sexta-feira, março 20, 2020

O coronavírus não é o único patógeno perigoso que hoje contamina as Forças Armadas - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 20/03

Voltem aos quartéis, soldados, e deixem o governo para os civis


Coitadas das Forças Armadas do Brasil! Tornaram-se barrigas —ou fardas!— de aluguel de formulações ideológicas alucinadas que não se ensinam nas escolas militares e de uma tal "guerra cultural" cuja matriz é a extrema direita americana, com a qual se alinha o ideólogo da zorra toda: Olavo de Carvalho.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, garantiu que as Forças Armadas não faltarão ao Brasil. Que bom! Convém que se certifique de que não servirão ao Bolsolavistão, o país mental que hoje tenta colonizar o Estado brasileiro. Está dando errado. Já deu errado. Mas não será sem custo.

Enganam-se os que acham que a entrevista coletiva da Igreja dos Santos Mascarados dos Últimos Dias marcou a conversão de Jair Bolsonaro à democracia. Na quarta (18) mesmo, enquanto o pai fazia a coreografia do estadista, o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos, desferia um ataque estúpido à China, maior parceira comercial do Brasil.

Na raiz do negacionismo do presidente e da burrice saliente de Eduardo está uma visão de mundo. Bolsonaro não caiu nos braços da galera por mero acidente ou rompante. O ato foi precedido de cálculo político, de reflexão, de aconselhamento.

Um general da reserva e um almirante ainda da ativa, ambos ministros, estão contaminados. Augusto Heleno (chefe do GSI) e Bento Albuquerque (Minas e Energia) são boas metonímias e boas metáforas do que está em curso.

No corpo, carregam o coronavírus. Como ministros egressos das Forças Armadas, são cavalos de Troia de combatentes que desconhecem. Ou o Alto Comando das três Forças recolhe os seus, ou estaremos condenados a ser uma republiqueta de bananas -- e não me refiro àquelas que dão em cachos...

General Braga Netto, ainda da ativa (a exemplo de Albuquerque), é chefe da Casa Civil e coordenador do gabinete de crise contra o coronavírus. Lotado na sua pasta, na condição de assessor, está, por exemplo, um tal Felipe Cruz Pedri. É membro do "gabinete do ódio".

Na terça, o rapaz perguntou no Twitter (reproduzo como vai lá): "Vamos ter a coragem de dizer que combater a histeria do caos é mais importante que combater o vírus chinês? Ou você quer parecer bonitinho na mídia social para a amiga (o) que fez de uma gripe a sua nova bandeira política-humanitária?"
Eis a raiz do comportamento arruaceiro de Bolsonaro e do ataque irresponsável de seu filho. "Vírus chinês" é como Donald Trump se referia ao novo coronavírus. O presidente brasileiro, note-se, diz por aí, com a agudeza habitual, que essa coisa toda é uma armação chinesa para derrubar o preço do petróleo e levar à lona as ações das empresas para arrematar tudo na bacia das almas.

Braga Netto não demitiu o auxiliar. Então o rapaz voltou nesta quinta (19): "Churchill caminhava pelas ruas de Londres durante os bombardeiros da Luftwaffe. Hoje esse ato seria considerado 'irresponsável' pelos leite com pêras brasileiros. O heroísmo e a coragem não podem sumir do mapa para dar lugar à histeria alinskyana".

Como? "Histeria alinskyana"? Duvido que a esmagadora maioria dos oficiais-generais brasileiros, que hoje dão suporte a essa loucura, saiba que ele se refere a Saul Alinsky (1909-1972), pensador da esquerda americana, demonizado pela extrema direita dos EUA, mas visto, também por esta, como um formulador competente em favor da organização da sociedade contra o Estado e o establishment.

Não sei se entenderam: o tal Pedri recorre a um nome satanizado pela extrema direita americana para defender, justificar e endossar o comportamento irresponsável do presidente brasileiro. E o faz de dentro do Palácio do Planalto, subordinado a um general da ativa, chefe da Casa Civil, que coordena o gabinete de crise contra o, como é mesmo?, "vírus chinês".

Que perigo o dito-cujo representa? Em si, nenhum. É só o sintoma de uma síndrome que ataca o Estado brasileiro. Voltem aos quartéis, soldados! E submetam as Forças Aramadas a uma quarentena, com um trabalho competente de desinfecção. Enquanto é tempo. Deixem o governo para os civis. Melhoras ao general Heleno e aos outros 17 contaminados que o avião de Bolsonaro despejou no Brasil.



Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Cabotinismo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 20/03

Ficará para a história a desfaçatez de um presidente que usa um momento tão delicado da vida nacional para se promover e para inventar inimigos, em especial a imprensa, com indisfarçáveis propósitos autoritários


Foi um espetáculo constrangedor, protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro, a entrevista coletiva realizada na quarta-feira para detalhar as ações do governo no combate ao coronavírus. Alguns de seus ministros até tentaram esclarecer os jornalistas a respeito dos esforços para lidar com a crise. Já o presidente só tinha uma preocupação: chamar a atenção para si mesmo e capitalizar politicamente o desempenho do governo, que para ele é ótimo. De quebra, usou a ocasião para, mais uma vez, atacar a imprensa.

No auge do cabotinismo, o presidente declarou, triunfante: “Nosso time está ganhando de goleada. Duvido que quem vier me suceder um dia, acho muito difícil, consiga montar uma equipe como eu montei. E tive a coragem de não aceitar pressões de quem quer que seja. Então, se o time está ganhando, vamos fazer justiça, vamos elogiar seu técnico, e seu técnico se chama Jair Bolsonaro”. O mau português é o menor dos problemas de tal declaração, que resume o grau de alheamento do presidente.

Até o momento em que resolveu aparecer com seus ministros para prestar esclarecimentos sobre o que o governo estava fazendo contra a galopante disseminação do coronavírus, Bolsonaro insistia que a crise era fruto da “histeria” alimentada pela imprensa, mesmo quando já estava clara a dimensão terrível da pandemia.

Diante da patente incapacidade de Bolsonaro para lidar com a situação e cansados da fabricação diária de conflitos desde sua posse, os brasileiros começaram a protestar, promovendo panelaços em diversas cidades. Ademais, a popularidade do presidente nas redes sociais, outrora um território que o bolsonarismo dominava, começou a derreter na mesma proporção em que crescia a certeza da inépcia de Bolsonaro.

Certamente foram esses os motivos que levaram o presidente a armar o circo travestido de “entrevista coletiva”, em que não faltaram nem mesmo as máscaras protetoras que só devem ser usadas por quem apresenta os sintomas da covid-19 ou é profissional da saúde, conforme instruções do próprio Ministério da Saúde. Ou seja, não havia nenhuma necessidade de o presidente e os ministros usarem as máscaras, a não ser que o objetivo fosse meramente cenográfico – o que se pôde constatar diante das evidências de que nenhum deles sabia direito como manuseá-las, acentuando o caráter picaresco do evento e, por extensão, do desgoverno de Bolsonaro. São imagens que ficarão para a história.

Também ficará para a história a desfaçatez de um presidente que usa um momento tão delicado da vida nacional para se promover e para inventar inimigos, em especial a imprensa, com indisfarçáveis propósitos autoritários. Na entrevista em que deveria detalhar seus planos contra a pandemia, Bolsonaro gastou energia para tentar jogar a opinião pública contra jornalistas e mentiu mais de uma vez – ao dizer que estava preocupado com o coronavírus desde fevereiro; e ao negar que tenha convocado manifestações contra o Congresso mesmo diante da recomendação do Ministério da Saúde de que não houvesse aglomerações. De quebra, aproveitou o ensejo para convocar seus apoiadores a fazer um panelaço para se contrapor a mais um protesto contra seu governo, ocorrido anteontem.

Tudo isso em meio à devastação social e econômica causada pela pandemia, que deixa aflitos todos os brasileiros, em especial os mais pobres e aqueles que estão no mercado de trabalho informal. A aflição aumenta ainda mais diante da confirmação de que não temos presidente de verdade, e o que temos tudo faz para atrapalhar o próprio governo e, por extensão, o País. Nisso está sendo auxiliado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, seu filho mais novo, que, macaqueando o presidente norte-americano, Donald Trump, atribuiu à China a “culpa” pela crise, criando um atrito diplomático gratuito e desnecessário com nosso maior parceiro comercial justamente nesta hora de grande vulnerabilidade.

Cientistas de todo o mundo lutam para encontrar tratamento para a covid-19. No Brasil, constata-se que a incompetência do atual governo é incurável.