domingo, maio 10, 2020

11 mil mortos: Bolsonaro passeia, acha churrasco, faz piada e vê "neurose" - REINALDO AZEVEDO

UOL - 10/05




Com quase 11 mil mortos, Bolsonaro dá um jeito de achar o churrasco com cerveja. Discurso é oportunista e homicidaImagem: Reprodução

As milícias bolsonaristas nas redes e o próprio presidente agora tratam a "Churrascada dos 11 mil Mortos" de fake News. A imprensa teria caído numa ironia do presidente. Não caiu, não.

Estava planejada mesmo. Deveria ter ocorrido no dia 2 para comemorar os 39 anos de Flávio Bolsonaro, completados no dia 30 de abril. Foi adiada para este sábado. Diante da estupefação geral — até alguns bolsomínions acharam a coisa imprópria —, o presidente fez uma provocação e disse que, em vez dos 30 convidados, iria reunir três mil. Mudou de ideia. Preferiu passear de moto aquática no lago Paranoá. Era um dos passatempos prediletos de Fernando Collor quando presidente. Faz algum sentido. Roberto Jefferson, um dos mais reluzentes "colloridos" à época, já se converteu ao bolsonarismo. E à sua facção armada!!! Trato do assunto em outro post.

Neste sábado, o Brasil superou, em muito, a marca dos 10 mil mortos: 10.627. Houve 730 confirmações nas 24 horas anteriores à divulgação. Os infectados já são 155.939. Acrescentaram-se 10.611 novas notificações. O país já ocupa o sexto lugar no ranking de óbitos e só perde para os EUA em registros diários.

O caos no sistema de saúde começa a se espalhar pelo país. A política oficial, orientada pelo Ministério da Saúde, continua a recomendar o isolamento social. Mas não o presidente.

É claro que ele não deveria estar no lago. Circula nas redes um vídeo feito por um grupo que estava numa lancha, desrespeitando também a orientação do governo do GDF. Bolsonaro se aproxima, e o ouvimos dizer ainda ao longe:


-- Tem churrasco aí?
Às gargalhadas, uma mulher responde:
-- A gente veio fazer o teu churrasco, né, cara, hahaha.
E ela acrescenta:
-- Pega um bacalhau, aí. Que querido, cara!
O presidente pergunta:
-- Tudo em paz aí?
E a entusiasmada senhora responde:
-- Tudo em paz.
O presidente faz proselitismo:
-- Se não cuidar, pode entrar em caos o Brasil.
Um homem pergunta:
-- Pode tirar uma foto, presidente?
A animada conviva anuncia:
-- Ah, já tou filmando, pode?
A voz masculina diz:
-- A gente é da aviação, a gente está sentindo bastante.
E Bolsonaro:
-- Aviação, vocês estão 90% no chão. Vai (sic) acabar as férias coletivas...
Um segundo homem afirma mais distante do celular que faz a gravação:
-- Mês inteiro, tem dois voos só. Tá bem complicado.
E o presidente emenda:
-- É uma neurose! Setenta por certo vai (sic) pegar o vírus, não tem como. É uma loucura!"


BOA PARTE DO DESASTRE EM VÍDEO TÃO CURTO

O vídeo que circula por aí é curto: 39 segundos apenas. Mas é um bom retrato de uma outra tragédia que se abate sobre o país: a tragédia moral e ética.

Bolsonaro não fez a churrascada, mas se nota que não mudou a sua disposição para ironizar a tragédia, no que é acompanhado pela mulher. Reitere-se: isso tudo aconteceu no dia em que o Brasil alcançou a marca de quase 11 mil mortos, sendo certo que o país ainda não chegou ao ponto de reversão da curva. Era o segundo dia consecutivo com mais de 700 registros — e isso num fim de semana, quando há uma subnotificação da subnotificação.

Não deixa de ser interessante que o rapaz diga que eles são da área de aviação. Foi por avião que a doença chegou ao Brasil, trazida por endinheirados — e isso inclui o avião presidencial. Mas, agora, quem morre aos montes são os pobres. Muitos deles em casa. Outros tantos, em macas em hospitais superlotados; e há os que se vão na fila à espera da UTI.

Bolsonaro, como se nota, volta a criticar o distanciamento social, alheio ao fato de que temos o caos que aí está com tal prática, embora com uma taxa de adesão bem abaixo do que é necessário.

A sua tese da contaminação dos 70%, no contexto em que ele a aplica, corresponde à defesa do homicídio em massa. Só seria eficaz se muitos milhões de doentes graves — porque aconteceria — fizessem um pacto para morrer em casa, em silêncio, sem procurar hospitais. Também as suas respectivas famílias assistiriam a tudo caladas.

O Reino Unido ensaiou optar pela imunização do rebanho e aplicou tarde nas medidas de isolamento social. É o segundo país em número de mortos. Donald Trump ignorou todos os alertas feitos desde janeiro. Contavam-se, neste sábado, 77.744 cadáveres. Primero lugar disparado. Olhem para a miséria brasileira, muito especialmente para a precariedade das moradias de muitos milhões, e imaginem o que poderia estar em curso no país.

BOLSONARO DEVERIA SER GRATO

Bolsonaro deveria ser grato aos govenadores, que arcam com o custo político da imposição de medidas de distanciamento. A panela de pressão social já teria explodido há muito tempo não fossem as providências adotadas pelos Estados. Além de irresponsável, seu discurso é oportunista.

O que ele quer? Pobres invadindo hospitais? Depredação de prédios públicos por falta de atendimento? Estaria, enfim, frustrado porque, até agora, a carne preta e pobre do Brasil não lhe deu motivos para pedir Estado de Defesa?

O presidente não é tão burro que não saiba que o distanciamento busca apenas distribuir no tempo os doentes. Ademais, a "imunização do rebanho" está em curso. Além das subnotificações, quantos milhares, talvez milhões, já contraíram formas leves e praticamente não detectáveis da doença, contaminando outras pessoas?

O isolamento social não é incompatível com a tal "imunização do rebanho". Insista-se: trata-se de um esforço para distribuir no tempo os doentes graves para evitar o colapso no sistema de Saúde e o risco de desordem social.

DESASTRE BÍBLICO

Como sabe Nelson Teich, a própria saída do distanciamento não poderá ser feita de modo destrambelhado, de uma vez só. Mesmo países que vinha abandonando as restrições tiveram de operar recursos. A Coreia do Sul voltou a fechar os bares. É espantoso que a tese do presidente, vocalizada por ele próprio e por Paulo Guedes na invasão consentida do Supremo, se resuma a deixar que a doença se espalhe.

Se viesse o desastre de proporções bíblicas, a economia ficaria em situação melhor? Da recessão que teremos, quanto realmente se deverá ao isolamento social e quanto a um desastre que é planetário? Por que nenhum outro país optou pela escolha de Bolsonaro?

Reitero: ele fala para se contrapor aos governadores, para tentar tirar qualquer peso de suas costas, para esconder a incompetência escandalosa do seu governo, que não consegue fazer com que a ajuda chegue às pessoas e às empresas com a devida celeridade. Busca bodes expiatórios políticos, alheio aos mortos e à saúde dos vivos.

A retórica não é inócua. Parte considerável da população o tem como líder e exemplo. Posso achar isso absurdo, e acho, mas ele ajuda a espalhar a ceticismo burro sobre o real perigo da Covid-19. No WhatsApp, espalham-se mentiras grotescas sobre caixões que transportariam palha em vez de cadáveres.

Bolsonaro recuou do churrasco, mas não da indignidade e do alheamento. Ele não está nem aí para os quase 11 mil mortos. Afinal, como já pontificou, "todo mundo vai morrer um dia".

E desperta a simpatia de gente, como se vê e se ouve, que não faz grande distinção entre a carne assada numa lancha e aquela enregelada nos contêineres frigoríficos que hoje servem a hospitais porque não há mais vaga nos necrotérios.

É evidente que o presidente não inventou essa, vá lá, "elite". Ela já estava por aí. Faltava alguém que tivesse a coragem de dizer e de fazer o que ela própria diz e faz.

OS PARASITAS

Nós vimos aquela senhora que se diz empresária a molestar enfermeiros que protestavam em Brasília pedindo mais proteção no trabalho e defendendo o isolamento social. Ela afirmou que podia "sentir o cheiro" da profissional de saúde. Censurou-a por supostamente não usar perfume.

A fala remete diretamente ao filme "Parasita", de Bong Joon Ho, que levou uma penca de Oscars. Gostei menos da obra do que alguns amigos meus. Vi certa tendência para a estereotipia, o que sempre me incomoda. O Brasil de Bolsonaro e suas lanchas com churrasco me levam a rever parte das minhas restrições.

Há muito tempo uma elite parasitária e amoral empurra para a morte os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres.

Talvez sejam os "trouxas" de que fala Paulo Guedes...


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