terça-feira, julho 16, 2019

O Rei Leão é fascista? - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/07

Há quem veja no filhote Simba um tirano que odeia as minorias


Anos atrás, se me perguntassem qual era o livro que eu mais vezes tinha lido na vida, não saberia responder. Há autores —Evelyn Waugh, Jane Austen, Machado, Eça, os russos de praxe etc.— que releio com frequência.

Hoje, não haveria qualquer dúvida: “O Rei Leão”. Fazendo contas de cabeça, já visitei a savana umas cem vezes por escrito. E outras cem só com o filme.

A culpa é do meu filho, que, aos quatro anos, desenvolveu uma paixão por Simba e Mufasa —e um repúdio intenso por Scar, o vilão da história. Haverá algo de errado nisso?

Já respondo. Mas, antes de responder, convém relembrar de que falamos.

Estamos na selva. Mufasa, o rei leão, teve um filho, Simba, que será seu herdeiro. Quem desespera com isso é Scar, seu tio. Para usurpar o trono, Scar e uma quadrilha de hienas vão matar Musafa e tentar o
mesmo com Simba.

Não conseguem. Simba, que consegue fugir e crescer no exílio, acabará por regressar à terra dos leões para vingar o pai, matar Scar e recuperar o trono.

Que existe alguma violência na história, ninguém duvida: o tipo de violência que é possível observar nos documentários da BBC sobre a vida selvagem, onde as preocupações igualitárias não têm vez. Mas será que “O Rei Leão” é uma história fascista?

A pergunta tem sido formulada por aí no momento em que há uma nova versão nas salas. Dan Hassler-Forest, colunista do Washington Post e professor universitário de estudos culturais, é uma das vozes mais enfáticas: se existe moral no “Rei Leão” é que os fracos devem curvar-se perante os fortes.

Os fortes são Mufasa e o filho —uma metáfora de Donald Trump eIvanka, talvez; ou Jair Bolsonaro e o “embaixador” Eduardo, melhor dizendo.

Os fracos são Scar e as hienas. Scar, com seus maneirismos delicados, será uma caricatura gay. As hienas, convenientemente escuras, representam os negros e os latinos.

E quando Scar pretende tomar o trono para emancipar as minorias, o fascista de serviço não deixa, repondo a ordem e a autoridade.

O texto de Dan Hassler-Forest, para além de ser uma interessante confissão de loucura, é também representativo da hiperpolitização que se abateu sobre tudo que se mexe. Nem as histórias infantis escapam.

“A Bela Adormecida” é uma apologia da violação, com o beijo final (e não consentido) do príncipe enquanto a beldade dorme. “A Pequena Sereia” é uma exortação da misoginia e do sexismo, com a sereia a sacrificar a vida (marinha) por um homem (terreno).

E “Chapeuzinho Vermelho” é um convite à pedofilia, com o lobo a querer comer a menina.

Por outras palavras: nada é o que parece. Como nas perseguições das bruxas de Salem, em que uma cicatriz não era apenas uma cicatriz mas a marca indelével de Belzebu, as novas mentes puritanas, que só por piada se consideram “progressistas”, também vivem no terror permanente de que o diabo caminha entre nós.

Se as mentes puritanas fossem menos histéricas e mais humildes, talvez pudessem aprender alguma coisa com as crianças. Por exemplo, por que motivo essas histórias as encantam.

Fiz o teste com o meu Mussolini de quatro anos e mais três amiguinhos da mesma idade. As respostas são uniformes. Gostam do rei Mufasa porque ele é amigo e protetor do filho. Não gostam de Scar porque ele é um assassino. O mesmo vale para as hienas, que consideram falsas e mentirosas.

E, sobre a moral da história, não é o triunfo da força sobre a fraqueza que lhes interessa. Por mais reacionário que pareça, é o triunfo do bem sobre o mal —a dicotomia mais básica, e mais universal, da nossa civilização. Independentemente de cores, classes, sexos ou “identidades”.

Um ponto, porém, não deixa de me perturbar: o meu rapaz perde algum interesse em “O Rei Leão” quando Simba abandona o seu exílio —período em que vive sem regras e sem preocupações— para vingar o pai e reclamar o trono.

Pressinto que, para ele, trocar a boa vida na selva pelas responsabilidades da profissão e do dever foi uma péssima escolha de carreira.

Aliás, não é apenas pressentimento meu. Nas rotinas do cotidiano, sempre que eu lhe dito algumas obrigações (comer a sopa, escovar os dentes, dormir cedo etc.), a resposta dele é quase instintiva:
“Hakuna Matata!”.

Se eu fosse um puritano, diria que o principal perigo de “O Rei Leão” não é fazer do meu filho um fascista, mas um preguiçoso.

O que, bem vistas as coisas, sempre é uma hipótese mais civilizada.


João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

O custo da impotência do eleitor brasileiro - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S. Paulo - 16/07

Dar por intocável o tamanho do Estado é dar por intocável o tamanho da miséria do Brasil


Os Estados destinaram R$ 94 bi a 2,3 milhões de servidores inativos, gastando em média R$ 40 mil por servidor. Já o investimento em toda a população de 210 milhões de plebeus foi quase quatro vezes menor em números absolutos, o que põe o gasto médio em R$ 125 por pessoa, 320 vezes menos do que o que se “investe” nos aposentados da privilegiatura.

Esse é o resumo desta crise e da própria História do Brasil.

Essa nossa condição anacrônica de servidão semifeudal só pode perdurar graças à “desorientação espacial”, digamos assim, em que anda perdida a imprensa nacional. O mundo ficou menor, mas nem tanto. A Rede Globo, por exemplo, ainda que enquistada em pleno Rio de Janeiro, tem a certeza de que vive numa sociedade sexualmente reprimida. De frente para a praia, nunca reparou naquilo que Pero Vaz de Caminha viu de cara e marcou toda a nossa História: um país onde todo mundo anda pelado, naquela latitude abaixo da qual “não existe pecado”. Por isso agasta tanto que ela faça cara de heroína da revolução ao pregar a libertinagem na terra de João Ramalho, Caramuru e seus haréns de filhas de caciques.

Não está sozinha. Boa parte do resto da imprensa frequentemente também se imagina em alguma França, ou sei lá. Encasquetou meramente por eco que mudar regras de Previdência é sempre “impopular”. Daí ter permanecido afirmando até tomar o desmentido na cara de que reduzir a diferença média de 35 vezes entre as aposentadorias que o favelão nacional recebe e as que paga à privilegiatura levaria os explorados às ruas para bradarem contra o fim da própria espoliação.

Nem é da velha esquerda que se trata. Esta, de PT a FHC, não foi derrotada nem pela direita, nem pela internet. Morreu de morte morrida. Perdeu o trem do 3.º Milênio e sumiu. Não tem proposta nenhuma pra nada. Por isso só fala de sexo. Mas dentro do universo do debate racional muita gente boa também tem boiado na interpretação do que está aí. O que explica essa desorientação é o vício muito brasileiro de excluir o povo de suas conjecturas. As “vitórias” e “derrotas” são sempre dos demiurgos. Tudo acontece ou deixa de acontecer exclusivamente graças a eles, e “é bom que seja assim” porque o povo brasileiro ignorante, coitado, não sabe o que é bom para ele próprio.

Ficou para trás do Congresso, que, vivendo de voto, logo entendeu que algo tinha mudado e deu 379 a 131. 64% da bancada do Nordeste (74% da do SE) votou a favor.

Com isto querem crer os mais otimistas que, por cima da Constituição e da lei, o Brasil já é governado pelo povo, que tem encontrado os meios de dobrar os governos, as oposições e as instituições alinhadas contra os seus interesses. Tem um remoto fundo de verdade nisso. Mas não é realista relevar o quanto a falta de dinheiro para pagar funcionários terá pesado para fazer finalmente subir a cancela com que há mais de 20 anos a privilegiatura mantinha a reforma da Previdência barrada na porta do aparato das decisões nacionais, assim como imaginar que passado o sufoco ela jamais voltará ao ataque para nos impor o que não conseguiu com os “destaques” tentados.

Todos os problemas do Brasil, sem exceções, são consequência direta ou indireta da absoluta independência do País Oficial em relação ao País Real, e toda vez que esquecermos isso estaremos perdendo tempo (e vidas, muitas vidas). Na sequência da aprovação dessa reforma de que foram cirurgicamente extirpados todos os componentes revolucionários como a desconstitucionalização dos privilégios e a instituição do regime de contribuição, houve quem escrevesse sobre “a lentidão das decisões econômicas” e lembrasse que “foi preciso um impeachment e uma crise asfixiante” para que fizéssemos a reforma com 20 anos de atraso, como se essa lentidão não passasse de preguiça ou respondesse a dúvidas reais.

Sobre a reforma tributária, há mais de meio século tida como “urgentíssima” por todos os especialistas, há uma inflação de propostas no Congresso e nenhum sinal de consenso. Mas não é só por vaidade dos economistas. A razão real do marasmo é a de sempre: há dois Brasis e o País Oficial, que decide por ambos, não paga os impostos que impõe ao País Real, logo, não tem pressa. A questão decisiva para quem, mundo afora, optou por um ou outro sistema tributário é que onde o sistema se apoia no imposto de valor agregado cobrado sobre o consumo o povo tem a última palavra sobre as decisões, logo, o critério decisivo é o da transparência e justiça do imposto cobrado; e onde o de transações financeiras chegou a ser implantado o povo não participa das decisões e, então, o critério passa a ser só o do volume e o da facilidade de arrecadação.

Martela-se, ainda, no “mente quem diz que é possível baixar a carga de tributos no Brasil”. Mas mente mais ainda quem não acrescenta a esse raciocínio o seu complemento obrigatório, qual seja, “enquanto não se reduzir a farra do Estado”. Dar por intocável o tamanho do Estado é dar por intocável o tamanho da miséria do Brasil. É condenar mais uma geração que luta a viver no brejo e na guerra para que mais uma geração que não ganhou os privilégios que tem trabalhando possa desfrutá-los ao sol e em paz. O Brasil jamais poderá competir pelos empregos do mundo com o Estado custando o tanto que impede que os nossos impostos sejam tão baixos quanto os do resto do planeta, ou mais para compensar o handicap educacional que pagamos.

Todos esses raciocínios desviantes e desviados só podem ser abertamente defendidos no Brasil porque o eleitor é absolutamente impotente passado o ato de depositar o voto na urna. Eleições distritais, recall, referendo, iniciativa e eleições de retenção de juízes são a única garantia jamais inventada de que o jogo será jogado sempre a favor do eleitor. Essas ferramentas são as manifestações de rua sistematizadas e instituídas como fator decisivo de sucesso de qualquer proposta de solução. É como a bomba atômica. Não precisa ser disparada. Basta o inimigo saber que você a tem para que passe a respeitá-lo.

Falsos dilemas - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 16/07


Muito mais – ou, pensando bem, muito menos – do que o debate entre direita e esquerda, o que temos no Brasil, desde 2014, é uma rinha de galo retórica entre esta direita e aquela esquerda. Entre Lula e Bolsonaro. Ou, para resumir e reduzir, entre o lulopetismo e o bolsonarismo. É a simplificação de uma dicotomia já simplória em si mesma, em que um lado se define por sua oposição ao outro.

Para a esquerda, Lula é a única coisa que resta; é luz na escuridão. Não há ideias, não há propostas, não há candidatos nem líderes melhores ou possíveis. Para a direita, tudo o que não é Bolsonaro só pode ser Lula; o que não admite fanatismo e adesão plena só pode ser covardia e moderação indesculpável. Em lugar da prudência de Aristóteles e da disposição conservadora de Oakeshott, sturm und drang.

As críticas ao presidente eleito são quase sempre respondidas com a pergunta: “Você queria o Fernando Haddad?” Suspiros. Mais suspiros. Pondero que fazer do PT a régua com a qual se mede a política, no fundo, é um jeito de manter o PT vivo como nunca. Não, eu não queria o Fernando Haddad, distinto público. Por isso não votei nele. Mas a eleição acabou, não acabou?

Acabou, o governo começou, não vou criticar a Marina Silva nem bater no Marcelo Freixo. Ao contrário de uns e outros, eu não me isento: dou a cara à tapa e fiscalizo quem hoje tem a bic. Faço o que sempre fiz quando os personagens eram outros. Vida fácil é perder tempo reclamando do Geraldo Alckmin que comenta saúde no Ronnie Von, ou do João Amoedo enquanto dá testemunho das verdades do Novo como se fossem as de Jeová. Ser poupado de críticas é o amargo prêmio de quem não foi eleito.

De repente, cobram de mim não apenas as críticas ao Lula e ao PT (estão nos arquivos; procurem), mas também aos terroristas do 11 de setembro, ao golpe do Getúlio Vargas, ao estilo literário de Pero Vaz de Caminha, às libertinagens do imperador Calígula, à ingratidão do Judas Iscariotes e aos modos nada democráticos de Tutancâmon, que não respeitava o estado de direito e as garantias da Constituição cidadã de mil trezentos e tantos antes de Cristo. Eu queria ter nascido há dez mil anos, mas não nasci. Critiquei quem pude.

Então a saída consiste em pesquisar e se lembrar de que o país tem história, o comentarista tem biografia, os políticos – Lula, Bolsonaro, Getúlio Vargas, Tutancâmon – têm carreira e já fizeram ou deixaram de fazer coisas, e confessaram ou omitiram seus pecados ao padre ou ao eleitor. Nem tudo começou agora, neste exato instante, só porque agora, neste exato instante, a audiência tomou conhecimento da existência do político criticado ou do comentarista que critica. Meu passado, sinto dizer, não me condena.

O advento da internet (que agradeço) criou uma espécie de “presente contínuo”. A volatilidade dos interesses é tão alta, o entra-e-sai nos sites, blogs, aplicativos, plataformas e redes sociais é tão desnorteante, a concentração é tão pequena, a audiência é tão rotativa, que o leitor tem a impressão de que o mundo começa agora, quando os olhos distraídos miram naquele texto em especial. No texto de hoje, no de ontem, no máximo no da semana passada."

Nova política: De pai para filho - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 16/07

Bolsonaro reafirmou sua predileção pelo nepotismo

Agitava as mãos e gritava: “É palhaçada! Hipocrisia!”

Era contra qualquer tipo de proibição ao empreguismo de parentes no governo, Legislativo e Judiciário. Já havia inscrito mãe, filho e mulher na folha salarial de seu gabinete de deputado federal pelo Rio:

“Eu não estou preocupado porque meu filho não é um imbecil e minha mulher não é uma jumenta...”

Seguiu com uma provocação ao plenário: “E as amantes? Vão ficar de fora da proposta? Todo mundo sabe que tá cheio de amante do Executivo aqui.”

Ninguém se intimidou. A proposta de emenda à Constituição (nº 334) para proibir o nepotismo foi admitida na Câmara naquela quarta-feira, um 13 de abril de 14 anos atrás. Não foi muito além, porque alguns insistiam na velha política de apropriação de uma fatia do Orçamento público para uso pessoal, privado ou familiar. Nesse grupo se destacavam Bolsonaro e Severino Cavalcanti, presidente da Câmara.

Com oito parentes pendurados na folha do Legislativo, Cavalcanti inspirava humoristas como Millôr Fernandes: “Mateus, primeiro, segundo e terceiro, os teus”. Nepote, por bastardia, do Barão de Pau Barbado, escravocrata sanguinário, Agamenon Mendes Pedreira, do GLOBO, lembrava: “O nepotismo começou cedo, quando Deus nomeou Seu filho para a Santíssima Trindade.”

Cavalcanti, como Bolsonaro, não estava nem aí: “Essa história de nepotismo é coisa para fracassados e derrotados que não souberam criar seus filhos.”

No vácuo do Legislativo, o Supremo estabeleceu regras básicas antinepotismo (Súmula 13), mas deixou brechas. Em seguida, Lula proibiu por decreto (nº 7.203).

Ontem, na Câmara, Bolsonaro reafirmou sua predileção pelo nepotismo: “Por vezes, temos que tomar decisões que não agradam a todos, como a possibilidade de indicar para a Embaixada dos Estados Unidos um filho meu... Se está sendo tão criticado, é sinal de que é a pessoa adequada...”

No plenário, o deputado Eduardo agradeceu. Lembrou que já devia ao pai o mandato: “Sou seu filho, indissociavelmente.”

Deve ser isso que chamam de “nova política”.


Dallagnol tem tudo para provar a lisura de seus atos, basta mostrar as planilhas - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 16/07

É aceitável que procurador use função pública para alavancar negócios privados?

As conversas se assemelham àquelas que saem no Jornal Nacional tendo como pano de fundo o encanamento estourado, a jorrar maços e maços de dinheiro de dentro de suas tubulações enferrujadas.

Discutem-se cifras e percentuais, várias vezes. O plano é encobrir o real objetivo —o ganho financeiro— escalando laranjas para gerir a empresa ou criando uma entidade simuladamente sem fins lucrativos.

Conforme revelam mensagens obtidas pelo Intercept Brasil e analisadas em conjunto com a Folha, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato, montou um plano privado de negócios a partir de seu trabalho na operação.

Os diálogos mostram procuradores arrebatados por um único desejo, auferir o maior lucro possível —o que incluiria parceria com outras empresas— por meio de uma atividade a ser escamoteada pelo manto da filantropia. De forma chocante, não há nada ali que lembre remotamente a versão pública de Dallagnol sobre o objetivo de sua prolífica carreira de palestrante —estimular a cidadania e o combate à corrupção.

"Tomara que seja algo como 1 bi porque vamos faturar!!", escreveu o chefe da Lava Jato na madrugada do dia 15 de fevereiro ao também procurador Roberson Pozzobon. Dallagnol diz não haver veracidade comprovada nem contexto nas mensagens. É hora então de ele revelar o devido contexto de seus atos.

Cerca de 40 palestras teriam lhe rendido mais de R$ 300 mil "limpos" em 2018. Basta levar as planilhas ao escrutínio público. Quem o contratou, quanto recebeu, quanto foi parar no seu próprio bolso? Pode provar, como sempre disse, que destinou grande parte a entidades filantrópicas ou de combate à corrupção?

Dallagnol é um funcionário público pago para desbaratar maracutaias. É lícito, ético, que use essa atividade como escada para negócios privados? Ao tramar nas sombras e cogitar subterfúgios e institutos de fachada para ocultar a real finalidade da empreitada, o coordenador da Lava Jato parece saber a resposta.


Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

Questão de intepretação - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 16/07


A divulgação de diálogos, escritos e falados, atribuídos aos procuradores da Lava Jato, entre si e com o então juiz Sérgio Moro, não revelou nenhuma ação que distorcesse a investigação, que forjasse provas inexistentes, que indicasse conluio contra qualquer investigado da Operação Lava Jato, muito menos o ex-presidente Lula, o objetivo evidente da operação de invasão de celulares.

Estamos até o momento no terreno da interpretação das leis. Assim como o site Intercept Brasil, que divulga o material, tem lado evidente, vendo ilegalidade em todas as conversas entre os personagens, há inúmeros juristas e advogados que entendem ao contrário.

A questão está posta em relação ao nosso processo penal, que tem o mesmo juiz que controla a investigação do Ministério Público e da polícia dando a sentença do julgamento. Nos processos criminais do Supremo Tribunal Federal (STF), para figuras que têm foro privilegiado, acontece o mesmo.

O relator do mensalão, ministro hoje aposentado Joaquim Barbosa, foi também quem relatou o julgamento dos réus. No caso das forças-tarefa, a situação é mais limítrofe ainda, pois o juiz controla as investigações, embora seja impedido de participar delas.

Autoriza medidas como quebra de sigilo e interceptações telefônicas, busca e apreensão, ou as proíbe. Colhe depoimentos e determina prisões provisórias. Para dar agilidade ao combate contra os crimes financeiros, a Vara especial de Curitiba existe desde 2003, criada por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Somente em 2014 a Força-Tarefa da Lava-Jato foi criada, por decisão da Procuradoria-Geral da República (PGR). Quem organizou a Força-Tarefa do Ministério Público foi o procurador Deltan Dallagnol, que já trabalhara com o juiz Moro no caso Banestado, no início dos anos 2000.

O procurador integrou a Força-Tarefa que fez, em 2003, a primeira denúncia contra o doleiro Alberto Youssef. Dallagnol e Moro, portanto, se conhecem há quase 20 anos. Nenhuma ação dos procuradores do Ministério Público nem da Polícia Federal pode ser feita sem uma autorização do juiz.

A busca da sinergia entre as diversas corporações que trabalham em conjunto – Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal – é o que dá sentido às forças-tarefa. As etapas das operações tinham que ser autorizadas por Moro, como questões logísticas e exigências legais, como formalização de atos.

Para isso, Juiz e os investigadores têm que conversar para saber se é a melhor hora para fazer tal ação, se é possível atender aos pedidos dos procuradores e da Polícia Federal, se está bem embasado o pedido de prisão, de quebra de sigilo.

O entendimento sobre essa sinergia, que dá maior eficiência ao combate ao crime, é que está em discussão com a divulgação desses diálogos que, em todo o caso, os supostos participantes não reconhecem como autênticos na sua integralidade.

O problema da maneira como o site Intercept decidiu divulgar o material que recebeu do invasor dos celulares é que a falta da integralidade impede que se tenha condição de verificar a autenticidade dos documentos.

Mais ainda, o Intercept escolhe que partes quer divulgar, fora de seu contexto integral e, principalmente, escolhe o que não divulgar. O trabalho de edição é uma função jornalística, mas a recusa do Intercept de dar acesso ao material, mesmo àqueles que participam da divulgação, não tem uma explicação razoável.

O material do Wikileaks, que divulgou documentos oficiais do governo dos Estados Unidos, foi distribuído a uma cadeia de jornais e revistas, cada uma fazendo sua própria edição, por critérios próprios.

A última leva, por exemplo, com conversas de procuradores entre si e com suas mulheres, sobre a formação de uma empresa para gerenciar palestras, se resume à revelação da intimidade das autoridades, sem nada que justifique a divulgação.

A empresa não foi aberta, e as palestras são autorizadas pelo Conselho Nacional de Justiça. Se eventualmente alguém vê sinais de ganância nesse desejo, trata-se de uma conclusão moral, não penal.

O erro dos procuradores foi outro, o de propor a criação de um fundo, que eles geririam, com a indenização bilionária que a Petrobras teve que pagar aos Estados Unidos. O fundo foi vetado. Agora, Dallagnol e os procuradores terão que dar explicações à Procuradora-Geral República, Raquel Dodge.


Por que imposto único de Marcos Cintra é uma péssima ideia - PEDRO MENEZES

GAZETA DO POVO - PR - 16/07

Marcos Cintra, secretário da Receita, defende imposto sobre movimentações financeiras que substituiria tributos federais.| Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Desde as eleições, o ministro Paulo Guedes promete uma reforma tributária. A proposta ainda não apareceu. Há indícios no ar. O ministro anunciou o responsável por elaborar o projeto, Marcos Cintra, secretário da Receita Federal. Um economista que empunha a mesma bandeira desde os anos 1980: o imposto único.

Originalmente, era uma ideia literal, que pretendia mesmo reunir todos os impostos brasileiros em apenas um, que incidiria sobre as movimentações financeiras. Como tamanha unificação seria inviável, Cintra relativizou sua proposta nos últimos anos. No início do governo, novas versões apareceram em entrevistas. Nos últimos dias, o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, e Flávio Rocha, dono da Riachuelo, também defenderam o imposto único.

As críticas, por falar nelas, não tem sido poucas. Mesmo entre economistas liberais, a proposta sofre forte resistência. Justa resistência, na minha visão. A Câmara, através de Rodrigo Maia, aproveitou a oportunidade para propor sua própria versão da reforma tributária.

Nesta confusão, a posição de Paulo Guedes não é clara. Apesar de integrar a equipe econômica, Marcos Cintra já era próximo de Bolsonaro há alguns anos, por razões políticas. O ministro já elogiou a proposta da Câmara, apesar de prometer alterações. Ele sabe que o imposto único não é bem recebido pela maior parte dos economistas do setor privado.

Já escrevi um texto sobre o assunto aqui na Gazeta. Nele, explico em linhas gerais a proposta de Appy e a guerra de narrativas por trás do debate da reforma. Mas pouco comento sobre economia. E há uma interessante questão que não vem sendo respondida: se o imposto único é mais simples e barato, segundo Cintra, por que é ruim? Boa pergunta.

O que Cintra propõe – e por que é ruim
De acordo com suas declarações até o momento, a reforma tributária proposta pelo secretário da Receita Federal consiste num imposto sobre movimentações financeiras que substituiria tributos federais. Esse imposto teria uma alíquota pequena (fala-se em 2,5%) e seria pago em qualquer transação realizada dentro do sistema bancário.

A princípio, é natural que muitos considerem uma boa ideia. Simplificar a legislação tributária é uma necessidade básica do país. Um sistema tão simples, com uma alíquota tão pequena, soa tentador. Mas a diferença da proposta de Cintra para as outras não está na simplificação. As propostas discutidas no Legislativo também unificam vários impostos em apenas um. O maior diferencial deste modelo seria a cobrança sobre as transações financeiras.

Como ponto de partida, é útil notar que Cintra pretende tributar atividades não-econômicas. Geralmente, pagamos impostos quando produzimos riqueza – seja como renda do trabalho, lucro de empresas ou herança. Mas nem todas as transações financeiras geram riqueza.

No sistema proposto por Cintra, você paga imposto se mandar dinheiro para um irmão que ficou desempregado. E paga também caso divida uma conta com um amigo e decida pagar depois, por depósito bancário. Faz sentido que essa transação não-produtiva seja tributada da mesma forma que a compra de aço para uma fábrica da Fiat?

Nenhum país adota um sistema tributário como esse. Alguns tentaram modelos mais limitados e, depois, desistiram. O motivo foi simples: distorções infernais no sistema de preços. Como ocorre com frequência, a Lei das Consequências Não-Intencionais é crucial para a economia.

O que Marcos Cintra não vê
A Lei das Consequências Não-Intencionais é uma das mais antigas da economia. Em resumo, diz o seguinte: o impacto de uma política pública costuma ser difícil de prever. Como escreveu o francês Frédéric Bastiat num famoso ensaio do século 19, um burocrata não pode se preocupar apenas com o que se vê. O que não se vê é igualmente importante.

Peço desculpas ao leitor pelo tom professoral e trago outro conceito: a neutralidade do sistema tributário. Um sistema neutro é aquele que não distorce as decisões do contribuinte no seu dia-a-dia. Nas faculdades de economia, é comum o exemplo de um antigo imposto inglês, que se baseava no tamanho das janelas dos imóveis para estimar seu valor e, assim, cobrar impostos. Como resultado, as casas construídas no Reino Unido passaram a ter janelas menores. O sistema tributário neutro evita esse tipo de dilema, que incentiva comportamentos nonsense só por causa dos impostos.

A proposta de Marcos Cintra faz exatamente isso. Numa primeira análise, esse sistema acabaria por desbancarizar a economia. Afinal, se as transações pagam imposto no sistema bancário, fará mais sentido lidar com dinheiro vivo. Essa preferência induzida por cédulas é como as janelas britânicas, é um comportamento que não faria sentido sob um outro sistema tributário e indica distorção dos preços de mercado.

Além disso, haverá uma desigualdade tremenda no quanto será pago por cada setor. A indústria precisa realizar muitas transações antes de entregar seu produto. Já um prestador de serviços, como um advogado, precisa de bem menos fornecedores. Esse tipo de desequilíbrio tende a desindustrializar ainda mais a economia brasileira.

De modo geral, é possível apontar diversas vezes o mesmo problema: esse novo sistema tributário, cujo pagamento é cumulativo na produção, distorce o sistema de preços e induz hábitos antieconômicos.

Por que o projeto da Câmara é melhor
O projeto apresentado por Baleia Rossi (MDB-SP), formulado por Bernard Appy e liderado nos últimos meses por Rodrigo Maia é muito melhor que o de Marcos Cintra. Ainda não se sabe se o projeto de Cintra será mesmo o do governo – o anúncio deve vir em breve –, por isso seria bom para o país se Paulo Guedes desistisse da má ideia.

Antes de me aprofundar nesse projeto específico, vale uma pergunta: como seria o sistema tributário ideal? Na minha visão, primeiro a sociedade tem que escolher democraticamente quais tipos de atividade econômica serão tributadas – produção de bens e serviços, renda, patrimônio, etc – e quanto sairá de cada fonte. Num segundo momento, um imposto é criado para cada tipo de atividade econômica que se pretende tributar, e este imposto deve ser tão simples quanto possível, com uma alíquota para todos.

A reforma tributária de Rossi, Appy e Maia simplifica uma das fontes de impostos do Brasil: a produção de bens e serviços. Hoje, cada setor paga impostos diferentes – a indústria tem o IPI, os serviços tem o ISS, dentre outros. Além disso, cada imposto atual tem uma infinidade de casos excepcionais, de modo que ninguém sabe quanto tem que pagar.

Com a reforma que avança na Câmara, cinco impostos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins) seriam unificados no novo IBS, sigla para Imposto sobre Bens e Serviços. Este novo imposto teria alíquota única para todos, sem regimes especiais. Além disso, trata-se de um imposto não-cumulativo, que incide apenas sobre o valor adicionado.

O IBS resolveria o problema da tributação de bens e serviços. Resolve a pior parte do sistema tributário brasileiro – e as outras, como o IR, estão longe de serem boas. Depois dessa reforma, ainda seriam necessárias outras, bem menores.

O problema do imposto único é que, ao tentar simplificar demais, ele quebra as caixinhas – isto é, tributa a mesada do pai para o filho da mesma forma que o lucro da Petrobras. Um sistema com poucos impostos simples traria pouca burocracia a mais e muitas distorções a menos.

Este pode ser o maior erro de Paulo Guedes até o momento
Nos próximos dias, o governo deve anunciar sua posição – se apresenta outra proposta igual à de Cintra, se modifica a má ideia do imposto único ou apoia o projeto da Câmara. Se seguir os planos do seu secretário, Guedes corre o risco de cometer o pior erro de sua gestão.

Bernard Appy, economista respeitado que formulou a proposta da Câmara, já tentou aprovar uma reforma tributária durante o governo Lula. Depois de notar que a resistência maior vinha dos governadores e prefeitos, adaptou o texto para resolver esse problema político. Posteriormente, sua proposta foi debatida na academia por longos anos, melhorada no teste do tempo. É improvável que outra reforma avance tão rápido quanto esta, que acumula anos de discussão.

O projeto, adotado por Rodrigo Maia, tem bases liberais, alinhadas às linhas gerais defendidas por Paulo Guedes. A decisão de Guedes deve vir ainda nesta semana, segundo informa a imprensa. Seria bom se o governo adotasse o velho princípio conservador da prudência, respeitando aquilo que sobreviveu a anos de debates e deu certo noutros lugares do mundo. A outra opção, claramente anti-conservadora, é tentar desenhar um sistema inédito neste planeta a partir do escritório em Brasília. Escolher o imposto único de Marcos Cintra seria o pior erro da boa gestão de Guedes até o momento."

Do nióbio a Washington - FERNANDO DOURADO FILHO

O Estado de S. Paulo - 16/07

Bolsonaro não é o pioneiro em iniciativas que beiram a idiotia para promover exportações


Quem assistiu à alocução no Facebook do presidente da República em que ele alardeou as virtudes do nióbio na confecção de adereços e badulaques teve motivos bastante fortes para procurar um esconderijo até que o estupor se diluísse em constrangimento. Diante da cena, imaginamos que mesmo os eleitores mais fiéis do capitão devem ter sentido a escandalosa dissonância cognitiva entre o ocupante e a função, e os menos engajados hão de ter suspirado de saudades dos ventos de Dilma, das mesóclises de Temer, das recorrentes referências de Lula ao ludopédio, das exortações raivosas de Collor a uma gente que chamava de sua e, por que não, do odor das cavalariças do general Figueiredo, que o preferia ao cheiro do povo.

Que ninguém pense, contudo, que Jair Bolsonaro é o pioneiro em iniciativas que beiram a idiotia ao tentar promover nossas exportações, demonstrando um comportamento tão amador quanto desastrado em seu sales speech. Se foi o primeiro presidente a atuar como mascate improvisado, miríades de políticos brasileiros já deram provas candentes de quão nosso país pode ser amador quando seus representantes se arvoram a missão de apresentar ao mundo um simulacro ralo de nossa competitividade. Inferência da armadilha que atribui a nossos indígenas um fascínio por pedrinhas brilhantes, não são poucos os aventureiros que deslustraram a liturgia das funções para tentarem emular o colonizador espertalhão, no caso, diante dos gringos incautos.

Nos idos dos 1980, o falecido deputado Ricardo Fiúza não se cansava de contar as incursões de seus empedernidos pares às areias do Oriente Médio. Certa feita, em relato amparado por testemunhas, o então parlamentar Theodorico Ferraço não se acanhou diante do austero e imponente então monarca saudita, o rei Fahd bin Abdul Aziz al-Saud, e valeu-se da audiência para tirar da pasta várias amostras de cubos de granito, produto de destaque na pauta exportadora de seu Espírito Santo natal. Com desenvoltura de fazer inveja aos camelôs que exibem raladores de legumes nas calçadas do mundo, não teve pruridos em desafiar o monarca a encarar a estultice de seu governo de privilegiar a compra de mármores italianos de Carrara, a preços elevados, em detrimento do “similar” capixaba. Inábil com os dedos, ponto fulcral na anatomia de um mascate de grei, derrubou as pedrinhas no colo de Sua Majestade. Para coroar a tarde, recitou uma lista de preços, para desespero do intérprete, a quem, naquele momento, ocorreu que teria sido bom negócio não ter nascido.

Nessa mesma excursão, mais uma das tantas missões inglórias promovidas pelo Congresso Nacional, o senador paraense Gabriel Hermes, tomado da melhor das intenções de desfraldar nas barbas dos muezins de minaretes a bandeira valetudinária do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, a que era ligado, saudou o rei Fahd verbosamente, ressaltando que o fazia em nome de toda a gente briosa do Senai. Sem saber ao certo o que vinha a ser aquela sigla, muito menos o que fazia pauta tão paroquial numa reunião de elevada representatividade, o pobre intérprete traduziu como pôde. Ora, pensou, o senador aludia ao Sinai, então área ocupada por Israel, subtraída ao Egito. O que seria aquilo, pensou o rei? Uma provocação em sua própria casa, cujas portas abrira com a fidalguia que só os filhos do deserto conhecem? Ultrajado, deixou o recinto acompanhado de solidário séquito, alegando mal-estar. E para trás lá ficou a comitiva verde-amarela, recolhendo cubos de granito e as migalhas de seu despreparo.

Foi por essa época, a crer no que dizia o deputado pernambucano, que outra comitiva foi ao Japão. Nem sempre a parvoíce se manifestava apenas à hora de mascatear as glórias terrenas de seus rincões de origem. Pois eis que à saída do Kendaren, a poderosa federação das indústrias do arquipélago, vários parlamentares e cônjuges desciam pelo elevador principal quando a esposa do então deputado Ernâni Sátiro, da Paraíba, manifestou que acabara de perder ali mesmo o precioso anel de brilhante que ganhara do marido. Solidário com a desdita da companheira, em altos brados o parlamentar proibiu que qualquer um ali saísse do elevador sem antes ser submetido a uma revista que ele próprio conduziria. Em defesa de seu zelo, segredou à esposa que era ciclópica a quantidade de ladrões no recinto.

Mais parece que essa comitiva estava mesmo fadada ao infortúnio. Pois coube a outro parlamentar a desventura de ter vivido um anticlímax que quase desaguou nas páginas policiais. Curioso em se iniciar nas alardeadas delícias do trato sensual de uma gueixa, instou a esposa a fazer uma excursão ao Monte Fuji. Quanto a ele, alegou uma tarde de reuniões com dirigentes de alto calibre, interessados em investir no Estado da Bahia. Sozinho na suíte do hotel Imperial, tomou banho prolongado e se paramentou com uma yukata para receber a visitadora. Com os cabelos besuntados de banguê do Recôncavo, perfumado, abriu a porta com mesuras, mas qual não foi a sua surpresa ao deparar com a própria esposa, que voltara para pegar a máquina fotográfica. Estranhando que o marido não estivesse tratando da venda de óleo de dendê aos ilhéus, e desconfiada de tamanho apuro no vestir, resolveu ficar. Para desespero do parlamentar, a gueixa apareceu minutos mais tarde, esbanjando sensualidade milenar. O que não estava nos planos é que fosse enxotada porta afora por uma baiana furibunda, que resolveu lavrar queixa na recepção, acusando o lendário hotel de ser um tugúrio de prostituição camuflada. Que o diga nosso então embaixador em Tóquio.

Se serve de consolo, Bolsonaro e os trancelins de nióbio integram alentada crônica de patetices que, como se vê, piora mês após mês. E cujo novo clímax tem como palco nossa embaixada em Washington, em flagrante demonstração de amadorismo.

A reforma que Bolsonaro não quis liderar - MAÍLSON DA NÓBREGA

O GLOBO - 16/07

Presidente renunciou ao papel reservado ao chefe do governo no presidencialismo brasileiro


O Congresso vai aprovar, tudo indica, uma reforma da Previdência suficientemente robusta em seus efeitos fiscais. Jamais uma mudança dessa complexidade foi acolhida por mais de três quintos dos parlamentares sem o envolvimento pessoal do presidente da República.

Jair Bolsonaro renunciou ao papel reservado ao chefe do governo no presidencialismo brasileiro, qual seja o de coordenador do jogo político. Recusou-se a formar uma coalizão estável e majoritária para garantir a governabilidade, como é a regra em todas as democracias caracterizadas por sistemas multipartidários, em que o governo não faz a maioria nas eleições legislativas.

Nesses casos, as coalizões funcionam mediante trocas legítimas e republicanas, em que o chefe do governo compartilha o poder, enquanto os partidos aliados assumem o compromisso de apoiar a agenda oficial.

Acontece que o presidente confunde coalizão com clientelismo e corrupção. Chegou a sugerir que correria o risco de ir para a cadeia se adotasse o toma lá dá cá de governos anteriores. É como se a corrupção revelada pela Operação Lava-Jato constituísse um padrão no Brasil, o que está longe de ser verdadeiro. Ademais, ele se ocupa cotidianamente de temas irrelevantes, como se ainda estivesse em campanha eleitoral.

Dois de nossos melhores cientistas políticos, Sérgio Abranches — autor da teoria do presidencialismo de coalizão — e Carlos Pereira, têm alertado para os riscos que o presidente corre ao decidir liderar um governo minoritário. Em artigo recente, Abranches foi enfático: “A coalizão se tornou um imperativo da governabilidade”.

Além da opção por um governo minoritário, Bolsonaro parece ter entendido que seu papel na reforma da Previdência seria apenas o de enviar o projeto ao Parlamento, aqui e acolá apelando para o “patriotismo” dos parlamentares. Não se dá conta de que o exercício do “patriotismo” não é relevante para a sobrevivência política deles. Em alguns momentos, agiu para desidratar a proposta, como na defesa de privilégios de policiais.

Como explicar, mesmo assim, a aprovação da reforma da Previdência? Esse paradoxo decorre da combinação virtuosa de quatro fatores:

1) O governo não consumiu tempo na formulação da proposta. A PEC 06, da reforma, tem base no projeto Paulo Tafner-Armínio Fraga;

2) A maioria da sociedade se convenceu da necessidade da reforma, fruto das discussões decorrentes de medida semelhante no governo Temer;

3) As preferências da maioria dos parlamentares convergiram para o apoio à reforma. Eles perceberam que o fracasso os incluiria na lista dos perdedores;

4) A tarefa de agregar tais preferências foi exercida, na ausência de Bolsonaro, pelo presidente da Câmara. Pode vir a ser um caso raro de vitória por persuasão, pois Rodrigo Maia não dispõe dos recursos de poder para conquistar votos, como nomeações para cargos e liberação de emendas parlamentares.

O êxito não garante, todavia, que essa combinação se reproduza em outras mudanças, o que pode indicar riscos de derrotas futuras. Não fora isso suficiente, Bolsonaro parece não dispor de filtros que o protejam de ações equivocadas, como as de atos flagrantemente inconstitucionais, rejeitados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso.

Tradicionalmente, a Casa Civil é a fonte básica desses filtros. A ela cumpre escrutinar documentos a serem assinados pelo presidente, avaliando conveniência e oportunidade. Verifica a compatibilidade de medidas propostas com a agenda do governo, particularmente com a política econômica. Checa a constitucionalidade e as remissões à legislação.

Há sinais de ineficiência na Casa Civil, o que pode ter decorrido da anunciada “despetização”. O órgão pode ter perdido, assim, pessoal experiente e qualificado para realizar o exame adequado de documentos levados à assinatura do presidente. Não parece agora existir uma figura semelhante à do lendário Professor Carvalho, que serviu a mais de um governo. Nenhuma das falhas de Bolsonaro passaria pelo seu crivo.

Pode-se imaginar, alternativamente, que os erros decorrem de puro voluntarismo do presidente, que imporia sua vontade a um grupo submisso de auxiliares. Seja como for, um governo minoritário e sem filtros eficazes é propenso a derrotas, ao fracasso na gestão e, no limite, à interrupção do mandato.

Maílson da Nóbrega é economista e foi ministro da Fazenda

Cenário melhor e longe do ideal - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 16/07


A equipe econômica já trabalha com o que se poderá fazer no Senado para que a reforma da Previdência ande rápido e reinclua os estados e municípios. A atividade econômica teve ontem um primeiro dado positivo em muito tempo, mas os economistas não acham que isso seja o início de alguma retomada. O IBC-Br de 0,54% é visto como um ponto fora da curva, depois de quatro meses de queda. A aprovação da reforma, em primeiro turno, foi comemorada pelo mercado, mas sem a interpretação de que isso resolverá os problemas que levaram à estagnação.

O Senado terá todo o apoio da equipe econômica para incluir estados e municípios, segundo se diz no governo. Uma fonte que eu ouvi disse que “agora é a hora do protagonismo de Davi Alcolumbre”. Se a reinclusão dos estados exigir garantias de que o dinheiro do petróleo será dividido com eles, não haverá obstáculos no Ministério da Economia. Isso é visto lá como um passo importante rumo ao verdadeiro “federalismo”.

— Precisamos acabar com o dirigismo. Temos que descentralizar os recursos. Se para isso precisar garantir uma parte dos recursos da partilha, dos royalties e da cessão onerosa para os estados, tudo bem — diz um economista do governo.

Para isso será preciso aprovar uma legislação específica, fazer o leilão e entender que o dinheiro do petróleo não resolverá todos os problemas, não entrará no caixa rapidamente, nem substituirá a reforma da Previdência. A aposentadoria dos policiais e dos professores tem impactado os estados e municípios, mas justamente esses dois itens foram suavizados pelo plenário da Câmara. E, claro, é preciso aprovar a reforma em segundo turno.

Na economia real, ainda há dúvidas sobre o ritmo da recuperação. O mercado financeiro revisou pela 20ª semana seguida a projeção para o PIB deste ano, para 0,81%, e cortou o número do ano que vem, para 2,1%. O governo reduziu sua estimativa para este ano, de 1,6% para 0,8%. Na visão do economista-chefe da Rio Bravo Investimentos, Evandro Buccini, a reforma da Previdência sozinha não garante o crescimento sustentável, e o governo não tem o que fazer para impulsionar a economia no curto prazo:

— A reforma pode até ser uma faísca para acender o crescimento, o problema é que a economia não tem combustível para crescer. Os empresários têm dúvidas em relação à demanda, quem investiu nos últimos tempos se deu mal. Enquanto não houver certeza de que o consumo vai voltar, será difícil destravar o investimento.

A aprovação da reforma favorece o cenário de corte de juros pelo Banco Central. A expectativa de parte do mercado financeiro é de que a Selic comece a cair na reunião do final deste mês, de 6,5% para 6%, e termine o ano em 5%. Mas isso não é garantia de que as taxas ficarão mais baratas para o consumidor final.

— Nenhuma empresa pequena ou média consegue empréstimo a menos de 30% ao ano, mesmo com a Selic a 6,5%. O spread continua muito elevado, apesar de todo o esforço do Banco Central — afirmou Buccini.

No cenário externo, permanecem as incertezas. A China anunciou que cresceu no segundo trimestre à menor taxa em 27 anos. Traria euforia para qualquer país, porque foi 6,2%, mas isso preocupou os mercados ontem. O Banco Central americano interrompeu a alta dos juros, e isso significa que vê problemas para o crescimento mundial. Na Argentina, que é o principal destino dos nossos produtos industriais, há eleições em outubro com chance de vitória do candidato da oposição Alberto Fernández. Em entrevista ao jornal “Clarín”, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, já falou em “atritos” na relação entre os dois países, em caso de vitória de Fernández. Tudo isso deixa o horizonte mais nebuloso, porque na projeção para o PIB do ano que vem a indústria tem um papel fundamental, com alta de 3%. Se ela falhar, jogará o PIB para baixo.

A equipe econômica estuda medidas para destravar a economia. Mas cometerá um erro se tentar buscar o crescimento a qualquer custo no curto prazo. O cenário está assim: há uma boa expectativa por causa da reforma da Previdência, mas a economia permanece gelada, o mundo está ficando mais complexo, e com o presidente da República não se pode contar. Seu pensamento sempre está longe do foco. Ontem, achava que o principal problema do país era a taxa de Fernando de Noronha.


O poder como capricho - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 16/07

Caso o convite a Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington seja oficializado, é responsabilidade do Senado barrar a indicação, que avilta o bom senso


É um disparate, em todos os sentidos, a ideia de o presidente Jair Bolsonaro indicar o seu filho Eduardo para o posto de embaixador do Brasil em Washington. Caso o convite seja oficializado, é responsabilidade do Senado barrar a indicação de pai para filho, indicação essa que avilta o bom senso, menospreza a defesa técnica e qualificada do interesse nacional, transforma o Estado em assunto de família e manifesta, uma vez mais, a dificuldade de Jair Bolsonaro para compreender o que é ser presidente da República, muito diferente de ser chefe de um clã.

“No meu entender, (Eduardo Bolsonaro) poderia ser uma pessoa adequada e daria conta do recado perfeitamente em Washington”, disse o presidente, após apontar as razões pelas quais entende que seu terceiro filho poderia ser o embaixador do Brasil nos Estados Unidos: “Ele é amigo dos filhos do Trump, fala inglês e espanhol, tem vivência muito grande de mundo”.

O papel do embaixador é representar o País e o interesse nacional, numa relação de confiança e, ao mesmo tempo, de independência perante outro país. As nações que têm a pretensão de serem respeitadas no cenário internacional dispõem de um corpo diplomático bem formado e tecnicamente qualificado. Não faz nenhum sentido que o Brasil, com uma tradição diplomática do mais alto nível, deixe a embaixada em Washington nas mãos de um amador, por mero capricho familiar.

O embaixador não está em representação de uma pessoa, de um partido ou de uma causa. Ele representa o Estado brasileiro. Tanto é assim que “compete privativamente ao Senado Federal aprovar previamente, por voto secreto, após arguição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente”, como dispõe a Constituição.

Após o presidente Jair Bolsonaro anunciar o possível mimo ao filho, Eduardo disse que “aceitaria qualquer missão que o presidente me der”. Mostrando que sabe tão pouco quanto o pai sobre a diplomacia, o deputado federal pelo PSL falou de suas credenciais para o cargo. “Não sou um filho de deputado que está do nada vindo a ser alçado a essa condição. (...) Sou presidente da Comissão de Relações Exteriores, tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, no frio do Maine, Estado que faz divisa com o Canadá, no frio do Colorado, em uma montanha lá. Aprimorei o meu inglês, vi como é o trato receptivo do norte-americano para com os brasileiros”, disse.

A fala de Eduardo Bolsonaro, absolutamente adequada em uma cena de comédia e absolutamente inadequada na discussão sobre o preenchimento de um posto diplomático da importância da embaixada em Washington, só confirmou sua ignorância sobre as relações internacionais. Em novembro do ano passado, na condição de filho do presidente eleito, Eduardo circulou pelos Estados Unidos com um boné de cabo eleitoral de Donald Trump. A Constituição de 1988 define, entre os princípios que devem nortear o País em suas relações internacionais, a independência nacional, a autodeterminação dos povos e a igualdade entre os Estados. Com o boné “Trump 2020”, Eduardo Bolsonaro desrespeitou, de uma só vez, os três princípios constitucionais.

Na mesma viagem aos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro deu outro exemplo de seu desconhecimento sobre a complexidade das relações internacionais e o interesse nacional. Questionado sobre uma possível mudança da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, Eduardo pontificou: “A questão não é perguntar se vai, a questão é perguntar quando será”. A ideia, mera imitação dos caprichos de Trump e que poderia custar muito caro ao Brasil, foi por ora abandonada pelo governo.

É evidente que Eduardo Bolsonaro não tem nenhuma credencial para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. O único atributo que leva seu nome a ser cogitado para o posto em Washington é ser filho de Jair Bolsonaro. Uma indicação assim, tão despótica – no sentido mais exato do termo –, desmerece o País interna e externamente. Se o capricho familiar for adiante, que o Senado, em sinal de respeito ao País e à Constituição, lhe aponha o devido veto.