confusa, além de prejudicada pelo uso inadequado de máscaras de proteção pelo presidente e por seus auxiliares, que revestiu o evento de tom farsesco.


A impressão não melhorou substancialmente com a entrevista coletiva desta sexta (20), quando a moléstia foi chamada de “gripezinha”.

O próprio Bolsonaro optou pela ambiguidade em vários momentos, voltando a falar em histeria em vez de se concentrar sobre o que é preciso fazer para atenuar o impacto do inevitável aumento do número de pessoas infectadas nas próximas semanas.

Chamado para uma reunião com o chefe do Executivo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), avisou que não iria sem que houvesse pauta objetiva. Disse que estava ocupado com a agenda de votações no Congresso e não tinha tempo para perder posando para retratos no Palácio do Planalto.

Por três dias seguidos, Bolsonaro tornou-se alvo de furiosos panelaços nas principais capitais do país. Houve protestos até mesmo em regiões onde ele venceu a eleição presidencial de 2018 com ampla margem de votos sobre os adversários, como São Paulo.

O mandatário viu seu capital político encolher também nas redes sociais da internet, onde até agitadores do bolsonarismo se distanciaram dele nos últimos dias, caso do escritor Olavo de Carvalho.

Enquanto o mundo busca coordenar esforços, os filhos do presidente seguem apostando na confusão e fustigando inimigos imaginários —da China aos líderes do Congresso Nacional.

Em pronunciamento na internet nesta quinta (19), Bolsonaro voltou a criticar providências tomadas por vários estados para conter a propagação do vírus, alertando para as dificuldades que uma paralisia da atividade econômica causará.

Ninguém ignora os riscos criados pelo avanço da doença, mas o presidente parece o único a agir como se não tivesse noção de prioridades, da importância de cooperação com outras esferas de governo e do imperativo de transmitir segurança à sociedade. Deixá-lo falando sozinho é a melhor opção.