segunda-feira, março 02, 2020

Marcha da insensatez - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 02/03

Sábios seriam o presidente e seu grupo se cancelassem as manifestações do dia 15



Ogoverno está manifestamente desorientado. Adotou desde o início a política do confronto, baseada na distinção amigo/inimigo, em que o outro sempre aparece como alguém a ser neutralizado ou eliminado. O esquema permanece sempre o mesmo, muda apenas o alvo. Pode ser um partido de oposição, pode ser um(a) jornalista, pode ser a imprensa em geral, pode ser todo aquele que discorde, por uma ou outra razão, de alguma política governamental. A prática democrática corre ao largo de tal concepção, por estar baseada no diálogo, na ponderação e na negociação.

Acontece, porém, que tal processo ganha outra significação quando o inimigo passa a ser a própria instituição democrática, como se ela fosse um empecilho para a política a ser implementada. Se a democracia se torna um obstáculo, é porque está em pauta um claro pendor autoritário. A manifestação prevista para o dia 15 é um claro exemplo disso, por estar focada no Congresso Nacional, entendido não como um Poder independente, mas como uma facção a ser suprimida.

Note-se que um argumento frequentemente utilizado diz respeito a que o presidente, eleito dada essa legitimidade, está autorizado a fazer qualquer coisa. Para além do fato óbvio de um presidente se encontrar constitucionalmente limitado, caso contrário seria um tirano, a Câmara dos Deputados e o Senado têm igual legitimidade, por serem os seus representantes igualmente eleitos pelo voto popular. Ambos são frutos da soberania popular, usufruindo as mesmas prerrogativas.

No entanto, o presidente e o seu grupo familiar e digital optaram pelo confronto com a Câmara e o Senado, isto é, escolheram o enfrentamento como outra expressão da vontade popular, pressionando o País para uma ruptura institucional. Se o governo é contrariado, basta eliminar o opositor, no caso, o Legislativo, como se esse Poder devesse ser simplesmente submisso à vontade presidencial.

Uma vez a celeuma instalada, começam a se suceder supostos desmentidos, segundo os quais a mensagem das redes sociais não foi bem a que veio a se tornar pública, após sucessivas reviravoltas em que nem um equilibrista consegue se manter em pé, procedimento, aliás, típico do atual governo. Quando a reação não for a esperada, dá-se um “desmentido”, seguido por outro, numa trapalhada sem fim.

O problema é que fica no caminho o ataque a jornalistas respeitadas, refiro-me aqui a Vera Magalhães, do Estadão, e antes Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Ambas nada mais fizeram que um trabalho sério. O resultado, porém, foram ataques de baixo nível, ameaças e, institucionalmente, o questionamento do próprio trabalho da imprensa, pejorativamente tratada de “extrema imprensa”. Contudo a “extrema imprensa” só deve ser extrema na defesa das liberdades, que são ameaçadas por aqueles que a atacam.

O governo tem uma nítida dificuldade de articular politicamente os seus projetos. A reforma da Previdência passou mais pela habilidade do deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, com o apoio do presidente do Senado, David Alcolumbre, do que por uma efetiva articulação presidencial. Uma vez aprovada a reforma, nada mais conseguiu, fazendo com que os seus ataques dobrem, quando são apenas o produto precisamente dessa falta de negociação.

Reformas não avançam se não forem o resultado do diálogo entre os Poderes. Atos de imposição ou de força de nada adiantam.

O atual momento torna-se ainda mais problemático pelo fato de o presidente ter literalmente militarizado o Palácio do Planalto, além de outros ministérios, como se precisasse de uma fortaleza para se proteger. Na verdade, houve um enclausuramento no núcleo familiar e dos assistentes mais próximos, de cunho preponderantemente ideológico, até mesmo alguns militares passando a defender tais posições. Entendia-se no início do atual governo que os militares teriam a função de moderação, algo que agora não se está confirmando, na medida em que o incitamento para as manifestações do dia 15 partiu de um ministro militar. Felizmente, um ex-ministro igualmente militar qualificou tal chamado de “irresponsabilidade”.

A imagem das Forças Armadas e, em particular, do Exército terminou por ser associada ao atual governo, segundo a percepção da opinião pública. Esta não faz a distinção entre oficiais da reserva e da ativa, sobretudo quando os primeiros têm tal proeminência. Ademais, dois dos ministros militares do palácio estão ainda na ativa, embora um deles, segundo foi noticiado, estaria para passar para a reserva.

Nesse sentido, pode-se dizer que o Exército fez uma aposta arriscada. Se o atual governo der certo – o que não é hoje evidente –, ficará com os louros. Se fracassar, ficará com toda a responsabilidade, perdendo o imenso prestígio que conquistou no processo de redemocratização do País, tornando-se um dos seus pilares.

No atual contexto institucional, sábios seriam o presidente e o seu grupo se cancelassem as manifestações do dia 15. Fariam um grande serviço à Nação. Do contrário, o País seguirá na marcha da insensatez.

 PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS

O método Bolsonaro - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 02/03

É necessário tomar consciência de dois trunfos da gangue do presidente


É chegada a hora de prestarmos atenção ao método Bolsonaro. É famosa a citação segundo a qual Shakespeare diria que há método mesmo na loucura. Vivemos hoje um momento em que há método mesmo na estupidez.

Essa estupidez, que atinge, às vezes, o nível da delinquência, se dispersa pelas redes sociais, se alimenta delas e escorre, infelizmente, agora, pela Presidência da República.

Muitas vezes, a identificação de um método se faz através de observações óbvias. O filósofo René Descartes (1596–1650) dizia que uma das qualidades do bom método é a simplicidade. Por isso, essa simplicidade em observar um método nos leva à obviedade.

O presidente costuma usar camisetas de time de futebol nas mais variadas cenas em que se comunica com sua base de apoiadores, como no vídeo em que atacou na última quinta-feira, dia 27 de fevereiro, a jornalista Vera Magalhães, do jornal O Estado de S. Paulo, e também apresentadora da TV Cultura.

A associação entre essa prática e as redes sociais é uma mensagem que vai diretamente ao coração de muitos brasileiros que se sentem “desrepresentados” pela mídia, pelos políticos e pelo Supremo Tribunal Federal.

Todas essas instituições são identificadas como parte das “elites” por pessoas distantes de um entendimento de que a democracia seja um regime de instituições e não, meramente, de pessoas isoladas.

Aqui, Bolsonaro avança em práticas de que o próprio ex-presidente Lula fazia uso: populismo agressivo com a intenção de jogar “as massas” contra “as elites” —uma tática simples com efeitos poderosos no plano dos afetos identitários. É banal e óbvia, porém eficaz.

O que Bolsonaro e asseclas andam fazendo com os jornalistas e as instituições visa minar a representação política. E devemos bater de volta. Mas há dois detalhes que julgo importante apontar nesse embate, para que quem atua na mídia profissional não fique pregando pra conversos. É necessário tomar consciência de dois trunfos que a gangue Bolsonaro tem em mãos nesse terreno.

O primeiro é um fato apontado já pelo jornalista Paulo Francis, morto em 1997, após apontar esquemas de corrupção na Petrobras pré-PT, mas sem provas, o que custou muito caro à sua saúde, que era a colonização de grande parte das redações no país por apoiadores do PT e similares.

Profissionais da mídia não podem abraçar ideologicamente partidos políticos ou conjuntos ideológicos de forma militante, assim como juízes não podem se tornar cabos eleitorais. Quase como um asceta, um jornalista não pode ter, nem na vida privada, práticas partidárias militantes. Estas devem se restringir ao segredo do voto. A privacidade está morta no mundo das redes.

Se essas práticas não implicaram parcialidade na lida profissional com governos do PT, no nível da “microfísica do poder”, elas acontecem e isso nos enfraquece.

Quem disser o contrário é mentiroso ou ingênuo. Bolsonaro navega de braçada nesse fato óbvio. Faculdades de jornalismo em peso ensinam aos alunos a serem de esquerda sim. Grande parte dos colegas da mídia acha tão óbvio ser de esquerda como sendo “do bem” que nem enxerga mais esse viés.Esse fato se tornou um telhado de vidro a favor da gangue dos Bolsonaro.

O segundo fator é meramente ferramental. Ninguém precisa mais da mídia profissional para receber ou emitir conteúdos. O método Bolsonaro também navega de braçada nas consequências políticas da comunicação em redes sociais.

O jornalismo corre o risco de se tornar uma quase bolha entre conversos, enquanto grande parte da população se “informa” e “informa” os outros pelas redes com vídeos, textos e memes, minando a bolha citada acima.

O cerne do método Bolsonaro é a ideia de que a democracia se faz diretamente entre a soberania popular e o Executivo. O conceito de “bolsochavismo”, delineado pela jornalista Vera Magalhães, no domingo, dia 23 de fevereiro, no jornal O Estado de S. Paulo, identifica um fator fundamental: o autoritarismo rompe limites ideológicos.

A Venezuela está à esquerda, e o Brasil está à direita. Que ninguém alimente isso indo à manifestação do dia 15 de março. Não saia de casa neste dia.

Evite a contaminação.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.