segunda-feira, janeiro 27, 2020

O garrote ideológico desgraça o debate público há anos - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 27/01

Discussão sobre Oriente Médio segue a agenda de preferências ideológicas

Quase um mês após o ataque americano que matou o todo-poderoso Qasem Soleimani do Irã, podemos ver como muito da discussão especializada sobre Oriente Médio segue a agenda de preferências ideológicas.

O Oriente Médio vive uma guerra fria entre a sunita Arábia Saudita e o xiita Irã. Mas o número de absurdos que foram ditos sobre esse conflito deixa claro que o debate público presta um enorme desserviço a quem recorre à mídia para se informar sobre o tema.

Muita gente boa fez do Irã quase um regime democrático, doce e tolerante, um coitadinho, vítima do mal americano e israelense.

Que peninha dele, que teria sido monstruosamente atacado pelo império do mal —os Estados Unidos, que servem à cruel ditadura saudita e aos sionistas.

Não me preocupa aqui defender os Estados Unidos nem seus aliados. Não existem santinhos em geopolítica. Um dos danos da contaminação ideológica do pensamento público é a tentativa de continuar afirmando que inimigos dos americanos são santinhos.

O Irã é um regime que alimenta grupos terroristas e guerrilheiros que matam sistematicamente civis e que arma grupos que visam solapar a soberania dos países à sua volta —e, assim, construir uma rede capaz de realizar guerras por procuração, a favor dos interesses do Irã. No Líbano, na Síria, no Iraque, em Gaza, no Iêmen...

Se é uma ingenuidade ou um mau-caratismo achar que sauditas e israelenses são anjinhos, não é menos ingenuidade ou mau-caratismo achar que os iranianos são os representantes dos oprimidos na região. Essa tentativa de fazer da ditadura teocrática iraniana um governo bondoso, vítima da violência de sauditas e americanos, toca as raias do ridículo.

Só existem três razões para alguém bem formado ir a público defender essa ideia ridícula: 1) por vínculos afetivos com o Irã; 2) por obsessões ideológicas, como a descrita antes aqui, daqueles que insistem em dizer que os EUA são agressivos e que omitem a violência do regime iraniano, uma democracia fake; 3) por grana.

O ódio ideológico aos EUA é óbvio. Só podemos supor, a menos que existam vínculos familiares com algum dos países em conflitos ou vínculos financeiros, que seja a cegueira ideológica que move esse ridículo.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção nesse clube dos alienados (os ideológicos amantes do regime do Irã) é a ambivalência das intelectuais nesse campo. Escondidas atrás de um relativismo de butique, elas se esquivam do fato que as mulheres no Irã, muitas vezes, são tratadas como brinquedos domésticos em seu país.

A crítica dura à condição da mulher do Ocidente, crítica que faz grande parte da mídia, do cinema, do teatro e da literatura, um pé no saco de tão repetitiva e entediante pela sua obsessão em demonizar tudo que não for violentamente feminista, contrasta com a suavidade com que a condição da mulher (muito pior na maioria dos países do Oriente Médio, menos em Israel) é tratada pelo exército de simpatizantes do Irã.

Esse mesmo exército de simpatizantes trata os homens ocidentais, a priori, como opressores evidentes das mulheres. Bem ridícula essa contradição.

Como se os aiatolás fossem uns anjinhos a favor do empoderamento feminino. O garrote ideológico desgraça o debate público há anos. Os regimes que esses bobos babam para defender fariam deles mingau de farinha se quisessem.

Com relação a Israel (que tampouco é santinho), outro odiado pela trupe ideológica mentirosa, grupo que domina a ONU, a coisa é bem clara.

A revolução fanática que administra o Irã desde 1979 tem como uma das suas pautas pétreas a destruição do Estado de Israel. Essa mesma trupe gosta de afirmar que o risco de destruição de Israel passou.

Risadas? Se Israel hoje tem uma condição de segurança um pouco melhor, é porque os países ao redor perderam todas as guerras que visavam destruir israelenses.

Além disso, o país é uma economia que cresce vertiginosamente, inclusive em áreas de tecnologia da informação e de inteligência, além de ser, obviamente, uma potência nuclear que arrasaria o Irã em seis dias. O resto é pura bravata.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

domingo, janeiro 26, 2020

Sinais preocupantes - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 26/01

São muitos os sinais de desatino na República, não apenas no Planalto


Causou preocupação o ex-secretário da Cultura ter mimetizado um discurso de Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. Parece que muitos desconhecem a história e a lenta construção do desatino.

Resta o consolo de que, mesmo em tempos atrozes, a arte sobrevive de forma inesperada.

Tadeusz Borowski foi prisioneiro em Auschwitz. A ordem era executá-lo em Dachau, campo igualmente malfadado. Entretanto, o avanço soviético, de um lado, e a chegada dos americanos, de outro, salvaram sua vida e sua literatura.

Em 1946, Borowski publicou uma coletânea de contos em que descreve sem complacência o comportamento dos prisioneiros em um campo de concentração.

Primo Levi era italiano e estudava química nos anos 1930. As leis raciais proibiam sua gente de frequentar escolas públicas. Conseguiu se formar, mas o diploma registrou sua "raça judia". Acabou prisioneiro em Auschwitz.

Levi sobreviveu e contou sua história com perturbadora serenidade, apesar de saber que por pouco não fora exterminado. "A Trégua" descreve sua longa odisseia depois de ser liberado em meio a uma Europa devastada pela guerra.

Bruno Schulz nasceu na Polônia, dominava a prosa como poucos e desenhava admiravelmente. Foi assassinado, durante a ocupação nazista, ao sair de casa para buscar comida.

Ismail Kadare sofreu as agruras do totalitarismo na Albânia. Sua novela "O Palácio dos Sonhos" conta a história de um jovem que trabalha na repartição encarregada de vigiar os sonhos dos súditos do Império Otomano. Os delírios de quem dorme revelariam as intenções de Deus e as ameaças ao Sultão.

Cabia aos servidores do palácio identificar inimigos e torturar possíveis conspiradores. A brutalidade era considerada aceitável, afinal tratava-se de punir o malfeito, mesmo que fosse obra de sonhos.

Por aqui, os intelectuais se dividem entre os assustados com as estocadas autoritárias dos fanfarrões e os que acreditam que a nossa democracia segue normal.

Comparar o atual governo aos regimes totalitários é disparate. Mas isso não significa que tudo anda bem.

São muitos os sinais de desatino na República, não apenas no Planalto.

Investigações sobre os indícios de crime dos condestáveis são seguidamente interrompidas. O Ministério Público denuncia um jornalista que obteve de hackers gravações que indicam possíveis malfeitos de servidores do Estado.

Executivos são indiciados ou presos com base em evidências dignas de Simão Bacamarte. Juízes do Supremo afastam leis democraticamente aprovadas, decidem sobre salários de professores universitários e interferem em contratos que respeitam a Constituição.

Gotas em demasia transbordam qualquer copo.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Elegia para um monstro insepulto - BOLÍVAR LAMOUNIER

O Estado de S.Paulo - 26/01

Fazemos de tudo para evitar o conceito de patrimonialismo, mas é disso que se trata



Ideologias morrem, mas nem todas são sepultadas. E as insepultas são as mais perigosas.

No Brasil, faz tempo que o “nacional-desenvolvimentismo” está morto, mas, até agora, são poucos os que se preocupam em proporcionar-lhe o merecido sepultamento. A maioria, parece, prefere esperar uma improvável ressurreição.

“Nacional-desenvolvimentismo”, como sabemos, é o modo mais sonoro que encontramos para designar um modelo de crescimento baseado em ampla intervenção estatal. Uma aversão a tudo o que saiba a liberalismo ou economia de mercado e, correlativamente, uma quase santificação do Estado. Uma crença virtualmente indestrutível em que os burocratas planaltinos farão o que precisar ser feito com uma diligência a que empresários privados não podem aspirar.

O pilar mais importante da crença nacional-estatizante é a rapidez do crescimento econômico. Uma engrenagem de poder concentrada, unitária, gerida por tecnocratas altruístas e esclarecidos nos livraria (livrará) do subdesenvolvimento num ritmo muito superior ao de qualquer modelo privado de organização econômica.

Justiça seja feita, essa suposição era razoável enquanto estávamos falando da chamada “fase fácil da industrialização”. Nos primórdios, o crescimento é movido muito mais pela incorporação de mão de obra (problema que a migração do campo para as cidades resolveu facilmente), num nível técnico extremamente baixo, do que por investimentos de maior porte, pelo avanço tecnológico e pelo aumento da produtividade, o que pressupõe uma acentuada elevação do nível médio de educação na sociedade.

Findo o referido ciclo inicial, todo país tem de se precaver para não ficar com os pés metidos no que se tem chamado de “armadilha do baixo crescimento”. Nessa altura, o que se constata é que o buraco é mais embaixo, e nós, brasileiros, teríamos constatado isso mesmo se a dra. Dilma Rousseff não tivesse baixado as suas asas sobre nós. As previsões de crescimento divulgados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) durante a recente conferência de Davos trouxeram-nos uma fresta de esperança, mas nem de longe um real alívio. O crescimento do PIB brasileiro projetado para 2020 é de 2,2%, bem melhor que o 1.0% de 2019, e melhor até que o 1,6% previsto para a totalidade da América Latina. Mas inferior aos 3,3% projetados para a economia mundial considerada em conjunto e apenas metade dos 4,4% esperados para os países ditos “emergentes”.

Outro problema a considerar é que o nacional-estatismo pressupõe, como é óbvio, que o governo arrecadará muito mais do que gasta. Sem um superávit substancial não tem como investir e muito menos como transferir ao florão de grupos de interesse que habitam seu intestino os nacos orçamentários sobre os quais julgam ter “direitos adquiridos”. A luta que estamos travando é para repor a máquina de governo num nível em que ela possa pelo menos fechar o orçamento anual. Justiça seja feita à atual equipe econômica, que não tem medido esforços para nos tirar da beira de precipício na qual estamos dependurados há vários anos.

E lamento dizer que ainda não cheguei à questão que considero mais complicada. “D’abord la politique”, dizia o marechal De Gaulle. Primeiro, a política. De fato, no Brasil, quando falamos em ajustar as contas públicas, em modernizar o Estado, em submeter a administração pública a um rigoroso sistema de mérito, etc., etc., estamos, na verdade, recorrendo a eufemismos para evitar a expressão que realmente machuca. Fazemos de tudo para evitar o arcaico conceito de patrimonialismo, mas, gostemos ou não, é disso que se trata. Em 1958, quando o mestre Raymundo Faoro martelou esse termo em seu clássico Os Donos do Poder, ainda podíamos imaginar o monstro como o ápice relativamente pequeno da estrutura nacional do poder. Para abreviar a explicação do conceito de patrimonialismo, dizíamos que era um sistema montado para benefício dos “amigos do rei”. Para uma pequena oligarquia, em suma. Em comparação com nossa frágil sociedade, ele parecia um Leviatã manso, que cedo ou tarde domaríamos, à medida que a base da democracia se alargasse, que uma elite com real espírito público se constituísse e as grandes máquinas indutoras do crescimento – como o BNDES – se mantivessem estritamente fiéis à sua missão.

O quadro que hoje nos é dado contemplar é bem diferente. O Leviatã se agigantou, isso é óbvio. E ao mesmo tempo se democratizou. Democratizou-se não em benefício dos partidos políticos e dos legislativos, que ele devorou sem a menor cerimônia, mas de uma infinidade de grupos corporativos que de bobos não têm nada; cada um entrincheirou na legislação, nos três níveis da Federação, todos os “direitos adquiridos” que queriam garantir. Democratizou-se – e aqui peço perdão ao leitor por certa ponta de perversidade – em benefício de grandes empreiteiras, grandes frigoríficos e grandes sabe Deus o que mais, que aí estão, mancomunados com grande parte do Congresso e com a cúpula do Judiciário a fim de dar férreo combate ao combate à corrupção.

Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Moro 2022 já se manifesta no MPF e no Supremo - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 24/01

Real ameaça à democracia é o bonapartismo da aliança entre setores do Ministério Público e do Judiciário


Que ameaça à democracia representa um clown deprimido que, num surto de mania, resolve envergar as vestes de Goebbels da periferia? Ou um paspalho que confunde Kafka com kafta, infernizando a vida de milhares de estudantes com sua incompetência acima de qualquer suspeita? Ou um outro, terraplanista fanático, que acredita que o rock conduz ao “abortismo” e ao satanismo?

Essas e outras personagens, que inventaram para si mesmas, na última hora, o papel de extremistas de direita em busca de alguma relevância em suas respectivas existências miseráveis, degradam a vida pública, sim. Mas a sociedade sabe se defender de seus delírios, como, felizmente, temos visto. O espectro que ronda a democracia é outro.

A que propósito atende Wellington Divino Marques de Oliveira, procurador da República, que, ao denunciar o jornalista Glenn Greenwald, afronta, com um único ato, a Constituição, o devido processo legal e uma decisão do Supremo, num exemplo escancarado de abuso de autoridade?

Que metafísica influente leva o ministro Luiz Fux a assinar talvez a liminar mais patética da história do Supremo, cassando decisão de um outro colega, suspendendo sem prazo a eficácia do juiz das garantias, previsto em texto amplamente aprovado pelo Congresso?

É falso como nota de R$ 3, e isso ficará claro —vamos ver quando—, que a lei agride o artigo 96 da Constituição. É falaciosa a tese de que se está criando despesa sem a devida receita. Quem traz tal mácula na biografia é Fux, quando, com uma canetada, estendeu, em 2014, o auxílio-moradia a todos os juízes e membros do Ministério Público.

Permaneceu quatro anos sentado sobre a decisão, ao custo de quase R$ 1 bilhão por ano. Já tinha em sua biografia a declaração de inconstitucionalidade da lei que regulava o pagamento de precatórios de estados e municípios. Impôs a esses entes, em 2013, um espeto de quase R$ 100 bilhões, que deveriam ser pagos até 2018. Mandou às favas a economicidade da medida. Pesquisem. Fux criou tal confusão que foi obrigado a conceder liminar suspendendo a própria decisão.

O procurador Divino é o mesmo que apresentou uma denúncia, rejeitada pela Justiça, contra Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, inconformado com uma crítica que este fizera a Sergio Moro, pré-candidato indisfarçado à Presidência da República, que se dedica a um trabalho árduo e cotidiano de sabotar o pouco que pode haver de virtuoso no governo Bolsonaro no que respeita à institucionalidade.

“In Fux we trust” (“confiamos em Fux”) é a frase já tornada imortal com que Moro respondeu a uma mensagem de Deltan Dallagnol, que assegurava ao então juiz, em abril de 2016, o pleno alinhamento do ministro com a Lava Jato. A intimidade era tal, revelou The Intercept Brasil, em parceria com meu blog, que Fux fustigou Teori Zavascki porque o então relator do petrolão ousara dar um pito em Moro.

Divino e Fux fazem parte de um movimento. O que ameaça a democracia brasileira é o bonapartismo da aliança entre setores do Ministério Público e do Judiciário. O ainda ministro da Justiça personaliza o que pretende ser um ente de razão, a que se subordinaria toda vida pública no país.

Parte das milícias de extrema direita nas redes sociais já tem seu novo líder: Bolsonaro foi substituído por Moro como demiurgo — ou ogro — de suas fantasias totalitárias. O ponto de ancoragem de sua militância é o ódio às garantias do Estado democrático e de Direito.

Ocorre que o agora ministro da Justiça também fala a outro público. Amplos setores da sociedade brasileira, com destaque para a imprensa, foram convencidos de que o combate à corrupção deveria ser encarado como um valor absoluto. E uma das características do absoluto é a ausência de regras, de parâmetros, de limites.

Não! Não temam os tolos e os patetas. O que nos ameaça são as aspirações daquele que, apostando na ruína de seu chefe, está à espera de que o manto imperial lhe caia sobre os ombros. Se e quando acontecer, parafraseando alguém, então a estátua da Justiça que fica à frente do STF terá ido ao chão.

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

segunda-feira, janeiro 20, 2020

Marx tinha razão - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 20/01

O idiota de mercado acha que sociedade de mercado é entidade meramente econômica


Portaria inteligente ou remota. Claro que o termo “inteligente” aparece sempre que alguém quer vender algo que faz os inteligentinhos de mercado ficarem excitados.

Tenho conversado com pessoas cujos condomínios contrataram portarias inteligentes e as opiniões são controversas. Mas a moda está pegando e a demissão em massa dos profissionais na área cresce.

Uma portaria inteligente é uma portaria sem porteiros ou nenhum funcionário similar. Você fala com um cara, sei lá, no Acre, que monitora 150 portarias pelo país. O argumento básico é a redução de custos, claro.

Podemos olhar para esse fenômeno de um modo mais amplo, ou mais imediato, ligado ao cotidiano. A portaria inteligente torna o prédio impermeável, inclusive a você e a seus convidados ou encomendas. Coisa de gente chata.

A ordem espontânea e expandida (expressão usada pelo economista liberal Friedrich Hayek para se referir ao mercado) é uma entidade moral, social, política e econômica. Na China, por exemplo, você vê um número enorme de pessoas, claramente sem grande formação, realizando pequenos trabalhos.

Esse fato garante a atividade e a dignidade de pessoas dentro dessa ordem espontânea e expandida. Economia sem a dimensão social é uma economia tão cega quanto um mercado em que o Estado controla preços: gera desemprego, instabilidade, e, por tabela, pobreza, concentrando a riqueza na mão de quem destrói o próprio tecido social do mercado. Coisa de idiotas de mercado.

Infelizmente, no Brasil, existe em grande número esse personagem que é o idiota de mercado ou o liberal inteligentinho, que acha que sociedade de mercado é uma entidade meramente econômica.

Não. O mercado é moral e social. Adam Smith, filósofo do século 18, antes de ser um economista, foi um filósofo moral. Como você identifica um idiota de mercado?

Esse personagem confunde a dimensão social e moral do mercado com a ingerência de um Estado gigantesco na vida das pessoas. A dimensão social e moral do mercado é a responsabilidade moral dos agentes econômicos nas suas pequenas decisões diárias, nas suas esferas de poder.

Mas, para além dessas consequências mais amplas, há que se pensar nas consequências mais imediatas, a curto e médio prazo, no mínimo.

A humanidade envelhece a passos largos. Idosos que conseguem manter suas casas, onde viveram e constituíram memória, dependem de pessoas que os ajudem a lidar com o cotidiano, nos prédios em que vivem. Portarias inteligentes destroem essa dimensão do vínculo externo da casa com o condomínio. Apenas millennials, enquanto ainda têm 15 anos de idade, não percebem isso.

Todo mundo sabe que porteiros e similares são os primeiros a darem socorro e tomarem decisões em momentos de emergência. Muitos idosos dependem deles no seu dia a dia, inclusive para ajudar na lida com pequenas compras.

Os inteligentinhos de mercado, provavelmente, dirão que esses idosos devem ser lançados em casas de repouso, locais em que a história presente na memória material deles inexiste.

O problema é que o número de idosos só cresce, e destruir essa rede de vínculos próximos, no cotidiano, só aumenta a inviabilidade da vida desses idosos nos prédios em que sempre viveram. É uma forma clara de desumanização.

Se por um lado, a sociedade contemporânea deve pensar no meio ambiente e nos jovens, ela deve se ocupar com o modo como lidará com o crescimento da longevidade.

Outro traço das portarias inteligentes é o aumento gigantesco de burocracia, inclusive mediado pelo uso de ferramentas mais próximas à sensibilidade dos millennials.

Receber, por exemplo, uma nova faxineira, transforma-se num processo semelhante a tirar vistos para viajar. Cada passo banal da relação do prédio com o mundo externo se transforma num grande processo kafkiano. Você se sente um K, personagem famoso do Kafka, se quiser receber uma encomenda e não tiver ninguém em casa pra recebê-la.

Portarias inteligentes comprovam a tese marxista segundo a qual o capital, um dia, mandaria os humanos a merda e se tornaria autônomo no seu processo entrópico.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Aposentados do INSS começam a ganhar revisão da vida inteira na Justiça

Aposentados do INSS começam a ganhar revisão da vida inteira na Justiça

Ações voltam a andar após decisão do STJ; aposentada vai receber R$ 3.214,75 a mais no benefício

FOLHA DE SP - 13/01/20

SÃO PAULO
A recente decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) autorizando o recálculo da aposentadoria ou pensão com todas as contribuições pagas antes da concessão já está sendo aplicada nos tribunais dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Nessa revisão, o aposentado inclui no cálculo do benefício as contribuições antigas, pagas em outras moedas. 
No interior de São Paulo, uma aposentada, representada pelo escritório Aith, Badari e Luchin Advogados, vai aumentar a sua renda de R$ 1.039 para R$ 4.253,75 com a chamada revisão da vida toda. Uma diferença de R$ 3.214,75.
O TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) entendeu que a segurada preencheu os requisitos necessários para a revisão de sua aposentadoria por idade, com a inclusão de contribuições feitas antes de julho de 1994. 
A trabalhadora se aposentou aos 60 anos de idade, em outubro de 2014, e conseguiu, por meio da ação judicial, incluir as contribuições feitas desde 1976. 
Além da diferença mensal, a aposentada vai receber R$ 203 mil de atrasados.
Outro caso, no Rio de Janeiro, também teve decisão favorável a um aposentado em primeira instância. A aposentadoria passou de R$ 954 (salário mínimo de 2018) para R$ 4.798,93, com atrasados calculados em R$ 42.119,20. Ele se aposentou por idade, com 15 anos de contribuição.
Há ainda outros dois casos de primeira instância do Rio de Janeiro, que voltaram a andar após o julgamento do Tribunal Superior.
Segundo o advogado João Badari, responsável pelas ações, a chamada revisão da vida toda costuma dar atrasados e diferenças mensais menores no benefício. "Atrasados muito altos, de R$ 200 mil, por exemplo, são raros para esse tipo de revisão", diz.
Para o especialista, é mais comum o trabalhador começar a carreira ganhando pouco e depois aumentar a renda, e não o contrário. Além disso, a revisão só pode ser pedida em até dez anos do pagamento da primeira aposentadoria. 
Interessados em ingressar na Justiça com esse tipo de processo devem dar atenção a alguns detalhes da ação, pois ela só vale a pena para beneficiários que realizaram contribuições previdenciárias sobre salários relativamente altos antes de julho de 1994. 
Será esse o período de recolhimentos que irá entrar no cálculo da nova média salarial para definir o novo valor da aposentadoria. 
Como o cálculo inclui a conversão em reais e a atualização monetária dos valores contribuídos, a recomendação é procurar um especialista previdenciário ou consultor atuarial. O serviço costuma ter custo e o pagamento não depende do resultado da ação judicial.
Procurado, o TRF-3 afirmou que "a partir do julgamento realizado pelo STJ, os magistrados das instâncias inferiores devem aplicar o entendimento imediatamente nos julgamentos sobre a matéria". 

Contribuições da vida inteira | Correção do benefício

  • Os segurados que tinham altas contribuições antes da implantação do Plano Real, em julho de 1994, podem se dar bem com a revisão da vida inteira. A correção foi aprovada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça)
Para quem vale a pena
  • Em geral, a revisão da vida inteira ou da vida toda vale a pena para quem tinha carteira assinada e contribuía com valores altos à Previdência em outras moedas
Como funciona
  • Aposentados que contribuíram sobre salários altos antes de 1994 estão indo à Justiça para pedir a revisão do seu PBC (Período Básico de Cálculo)
  • Na ação judicial, os salários recebidos antes da criação do real entram no cálculo da aposentadoria
  • Essa regra foi criada pela lei 9.876/99, após a reforma previdenciária realizada no governo Fernando Henrique Cardoso
Prazo para fazer o pedido
  • O prazo para pedir a revisão da vida toda é de até dez anos
  • Para o segurado que se aposentou no início de 2010, o prazo está chegando ao final
Só na Justiça
  • A revisão da vida toda é reconhecida pela Justiça, mas não no INSS
  • O pedido dessa revisão, se feito direto para o INSS, será negado
  • Mas vale a pena fazer a solicitação primeiro para o órgão previdenciário
  • Isso demonstrará à Justiça que o segurado tentou a solução administrativa
  • Essa tentativa de revisão no posto elimina o risco de a ação ser rejeitada pelo juiz
  • Um advogado especialista em Previdência conhece o procedimento para iniciar a ação
Faça as contas
  • Antes de ir ao Judiciário para pedir a correção, é importante buscar um especialista e fazer as contas
  • Isso porque a revisão não é válida para todo mundo
  • Quem ganhava salários menores antes de 1994 ou recebia salário mínimo não será beneficiado
Recurso
  • A decisão do STJ ainda pode ser contestada pelo INSS no Supremo Tribunal Federal
  • A AGU (Advocacia-Geral da União), que representa o governo na Justiça, já informou que vai analisar se irá recorrer ao STF
  • Neste caso, a revisão poderá ficar parada, à espera de decisão final
  • No entanto, para especialistas, quem tem direito deve fazer o pedido o quanto antes
Atrasados
  • Os trabalhadores que conseguem revisão da renda têm direito aos atrasados
  • Os valores são de até cinco anos antes do pedido
Fontes: Gisele Kravchychyn, da Kravchychyn Advocacia e Consultoria, STJ (Superior Tribunal de Justiça), IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), AGU (Advocacia-Geral da União), emenda constitucional 103/2019 e reportagem

sábado, janeiro 11, 2020

Suleimani retrata a derrota da razão - JOÃO PEREIRA COUTINHO

Suleimani retrata a derrota da razão - JOÃO PEREIRA COUTINHO

Por incrível que pareça, é possível criticar Trump sem canonizar terroristas

FOLHA DE SP - 11/01/2020


Deprimente. Patético e deprimente. Em finais de outubro de 2019, os Estados Unidos eliminaram Abu Bakr al-Baghdadi. Se o leitor consultar a Wikipédia, verá que al-Baghdadi era o líder do Daesh, a organização terrorista que encantou o mundo com suas decapitações e barbaridades.

Infelizmente, uma parte da mídia relegou esse pormenor para segundo plano. Eu sei porque vi: estava na terra do Tio Sam e jornais como o “Washington Post” apresentavam al-Baghdadi como um “austero académico religioso”. Como Joseph Ratzinger, talvez? Como um Dalai Lama iraquiano?

Eis o processo mental que ocorreu na cabeça dessa gente: al-Baghdadi foi executado por Trump; Trump é mau; donde, al-Baghdadi só podia ser bom. O ódio anti-Trump é como certos vírus: instala-se na cabeça do hospedeiro e reduz a massa encefálica a farofa.

Passaram dois meses. Aconteceu o mesmo com Qassim Suleimani, o ex-comandante da Força Quds que espalhava o terror pelo Oriente Médio na tentativa de exportar a teocracia iraniana.

Nos comentários à sua morte, Suleimani passou a ser um grande general, um herói, até um mártir. Alguns, tomados por excitação adolescente, falaram de Suleimani como “o Rommel da Pérsia”.

Isso é elogio? Aplaudir Suleimani por ser como um general nazista? É sério?

Atenção: não está aqui em causa o acerto ou a desacerto de Donald Trump em matar Suleimani. Embora, aqui entre nós, ainda esteja por provar que a decisão de Trump dificultou qualquer negociação com Teerã.

Suspeito que, pelo contrário, só com a remoção da influência maligna do “Rommel da Pérsia” será possível dialogar com os aiatolas.

A própria retaliação do Irã contra duas bases militares que abrigam soldados americanos, milimetricamente calculada para não causar qualquer baixa entre as tropas, parece mais uma peça de teatro para consumo interno do que propriamente uma vingança digna desse nome.

Mas isso são outros assuntos. Porque o assunto principal está no padrão: Suleimani foi executado por Trump; Trump é mau; donde, Suleimani só podia ser bom.

Esse tipo de “raciocínio” (digamos assim) parece uma repetição do flerte intelectual que a revolução iraniana de 1978-1979 provocou em certos intelectuais do Ocidente.

O caso de Michel Foucault, muito bem documentado em livro que recomendo (“Foucault e a Revolução Iraniana”, de Janet Afary e Kevin Anderson, editado pela É Realizações), é o exemplo máximo da estupidez e da mendacidade que ataca alguns espíritos.

Em 1978, Foucault viajou para o Irã (duas vezes) para reportar os avanços da revolução. Sim, o regime autoritário de Reza Pahlavi, que governava o país há quase 40 anos, não era recomendável.

Mas Foucault foi mais longe e viu na luta dos islâmicos a promessa de uma nova era – uma nova “espiritualidade política”, enfim, capaz de salvar o Ocidente da sua decadência intelectual e do seu anti-heroísmo burguês.

Dizer que Foucault se enganou seria um gigantesco eufemismo. Digamos apenas que, na república teocrática que Foucault aplaudia, ele seria o primeiro a ser executado por suas preferências sexuais.

Em matéria de liberdades cívicas e pessoais, o Ocidente decadente e anti-heroico, pelos vistos, ainda era um destino preferível –uma evidência que até Simone de Beauvoir, em nome das mulheres iranianas que seriam rapidamente enclausuradas por Khomeini, conseguiu perceber sem esforço.

Passaram quarenta anos. Parece que regredimos outros quarenta. Para uma parte da inteligência ocidental, criticar Trump e, ao mesmo tempo, reconhecer Qassim Suleimani como um criminoso de guerra é um exercício arriscado que pode provocar uma explosão neuronal.

Um erro, gente. Por incrível que pareça, é possível criticar Trump sem canonizar terroristas. A cabeça aguenta.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.