quinta-feira, maio 23, 2019

TEMPESTADE PERFEITA, TALQUEI? — A DEBILIDADE DA ARTICULAÇÃO POLÍTICA DE BOLSONARO - GUILHERME AMADO

REVISTA ÉPOCA

Protestos, inquéritos, recuos: como o capitão eleito para mudar o Brasil conseguiu ter tantas nuvens sobre si em apenas cinco meses de governo?


Na quarta-feira 15 de maio, quem abria os grandes portais de jornalismo do país deparava com o que, em política, costuma-se chamar de tempestade perfeita. As manchetes mostravam as ruas de 160 cidades brasileiras cheias com protestos contra a tesoura na Educação. Também era notícia a quebra de sigilo bancário do enrolado Flávio Bolsonaro. Iniciativas do Ministério Público Federal contra os cortes — contingenciamento, em bolsonarês — e contra o decreto das armas também eram destaque. E, por fim, o quadro era completado por duas informações ruins para o bolso de todo brasileiro: a prévia do PIB do primeiro trimestre do ano indicava uma provável retração e o dólar disparava, deixando o patamar de R$ 4 para trás. Como os aviões, presidentes muitas vezes também caem nessas tempestades perfeitas. E Brasília já farejou isso.

Embora não haja nem fato nem clima político para um impeachment de Jair Bolsonaro, a palavra mais temida por dez entre dez presidentes já circula nas rodas do poder em Brasília. O próprio Bolsonaro a jogou no noticiário, quando, em Dallas, disse que quem protestava contra os cortes queria forçá-lo a pedalar para, depois, pedir sua cabeça. Como o capitão eleito para mudar o Brasil conseguiu ter tantas nuvens sobre si em apenas cinco meses de governo?


“A RESPOSTA ESTÁ NA POLÍTICA — OU NA FALTA DELA. NÃO EXISTE ARTICULAÇÃO NO GOVERNO FEDERAL”

No Planalto, os ministros da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e da Secretaria de Governo, Alberto dos Santos Cruz, e o próprio Bolsonaro — os três que deveriam se encarregar de fazer fluir a relação com o Congresso — não conseguem dar forma a algo que chegue perto do que pode ser chamado de uma base aliada. Os líderes não conseguem convencer nem as bancadas evangélica, ruralista ou da bala, ideologicamente próximas do governo, a ser de fato governistas. Bolsonaro é abertamente atacado por praticamente todos os deputados, insatisfeitos por não conseguirem sequer ser recebidos pelos ministros ou por não conseguirem atender minimamente suas bases. A Esplanada está cheia de causos da falta de destreza política, como o do chefe de um departamento — portanto um cargo de terceiro escalão — que responde a pedidos de audiências com deputados dizendo que só os recebe na frente do ministro.

Outro dia, o deputado federal Coronel Tadeu, do PSL de São Paulo, cansado de não conseguir audiência com Onyx Lorenzoni, foi a Santos Cruz sem agenda marcada, para tentar falar com o ministro. Conseguiu uma brecha e se queixou da dificuldade de parlamentares para serem recebidos no Planalto. Santos Cruz ouviu calado e, no fim, respondeu que a reclamação já foi assunto de reunião de ministros, mas que ele falaria novamente aos colegas que o problema continua. Numa conversa nesta semana na Câmara, Tadeu contou que esta é sua estratégia: chegar a Santos Cruz sem agenda e esperar até ser atendido. “Melhor do que tentar marcar e não conseguir na Casa Civil”, desabafou.

No centrão, o rosário de críticas também ecoa forte. Fausto Pinato (PP-SP) contou que foi chamado para ser vice-líder, mas não aceitou. “Fui convidado várias vezes, mas avisei que, nesse clima sem diálogo, não vou”, disse, dando uma estocada: “Deputado da ‘velha política’ não pode indicar ninguém, mas ex-deputado que o Onyx colocou na Casa Civil ou Olavo de Carvalho e os filhos do presidente podem? Ou pode ou não pode”.

Lorenzoni é um dos mais criticados. Depois de quatro mandatos e sabendo bem as regras do toma lá dá cá que sempre norteou a política brasileira, seus colegas deputados se perguntam se ele está sem poder e engessado ou se apenas se deslumbrou com o discurso da nova política e com a ilusão de que é possível governar sem aderir ao mínimo de diálogo — o que Bolsonaro chamou de “conchavos”, mas que é base da democracia.

No Senado, a senadora Soraya Thronicke (PSL-MS) também apertou Lorenzoni. “Cadê os 120 deputados que você dizia na campanha que estariam alinhados ao Bolsonaro e estariam dispostos a morrer juntos se fosse preciso?”, perguntou a senadora numa conversa com o ministro. No grupo de WhatsApp do PSL, foi além: “Pô, só nós somos aliados 100%? Os outros não têm obrigação nenhuma?”, escreveu, referindo-se ao DEM. Seu colega de bancada, Major Olimpio, de São Paulo e líder do PSL, também está irritado. “Foi um embuste aquilo. Nunca existiu esse número ( de 100 deputados ). A gente fica tomando esses cacetes o tempo todo e cadê esse povo?”, provocou, disparando ainda mais contra Lorenzoni: “Se não quer ajudar a carregar o caixão, pelo menos sai de cima e não faz peso”.

Olimpio também volta as baterias contra a líder Joice Hasselmann. “Não fui eu quem colocou Joice de líder do governo no Congresso.” E sugere que ela aceitou o topa-tudo pela governabilidade. “Se é sinônimo de articulação ceder a tudo que os partidos querem, não topamos.”

O desafio nunca foi fácil, mas é cada mais vez difícil, com a crescente hiperfragmentação da representação política no parlamento. O cientista político Murilo Medeiros, da Universidade de Brasília, analisou a formação das quatro comissões especiais da reforma da Previdência que funcionaram na Câmara durante os quatro governos que tentaram ou conseguiram mexer em algum aspecto do sistema de aposentadorias. No governo FHC, em 1995, havia 11 partidos na comissão. Sob Lula, em 2003, eram 13 siglas. Com Temer, em 2016, havia 22 partidos. A Comissão Especial sob o governo Bolsonaro tem 24. “Aprovar reformas em um sistema presidencialista multipartidário, como é o brasileiro, depende muito da habilidade do governo em arquitetar uma coalizão sólida no Congresso. Depende muito da capacidade de o Executivo repartir poder com o Legislativo”, analisou Medeiros, lembrando que, do contrário, o governo terá de negociar apoio a cada nova rodada de votação com diversos micropartidos, aumentando os custos de coordenação da coalizão e elevando a imprevisibilidade na manutenção dos principais pontos do texto da reforma.

O rompimento de Rodrigo Maia com o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, foi antecedido de vários dias de tensão numa relação que nunca decolou de verdade. Certo dia, Vitor Hugo tentou entrar na residência oficial da Presidência da Câmara e foi barrado. Deu meia-volta do portão de entrada, sob o olhar de assessores de um deputado da bancada evangélica a quem Maia recebia.

É este governo superunido que tenta encher as ruas de apoiadores no domingo. Querem pelo menos ter mais gente do que havia no 15 de maio, o dia da tempestade perfeita. Se conseguirem, será uma importante demonstração de força para um Planalto combalido. Caso haja menos manifestantes e a sensação for de que Bolsonaro não conseguiu arregimentar apoio nem dos mais radicais, a segunda-feira será de enxaqueca no Palácio do Planalto, talquei?

Bolsonaro cria conflito no país e promete criar também R$ 1 tri com novo plano infalível - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLA DE SP - 23/05

Arrumação de gavetas ministeriais não resolve nada nem enche barriga


A pressão das redes insociáveis e a ameaça das ruas fazem efeito e intimidam o miolão do Câmara, o centrão e sua vizinhança, como se vê nesta semana: parece um gol dos bolsonaristas.

O governo recua de medidas ineptas ou repugnantes, por pressão de técnicos ou da sociedade: parece um gol de gente avessa ao governo.

A resultante não presta, a não ser para extremistas que pretendem emparedar instituições. Aumenta os passivos do governo no Congresso e cristaliza o conflito odiento na sociedade. A balbúrdia cria incerteza, medo do futuro, tanto no cidadão que corta ainda mais seus gastos no supermercado como no empresário que investiria um tico mais.

Nesta quarta-feira (22), os deputados desistiam de fazer vários implantes, transplantes e amputações na medida provisória que organizou ministérios ao gosto de Jair Bolsonaro, a dita MP da reforma administrativa.

Caíam até alterações combinadas com o governo, como a recriação do Ministério das Cidades.

É uma vitória do bolsonarismo raiz, liderado pelo próprio Bolsonaro. É uma vitória um tanto inútil, na prática, porque essa arrumação de gavetas ministeriais não resolve nada nem enche barriga. Mas a campanha de vitupérios nas redes e nas ruas contribui para dizimar algum resto de boa vontade do Congresso com o governo.

Quanto ao essencial, Bolsonaro não tem controle do que se passa no Parlamento, não apenas na reforma da Previdência. O Congresso faz tramitar sua reforma tributária e ignora o governo. O pacote anticrime de Sergio Moro pega poeira. O acirramento de ânimos pode levar deputados e senadores a limitar poderes presidenciais, por ora apenas ameaça, mas indício de que se enche o arsenal para o conflito.

O conflito parece ser a meta. Bolsonaro quer alargar os poderes presidenciais, segundo ele limitado por forças terríveis das corporações e, segundo seus seguidores, pelo Legislativo e Judiciário.
Incapaz de administrar, entrega-se a desvarios sobre as possibilidades de seu governo, como se soube também nesta quarta-feira, o que cria mais descrédito ou é contraproducente. Em encontro com governadores do Nordeste, prometeu maná.

Não quero adiantar aqui, brevemente estará sendo apresentado aos senhores antes, em especial aos presidentes da Câmara e líderes, um projeto que, com todo respeito ao Paulo Guedes, a previsão de nós termos dinheiro em caixa é maior do que a reforma da Previdência em dez anos e ninguém vai reclamar desse projeto, com toda certeza, será aprovado aqui por unanimidade nas duas Casas, se Deus quiser, discursou.

Primeiro, a reforma da Previdência não leva dinheiro algum ao caixa. Apenas impede desgraça maior nas contas públicas.

Segundo, não existe medida capaz de criar mais de R$ 1 trilhão a não ser que se faça um governo de rara excelência, em acordo azeitado com o Congresso, o que com alguma sorte aceleraria o crescimento e a arrecadação. Temos visto o contrário. Além dessa hipótese improvável, trata-se de mentira ou maluquice.

De onde sai R$ 1 trilhão?

Bolsonaro repetiu aos governadores que não vai aumentar impostos. Vai então haver em breve peixe grande nas concessões e nas privatizações, como disse Paulo Guedes? Em geral, isso não precisa de Congresso nem vai render tanto.

Parece ridículo discutir esse delírio, mas, considerem, é o que diz um presidente da República com mais de três anos e meio de governo pela frente.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA)

Será tragédia? Ou será chanchada? - EUGÊNIO BUCCI

O Estado de S.Paulo - 23/03

Bolsonaro está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini


“O inimigo avança.” Na tradução de Millôr Fernandes, essa é a frase final de Antígona, a tragédia que Sófocles escreveu há 25 séculos para nos alertar, em vão, sobre os riscos da tirania. A toda hora o rei Creonte usa a ameaça do exército rival para justificar seus abusos contra sua própria gente. É um usurpador. Chantageia os habitantes de Tebas dizendo que se ele, Creonte, não estiver no trono, a cidade cairá nas mãos dos tenebrosos invasores estrangeiros. Se os tebanos não o seguirem e não lhe obedecerem, farão o jogo das tropas que, do lado de fora dos muros da cidade, esperam a melhor oportunidade para destruí-la. Com esse tipo de paranoia conspiratória, domina seu povo pelo medo, até que, ao final, tudo desmorona – enquanto “o inimigo avança”.

Antígona nos ensina que a personagem essencial de toda tirania não é o tirano propriamente, mas o inimigo, o tal que “avança”. É bem verdade que, no caso de Tebas, esse inimigo era real e iminente, embora não fosse tão apavorante como Creonte o descrevia. Em tiranias mais presentes, o inimigo não tem existência factual; é apenas uma construção retórica para emprestar uma legitimidade fraudulenta ao regime arbitrário. No nazismo, os judeus foram postos nesse lugar de inimigo retórico; no stalinismo, o mesmo papel coube aos trotskistas. A propaganda oficial transformava pessoas indefesas – judeus e trotskistas – em oponentes de poderes incomensuráveis, capazes das atrocidades mais indizíveis. A partir daí, a perfídia do totalitarismo consistiu em dizimar seres humanos frágeis como se fossem a encarnação das piores entidades do inferno. Hitler e Stalin aterrorizavam a população e ainda posavam de vítimas, de mártires abnegados dispostos a se sacrificar e morrer pela pátria. Os dois sabiam que jamais se estabeleceriam se não tivessem inimigos retóricos para justificar a si próprios. Sabiam que precisavam inventar a personagem central de toda tirania: o inimigo.

A lição de Sófocles deveria ser relembrada todos os dias. Se você quiser se indagar com o risco de tiranias, não se preocupe em identificar o aspirante ao cargo de tirano. Antes comece procurando pelo inimigo retórico que uns e outros estão construindo com seus discursos histéricos. Por esse critério (infalível), você verá que no mundo de hoje não faltam caudilhos mais ou menos consolidados que, com suas cruzadas contra opositores mais ou menos fictícios, acarretam tragédias maiores ou menores. Quanto ao Brasil, ao menos por enquanto, não temos um tirano instalado, temos um arremedo de algo desse naipe: um presidente que não desiste de ser candidato a ditador. E então? O que representa essa figura? Para onde aponta o destino do nosso país?

O que sabemos até agora é que para alcançar seu objetivo o candidato a ditador tenta a toda hora bestializar a figura daqueles que elegeu como seus inimigos retóricos preferenciais: os políticos, os professores, os gays, os artistas, os jornalistas e um ou outro ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele sabe que precisa de um bloco de inimigos. Presentemente, deu de reclamar que lhe faltam instrumentos de mando. Queixa-se da ingovernabilidade nacional. Pleiteia, sem dizer que pleiteia, poderes para combater essa gente inútil: os políticos, que, segundo ele, só praticam a corrupção; os professores, que fazem lavagem cerebral na cabeça da juventude para desencaminhá-la com doutrinas comunistas; os gays, que conspurcam as bases da família tradicional; os artistas, que – onde já se viu? – querem liberdade; os jornalistas, que apuram os fatos; e, por fim, certos magistrados que ficam aí resistindo e se recusam a mandar prender todos os anteriores de uma vez por todas.

Olhando as coisas por esse ângulo, o risco da tirania ronda também esta terra em que se plantando tudo dá. O presidente candidato a ditador ostenta traços de bonapartismo explícito: nele transparecem o desejo incontido de atropelar os outros Poderes e a obsessão de forjar um laço direto com as massas, passando por cima das mediações institucionais (basta ver as manifestações de rua que ele mandou convocar para o próximo domingo, cuja pauta beira a inconstitucionalidade). O sujeito também carrega traços fascistas: sua pregação desmesuradamente fálica acerca de pistolas e virilidades, além de obscena, é mussoliniana, assim como são mussolinianos os elogios que se tecem no seu entorno a agrupamentos armados fora do comando do Estado. Diante de tais evidências, só se pode concluir que a democracia está sitiada e a tragédia se avizinha.

Acontece que há também um forte componente paródico no personagem em pauta. Com o devido respeito, a estampa de Jair Bolsonaro tem um quê de burlesco. Falta-lhe o carisma, que requer dons pessoais extraordinários. No fundo – cada vez mais gente pressente –, ele está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini. Seus apoiadores começam a debandar, menos por divergência ideológica e mais por se envergonharem das doses incomensuráveis de pastiche-pastelão. Muitos de seus eleitores já se furtam a comparecer às passeatas de domingo, não porque tenham desistido das convicções autoritárias, mas porque ainda lhes resta um pingo de senso de ridículo.

Visto por aí, o cenário não é de tragédia, mas de chanchada da Atlântida. Por esse ângulo, o problema de Bolsonaro não é seu liberalismo fajuto, não são os modos ferozes, não é a bancarrota da economia, não é o despreparo pedestre ou a incapacidade para depreender o significado da palavra nova-iorquino. O seu problema é mais embaixo – e mais baixo. Ele parece estar à frente de um mandato que, por não ter tido condições de se fazer levar a sério, talvez não logre se levar a cabo. Se for isso mesmo, a Nação terá perdido tempo e saúde não com um populista de direita, mas com uma piada asquerosa, regurgitada, sobre a qual o inimigo (real ou retórico) não avança porque se dobra de rir.

Ou será mesmo tragédia?

Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP.

"Por um governo que apenas governe" - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 23/05

"Após o fim do regime militar, Fernando Collor de Mello foi o primeiro presidente eleito pelo voto direto. FHC, duas vezes – e as duas no primeiro turno. Lula foi eleito, reeleito e apontou Dilma, que ganhou uma vez. Deus não é brasileiro e a inacreditável Dilma ganhou de novo. Jair Bolsonaro tem agora sua oportunidade. Só que o Congresso também foi eleito (e renovado). O então eleito Renan Calheiros perdeu o trono para o eleito Davi Alcolumbre.

Etc.

Tudo isso para lembrar que, voto por voto, os representantes eleitos têm legitimidade. Parlamentares inclusos, sinto informar. O brasileiro precisa compreender as regras do jogo democrático: não se governa sozinho, nem seria bom governar. Posto isso, a governabilidade não precisa consistir, como tantas vezes consiste, numa troca de favores e vantagens espúrias, mas sim no debate e no encaixe de ideias, projetos, urgências e prioridades.

Já é hora de o povo se convencer de que a atuação (e, portanto, a qualidade) do Congresso importa mais do que parecia quando retomamos a rotina democrática. Nosso “presidencialismo de coalizão”, na clássica definição de Sérgio Abranches, pressupõe essas grandes costuras políticas, que sazonalmente atrapalham ou são discutíveis. Porém, esse foi o arranjo possível, conquistado a duras penas, com a Constituição de 88: prolixa, em parte ultrapassada, utópica e às vezes absurda – mas é a Constituição que discutimos, assinamos (menos o PT) e promulgamos.

Até no que nossa política tem de ruim, há pontos a relevar. Essa propensão ao conchavo e aos acordos amplos talvez seja o efeito colateral de anos e anos sem conchavo ou acordo nenhum, quando tivemos um regime de exceção e direitos políticos limitados.  A fragmentação partidária e o presidencialismo parlamentar parecem ter sido a resposta natural, talvez inevitável, aos anos de chumbo e de arbítrio. Antes as confusões parlamentares que o autoritarismo populista. Portanto, educar-se politicamente é o mesmo que aprender a gramática e o vocabulário da política. É saber que não se faz a omelete do poder sem os ovos do Congresso.

As manifestações do próximo dia 26 serão legítimas na medida em que forem em essência pacíficas e, sobretudo, enquanto servirem para sinalizar ao Congresso o que o povo espera do Congresso. Reivindicar, propor, argumentar. Por exemplo, a aprovação das reformas necessárias à saúde econômica do país.

Contudo, temo que a motivação seja outra. A depender do que se lê nas mídias sociais – e da postura ambígua, conivente, do presidente e de seus aliados mais próximos –, o dia 26 poderá marcar uma perigosa ruptura simbólica com a liturgia democrática. Mais do que cobrar do Congresso as reformas, o que os militantes pretendem é cobrar o fechamento do Congresso sob o pretexto das reformas.

Se for esse o caso, Bolsonaro confessará suas intenções: fazer de seu próprio governo situação e oposição, fomentar a crise para subornar a paz, sabotar a estabilidade de seu mandato para justificar o recrudescimento de suas posições. Torço para que o ímpeto carismático esmoreça. O Brasil precisa de um governo chato e sem carisma nenhum. Um governo que apenas governe."

Populismo no ar - GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 23/05

Só há uma forma de oferecer serviços melhores a preços mais baixos para o brasileiro: aumento da concorrência e liberdade para fazer negócios


Em março de 2016, a então presidente Dilma Rousseff publicou medida provisória elevando de 20% para 49% o limite de capital estrangeiro em empresas aéreas brasileiras. Durante a tramitação no Congresso, o limite foi ampliado para 100%, mas, em julho, o presidente interino Michel Temer vetou este trecho. No ano seguinte, o governo mudou de ideia e enviou projeto de lei à Câmara, mas que avançou pouco. Por isso, quase no fim de seu mandato, Temer publicou a MP 863/18, abrindo o mercado ao capital estrangeiro. Essa medida necessária, que privilegia a liberdade e a concorrência no setor aéreo, acabou prejudicada pelo populismo na Câmara e no Senado, na recente corrida para votar MPs que estão prestes a caducar.

Em abril, a comissão especial de deputados e senadores que analisava a MP incluiu no texto a proibição da cobrança por bagagens despachadas nos voos, prática adotada em quase todo o mundo e que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) havia permitido em 2016. À época, alegou-se que isso permitiria a redução no preço das passagens, uma argumentação que ignorava um fato extremamente básico: a composição das tarifas leva em conta vários outros fatores que podem oscilar, como o câmbio e o preço dos combustíveis, além da própria dinâmica da oferta e demanda. No fim, a redução indevidamente prometida não ocorreu e, na esteira da indignação popular, os congressistas resolveram trazer de volta a “bagagem gratuita”.

Mas a verdade é que não existe “bagagem gratuita”. Os custos que as empresas aéreas têm com o transporte das malas despachadas – e mais bagagem leva o avião a consumir mais combustível, elevando ainda mais a despesa – serão simplesmente distribuídos entre todos os passageiros, incluindo aqueles que viajam apenas com a malas de mão. Não há segredo algum aqui. Mas essa obsessão por gratuidades que só existem no nome tem o potencial de inviabilizar justamente aquilo que mais se esperava com a MP das aéreas: a entrada das empresas low cost (baixo custo).

O modelo de negócio das low cost consiste justamente em cobrar apenas pelo indispensável – levar um passageiro de uma cidade a outra –, cobrando adicionais por qualquer outra comodidade ou conveniência: despacho de bagagens, marcação antecipada de assentos, prioridade no embarque, refeições melhores ou até mesmo a oferta de refeições. É assim, por exemplo, que a Norwegian Air UK, aérea low cost que começou a operar voos entre o Rio de Janeiro e Londres, pode cobrar tarifas de pouco mais de R$ 1 mil por trecho. Se o país quer atrair mais empresas, que operem mais voos, precisa dar-lhes a liberdade para colocarem em prática o modelo que as torna viáveis. Quando o legislador impõe obrigações desnecessárias e indesejadas, espanta potenciais interessados em operar no Brasil.

Outro “jabuti” enxertado na MP por deputados e senadores quase arruinou a tramitação. A comissão especial havia aprovado uma exigência para as empresas com mais de 20% de capital estrangeiro: nos primeiros dois anos de operação no Brasil, elas deveriam operar pelo menos 5% de voos regionais. O plenário da Câmara derrubou a obrigatoriedade, irritando senadores do Norte e Nordeste, que ameaçaram recolocá-la na MP. Isso mandaria o texto de volta para os deputados, que não conseguiriam votar o texto até o fim da quarta-feira, fazendo a MP caducar. No fim, os senadores optaram por aprovar a versão vinda da Câmara, com o compromisso de que a exigência apareceria em um novo projeto de lei ou decreto presidencial. Agora, o texto vai para sanção do presidente Jair Bolsonaro, que pode até vetar o trecho referente à proibição da cobrança de bagagem, que voltaria ao Congresso.

Só há uma forma de oferecer serviços melhores a preços mais baixos para o brasileiro: aumento da concorrência e liberdade para fazer negócios. Quando o Estado passa a impor exigências sobre o que pode ou não ser cobrado, sobre que rotas as empresas devem operar – em resumo, sobre como entes privados devem alocar seus recursos –, ele intervém de forma desnecessária e destrutiva. Em nome do populismo que garante elogios rápidos e fáceis, e que explora percepções enganosas sobre serviços que não deixam de ter seu preço só porque um burocrata os declarou “gratuitos”, deputados e senadores colaboram para manter a falta de liberdade que faz o investidor estrangeiro hesitar diante da ideia de operar no Brasil. O mercado brasileiro não deixará de ser atrativo, mas, enquanto durar o intervencionismo na atividade econômica, jamais conseguirá desenvolver todo o seu potencial.

O meu pirão primeiro - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 23/05

Quando Donald Trump trombeteia '(put) America first', está dizendo a mesma coisa: em primeiro lugar os americanos – e ele próprio


Farinha pouca, meu pirão primeiro. Quando cantou esse ditado, o sambista Bezerra da Silva o atribuiu aos “tempos de cativeiro”. Mas pode ter sido inventado antes. E, no entanto, em proporções globais, está sendo repetido aí pelos líderes dos movimentos nacionalistas.

Quando Donald Trump trombeteia em seus discursos e no Twitter “(put) America first”, está dizendo a mesma coisa, é o pirão em primeiro lugar para os americanos – e para ele próprio.

Mas veja os brados alardeados pelos movimentos populistas, nacionalistas e/ou xenófobos. Os defensores do Brexit traduzem a mesma exigência por “take back control”. A direita francesa grita “la France pour les français”. Os italianos liderados por Matteo Salvini: “Prima gli italini”. Os separatistas da Catalunha atendem ao slogan “Fem la Republica Catalana”. E a base de governo de Viktor Orban, outro líder direitista, é, em tradução livre, “a Hungria primeiro, e depois todo o resto”.

E é por aí, o resto é resto. A redução da farinha na cozinha dessas classes médias ressentidas e indignadas tem paradoxalmente a ver com amplo movimento global de distribuição de renda. Tem a ver com o atendimento de um dos princípios da Revolução Francesa, que é o da Igualdade. Nessas condições, também paradoxalmente, são frutos (provisoriamente) ruins produzidos por árvore boa.

Na medida em que a China passou a incorporar mais de 400 milhões de chineses antes marginalizados do mercado de trabalho e de consumo e em que outros tigres asiáticos passaram a fazer o mesmo, o aumento do comércio global, o avanço das tecnologias, das comunicações e dos transportes e de tantos fatores mais acabaram por viabilizar economicamente o processo. Mais emprego na China, na Coreia do Sul e na Índiaimplicaram a multiplicação de bens de consumo e de serviços a baixo preço no Ocidente. Com isso, empresas migraram para a Ásia e para a Europa do Leste em busca de mais baixos custos de mão de obra. Mas o desemprego aumentou nos países de origem dessas empresas, o salário ficou mais curto no Ocidente, grande número de governos passou a enfrentar constrangimentos orçamentários que solaparam o cumprimento dos compromissos dos Estados com o bem-estar social, tais como educação, saúde básica, aposentadoria e seguro-desemprego.

A reação visceral dessas classes médias é a repulsa aos imigrantes e aos acordos internacionais que, de alguma maneira, limitam a vida boa e o acesso às benesses esperadas. Daí também a aversão generalizada à liberação do comércio e às instituições democráticas. Em geral, esses movimentos nacionalistas e populistas não têm um projeto claro. Querem a remoção de “tudo o que está aí”, como pregam os coletes amarelos da França. E condenam a atual ordem mundial e as instituições globais: a ONU, a OMC, o Fundo Monetário Internacional, os bancos centrais, os administradores da União Europeia incrustados em Bruxelas, etc.

Querem, sim, mais salário, mais empregos com redução de jornada de trabalho, aposentadoria mais cedo e mais benefícios públicos, mas não dizem como tudo isso se proverá.

É sabido que não dá para conter a migração da indústria nem dá para destruir as cadeias globais de suprimento, produção e distribuição. Daí a aversão, ainda que vaga, aos acordos comerciais que liberalizam o mercado doméstico para produtos importados, que dão emprego para os outros, sem antes suprir o próprio pirão.

Para essa gente, ainda não caiu a ficha de que a globalização e praticamente tudo o que vem junto aumentam a produtividade, reduzem os custos globais e internacionalizam o bem-estar. Só que isso nem sempre acontece no ritmo que satisfaça simultaneamente todos os nós da rede enorme. Basta que um bloco de países caminhe mais rapidamente, como acontece hoje com os asiáticos, para que alhures a distribuição de farinha enfrente oscilações surpreendentes.

Como serão atendidas as reivindicações desses movimentos socioegoístas ou em que praia eles desembocarão ainda não se sabe. Não é com guerras, não é com mais nacionalismo nem com mais autonomia e menos globalização que tudo se acomodará. Ao contrário, a História ensina que as autocracias e o fechamento de fronteiras tendem a se inviabilizar, dada a crescente interdependência entre os povos e as nações.

A História também ensina que a melhor resposta econômica a esses momentos de depressão é um conjunto de obras públicas e sociais que, nos anos 30, foi chamado de New Deal. Mas ainda não se vislumbram saídas desse tipo, porque, com farinha de menos, os Estados também estão quebrados.

Previdência e juros - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 23/05

Como déficit previdenciário é crescente, o governo pega mais dinheiro das demais receitas para cobrir rombo


Acompanhando o noticiário econômico, não raro a gente topa com esta observação: depois da aprovação da reforma da Previdência, o Banco Central pode reduzir a taxa básica de juros. Observação de economistas, claro.

E muitas pessoas se espantam: caramba! Até isso depende da reforma?

A dúvida faz sentido. A relação contas da Previdência/juros existe, mas não é direta. Há uma série de mediações, nada óbvias.

Vale a pena tentar entender. A Previdência é desses assuntos que mexe tanto com a vida particular dos brasileiros quanto com a macroeconomia, ou seja, com a capacidade de crescimento e geração de empregos do país — o que, de sua vez, mexe com a vida das pessoas.

Tentemos, pois, entender.

A despesa com pagamentos de pensões e aposentadorias (do INSS e do setor público) é o maior item federal. De cada 100 reais que o governo gasta, 44 vão para os aposentados do INSS e 12 para os servidores públicos, civis e militares. Portanto, 56% da despesa vão para a Previdência (dados fechados de 2018).

Essa despesa tem sido crescente.

No outro lado da conta, das receitas, aparecem as contribuições pagas pelos trabalhadores na ativa. Aqui aparece o déficit previdenciário: o total das contribuições não cobre o total de aposentadorias.

Este déficit é crescente: R$ 285,5 bilhões no ano passado, contra R$ 268,8 bi em 2017.

Esta é uma conta muito simples. Esqueçam aquelas manipulações que procuram enganar os trouxas dizendo que não há déficit. Reparem num ponto: as instituições que fazem propaganda disso são sindicatos e associações de funcionários que recebem as mais altas — e incríveis — aposentadorias.

De novo, basta somar as contribuições, tirar as despesas e, pronto, lá está o rombo da Previdência.

Próximo passo: como o governo cobre esse rombo, já que as aposentadorias têm sido pagas sem atrasos? Tirando dinheiro dos demais impostos e contribuições pagas por todos os brasileiros. Como o déficit previdenciário é crescente, a cada ano o governo pega mais dinheiro das demais receitas para cobrir o rombo.

Assim, obviamente, sobram cada vez menos recursos para custear todos os demais serviços que o governo deve prestar, basicamente em saúde, educação e segurança.

Duas consequências: os serviços e os investimentos perdem qualidade e quantidade; e o déficit previdenciário torna-se déficit geral.

Exemplo: no ano passado, tirando as receitas e despesas previdenciárias, o governo federal fez um superávit de R$ 75 bi. Isso mesmo, um superávit. Acrescente apenas o gasto do INSS e aparece um déficit de R$ 194,2 bi.

A questão seguinte: como um governo, qualquer governo, financia seu déficit? Verifiquemos três práticas:

Primeira, aumentando impostos. E o governo brasileiro já fez isso e continua fazendo. Ou seja, toma cada vez mais dinheiro dos consumidores e dos investidores privados, travando a atividade econômica. Eis a primeira relação entre contas da Previdência e um Produto Interno Bruto (PIB) menor.

Segunda: o governo toma dinheiro emprestado. E o governo brasileiro faz isso todo ano. A dívida bruta se aproxima dos 80% do PIB, o que torna o devedor cada vez mais duvidoso.

Um grande devedor paga muitos juros. (Hoje, na casa dos R$ 360 bi/ano). Um devedor duvidoso paga taxa de juros ainda maior. E se um governo desse tamanho paga juros altos, toda a sociedade (empresários e consumidores) é obrigada também a pagar esses juros mais caros. Mais dinheiro para o governo, menos para a atividade privada, a que efetivamente gera riqueza e empregos.

Eis a segunda relação: quanto menor o déficit público, menor a dívida, menores os juros, sobra mais recurso para as demais obrigações do governo.

Terceira medida para cobrir déficits públicos: imprimir dinheiro, deixar correr a inflação, pois a inflação desvaloriza o gasto público. A receita é indexada; o gasto, não.

Fechando: o déficit previdenciário crescente contamina o Orçamento federal, tornando-o deficitário. Todas as medidas tomadas pelo governo para cobrir o rombo tomam recursos que poderiam ir para investimentos e consumo privados. Além de tudo isso piorar o serviço público.

Com a reforma, pois, diminui-se o déficit, cai a dívida pública, os juros podem cair mais.

Cristina Kirchner grita truco - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 23/05

O afobado Bolsonaro já havia entrado antes no jogo


A quem nunca jogou truco, breve explicação: quando um jogador acha que tem na mão cartas imbatíveis, grita truco. Se os adversários aceitam o desafio, quem vencer leva o dobro de pontos naquela jogada.

De certa forma, foi o que fez Cristina Fernández de Kirchner na semana passada: em vez de fugir da raia, dobrou a aposta. Indicou para cabeça de chapa outro Fernández, no caso Alberto Fernández, que havia sido chefe de gabinete (uma espécie de primeiro-ministro) tanto com Néstor Kirchner, marido e antecessor de Cristina, como com a própria Cristina.

O curioso nessa história é que Jair Bolsonaro já havia decidido entrar no jogo antes mesmo de Cristina gritar truco: deu várias declarações em que pintava o caos no caso de Cristina voltar à Casa Rosada.

Ao fazer o seu lance, a hoje senadora mudou o cenário em que havia se metido o presidente brasileiro.

É a constatação virtualmente unânime entre analistas argentinos. Cito um, Fernando Manuel Suárez, professor de História pela Universidade Nacional de Mar del Plata, em artigo para Nueva Sociedad, a revista editada pela social democracia alemã:

“O candidato [Alberto Fernández] vem para limar as arestas mais ásperas do kirchnerismo e oferece a Cristina Fernández a possibilidade de demonstrar certa vocação de amplitude e desapego em concentrar o poder.”

Alberto Fernández é considerado um kirchnerista moderado, capaz até de fazer duras críticas à que agora é sua companheira de chapa. Rompeu com ela em 2008 e, em 2015, chegou a dizer que “é dificílimo achar algo de virtuoso” em seu segundo (e último) mandato.

A aposta de Cristina por ele é, pois, arriscada. Qualquer marqueteiro de segunda põe no ar, durante a campanha, as críticas de Alberto Fernández que desqualificam a ex-presidente. Fora o fato de que ela responde a processo por corrupção.

Mas não é maluquice. Cristina é para a Argentina mais ou menos o que é Lula para o Brasil, guardadas, claro, as diferenças entre os dois países e as duas personalidades e biografias.

Há uma massa que a apoia com fervor quase religioso, assim como há outra multidão que a odeia de coração e fígado. Mais ou menos como Lula.

Qual a fatia maior depende dos ventos políticos do momento. Em 2015, sopraram contra ela, e seu candidato foi derrotado por Mauricio Macri, que vestiu com gosto o traje de antikirchenerista. Como Bolsonaro foi essencialmente o anti-Lula em 2018.

Em 2019, os ventos sopram contra Macri: a inflação é desbocada (talvez 50% este ano), a economia retrocedeu 2,8% em 2018 e cairá 1,9% este ano, a pobreza voltou aos insuportáveis (para a Argentina) 32% do período pré-Macri, o dólar disparou e o país teve que correr para o colo do Fundo Monetário Internacional, um anátema para boa parte do público argentino.

Significa que a aposta de Bolsonaro é ainda mais arriscada do que a de Cristina. Pior: os argentinos têm um repúdio profundo a ditaduras e, portanto, veem com antipatia os que a defendem. Se um defensor da ditadura brasileira, como Bolsonaro, veta Cristina, leva votos para ela.

É cedo, no entanto, para dizer para que lado cairão os pontos em dobro desse truco. O que se sabe é que não faltarão emoções fortes até outubro, mês da eleição.

Clóvis Rossi
Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Cisão que dói - ZEINA LATIF

O Estado de S.Paulo - 23/05

País precisa evitar armadilha que beneficia os grupos organizados antirreformas

O Brasil é um país heterogêneo e complexo desde sua formação. Insatisfação popular e interesses locais em conflito com o poder central marcaram o Império e a República Velha. Manter a unidade territorial do País e conter rebeliões e greves exigiu grandes esforços e implicou muitas perdas e traumas causados pela mão forte do Estado. Na ausência de instituições democráticas estruturadas ou de um poder moderador de fato, os conflitos eram frequentes.

A construção do poder central era inevitavelmente impactada pelo ambiente instável, e suas reações aos conflitos com frequência agravavam o quadro. Por exemplo, na República Velha, presidentes civis buscaram apoio em oligarquias locais, o que foi institucionalizado na chamada Política dos Governadores. No arranjo, o governo central apoiava o poder local, por ele indicado, em troca da eleição de bancadas no Congresso fiéis ao presidente, por meio do “voto de cabresto”. Estava plantada a semente da Revolução de 1930, com a deposição de Washington Luiz por uma junta militar, com apoio dos tenentes, dos 3 estados sublevados e de segmentos liberais que ansiavam por democracia. Grupos heterogêneos, mas circunstancialmente unidos por uma causa comum.

A turbulenta era Vargas, com seus contornos autoritários e o fim trágico, só fez aumentar a divisão da sociedade, entre getulistas e não getulistas. A consequente instabilidade política compôs o quadro que culminou no golpe militar de 1964. Enfim, como ensina Bolívar Lamounier, a história é feita por eventos encadeados, e não por eventos independentes.

A divisão do País não é, pois, elemento novo e esteve sempre latente na sociedade. Sua intensidade foi exacerbada ou contida, dependendo da postura do presidente da República. Políticos progressistas optam por fortalecer as instituições e promover a coesão social, o que não impede o enfrentamento de grupos de interesse. Já os de perfil populista, confrontam as instituições, enfraquecendo a democracia, e exacerbam a divergência. Elegem inimigos externos para manterem o apoio dos aliados, buscando vitórias políticas de curto prazo. Dividir a sociedade, no entanto, é decisão arriscada que tem efeito perverso adiante, como mostra nossa história.

Em dezembro de 2017, discuti a importância da coesão para a governabilidade e para a aprovação de reformas pró-crescimento. Sociedades mais coesas - o que significa pessoas mais tolerantes à diversidade e às divergências, e com maior confiança nas instituições e nas demais pessoas - facilitam a construção de soluções majoritárias.

As lideranças políticas precisam estar abertas ao diálogo e promover políticas públicas que contribuam para a coesão social, como o investimento em educação e a promoção da igualdade de oportunidades.

O discurso de posse de Bolsonaro de que seria o presidente de todos parece estar caducando. O presidente tem tropeçado, apresentando comportamento pendular. Sua primeira reação a contrariedades, aparentemente mais espontânea e emocional, é atacar os supostos inimigos e as instituições democráticas. Em um segundo momento, mais ponderado, ele recua e adota tom conciliador, o que é bom. O problema é que, muitas vezes, é difícil corrigir o estrago da intempestividade.

Exemplo recente foi a convocação para manifestações em apoio ao governo no dia 26 próximo, alimentando o ataque (e não simplesmente a crítica) aos demais poderes. Mesmo não participando do evento, a convocação em si aumenta o clima de disputa entre bolsonaristas e não bolsonaristas. Atiçar a cisão latente da sociedade é mau negócio, especialmente diante do frágil quadro econômico.

O Brasil precisa sair dessa armadilha que beneficia grupos organizados antirreformas, mas prejudica a todos ao final. Deveria ser tarefa de todos os presidentes promover o dialogo e fortalecer a coesão social. Bom para o crescimento e também para a valorização de nossa diversa cultura.

Economista-Chefe da XP Investimentos

Com quantos golpes se faz uma republiqueta - MARIA CRISTINA FERNANDES

Valor Econômico - 23/05/2019

Tirar Bolsonaro não resolve o embate de pautas da sociedade


Antes de baixar a bola no tom da confrontação, o presidente Jair Bolsonaro foi informado de que havia muitos filhos de generais da ativa entre os "idiotas úteis" da manifestação contra os cortes na educação. Se os militares orgulham-se de traduzir os valores da classe média, seus filhos não poderiam estar em outro lugar.

O freio de arrumação passou ainda pela indicação da professora mais votada na lista tríplice da Universidade Federal do Rio. Primeira mulher assumir a reitoria, Denise Pires de Carvalho já se posicionou contrariamente tanto à cobrança dos cursos nas universidades públicos quanto a favor de fazer caber a UFRJ dentro do seu orçamento.

O presidente ainda marcou sua nova fase, de duração ainda indefinida, pelo recuo em muitos dos pontos mais sensíveis do decreto que liberou posse de armas no país, como a liberação do porte de armas para a prática de tiros de menores, agora submetida à autorização de ambos os genitores, além do porte de fuzis por civis.

A desistência de ir aos protestos do domingo, face mais exposta da moderação bolsonarista não se deu exatamente pelo receio de fiasco, mas pelo contrário. Analistas que monitoram redes sociais convocatórias, como o professor da USP, Pablo Ortellado, identificaram que o interesse no protesto cresce à medida que aliados de primeira hora do bolsonarismo, como o MBL de Kim Kataguiri ou a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL), críticos da manifestação, passaram a ser os principais alvos de bombardeio.

Ao confirmar ausência dos protestos, a despeito de ter incentivado a espontaneidade, Bolsonaro dá dois recados. Tem tropa para por na rua, mas seu papel é contê-la. Ao cultivar a moderação, Bolsonaro também busca esvaziar a viabilidade política de todos os polos, dentro e fora do seu governo, que se legitimam para ocupar o centro político, do vice-presidente Hamilton Mourão, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Resumiu-o com o inacreditável "o que eu quero mesmo é conversar", com o qual iniciou a semana.

Tanto Olavo de Carvalho quanto o mercurial Carlos Bolsonaro parecem submetidos ao toque de recolher da fase moderada, e de duração ainda incerta, do presidente da República. O guru fez uma pausa no Twitter e no Facebook, voltou, mas num tom abaixo do habitual. Já o 02, cuja instabilidade emocional preocupa o pai, isolou-se.

O ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, que chegou a ter ascendência sobre os filhos do presidente, prevaleceu na guerra de braço com Carlos. O principal elo entre o presidente e o filho hoje um ex-funcionário do gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Waldir Ferraz, um dos poucos a passar o réveillon na Granja do Torto com o eleito. Carlos continua no Twitter mas se mostra temporariamente mais dedicado aos temas de seu mandato de vereador no Rio.

O endosso presidencial a um texto que remetia às forças ocultas com as quais Jânio Quadros tentou permanecer no cargo com superpoderes antes de apelar à renúncia, jogou, pelo confronto histórico, água no moinho da moderação. O renunciante de 1961 apostava no veto militar ao seu vice, João Goulart, situação que não se repete com Mourão, ainda que o general não seja uma unanimidade e só venha a estar, indiscutivelmente, na linha sucessória a partir da segunda metade do governo.

O tom agressivo com os quais os manifestantes de domingo se anunciam já foi capaz de impor alguma racionalidade àqueles que anunciavam o voluntarismo do bolsonarismo como a redenção do país. Eleito deputado federal, Kim Kataguiri descobriu que a política não pode ser demonizada e as mudanças devem ser mediadas pelas instituições. Pomba-gira do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Janaina Paschoal, foi às redes sociais dizer que não faz sentido o presidente da República convocar o caos.

As manifestações de domingo, que ameaçam ir para cima do Congresso, ao ungir o presidente a fazer mudanças sob a inspiração divina com a qual foi eleito, também surtiram efeito sobre o Congresso, que freou a disputa irrefreada pela recriação de ministérios e aceitou a nomeação de dois técnicos para o Cade, pedágio por excelência do Centrão.

Está claro que não é um céu de brigadeiro que se abre para um país com 13 milhões sem emprego e outros 4,9 milhões que já desistiram de procurá-lo e abrem o fosso de sete anos consecutivos de aumento da desigualdade. Mas o desmanche da polarização estabelecida com a eleição presidencial pode ser o início da depuração das pautas que estão em jogo e que não vão desaparecer, num passe de mágica, com a troca de um presidente da República.

É nisso que uma parte dos articulistas críticos ao governo e parlamentares da bancada que chegou ao Congresso pelos ventos da renovação parecem acreditar ao bradarem que o momento não tem alternativas que não sejam a renúncia ou o impeachment. Arriscam-se a ficar falando sozinhos com os palanqueiros da radicalização de domingo.

Tão importante quanto a grande massa bolsonarista divisar as pautas que os unem é a oposição parar de falar "não avisei?". A catarse bolsonarista mostrou as seus apoiadores que, num governo, política se faz pela arregimentação, embate e convencimento. Evitar uma nova aventura de governo abreviado depende desse amadurecimento.

O Brasil já derrubou uma presidente por inépcia e paralisia administrativa sem que um crime de responsabilidade tenha convencido toda a nação. Impeachment não é pena para maus administradores. Esta é a função dos eleitores, os principais juízes de uma democracia.

Tirar um presidente do cargo é garantia última de uma Constituição que aí está para lembrar aos cidadãos que há compromissos históricos assumidos pelo concerto de interesses que um dia tiveram um projeto de nação. Se estes já não cabem no Brasil, cabe refazê-los, mediá-los e distribuir perdas para poucos e fortes e ganhos para muitos que, por fracos, dela estão à margem. Isso se constrói em casa, nas ruas e nas instituições. O resto é golpe e republiqueta.


Escolas melhores para os mais pobres - FERNANDO SCHULER

FOLHA DE SP - 23/05

A condição socioeconômica pesa na aprendizagem, mas não define os seus resultados

A Prefeitura de Porto Alegre fechou uma parceria com a Escola Aldeia Lumiar, instituição privada, sem fins lucrativos, que segue o método inovador trazido ao Brasil pelo empresário Ricardo Semler. O governo irá pagar um valor por aluno inferior ao do sistema estatal e as crianças vão estudar em turno integral numa escola de qualidade, até então acessível a famílias de maior renda.

A iniciativa marca uma ruptura. Ela sinaliza um novo caminho para a educação brasileira, que responde a uma pergunta muito simples: por que nossas crianças mais pobres não podem estudar nas mesmas escolas em que estudam os alunos de classe média e os mais ricos?

Por que elas não podem estudar em escolas inovadoras, tradicionais, construtivistas, Montessori, Waldorf, escolas livres, escolas laicas ou confessionais, pautadas pela qualidade, num ambiente de diversidade, a partir da escolha das famílias, exatamente como acontece com quem tem recursos para pagar?

De fato, elas podem. O Brasil tem legislação para isso e o que falta é romper com a inércia do nosso debate educacional. Romper com a velha ideia brasileira de que, para que um direito seja assegurado aos cidadãos, o Estado deve prover diretamente o serviço. Não deve. O Estado, no Brasil, não é bom provedor de serviços, ainda que possa ser um ótimo regulador.

É ilusão imaginar que a simples troca de modelo irá resolver os problemas da educação. O ponto é permitir que se avance de um sistema estatal rígido para um sistema flexível, em que gestores de baixo rendimento possam ser substituídos.

Em nosso modelo estatal, o que o governo faz quando uma escola funciona mal? Fecha? Demite os diretores? Revoluciona a gestão? Nada disso. Em regra, o governo tem muito pouco ou nada a fazer. Empurra com a barriga, e todos sabemos quem termina pagando a conta.

Se observamos os dados do Pisa, descobriremos o seguinte: nossos alunos de escolas privadas têm nota próxima à dos Estados Unidos, enquanto alunos do sistema estatal ficam nas últimas posições. Os dados são claros: não há crise na educação brasileira, mas na oferta da educação estatal.

De um modo geral, é a crise do Estado, da instabilidade política crônica e da burocracia pública que empurramos para as costas dos mais pobres.

Muitos insistem que os alunos não aprendem porque são pobres. Contaria a condição social e o grau de instrução dos pais. Isso não passa de um tipo vulgar de falácia da correlação. Alunos mais pobres têm desempenho mais fraco não porque são pobres, mas porque são obrigados a estudar em escolas de menor qualidade.

A condição socioeconômica pesa na aprendizagem, mas não define os seus resultados. Afinal, é exatamente para isso que existe a escola. Para superar a exclusão e não se render a ela.

Os dados do Pisa revelam o seguinte: a nota dos alunos de escolas públicas cujos pais têm apenas o ensino fundamental é 373; seus pares de escolas privadas alcançam uma média de 437. A mesma distância se mantém nas demais faixas de escolaridade dos pais. Alunos de escolas particulares com pais no ensino fundamental têm média 58 pontos superior à dos alunos de escolas públicas com pais formados na faculdade.

Os dados mostram que a formação dos pais pesa, mas não define o sucesso. O fator decisivo é a qualidade da escola. Ótima notícia, pois é esse o fator que está a nosso alcance mudar.

Não há nenhuma dificuldade em saber por que boas escolas contratadas no setor privado podem ser mais eficientes. Como apontou o professor Naercio Menezes, do Insper, nesta Folha, "elas têm maior autonomia, podem contratar e demitir professores, pagar salários diferenciados para os melhores, variar o tamanho da classe e introduzir inovações na gestão".

Não há mistério algum nisso. Quem tem recursos para colocar os filhos em boas escolas privadas sabe disso há muito tempo. O desafio é fazer o óbvio valer também para o setor público.

O Brasil se encontra numa encruzilhada. Estamos revendo as regras do Fundeb e o modelo de financiamento da educação. A questão é romper com o monopólio estatal no uso dos recursos. Permitir que estados e municípios possam definir, a partir de sua realidade, a melhor forma de gerenciar a educação.

Isso nada mais é do que fazer valer o estabelecido no artigo 213 da Constituição Brasileira, que equipara as redes estatais a escolas confessionais, filantrópicas e comunitárias. Trata-se de um manifesto de igualdade, feito em nome dos mais pobres. Um direito que vem sendo sistematicamente esquecido no Brasil e que nos exige apenas um pouco de bom senso e coragem para resgatar.

Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Maluquice lógica - WILLIAM WAACK

O Estado de S. Paulo - 23/05

Percepções equivocadas conduzem Bolsonaro a decisões perigosas para ele e o País



Jair Bolsonaro é um personagem político dos mais transparentes. Não deixa dúvidas sobre a maneira como percebe o mundo à sua volta – e as percepções mantidas pelos próprios personagens políticos (malucas ou não) são ferramentas úteis para entender as decisões que eles tomam. Bolsonaro se entende como escolhido por Deus para governar o Brasil. Missão que não está conseguindo cumprir, segundo admite, pois é vítima de um “sistema” que não se deixa moralizar, especialmente a esfera política.

Esse tipo de percepção explica a descrição que o presidente faz de compromissos políticos necessários em qualquer regime representativo democrático (como o brasileiro) como sendo “acertos” espúrios, sobretudo em relação ao Legislativo. E o faz colocar o “povo”, que Deus o encarregou de governar, como seu principal instrumento para quebrar de fora para dentro o “sistema” que tornou o País “ingovernável”. Maluca ou não, é uma sequência perfeitamente lógica.

Erros políticos ocorrem quando o personagem (no caso, Bolsonaro), conduzido por suas percepções, substitui estratégia por aspirações e acredita dispor de meios (pressão popular por meio de redes sociais, por exemplo) para atingir seus fins (controlar os poderes Legislativo e Judiciário). O chamado às ruas que o presidente implicitamente endossou é um desses erros políticos tão crassos a ponto de suscitar uma pergunta: será que não existiria por detrás uma forte jogada política?

Aparentemente, não. Esse chamado dividiu seus apoiadores e mesmo uma estrondosa manifestação popular no dia 26 não diminui – ao contrário, até amplia – as dificuldades de relacionamento do Executivo com o Legislativo. Menos que estrondosa, e ele sai enfraquecido diretamente. A não ser que Bolsonaro tenha no recôndito das reuniões de família pensado no impensável, qual seria o próximo passo para tentar “emparedar” um Legislativo que, de fato, avança – ajudado principalmente pela incompetência do governo – na direção de um “parlamentarismo branco”?

Visões messiânicas da própria atuação em geral impedem personagens políticos de amenizar relações conflituosas (como a atual entre Executivo e Legislativo), pois isso demandaria formação de consensos, e messiânicos tratam preferencialmente de impor a própria vontade, entendida ou não como divina. Enxergam uma “revolução conservadora” numa onda disruptiva de transformação composta por múltiplos elementos antagônicos, que se dedicam agora a disputar o poder entre si (alguém acha que desapareceu a luta entre “ideólogos” e a ala militar, por exemplo?).

Se é que alguma vez a teve, o governo Jair Bolsonaro está perdendo o sentido de urgência para o que realmente importa e, no final das contas, vai de fato definir seu sucesso ou fracasso. O rombo fiscal está se agravando, a economia está estagnada, o crescimento não veio ainda, a arrecadação ficou aquém, piorando dificuldades políticas, fechando opções de acomodação de interesses – tudo isso diante do grande quadro de sempre, caracterizado por infraestrutura precária (investimentos?), formação insuficiente de capital humano (produtividade?) e excessivo fechamento do País.

Percepções equivocadas ou fortemente distorcidas da realidade e do próprio papel conduzem personagem políticos a avaliações equivocadas das relações de força e de poder e, por consequência, ao erro. O problema é que não só o personagem em questão acaba sendo punido pelos fatos ou pagando um preço alto em termos de perda de capacidade de conduzir, liderar, governar. O País também.

Em busca do dinheiro - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 23/05

A ideia em estudo seria permitir, com o pagamento de uma taxa, a atualização do valor venal dos imóveis

O governo estuda uma mudança na declaração de Imposto de Renda que reduziria o pagamento de lucro imobiliário do contribuinte, rendendo, ao mesmo tempo, mais que o trilhão de reais que pretende economizar em dez anos com a reforma da Previdência.

Foi o que o presidente Jair Bolsonaro previu ontem em reunião com a bancada de deputados do Nordeste, brincando com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Os parlamentares ficaram curiosos sobre a medida, e muitos consideraram que a afir- mação do presidente Bolsonaro pode reduzir o apoio à reforma da Previdência, pois o governo já teria uma fonte de renda como plano B.

A ideia em estudo seria permitir, com o pagamento de uma taxa, a atualização do valor venal dos imóveis, o que reduziria o lucro imobiliário a ser pago no ato da venda.

Hoje, o lucro imobiliário tem um imposto de 15%, e, como não é permitida a atualização na declaração do Imposto de Renda, é necessariamente alto o lucro e, portanto, o valor a ser pago pelo vendedor. Algumas exceções existem em leis estaduais, mas são casos específicos.

Essa situação estimula que muitos contratos de venda sejam feitos com o valor da transação subestimado, o que acarreta redução na arrecadação do imposto sobre o lucro imobiliário.

O que não está claro é qual seria o mecanismo utilizado. Pode ser uma taxa fixa, ou proporcional à redução do valor a ser pago, podendo ser a atualização opcional ou compulsória.

Se for opcional, especialistas consideram difícil calcular quanto o governo arrecadaria, pois a taxação teria que ser atraente para os proprietários em relação ao que deveriam pagar de lucro imobiliário no caso da venda.

Seria um mecanismo semelhante à mais-valia, em que o proprietário paga uma taxa à prefeitura para ser autorizado a fazer uma obra em seu imóvel fora dos padrões para sua região. No Rio, existe até mesmo a Mais Valerá, para os proprietários que pretendam fazer obras no futuro.

Só que, no caso da atualização do valor venal, seria um lucro presumido, não realizado para os proprietários que não venderem seus imóveis. Se for compulsória, essa taxação seria um ato de força certamente contestado judicialmente. Poderá ser considerada um novo imposto sobre a propriedade.

É improvável, porém, que a medida que está sendo pensada seja obrigatória, pois o governo a trata como um benefício para a população.

A curiosidade é que em um livro recente da Princeton University Press denominado “Mercados radicais: desenraizando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa”, o economista da Microsoft e da Universidade de Yale Glen Weyl e o jurista da Universidade de Chicago Eric Posner tratam do valor dos bens de capital de um ponto de vista crítico.

Os mecanismos e legislação atuais estimulariam a desigualdade, um calcanhar de aquiles do capitalismo, influenciando o funcionamento da própria democracia.

Eles propõem, entre outras coisas, a taxação auto-estimada, um sistema de posse e impostos pelo qual cada um teria de estimar o valor de seus bens, e pagar um imposto proporcional a essa estimativa.

Essa medida idealmente seria aplicada a todos os bens de capitais. Até aqui, alguma semelhança esse sistema pode ter com a medida que o governo estuda. Mas para por aí. O que os autores americanos propõem é o fim da propriedade, já que todos teriam o direito de adquirir os bens uns dos outros, contanto que pagassem o preço estimado.

Essa “liberalidade”, um toque socialista num projeto que pretende salvar o capitalismo, tem a intenção de impedir que os proprietários subestimem ou superestimem o valor de suas posses. Weyl e Posner estimam que esse imposto geraria aproximadamente o equivalente a 20% do PIB americano, reduzindo a desigualdade.

Nada indica que essa proposta tenha futuro na economia americana, embora tenha causado grandes debates acadêmicos, e nem que o ministro Paulo Guedes leve a tal radicalização o liberalismo. Mesmo porque Glen Weyl admite que mistura marxismo com liberalismo, em busca de uma saída para a crise do capitalismo.

O que o governo Bolsonaro está buscando são medidas que façam a economia sair do marasmo em que se encontra. E dinheiro para equilibrar suas contas.

Qual é o problema? - MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA

FOLHA DE SP - 23/05

O presidente populista dá mais um passo na ofensiva tortuosa contra as instituições


“Esse pessoal que divulga isso faz parte do povo. Esse pessoal a quem devemos ser fiéis a eles (sic) e ponto final.”

No portão do Palácio da Alvorada, de Havaianas, bermuda e duvidosa camiseta da seleção, cada vez mais confortável no uniforme de político populista, Jair Bolsonaro tentou justificar por que resolveu difundir nas redes sociais texto de um consultor de investimentos, segundo o qual o país é ingovernável por conta dos vícios do Congresso, dos políticos e das corporações.

Dias depois, o presidente decretou que “o problema do Brasil é a classe política”.

Segundo o pensador alemão Jan-Werner Müller, o populista sempre se apresenta como representante do “verdadeiro povo” contra as elites que controlam e pervertem as instituições democráticas.

Se estas foram ocupadas por personagens egoístas e corruptos, não há por que respeitá-las. Já em nome do povo, tudo é permitido: ignorar o Legislativo, desqualificar o Judiciário, desdenhar dos partidos. “Sou o que o povo quer”, já dizia o ainda candidato ao Planalto.

O populista também aceita mal, quando não os rejeita de saída, valores e modos de pensar diferentes dos seus; por isso, estigmatiza e apregoa serem ilegítimas outras ideias.

São idiotas úteis os estudantes que protestam nas ruas; mentirosa a imprensa que o critica; formadoras de militantes marxistas as universidades que exercem o seu papel com autonomia; agentes a mando de cobiçosos estrangeiros as ONGs que atuam na Amazônia; criadores de cizânia os defensores das minorias.

Entregue a suas pulsões mais autênticas, o populista fatalmente investirá contra a democracia, por ser avesso aos princípios e às regras que a sustentam.

Nem de longe é razoável acreditar que tenha qualquer compromisso com a democracia o capitão reformado notabilizado pela ameaça de explodir uma bomba caso as reivindicações salariais da tropa não fossem atendidas; o deputado que, ao anunciar seu apoio ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, dedicou o voto ao torturador que a martirizara; o candidato em campanha que declarou que seus adversários mereciam ser fuzilados.

Agora, ao atiçar os seus raivosos seguidores nas redes e estimulá-los a sair às ruas em seu apoio, o presidente populista dá mais um passo na tortuosa ofensiva contra as instituições e os seus agentes.

Que ninguém se engane com a fala truncada, o olhar perdido, a modéstia encenada, a visão rudimentar dos graves problemas do país. Na função para a qual não tem qualificação alguma e não cessa de prová-lo, Bolsonaro se ocupa em dividir e destruir. O problema do Brasil é ele.

Maria Hermínia Tavares de Almeida
Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras

Bolsonaro e o ‘povo’ - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 23/05


Jair Bolsonaro faz o oposto do que o povo esperava que fizesse e seu governo se escora nos devotos da seita bolsonarista. É preciso fé para acreditar que isso pode dar certo.


O presidente Jair Bolsonaro tem feito frequentes referências ao “povo” como guia de seu governo. “Quem tem que ser forte, dar o norte, é o povo”, disse Bolsonaro na segunda-feira passada, declarando-se “fiel” ao que vem do “povo”. Em outra ocasião, foi ainda mais enfático: escreveu que “quem deve ditar os rumos do País é o povo”, pois “assim são as democracias”. Cada vez mais questionado pelo modo caótico como governa e por seu comportamento hostil ao Congresso, ele vem atribuindo suas vicissitudes à ação de forças antipopulares que estariam sabotando seus esforços para modernizar o País. Segundo essa retórica, quem é contra Bolsonaro só pode ser contra o “povo”, pois o presidente nada mais faz que cumprir rigorosamente a vontade dos eleitores.

Em nome desse suposto desejo popular, Bolsonaro tem se dedicado com afinco a degradar a Presidência da República. E não é por ter vestido camisa falsificada de time de futebol e chinelos numa reunião de ministros nem por ter divulgado um vídeo pornográfico para criticar o carnaval – episódios grotescos que hoje, dado o conjunto da obra, soam apenas como anedotas. É, sim, por ter implodido todas as pontes com o Congresso por acreditar que os brasileiros odeiam os políticos; é por sabotar as reformas que seu próprio governo encaminhou; é por ter imposto ao País uma política externa ditada por um ex-astrólogo que mora nos Estados Unidos; é por ter arruinado o Ministério da Educação submetendo-o sistematicamente a baboseiras ideológicas; é por confundir segurança pública com bangue-bangue. A lista é longa – e, pasmem, estamos apenas no quinto mês de governo.

“Não nasci para ser presidente”, já chegou a dizer Bolsonaro, numa tentativa de igualar-se ao mais comum de seus eleitores. O presidente seria então o homem simples no exercício direto do poder – razão pela qual ele acredita que suas decisões seriam exatamente aquelas que qualquer um de seus eleitores tomaria se estivesse em seu lugar. Ocorre que isso só é verdade nos desvarios do presidente.

Bolsonaro foi eleito como razão direta do cansaço do eleitorado com o lulopetismo, que impôs mais de uma década de imposturas e inépcia administrativa ao País, atirando-o na sua mais longa e dolorosa crise econômica, política e moral. O eleitor esperava que o novo presidente pudesse recolocar o Brasil no rumo do desenvolvimento, recobrando a sanidade fiscal; esperava que o eleito restabelecesse com o Congresso relações genuinamente republicanas, tendo como norte a costura de consensos com vista ao bem comum; esperava que o Ministério fosse constituído pelos melhores quadros em cada área, e não mais por apadrinhados políticos; e esperava que o interesse nacional, e não mais a ideologia, pautasse a política externa. Ou seja, o contrário de tudo o que se viu ao longo do mandarinato lulopetista.

Bolsonaro venceu a eleição justamente porque soube capitalizar esse fastio com o PT, mas seu governo faz, com sinais trocados, exatamente o que o PT fazia e que foi rejeitado pelo povo – sem aspas – nas urnas. Eleito na onda da ojeriza à corrupção, Bolsonaro e seus filhos até agora não foram capazes de explicar as relações esquisitas entre a família e um modesto ex-funcionário de gabinete que movimentava quantias vultosas em sua conta, preferindo atacar as instituições encarregadas de investigar o caso; eleito para modernizar a administração, Bolsonaro escolheu um Ministério majoritariamente neófito e amador; eleito para reverter a crise econômica legada pelo lulopetismo, Bolsonaro só faz ampliá-la graças às incertezas geradas pela sua gestão destrambelhada; eleito para fazer as reformas de que o País tanto precisa, Bolsonaro parece empenhado em desmoralizá-las; eleito para retirar o viés ideológico da educação e da política externa, Bolsonaro impôs nessas áreas o mais retrógrado pensamento autoritário; eleito para governar para todos, Bolsonaro estimula o ódio contra quem não comunga de sua ideologia, ampliando a cisão entre “nós” e “eles” que tão mal vem fazendo ao País desde a era petista.

Em resumo, Bolsonaro faz o oposto do que o povo esperava que ele fizesse, e não à toa seu governo se escora cada vez mais nos devotos da seita bolsonarista. É preciso muita fé para acreditar que isso pode dar em boa coisa.