domingo, junho 30, 2019

Caranguejo Brasil troca de casca - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 30/O6

PIB anda de lado e na lama, mas começam mudanças nas profundezas da economia


É preciso notar que a economia brasileira muda, mesmo submersa na lama. O caranguejo, que anda de lado como o PIB do Brasil, troca de casca desde 2016.

Duas notícias desta semana são mais do que simbólicas desta transição tentativa: o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia e o plano de abrir o mercado de gás.

Quando, se e como mudanças desse tipo vão ter influência positiva no crescimento são perguntas de R$ 1 trilhão, medida tão ao gosto deste governo. Se o eventual crescimento será distribuído de modo igualitário, é questão ainda mais especulativa. Mas o caranguejo perde sua carapaça estatal e muda de cor. Ignorar a mudança é um erro político, econômico e financeiro.

Do que se trata? Alguns exemplos:

1. Deve haver agora investimento pesado no pré-sal, com aumento grande da produção. Mudanças nesse setor e noutros devem alterar a paisagem empresarial e industrial;

2. Há planos avançados de abrir setores dominados pelo Estado, como refinarias, gás e saneamento. Governos e suas empresas ora não têm como colocar dinheiro nessas pontas de lança do investimento;

3. As taxas de juros estão nos níveis mais baixos desde que se tem notícia, graças ao efeito combinado de depressão econômica e gastos contidos do governo e de seus braços de crédito. Sim, trata-se dos juros do atacadão de dinheiro. Mas o cidadão remediado vai ver seu fundo DI, seu CDB ou seu Tesouro Direto renderem pouquinho. Vai reclamar, procurar retorno em outra parte, empreendimentos em que possa investir. Pois bem. Os donos do dinheiro grosso agem do mesmo modo. Ou vai tudo virar inflação da Bolsa?

4. Por décadas o gasto do governo cresceu mais do que o PIB; cresceu ainda a 6,5% além da inflação nos 20 anos até 2016. Desde então, ficou estagnado;

5. Deve ser aprovada alguma reforma da Previdência;

6. Bancos em geral perdem espaço na concessão de crédito (entram outras fontes de financiamento);

7. Depois de quase 20 anos de paralisia, pode haver alguma abertura no comércio exterior, vide o acordo com a União Europeia;

8. Há planos de conceder serviços públicos e infraestrutura para empresas privadas, ainda que atrasados;

9. Para o bem ou para o mal, há uma nova lei trabalhista.

Há planos mais encrencados, como mexer no setor elétrico e em outras regulações de vários mercados. Até uma reforma tributária tramita no Congresso (caso aprovada, faria efeito direto só daqui a uns três anos, mas é coisa grande). Mas isso tudo ainda é especulativo, protesto.

As mudanças em curso e as planejadas por este governo em tese não devem estimular lá grande coisa de crescimento nos próximos, digamos, dois anos, embora a reação do empresário costume ser um tanto misteriosa. Sim, os planos podem fracassar, até porque o comitê central do governo Jair Bolsonaro não habita o universo da razão. Mas algo se move.

A ala do governo que frequenta o universo da razão enfim concluiu essa obra de 20 anos que é o acordo com a União Europeia. Mesmo com o Planalto jogando contra, haverá um remendão na Previdência. Isso tudo deve causar alguma impressão, aqui e lá fora.

Quase todas essas mudanças mexem nas condições da produção, não no consumo, em um primeiro momento. Se derem certo, demoram a fazer efeito, a fazer PIB, emprego e salários andarem. É uma travessia do deserto com um abismo no meio, mais algum tempo de crescimento pífio e pobreza crescente.

Estagnação e assimetria - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

O Estado de S. Paulo - 30/06

A paralisia está saindo muito cara e isso está evidente na nova onda de recuperações judiciais


A estagnação da economia brasileira ampliou-se em 2019. Cresceremos menos que em 2017 e 2018, anos que sucederam a mais longa recessão da nossa história moderna.

Essa situação é, antes de tudo, um desastre para a cidadania. Entre desempregados, subempregados e desalentados, estamos falando de mais de 25 milhões de pessoas!

Isso sem falar naqueles que só conseguem trabalhar em posições menos relevantes e remuneradas do que aquelas que já ocuparam. Ou naqueles que fizeram força para pagar os estudos e não conseguem vagas ou estágios que lhes permitam prosseguir na carreira.

Os impactos na autoestima das pessoas e nas famílias são seguramente muito grandes.

A mim impressiona o aparente conformismo do governo com essa cena. Nada acontecerá em qualquer área antes da reforma da Previdência, o que, no melhor cenário, nos levará até meados do segundo semestre.

Pior: o Banco Central revela a mesma atitude, mesmo com a inflação ancorada, abaixo da meta, e a fraca atividade. Qual será o custo disso?

A paralisia está saindo muito cara e isso está evidente na nova onda de recuperações judiciais (RJs) de grandes companhias, como sinalizaram os pedidos de RJ das empresas do grupo Odebrecht, as últimas de uma longa série de empreiteiras.

A onda não é casual. Afinal, na vida empresarial, o que não vai adiante, normalmente, volta para trás: empresas muito endividadas apenas têm chance de sair das dificuldades com seus mercados crescendo vigorosamente, pois só assim os bancos estarão dispostos a rolar e alongar seus empréstimos. Quando a estagnação entra em campo, é questão de tempo para algum credor decidir executar a dívida e precipitar uma RJ ou até uma falência.

Os setores perdedores são vários: construção (leve e pesada), bens de consumo não duráveis, comércio, bens de capital. A digestão das empresas “zumbis” também contribui para tornar mais lenta a recuperação da economia.

No mercado da estagnação o jogo é aquele antigo das crianças, o rouba monte. Só se cresce roubando o mercado do vizinho.

Na confusão existem várias empresas ganhadoras. Minha observação é que elas têm pelo menos três características em comum: boa estrutura de capital, boa governança corporativa e capacidade de entender as mudanças tecnológicas e de modelos de negócios em andamento no mundo. Isso permite adquirir bons ativos de companhias enfraquecidas, desenvolver novos produtos e continuar a crescer, alargando mercados, inclusive pela internacionalização.

Esse é, por exemplo, o caso da Weg, a empresa catarinense de equipamentos. Mais da metade do faturamento da Weg vem das exportações, e boa parte das vendas é de produtos lançados recentemente, muitos dos quais em áreas novas, como energia eólica.

A distância entre as companhias ajustadas e as outras também ajuda a entender por que nossa produtividade média não cresce. Além das causas usuais, que apontam os altos custos de fazer negócios no Brasil, a precária infraestrutura, o baixo padrão do sistema educacional e a complexidade de tributos, coloca-se a assimetria entre empresas líderes e aquelas em decadência, que apenas vivem em modo de sobrevivência, mas cujas chances são cada vez mais reduzidas em meio à estagnação.

O que faz a competição. O mercado de adquirência, o das maquininhas de cartão, passou muitos anos dividido entre um duopólio: de um lado a Rede, do Itaú, e de outro a Cielo, do Bradesco/Banco do Brasil.

Nesse período, apenas estabelecimentos maiores tinham os equipamentos e as taxas eram elevadas, pesando nos comerciantes.

Há alguns anos, o Santander comprou a GetNet e entrou no mercado. No último ano, assistimos aos milionários IPOs da PagSeguro e da Stone na Bolsa Nasdaq, dos Estados Unidos. Finalmente, o Banco Safra entrou neste mercado.

Em poucos meses vimos o que não assistimos há anos: disputa pelos clientes e penetração em negócios menores, como médicos, dentistas, bancas de jornal, pequenos prestadores de serviços etc. O custo das maquininhas caiu drasticamente e os modelos de negócio ficaram mais variados. O resultado é uma melhora para os empresários e para os consumidores.

Esse caso me fez lembrar de um dos melhores livros do ano, The Myth of Capitalism – Monopolies and the Death of Competition, de Jonathan Tepper.

O que falta ao capitalismo moderno é mesmo competição.

Economista e sócio da MB Associados

Os frutos do acordo - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 30/06

Para além das vantagens comerciais, negociação ajuda a dissipar bobajada ideológica


A semana terminou com uma grande notícia, com o fechamento do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. Além das vantagens da abertura econômica e comercial, o acordo serve como um banho de pragmatismo na política externa brasileira, por evidenciar que a crítica ao tal globalismo como um bicho-papão que tragaria o mundo ocidental e seus valores nada mais era do que delírio ideológico que, na hora do vamos ver, foi deixado de lado.

O acordo é uma construção de 20 anos e muitas mãos. Começou a ser costurado no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999. A primeira oferta foi feita no governo Lula, em 2004. Em 2007, no governo Lula 2, o Brasil assinou uma parceria estratégica com a Europa, dando mais um passo para o acordo. Ele ficou dormitando ao longo de quase todo o governo Dilma Rousseff, mas, ironicamente, foi no último dia da petista, 11 de maio de 2016, que houve a apresentação das ofertas de parte a parte. O desenho do acordo que foi finalmente fechado se deve em muito ao trabalho do ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, no governo de Michel Temer.

E, finalmente, graças a uma ação bem coordenada do Ministério da Economia de Paulo Guedes, na pessoa do secretário de comércio exterior Marcos Troyjo, da ministra da Agricultura, Teresa Cristina, e do Itamaraty de Ernesto Araújo, foram alinhavados, ainda nas reuniões de Buenos Aires, os termos finais da proposta finalmente assinada em Bruxelas.

Portanto, ainda que haja aspectos que possam desagradar esse ou aquele setor, que possam existir críticas quanto ao fato de o Mercosul ter sido levado a ceder mais que os parceiros europeus – o que é óbvio, uma vez que os países do lado de cá são mais fechados e atrasados que os de lá –, trata-se de uma rara convergência de propósitos e de continuidade de ação entre governos. Um bálsamo diante de tantos solavancos políticos e econômicos que o Brasil vem enfrentando nos últimos anos.

É claro que Jair Bolsonaro vai querer faturar em cima do acordo, a despeito de seu discurso, dos filhos, do próprio Araújo e do entorno mais ideológico do governo sempre ter sido avesso ao multilateralismo e de ceticismo em relação à própria existência da União Europeia. É do jogo que o governo exagere os próprios méritos num acordo que já estava bem adiantado, ao qual também foi impelido pelos parceiros do Mercosul, que estavam mais dispostos a fechá-lo que o Brasil, e para o qual contribuiu, também, a necessidade da Europa de dar a volta por cima num cenário internacional que hoje é dominado pelo duelo de titãs entre Estados Unidos e China. Os ganhos advindos da abertura são maiores que qualquer reparo que se tenha a fazer à bateção de bumbo exagerada.

Além do enorme impacto comercial e econômico que a retirada de barreiras trará para o Brasil, devolvendo o País ao tabuleiro global, do qual estava escanteado, o acordo com a União Europeia funciona também como uma bem-vinda garantia de que o ímpeto bolsonarista em áreas como meio ambiente também terá de ser contido. O capítulo político do tratado inclui o compromisso dos países signatários com o Acordo de Paris e com outras metas ambientais e traz importantes disposições também relativas a direitos humanos (com menções específicas a respeito a minorias e garantias de direitos trabalhistas, por exemplo).

A assinatura do acordo faz letra morta da cantilena bobalista da ala ideológica do governo. Ela pode até continuar entoando seus mantras no Twitter, comemorando como sua uma construção que, como se vê é anterior e mais plural. Mas o fato é que, na vida real, falaram mais alto o pragmatismo e a disposição pelo liberalismo econômico e pela abertura do País ao resto do mundo. Grande dia, de fato.

‘A população é a grande fiadora da estabilização’ - ENTREVISTA COM PÉRSIO ARIDA

O GLOBO - 30/06

Um dos criadores do Plano Real, economista vê condições mais favoráveis a reformas econômicas que na época da concepção da nova moeda

Por Cássia Almeida


RIO — Um dos pais do real , o economista Persio Arida vê a moeda como conquista da população brasileira, que se tornou “fiadora da estabilidade”. Sobre os desafios de hoje, vê a reforma da Previdência que tramita no Congresso na direção certa, mas identifica paralisia nos investimentos à espera dela.

Ex-presidente do BNDES, ele acredita que o país não precisa mais de um banco de fomento tão grande e diz que há uma “retórica falsa” na afirmação do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que nunca houve um governo liberal no Brasil.

Após 25 anos, a população já considera o real uma conquista?
Certamente, hoje virou quase um bem público. O governante que permitir que a inflação seja alta será punido nas urnas. Não é à toa que os 10% de inflação no começo no segundo governo Dilma foram, do ponto de vista de erosão de apoio popular, um dos fatores determinantes. Hoje, claramente, a mensagem aos governantes e aos políticos é muita clara se você permitir a volta da inflação. A população é a grande fiadora do processo de estabilização.

E que não se conseguiu fazer?
O que deu errado infelizmente foi a Previdência que perdemos por um voto. Brasil poderia ter um quadro muito diverso se tivesse aprovado aquela reforma que já estabelecia idade mínima.

E hoje, como vê o Brasil?
Hoje não tem oposição relevante. Mesmo sem articulação política, tem uma liderança no Congresso a favor das reformas, e o país está muito mais consciente dos desafios da Previdência do que estava naquela época. As tentativas, embora malsucedidas do governo Temer, aumentaram enormemente a consciência do país do problema. Cenário internacional está muito mais favorável, não tem o desafio do controle da inflação. Como um todo, é situação muito mais tranquila do que aquela vivenciada antes.

Por que a economia não cresce?
Nosso crescimento atual está abaixo do normal por dois fatores. Certamente Argentina tem um efeito negativo no setor real. Tem um segundo efeito que a ênfase na reforma da Previdência como tudo ou nada, percepção de que o Brasil pode acabar. De um lado ajuda na aprovação, por outro lado gerou em todo empresariado local e externo uma atitude de esperar para ver. Colocou o fluxo de investimento em compasso de espera. Vamos ver o que vai sair, qual é o número que vai sair. O efeito no ânimo empresarial de investir é claramente negativo.

Aprovando a Previdência, os investimentos voltam?
Muitas vezes, há o diagnóstico de que a limitação do crescimento é na demanda. A taxa de juros está alta demais, a política fiscal está contracionista demais, e, portanto, o Brasil não cresce por falta de demanda. Eu acho esse diagnóstico fundamentalmente errado. Acho que há espaço para a redução da taxa de juro sem dúvida, mas não é isso que vai colocar o Brasil numa rota de crescimento acelerado. Os desafios estão do lado da oferta> insegurança jurídica, abertura comercial e financeira, aumento de concorrência, mudança de leis de garantia para diminuir o spread bancário, reforma tributária. São essas agendas que aumentam a produtividade do país. O ministro Guedes (Paulo Guedes, da Economia), decidiu _ o tempo dirá se a decisão está correta ou não _ de focar 100% da energia no começo na Previdência. Mas Previdência não dá ganho de produtividade nenhum. Ela pode estabilizar a expectativa sobre a dívida pública.

O foco na Previdência é ruim?
Claro que isso aumenta a chance de aprovar a reforma, mas retarda a discussão das reformas estruturais. No piloto automático, o crescimento brasileiro infelizmente é baixo, não é tão baixo como este ano indica. O Brasil cresce 2%, 2,5% ao ano, o que é insuficiente para absorver o estoque de desemprego. Quando se cresce aceleradamente é que as oportunidades aparecem. Tornar o Brasil menos desigual com crescimento baixo é praticamente impossível. Colocar o Brasil numa rota de crescimento acelerado é fundamental, de 3,5%, 4%, via ganho de produtividade e imigração.

Nossa produtividade está estagnada há décadas, esse crescimento deve demorar.
Sim, é verdade, mas tem muita coisa para fazer. Tem mundo externo favorável, uma quantidade de capital externo que pode ser atraída enorme, áreas que muito férteis, produtivas, como agricultura de exportação e pré-sal.

Como avalia a reforma da Previdência?
Podemos discutir detalhes, como querer afetar o BPC (Benefício de Prestação Continuada, auxílio dado a idosos e portadores de deficiência de baixa renda) quando boa parte da classe média usa o Simples indevidamente, isso é injusto socialmente. O Congresso tirou a capitalização, mas não é nenhum drama, é muito melhor repensar FGTS e os programas de previdência complementar do que um programa novo de capitalização. Ela vai na direção correta, não tem como enfrentar o problema sem equacionar idade mínima. Tem um lado bom também que o ministro se afastou das ideias deles durante a campanha. Ele sugeria uma privatização maciça para cobrir o buraco da Previdência e uma capitalização como no modelo chileno desde agora. Uma ideia errada, porque a privatização maciça não vem. Primeiro que Bolsonaro está longe de ser privatizante, para começo de conversa, segundo porque é um processo lento. Mas o ministro deu uma meia volta volver e resolveu fazer uma reforma convencional, mas uma boa proposta de reforma. Seria muito bom se os estados entrassem.

E a articulação política do governo no Congresso?
Tem uma diferença enorme. Durante o real, tinha o ministro da Fazenda que era o Fernando Henrique mais Edmar Bacha que negociavam as reformas. Pós Plano Real, o ministro virou presidente e costurava a articulação que sustentava a enorme quantidade de reformas modernizantes do Plano Real. Hoje, você tem uma situação meio paradoxal. Há um presidente inapetente ou que se mostra incapaz de fazer uma articulação na prática, o seu próprio partido perdido, mas para sorte do Brasil, há lideranças na Câmara e no Senado comprometidas com as reformas. Pela primeira vez, estamos desafiando a tese do presidencialismo de coalizão. Você ter um presidente sem capacidade de articulação, mas um Congresso que toma a si as reformas, é uma circunstância inédita. Na política não há vácuo. O Executivo não propõe, o Congresso propõe, o que está acontecendo com a reforma tributária.

Ministro Guedes falou que Plano Real tinha deixado de lado o ajuste fiscal e que o Brasil nunca teve um governo liberal.
Demorou até chegar a um superávit fiscal, mas finalmente chegou a 2,75% do PIB, em 1999. A ideia que o Brasil nunca teve um governo liberal é completamente falsa. No Plano Real, nós defendíamos as reformas modernizantes que são necessárias para sustentar o plano. Ninguém defendeu do ponto de vista abertamente ideológico. Nós somos liberais, portanto queremos fazer isso. Claro que a esquerda rotulou, a vida inteira fui chamado de neoliberal. O impulso extraordinário das privatizações, da criação das agências reguladoras, da abertura da economia, do superávit fiscal, da tentativa, apesar de não ter dado certo, da reforma da Previdência, a reforma administrativa que Bresser Pereira fez. Inúmeros exemplos aqui são reformas de cunho liberal. Toda vez que alguém tem uma retórica messiânica, do tipo eu estou começando uma nova era no país, desconfie.

E o BNDES?
Obviamente tem que devolver os recursos do Tesouro, isso equivale a ter que vender ativos, créditos. Há um fluxo de dinheiro de impostos que vai via FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), está previsto na Constituição, é verdade, mas não faz nenhum sentido lógico que alguém atrele determinado imposto a um empréstimo de um banco de desenvolvimento. É um unicórnio. Têm distorções, independentemente da função do BNDES, que precisam ser enfrentadas. O BNDES não devolve o principal dos empréstimos, é como se tivesse um título público perpétuo. Têm lá R$ 260 bilhões, R$ 270 bilhões a devolver para o FAT. O banco tem que captar recurso a mercado como qualquer um. Outra questão é qual é a função do banco, que volta ao tema da produtividade, do ponto de vista da segurança jurídica, do sistema regulatório, concessões e avanços na Lei Geral de Garantias de empréstimos. Nesse cenário, a economia prescinde de empréstimos estatais.

O BNDES sempre teve o papel de financiador da infraestrutura.
Uma coisa é o passado onde não existia empréstimo de longo prazo. Hoje há debêntures incentivadas, fundos de infraestrutura no mundo inteiro, o que falta é uma estruturação jurídica que permita alavancar com segurança projetos de infraestrutura. Se houver isso, não há limitação mais.

Digitalização e moeda digital crescendo exponencialmente. Quais efeitos?
Uma coisa é um processo de digitalização entrando para valer no setor financeiro. Esse processo é bem-vindo. Só tem vantagens. Outra coisa é moeda digital. O bitcoin é um ativo especulativo. A moeda digital como está é irrelevante. O avanço do processo de digitalização, não, esse é extraordinário. Não só no setor financeiro, nos governos também.

Esse movimento é capaz de baixar os juros no Brasil?
Tudo que aumenta produtividade ajuda. Certamente com mais produtividade, o spread bancário diminui. É um movimento firme, tem recursos, tem dinheiro, é um processo que avança independentemente da taxa de crescimento do país, tem um ganho de eficiência muito grande.


Nem sempre as leis pegam - ARMÍNIO FRAGA

FOLHA DE SP - 30/06

Por 30 anos, a boa missão do Banco Central não foi cumprida


No final de 1964 foi promulgada a lei 4.595, que criou o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. O mais importante comando desta lei determina que o CMN e o BC devem atuar para “regular o valor interno da moeda, para tanto prevenindo ou corrigindo surtos inflacionários e deflacionários de origem interna ou externa”.

Por 30 anos essa boa missão não foi cumprida, vítima de recorrentes tentações políticas de curto prazo.

No final da década de 1980, período caótico de inflação, planos de estabilização fracassados, hiperinflação, recessão duradoura e moratória, rabisquei um texto com o título “moeda e o direito ao autoflagelo”.

A questão era bem básica: ao contrário da esmagadora maioria dos bancos centrais do mundo, o BC nunca fora capaz de cuidar do valor da nossa moeda, que sempre derretera como se fosse gelo, especialmente no bolso dos mais pobres. Ter uma moeda nacional era como ter o direito de se autoflagelar. Éramos viciados nessa prática.

Escrevendo antes do início do governo Collor, pensei desesperado que, caso os esforços do novo governo no combate à inflação fracassassem, o melhor seria adotar o dólar. Isso mesmo, teríamos as verdinhas circulando por toda parte, uma versão mais radical do sistema de caixa de conversão mais tarde adotado (e abandonado) pela Argentina. Por consequência abriríamos mão da política monetária, o que em condições mais normais faria muita falta.

Bem, engavetei o texto, o Plano Collor foi um fiasco e poucos anos depois um plano melhor finalmente deu certo, o Real, reforçado em 1999 pela adoção do tripé macroeconômico: metas para a inflação, taxa de câmbio flexível (eliminando outro autoflagelo histórico) e disciplina fiscal.

Nos anos seguintes, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a reestruturação das dívidas estaduais pareciam ter institucionalizado a perna fiscal do tripé. Faltava reforçar a 4.595 mas, ainda assim, o sistema de metas para a inflação segue dando certo após 20 anos, em boa medida porque o povo gostou de inflação baixa, hoje um claro bem público. Esse sistema foi duramente testado em diversas ocasiões, e resiste até hoje, a despeito inclusive do enorme colapso do alicerce fiscal ocorrido a partir de 2014.

Mas até quando?

Notem bem onde fomos parar: temos em vigor a lei 4.595, que não foi cumprida por 30 anos, embora ultimamente venha sendo. E, no lado fiscal, a grande conquista que foi a LRF não impediu relevante irresponsabilidade.

O que fazer? Em primeiro lugar, faz sentido revisar a lei 4.595, nem tanto para modernizar os objetivos do BC, mas principalmente para formalizar em lei a ideia de que a estabilidade da moeda precisa ser protegida contra conveniências políticas de ocasião. Para tal, cabe estabelecer mandatos fixos e robustos para a diretoria do BC (a chamada independência), como já fazem praticamente todos os principais países genuinamente democráticos do mundo.

Em segundo lugar, urgente e muito mais grave é o estado das nossas finanças públicas, tanto federais quanto estaduais. Aqui cabe uma rigorosa avaliação das causas do colapso recente, que ocorreu estando em pleno vigor a LRF e os contratos entre os estados e o governo federal, todos sob a fiscalização do Congresso e dos tribunais de contas da União e dos estados, e debaixo dos olhos do Ministério Público.

Esse colapso e suas repercussões recessivas e regressivas vêm nos custando muito caro. Cabe apurar se ocorreu em função da existência de brechas legais, se foi crime mesmo, ou ambos. A partir desta avaliação será possível a construção de um arcabouço fiscal robusto que, além de garantir a estabilidade econômica, permitirá o pleno exercício de nossa democracia.

Como bem sabemos, leis nem sempre garantem sucesso. É recomendável portanto uma certa dose de humildade no repensar. Mas temos que seguir tentando.

Arminio Fraga
Economista, é ex-presidente do Banco Central.

Bolsonaro conheceu a verdade! Ela o libertará? - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 30/06


Quando confrontado com um problema, Jair Bolsonaro pode não ter a solução. Mas ele tem sempre à mão um versículo multiuso que extraiu do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." Às vésperas do aniversário de seis meses do seu governo, celebrado neste domingo (30), Bolsonaro conheceu a verdade. Descobriu que pode ser conservador sem ser arcaico. Essa verdade tem potencial libertador. Mas para se livrar dos grilhões do arcaísmo, o presidente teria de se manter fiel à racionalidade que levou ao fechamento do histórico acordo entre Mercosul e União Europeia.

O bom senso ensina que dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou num único governo. Dividida entre um e outro, a plateia não dá atenção a nenhum dos dois. Ou, por outra, acaba privilegiando o mais exótico. Estão aí em cartaz, faz um semestre, duas apresentações. Uma é aquela que o general e ex-ministro Santos Cruz chamou de "Show de besteiras". Outra é a coreografia encenada pelo pedaço da Esplanada que tenta provar que o governo não está sob o domínio da Lei de Murphy, segundo a qual quando algo pode dar errado, dará.

Desde que assumiu o trono, Bolsonaro tenta conciliar duas exigências conflitantes: ser Bolsonaro e exibir o bom senso que a Presidência requer. Ao desembarcar no Japão, para a reunião do G20, o capitão sentia-se cheio de tambores, metais e cornetas. Reagiu a uma cobrança da premiê alemã Angela Merkel sobre meio ambiente como se fosse o próprio Hino Nacional. Murphy o espreitava. O presidente francês Emmanuel Macron ecoou Merkel. Vão procurar a sua turma, bateu o general e ministro palaciano Augusto Heleno. Em vez de acalmar o amigo, Heleno revelou-se uma espécie de Murphy em dose dupla.

Bolsonaro e seu séquito tinham todo o direito —e até o dever— de responder a Merkel e Macron. O problema é que, considerando-se o timbre, pareciam tomar o partido não do Brasil, mas do pedaço mais atrasado do país, feito de desmatadores vorazes, trogloditas rurais e toupeiras climáticas. O interesse do moderno agronegócio brasileiro estava longe, em Bruxelas, na reunião em que se discutiam os termos do acordo entre Mercosul e União Europeia. Ali, sabia-se que a insensatez ambiental levaria à frustração do acordo comercial ambicionado há duas décadas.

Súbito, o Evangelho de João iluminou os caminhos do capitão, apaziguando-lhe a alma. Num par de reuniões bilaterais, Bolsonaro soou conservador sem fazer concessões ao atraso. Falou de uma certa "psicose ambiental" que fez Merkel arregalar os olhinhos. Mas declarou que o Brasil não cogita deixar o Acordo de Paris, dissolvendo as resistências de Macron. As palavras de Bolsonaro desanuviaram a atmosfera na sala de reuniões de Bruxelas. Por um instante, o "show de besteiras" saiu de cartaz. E a sensatez pariu um acordo.

Bolsonaro faria um enorme favor a si mesmo e ao país se aproveitasse o embalo para enganchar nas celebrações do aniversário de seis meses a estreia de um espetáculo novo. Nele, o Planalto deixaria de ser uma trincheira. O presidente trocaria o recrutamento de súditos pela busca de aliados. A ala familiar seria desligada da tomada. O guru de Virgínia perderia sua cota na Esplanada. Ministros cítricos e tóxicos seriam substituídos por gente técnica e limpinha.

O problema é que esse conjunto de modificações depende de uma mudança de chave no cérebro do próprio Bolsonaro. Algo que parece condicionado a um milagre. Não basta conhecer a verdade. É preciso querer se libertar do atraso.

O governo atirou no que viu, acertou no que não viu - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 30/06


O acordo entre Mercosul e União Europeia cria a maior zona de livre comércio do mundo e tem de ser bastante comemorado. Eu comemoro, agradeço e faço um brinde. Parabéns aos envolvidos – a todos os envolvidos. As negociações não começaram em janeiro, com a posse de Bolsonaro, mas há cerca de vinte anos. Entre idas e vindas, arranques e freadas, PT atrapalhando, enfim foi concluído.

Bolsonaro e sua equipe tiveram o mérito inegável de aparar as arestas, acelerar o processo e arrematar o negócio; o impulso liberal de Paulo Guedes e o peso comercial do Brasil terão sido decisivos, tudo somado aos interesses dos outros integrantes do grupo; Argentina, em especial. Ao vencedor, as batatas. Porém, não deixa de ser irônico, quase surpreendente, o desfecho do imbróglio.

Pouco tempo atrás, bem outra era ideia. Já na corrida eleitoral, Bolsonaro acenava com uma relação obsessiva com os EUA (e Israel), alinhado à visão de que existem dois polos de poder no mundo: EUA-Israel, representantes da civilização judaico-cristã; e o resto, representantes do bicho-papão. O resto consiste num amálgama de comunistas europeus, metacapitalistas, muçulmanos, chineses e longo etc., todos numa indecorosa suruba geopolítica.

De fato, os primeiros movimentos da política externa foram nessa direção. Para sorte do governo – e dos governados – a realidade na prática é outra.

A guerra comercial entre EUA e China deixava Europa e América Latina à deriva. As negociações de mais de duas décadas entre Mercosul e União Europeia estavam prestes a ter final melancólico. Interessava aos dois blocos que o tratado fosse assinado. Pareceu oportuno resgatar algum protagonismo num mundo em que EUA e China dão as cartas do poder, enquanto a Rússia esconde as suas sob a manga da espionagem.

Diante da perspectiva auspiciosa, o governo brasileiro, até então liberal na economia e conservador nos costumes, resolve ir de vez para a zona (de livre comércio) e se assume liberal nos costumes da economia. Deixou de lado as juras de amor e o casamento monogâmico com os EUA, saiu do armário e embarcou no poliamor. Em vez de relações bilaterais EUA-Brasil, relações multilaterais Europa-Brasil-EUA. Sem com isso enfraquecer a união com os americanos. Viramos país-da-vida, qualquer um pega.

Tudo isso que ora é comemorado, no entanto, quase não aconteceu. Não apenas por causa da fidelidade canina aos EUA de Trump, mas porque distinta era a concepção do governo sobre o Mercosul (deveríamos ter saído) e sobre o comércio internacional (deveríamos ter cuidado com os metacapitalistas). Há falas da família presidencial defendendo a saída intempestiva do Mercosul. Há declarações de Paulo Guedes garantindo, em brado retumbante, que o Mercosul não seria prioridade.

Pois agora é.

Os entusiastas latinos do Brexit, as Daianes dos Santos da política tupiniquim, deram o duplo twist carpado ideológico e passaram a defender, para o Brasil, o contrário do que defenderam para a Inglaterra.

“Oh, veja bem, são duas coisas muito diferentes!” – dirão eles. Os conspiracionistas são os maiores entendidos das próprias conspirações, reconheço.

A tese arrumadinha é a seguinte: globalização é uma coisa, globalismo é outra.

Globalização é integração comercial, zona de livre comércio, liberalismo do bom e do melhor.

Globalismo é sujeição política, zona de influência, submissão da soberania nacional aos (sempre suspeitos) interesses internacionais.

Existe um grande Centrão mundial, mais endinheirado e mais diabólico que o nosso Centrãozinho, que pretende fazer não sei o que com o mundo, e para isso tem de sufocar ou neutralizar a política nacional por meio de tratados supranacionais. Representantes não eleitos mandam mais do que representantes eleitos. ONU, Unesco, União Europeia contam mais do que Legislativo, Executivo e Judiciário.

Deixo de lado o debate sobre o que há de real – e, sendo real, o que há de diabólico – na tese do globalismo. A discussão seria longa e tortuosa em demasia, para o momento.

Assumindo, portanto, a premissa de que existe um fenômeno – ou “projeto”, como preferem os denunciadores – dito globalista, resta saber se ele pode funcionar a despeito do outro processo em curso – o da globalização econômica. E defendo que não. São dois movimentos integrados, mutuamente influentes e, nalguns aspectos, sinto dizer, indistinguíveis.

Um ponto que deveria ser óbvio: o globalismo é financiado, sustentado ou colocado em marcha por metacapitalistas globais, não por quitandeiros de bairro. Gente como Soros e os Rockefeller (os irmãos Koch são os metacapitalistas do bem). O metacapitalista tem dinheiro, muito dinheiro, dinheiro que não pode ser contado, dimensionado, rastreado, bloqueado. Esse dinheiro todo não seria possível num comércio puramente nacional. Ele só se viabiliza com a globalização, os grandes acordos, as zonas francas do mundo, a homogeneização regulatória, a especulação financeira. Globalistas se beneficiam – e se financiam – por meio da globalização. A globalização é o caixa-eletrônico do globalismo.

Mas há outra consideração importante a ser feita: ainda que com alguma boa vontade seja possível diferenciar globalização de globalismo, zona de livre comércio de zona de influência, economia livre de burocracia comprometida, o fato é que só mesmo a ingenuidade – ou pior: a má fé deliberada – para explicar a crença numa globalização comercial isenta de qualquer globalismo burocrático.

Ora, a economia, embora tenha sua própria lógica, não se dá no vácuo institucional. Transação econômica nenhuma acontece por meio de escambo. O Brasil, com a entrada no acordo, não mandará uns carroceiros à Europa para vender cana e carne seca, na confiança da palavra de homem, do fio de barba e do aperto de mão. Tratados comerciais implicam amplos tratados políticos, institucionais e burocráticos.

Alguns pontos de contato já apareceram. Questões ambientais terão impacto e não serão marginalizadas. Os cuidados com o meio ambiente não são mais vistos, mundo afora, como desperdício ou ideologia, mas como valor, postulado ético, conditio sine qua non. Macron deu o recado, Merkel idem. O Brasil terá de rapidamente ajustar o discurso – e a prática correspondente – às regras internacionais. Ou faz isso, ou não ganha dinheiro.

Também no que diz respeito às questões sanitárias, ao uso de agrotóxicos, às normas trabalhistas, estejam certos: o país estará sujeito a interferências importantes. Não é improvável que, ao longo do tempo, os problemas migratórios sejam colocados em pauta. Já ouviram falar dos tratados internacionais sobre direitos humanos? Acordos podem ser quebrados; vide o Brexit. Ou aceita, ou pede pra sair.

Isso tudo porque, afinal de contas, economia nunca é só economia, muito menos em negociações de magnitude transcontinental. Considero ótimo que a visão realista-liberal tenha se sobreposto à alucinação conspiratória. Não existe, fora da retórica bruta e oportunista de uns e outros, a opção de ganhar dinheiro de todo mundo sem se submeter a nada e a ninguém.

Que os nacionalistas à direita e à esquerda enfiem a viola preconceituosa e protecionista no saco, e saibam reconhecer o que é bom e dá certo. Um mundo livre, um mercado cada vez mais livre, é o que há de necessário. Reparem: um mundo livre mesmo, também para as gentes que vivem nele. Quer gostem, quer não gostem de admitir os cantadores de vitória, quem assina o contrato em letras maiúsculas da globalização também está assinando as letras miúdas do globalismo. É venda casada."

25 anos do Real: três lições - GUSTAVO FRANCO

ESTADÃO - 30/06

Um grande acerto do Plano Real foi tratar da infecção e não tanto dos sintomas

Escrevo sobre o aniversário do real a cada ano, desde o primeiro, e o assunto não termina. Sempre se encontra um jeito de trazer alguma lição importante para a atualidade e desta vez me ocorre elaborar sobre três coisas que o Plano Real fez muito certo, e que não são óbvias.

A primeira é sobre como trabalhar com públicos hostis, no caso, irritados tanto com a inflação quanto com o combate à inflação. Em lugar de panaceias como “pactos sociais” e “controle social dos preços”, introduzimos a URV, um mecanismo compatível com os incentivos das pessoas físicas e jurídicas diante dos riscos introduzidos tanto pela inflação quanto pelo programa de estabilização.

Hoje temos um nome para isso, consagrado em 2007, quando a Academia Sueca deu o Nobel de Economia a três pioneiros da “teoria do desenho de mecanismos” (Eric Maskin, Leonid Hurwicz e Roger Myerson). Trata-se de construir mercados, jogos ou mecanismos cujas regras são tais que pessoas egoístas seguem seus piores instintos, mas o resultado coletivo é o melhor para a sociedade.

A nossa URV era exatamente isso, seus resultados foram brilhantes e a grande lição aqui tem a ver com o alinhamento de incentivos.

Entretanto, ainda que bem sucedida, a URV passou longe de resolver o problema inteiro. Em julho de 1994, já com a nova moeda, a inflação foi de 6,8%, e em agosto foi de, 1,9%. Nesses dois primeiros meses, a taxa de inflação anualizada foi de 66%, e nos primeiros 12 meses de vida do real o IPCA acumulou 33%. Números inaceitáveis.

Não há dúvida que começava aí uma segunda fase do Plano Real, bem menos charmosa e festejada que a reforma monetária. Tivemos sucesso na invasão da Normandia, mas tínhamos um longo caminho, e muitos campos minados e metralhadoras inimigas até Berlim.

O segundo grande acerto do Plano Real foi tratar da infecção e não tanto dos sintomas. Era a diferença relativamente aos “choques heterodoxos”, a equipe do real acreditava em antibióticos, cuja administração teve duas vertentes.

De um lado, tratava-se da reconstrução institucional da moeda, o que começava pela governança, continuava com o ajuste no sistema bancário privado, com a extinção ou privatização dos bancos estaduais, com o conserto dos bancos federais e as renegociações de dívidas e programas de ajustamento das finanças estaduais, dos quais resultaria, alguns anos à frente, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Uma agenda muito carregada.

De outro, a partir de 1995, começam os antibióticos de natureza constitucional. Em seu primeiro mandato, FHC enviou ao Congresso 27 PECs, 13 das quais foram aprovadas, e mais 11 em seu segundo mandato, aprovando 6. É muito mais do que todos os outros presidentes subsequentes somados (24 PECs apresentadas e 7 aprovadas), sem falar no peso de cada emenda.

Desde Castelo Branco o País não experimentava uma combinação tão intensa de reformas modernizadoras com impactos tão agudos para o futuro do País, graças à estabilização, e em apoio a esta. É interessante como urgências e resultados interagem com a política e ajudam a passagem de reformas.

O terceiro acerto do Plano Real foi o de não ceder à complacência, e levar o trabalho até o fim, pois não existe meia estabilização. Isso significava para o Banco Central, que até pouco tempo antes era chamado (pelo presidente Itamar) de “caixa preta”, cumprir a missão para o qual tinha sido criado em 1964, 30 anos antes. Já era tempo.

Como se sabe, o superávit primário só apareceu para ajudar em 1998, quando o trabalho já estava praticamente completo, de modo que depois de julho de 1994 a Autoridade Monetária teve de utilizar as políticas monetária e cambial em gradações elevadas conforme necessário para completar sua missão, pois não se abandona o crack parcialmente.

Esta segunda fase levou vários anos. A inflação caiu abaixo de 20% anuais apenas em abril de 1996, 22.º mês da nova moeda, e abaixo de 10% apenas em dezembro, 30.º mês e abaixo de 5% em janeiro de 1998, o 43.º mês. Em 1998 a inflação foi a menor desde a criação do BCB: 1,6% anuais. Foi quando a estabilização se completou.

Como teria sido a vida se, no meio do caminho, o presidente cedesse às pressões para o afrouxamento das políticas de juro, câmbio e fiscal?

São muitos os cenários possíveis, mas creio que na maior parte deles a abstinência parcial ia arruinar o tratamento, de tal sorte que, muito provavelmente, não estaríamos comemorando coisa alguma nesse momento.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

Hora e vez de Bolsonaro - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S. Paulo - 30/06

Não há exagero nem do governo, nem da agricultura, nem da indústria quando todos classificam o acordo do Mercosul com a União Europeia como o mais importante já fechado em toda a história do Brasil e do Mercosul. Afinal, envolve um mercado de 750 milhões de consumidores e um PIB de US$ 19 trilhões, com capacidade de alavancar, aos poucos, a retomada do crescimento econômico e os empregos, abrindo novos tempos para o Brasil.

Então, por que demorou tanto, longuíssimos 20 anos? Primeiro, porque as negociações são setor a setor e em três camadas: com a União Europeia, que reúne 28 países, com o Mercosul, com quatro sócios desiguais, e com os vários setores exportadores do próprio Brasil. O interesse dos produtores de etanol, por exemplo, é diferente do das montadoras de automóveis.

Mas não foi só isso. Além das dificuldades inerentes a negociações internacionais de grande porte, houve percalços políticos, com a danada da ideologia no meio. O processo começou em 1999, no segundo governo Fernando Henrique, mas perdeu força com Lula e Dilma Rousseff, que apostaram tudo no mercado interno e nas negociações multilaterais, relevando as bilaterais ou entre blocos – além de terem empurrado a Venezuela para o Mercosul, o que afugentou os líderes europeus.

As trocas de Dilma por Michel Temer e de Cristina Kirchner por Maurício Macri, na Argentina, imprimiram a guinada liberal no Cone Sul e abriram espaço para o acordo com a Europa. O Paraguai também aderiu à onda liberal e o Uruguai manteve-se à esquerda, mas eles contam menos. E, para alívio de todos e felicidade geral das nações, a Venezuela está suspensa do Mercosul.

Foi com Temer e Macri que o acordo avançou, consolidou-se, ganhou forma. Assim como Bolsonaro já encontrou o plano de privatizações e concessões pronto, com o cronograma e a lista de setores e empresas definidos, ele já tomou posse com o acordo Mercosul-UE bastante amadurecido, na cara do gol.

Talvez até – e isso só os europeus podem confirmar – só não tenha sido fechado no ano passado porque a UE achou mais prudente aguardar as eleições brasileiras e o desempenho do presidente eleito, que, aliás, não parecia tão simpático ao Mercosul na campanha. Detalhe: o craque das negociações na gestão Aloysio Nunes Ferreira, embaixador Otávio Brandelli, é o atual secretário-geral do Itamaraty com o chanceler Ernesto Araújo. Ele tinha toda a memória das negociações e foi personagem importante na reta final.

Nas avaliações tanto do governo quanto da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Brasil vai aproveitar os ventos favoráveis e o céu é o limite. A isenção de tarifas e o aumento de cotas não começam amanhã, às 8 da manhã, elas demoram e têm uma transição que pode chegar a até 15 anos. Mas é, sim, um marco importantíssimo, que pode impulsionar as exportações brasileiras em US$ 100 bilhões e os investimentos em US$ 113 bilhões. Um alívio, no rastro de recessão e de anos de estagnação.

Depois de tantas palavras fora de hora, derrotas no STF e no Congresso, medidas provisórias e decretos grosseiramente errados e um chocante “show de besteiras” que mina sua popularidade, Bolsonaro agora tem o que comemorar, até mais do que as licitações de portos e aeroportos.

Bolsonaro, aliás, sai vitorioso também do G-20. A seu jeito, um tanto estabanado, ele ganhou elogios de Trump, respondeu à altura a Merkel, surpreendeu Macron, foi malcriado com Xi Ji Ping com boas razões, comprometeu-se com o Acordo de Paris e abriu mais a porta da OCDE para o Brasil. Tomara que aproveite o acordo com a UE e o bom momento para parar de fazer e falar “besteiras”, controlar os excessos do seu entorno e passar a governar, ou seja, a focar as prioridades do País.

G-20 e acordo com a UE abrem nova fase, mas presidente tem de acabar com o ‘show de besteiras’

O dinheiro simplesmente acabou - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 30/06

Atual política fiscal não resulta de uma escolha


Alguns economistas têm criticado a “obsessão” pelo ajuste fiscal em decorrência dos seus efeitos deletérios sobre a atividade econômica, enquanto outros defendem a expansão do investimento em infraestrutura.

A atual política fiscal, no entanto, não é o resultado de uma escolha. O dinheiro acabou e o governo não pode aumentar o gasto público.

O problema decorre de muitas leis que tornaram compulsórios diversos gastos públicos, há décadas crescendo bem mais do que a renda nacional. Faz tempo, a receita corrente não é suficiente para pagar esses gastos, quanto mais as despesas discricionárias necessárias para manter a máquina pública funcionando.

Nos últimos anos, as contas foram pagas com receitas extraordinárias, como a devolução dos empréstimos ao BNDES ou o lucro do Banco Central. Essas fontes, no entanto, estão secando. A saída seria o governo se endividar para pagar as despesas correntes, mas isso é proibido por artigo da Constituição —a regra de ouro.

Por essa razão, o governo teve que pedir ao Congresso a aprovação de crédito suplementar, uma saída que pode ser até legal, mas fere o espírito da regra de ouro. A alternativa seria interromper pagamentos de programas como o Bolsa Família, o que ninguém tem defendido.

Não há mais nada que o governo possa fazer na seara fiscal sem a revisão das leis em vigor.

Parece inevitável rever a regra de ouro. Essa mudança deveria ser acompanhada de medidas adicionais que interrompam o aumento descontrolado do gasto público, a começar pela reforma da Previdência.

Caso o governo tenha que se endividar para pagar despesas correntes, a contrapartida deveria ser proibir o aumento dos gastos com os servidores, a concessão de subsídios e a criação de despesas obrigatórias.

Sem essas medidas, o crescimento da dívida pública levará ao aumento da inflação e das taxas de juros, prejudicando ainda mais a economia.

A expansão da infraestrutura seria bem-vinda, mas vale lembrar alguns dos projetos do governo dos últimos 15 anos, como as refinarias ineficientes, o trem-bala e Angra 3. Se é para fazer isso, melhor mesmo não ter dinheiro para gastar.

O poder público foi, inclusive, incapaz de propor projetos executivos detalhados, o que resultou em falta de previsibilidade das contrapartidas ambientais e sociais, comprometendo severamente os planos iniciais.

Quem vai investir em infraestrutura depois dos seguidos problemas emBelo Monte e no linhão de energia em Roraima? Houve ainda as desastrosas intervenções nos setores de óleo e gás e de energia.

Não faltam recursos privados para os investimentos; faltam, isso sim, regras previsíveis, o que é fácil de diagnosticar, mas difícil de resolver. Os problemas são mais sutis do que sugerem as frases de efeito.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

'O acordo comercial entre União Europeia e Mercosul' - CELSO MING

O Estado de S. Paulo - 30/06


Com o acordo Mercosul-UE, China e EUA serão obrigados a olhar com mais cuidado para o lado de baixo do Equador.


Tantas vezes foi noticiada a iminência de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia e tantas vezes esse acordo se frustrou que quase ninguém mais acreditava que um dia seria desentalado. Pois foi desentalado e o resultado é de grande relevância.

Do ponto de vista de sua abrangência, é o maior acordo já assinado pela União Europeia. Atinge uma área geográfica de 773 milhões de pessoas, que perfazem um PIB de 19 trilhões de euros (ou US$ 21,7 trilhões), um comércio conjunto de bens avaliado em 88 bilhões de euros (ou US$ 100 bilhões) por ano e um comércio de serviços de 34 bilhões de euros (ou US$ 39 bilhões).

Seu maior significado político é o de que foi concluído num momento em que o governo dos Estados Unidos – mais particularmente o presidente Trump – mobiliza toda a máquina da maior economia do mundo para desconstruir acordos de comércio, incluído o do Nafta (Estados Unidos, Canadá e México), para torpedear as relações comerciais com a China e desmontar a Organização Mundial do Comércio (OMC), o xerife encarregado de garantir as regras de um comércio limpo.

Para entrar em vigor, o acordo ainda terá de ser sancionado por todos os países nele envolvidos e isso poderá levar mais de um ano. Mas deverá produzir consequências a partir de agora.

A mais importante talvez seja a de que Estados Unidos e China, os dois maiores gigantes do comércio mundial, sejam obrigados a olhar com mais cuidado para o lado de baixo do Equador e a se mobilizar para abrir seus mercados também para o Mercosul, sob pena de perder influência sobre uma área de grande potencial econômico e geopolítico.

Do ponto de vista dos interesses do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), esse acordo, que dá acesso recíproco a um dos maiores mercados do mundo, tende a trazer volume importante de investimentos para os países do bloco. Espera-se, também, que o setor produtivo inteiro, e não só a indústria do Mercosul, se veja obrigado agora a se modernizar e a adotar padrões de qualidade de primeiro mundo. Aquele velho defeito de nascença da Fiesp e da Confederação Nacional da Indústria, de só buscar proteção e generosos subsídios do governo, perde espaço diante de um acordo de tamanha relevância. Se não ganhar competitividade e não se incorporar rapidamente às cadeias globais de produção, perderá fatias de mercado para produtores mais dinâmicos da Europa e continuará a se desidratar.

Como o novo acordo empurra a economia do bloco para maior competitividade, será inevitável agora atacar todos os focos do alto custo Brasil que emperram o desenvolvimento. De nada adiantará a abertura de mercados se, ao mesmo tempo, não for reduzida a carga tributária, se não forem atacadas as reformas, derrubada a burocracia e se não forem feitos investimentos maciços em infraestrutura.

Até agora, o Mercosul não passou de uma intenção. Embora se considere uma união aduaneira, segundo grau de integração comercial, não conseguiu nem sequer ser área de livre comércio. Resume-se hoje a ser conjunto de currais estanques, cujo intercâmbio entre seus próprios membros está sujeito a tarifas alfandegárias, cotas de importação, licenças prévias e, muitas vezes, a esdrúxulas barreiras não tarifárias. Enfim, esse acordo já será grande sucesso se conseguir avanço também nas regras de comércio dentro do bloco.

De Osaka, onde se encontrava para a cúpula do G-20, o presidente Bolsonaro celebrou o acordo como acontecimento histórico. Retomadas no governo Temer, as negociações obtidas na semana passada deixam de ter boa parcela de mérito do atual governo. Mas, não dá para esquecer, esta celebração vem na contramão de outras políticas e outras atitudes do governo Bolsonaro, que vinham favorecendo modelos populistas fechados e anti-globalizantes.

Com mais recuos do que avanços, o acordo entre o Mercosul e a União Europeia vinha sendo negociado há exatos 20 anos. Por motivos ideológicos, os governos do PT repudiaram a abertura comercial. Por isso, sepultaram o projeto da Alca (tratado de livre comércio com os Estados Unidos), congelaram o acordo com a União Europeia e empurraram o Brasil para o isolamento comercial. O tempo dirá se prosseguirá nesse caminho da modernização ou se, outra vez, preferirá permanecer estagnado.

A serventia da imprensa - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 30/06


A imprensa estará cumprindo bem seu papel se mantiver em relação ao governo o distanciamento necessário para ter sobre ele visão questionadora e independente.


Houve notável entusiasmo de grande parte da sociedade brasileira com os resultados das eleições de 2018, porque esse desfecho parecia simbolizar uma ruptura com a era lulopetista, marcada pela corrupção e pela irresponsabilidade administrativa. O triunfo dos candidatos que se apresentaram como o “novo” e como a antítese de tudo o que se atribuía ao PT indicava a clara insatisfação do eleitorado com aquele estado de coisas e, por conseguinte, denotava a esperança de mudanças radicais que despertariam o enorme potencial adormecido em razão da captura do Estado por quadrilhas e corporações corruptas.

Para os mais empolgados, a vaga reformista, capitaneada não só pela eleição do presidente Jair Bolsonaro, como pela surpreendente renovação dos quadros parlamentares na União e nos Estados, demanda da sociedade brasileira total engajamento para atingir os fins a que se destina – quais sejam, limpar o País da corrupção e das influências da esquerda e colocá-lo no rumo do crescimento exuberante, mercê das reformas estruturais modernizantes. Mas o que deveria ser um movimento de revivificação das forças nacionais vai-se tornando um impulso de radicalização e de desunião, incapaz de analisar criticamente as razões de sua própria paralisia. Prefere-se atribuí-la a quem não anuncia sua absoluta aderência aos, digamos, princípios do bolsonarismo e a quem quer que deles se desvie ou em relação a eles nutra qualquer crítica.

Nesse contexto, não são poucos os que julgam que a própria imprensa deveria unir-se aos esforços do governo. O jornalismo, segundo essa visão, deveria refrear seu natural ímpeto de fazer reparos às iniciativas governamentais, pois estas visariam exclusivamente ao interesse público e ao bem comum; por outro lado, o jornalismo deveria dedicar-se a apontar as artimanhas daqueles que lucrariam com o retorno ao desvario lulopetista.

Conforme essa visão, os erros do governo e de seus membros seriam fruto quase natural e esperado de um pedregoso processo de reconstrução nacional, ao passo que qualquer reparo aos projetos governistas só pode ser resultado do inconformismo da “velha política” com o saneamento moral empreendido pelo bolsonarismo. Logo, ao focar sua atenção mais no governo, procurando dissecar os problemas políticos e administrativos da Presidência de Jair Bolsonaro, a imprensa estaria fazendo o jogo dos inconformados e, no limite, prejudicando o País.

É neste momento, portanto, que se faz essencial relembrar qual é a serventia da imprensa em uma democracia. O escritor George Orwell, que entendia como poucos a essência do totalitarismo, dizia que, “se liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”.

A imprensa estará cumprindo bem seu papel se mantiver em relação ao governo o distanciamento necessário para ter sobre ele uma visão questionadora e independente. É o que o Estado vem fazendo ao longo de sua história de 144 anos. Não se trata de fazer a crítica pela crítica, e sim observar se os princípios da boa administração e da boa política estão sendo respeitados, pois disso depende em grande parte a saúde da democracia.

Por isso, nenhum governo pode ser tratado com condescendência pela imprensa. O escrutínio público dos atos de governantes em geral é o único antídoto eficaz para o autoritarismo. Sem essa fiscalização permanente, que é tarefa precípua do jornalismo sério, os cidadãos tendem a ficar no escuro a respeito de decisões que afetam o País e seu futuro. Sem informações críticas para aquilatar o trabalho das autoridades, os cidadãos podem se ver enredados quer pelo discurso oficial, quer pela narrativa da oposição – em qualquer dos casos, alimentam-se o populismo e o extremismo, sem que o interesse nacional seja de fato atendido.

Há quem diga que, a despeito de tudo isso, a imprensa deveria “colaborar” para que o governo seja bem-sucedido, pois disso dependeria a redenção do País. Essa colaboração se daria de duas formas: primeiro, por meio do reconhecimento das boas intenções do governo; segundo, por meio da crítica aos que estariam efetivamente prejudicando o País – nomeadamente os corruptos recalcitrantes.

Ora, nesses termos não haveria mais a necessidade de uma imprensa livre; bastaria a propaganda oficial. Mas então não estaríamos mais numa democracia.


Quem vigia o vigia? - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 30/06

Projeto sobre abuso de autoridade, aprovado no Senado, tenta preencher lacuna


Na vida pública, quem ganha poder deveria também ter mais responsabilidade. Por esse prisma, agiu bem o Senado Federal ao aperfeiçoar e aprovar dispositivos que punem criminalmente o abuso de autoridade, no bojo de projeto que aperta o cerco contra a corrupção.

O juiz, de acordo com o texto votado na quarta (26), estará sujeito a penas que vão de seis meses a dois anos de detenção se praticar atos como o de proferir julgamento em situações em que a lei o impede ou opinar sobre processos ainda pendentes de decisão.

Já o integrante do Ministério Público submete-se ao mesmo espectro de punição se emitir parecer em situação proibida pela legislação ou se investigar alguém sem mínimos indícios de prática criminosa, entre outros atos tipificados.

A motivação político-partidária nas condutas de magistrados, procuradores e promotores também vai se tornar crime na hipótese de esse trecho do projeto passar incólume pela Câmara dos Deputados.

Os senadores tomaram o cuidado de estreitar a margem de interpretação para quem for aplicar os princípios elencados no texto.

Não basta a autoridade ter incidido nas situações descritas para ser enquadrada. É preciso que tenha atuado deliberadamente, com a intenção de prejudicar alguém ou de obter vantagem. Os legisladores, porém, apenas contribuíram para o anedotário ao acrescentar a esse rol de motivações dolosas o mero capricho e a satisfação pessoal.

Não procedem as críticas de que o avanço do projeto sobre crimes de abuso de autoridade seria uma retaliação às operações anticorrupção da parte de políticos, potenciais alvos dessas investigações.
Inibir nos investidos do poder de Estado a propensão, demasiado humana, para o desvio é uma lacuna secular da legislação brasileira.

Impregna-se na tradição mandonista da República, desde a sua fundação, a cultura da autoridade que não deve satisfação a ninguém, ao que corresponde a figura de um cidadão mal protegido, sujeito a arbitrariedades cotidianas.

A esse substrato a Constituição de 1988 acrescentou categorias superpoderosas de fiscais e aplicadores da lei, sob o objetivo meritório, e satisfatoriamente atingido, de impedir a brotação do germe cesarista sempre latente no Executivo.

E quem controla o controlador?

O sistema apenas tímida e tardiamente tem se lembrado da necessidade de estabelecer limites também a esses agentes. É fraquíssima a capacidade de atuação independente de órgãos de correição, como o Conselho Nacional do Ministério Público, um exemplo do mais rematado corporativismo nacional.

Por isso iniciativas para trazer mais equilíbrio a essa relação, sob a forma de legislações razoáveis e ponderadas como a que saiu do Senado, merecem ser saudadas.