terça-feira, maio 07, 2019

Crise entre Bolsonaro e militares se aprofundou - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 07/05
A autocrise que Jair Bolsonaro criou com os militares está longe de terminar. Agravou-se na noite passada. Em conversas presenciais e telefônicas —uma delas avançou até o início da madrugada desta terça (7)— integrantes da banda fardada do governo concluíram que o presidente sinaliza à opinião pública um sentimento de "desprezo" em relação às Forças Armadas. Faz isso ao endossar os ataques de seu ideólogo Olavo de Carvalho contra os militares.

A avaliação é de que o endosso de Bolsonaro se manifesta de duas formas: na "ausência de resposta" e na "reprodução das críticas" de Olavo nas suas próprias redes sociais. Estabeleceu-se um consenso entre os militares: o problema se chama Jair Bolsonaro, não Olavo de Carvalho. Essa impressão é compartilhada com oficiais da ativa das três forças armadas. O sentimento dos militares em relação ao presidente oscila entre a "irritação" e a "decepção".

Esperava-se que Bolsonaro modificasse seu comportamento depois que o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, reagiu em termos ácidos contra os ataques que Olavo de Carvalho dirigiu ao seu penúltimo alvo: o também general Carlos Alberto Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo. Entretanto, além de dar de ombros para Villas Bôas, o presidente praticamente culpou Santos Cruz pelo novo capítulo da crise.

A encrenca ressurgiu no final de semana. Utilizou-se como matéria prima da discórdia uma entrevista concedida por Santos Cruz há um mês. Indagado sobre o uso das redes sociais pelo governo, o general respondeu que a utilização teria de ser cuidadosa, para evitar distorções de segmentos radicais. Defendeu o diálogo. E manifestou-se a favor do aprimoramento da legislação para coibir abusos. "Controlar a internet, Santos Cruz?", indagou Olavo de Carvalho. "Controlar a sua boca, seu merda".

A repercussão baseada numa fake-interpretação das palavras do general estendeu-se às redes sociais do vereador carioca Carlos Bolsonaro e do deputado federal Eduardo Bolsonaro. O próprio Jair Bolsonaro anotou na internet que seu governo não patrocinaria o controle das mídias, incluindo as sociais. E insinuou que deveria mudar para Cuba ou para a Coreia do Norte quem pensasse diferente.

Nesta segunda-feira, questionado pelos repórteres sobre os ataques a Santos Cruz, Bolsonaro declarou: "De acordo com a origem do problema, a melhor resposta é ficar quieto. É essa orientação que eu tenho falado porque temos coisa muito, mas muito mais para discutir no Brasil. Aqueles que por ventura não tenham tato político estão pagando um preço junto à mídia."

Os repórteres interpretaram a recomendação de silêncio de Bolsonaro como uma tentativa de jogar água fria na fervura. Os militares enxergaram a frase como um jato de gasolina na fogueira. Avaliaram que Bolsonaro quis dizer que Santos Cruz não deveria ter dado entrevista. Muito menos falar de redes sociais. Para os auxiliares fardados do governo foi como se o capitão dissesse que o general Santos Cruz, seu amigo de três décadas, mereceu as pauladas virtuais que tomou.

Na mesma entrevista, Bolsonaro tentou negar o inegável. "Não existe grupo de militares nem grupo de olavos aqui. Tudo é um time só". Perguntou-se objetivamente ao presidente se cogita defender Santos Cruz dos ataques. E ele: "Estamos numa guerra. Eles, melhor do que vocês, estão preparados para uma guerra". A frase aprofundou o fosso que se abriu entre Bolsonaro e os militares que ele recrutou para o seu ministério.

Na expressão de um dos ministros, os militares que integram o primeiro escalão do governo se enxergam como "oficiais da reserva convocados para colocar a serviço da pátria toda a experiência adquirida na ativa e a formação custeada pelo contribuinte brasileiro." Não imaginavam que essa convocação envolveria a participação numa "guerra de fabricação doméstica".

Numa evidência de que a capacidade do governo de fabricar crises no seu quintal é ilimitada, alguns dos auxiliares de Bolsonaro acompanharam em tempo real as novas diatribes despejadas por Olavo de Carvalho nas redes sociais desde os Estados Unidos. Começaram à tarde. Estenderam-se pela noite. Invadiram a madrugada. O guru de Bolsonaro respondeu à manifestação do general Villas Bôas com a virulência e o calão rasteiro que lhe são peculiares.

Olavo de Carvalho levou ao ar uma pilha de postagens. Duas foram especialmente ofensivas. Numa, o ideólogo dia família Bolsonaro referiu-se ao ânus do general. Noutra realçou a saúde frágil de Villas Boas para estender a desqualificação aos colegas de farda que ele defendeu. Olavo escreveu que não esperava ver "altos oficiais" acossados "escondendo-se por trás de um doente preso a uma cadeira de rodas." Acrescentou: "Nem o Lula seria capaz de tamanha baixeza."





Villas Bôas é um dos oficiais mais respeitados das Forças Armadas. Comandou o Exército sob Michel Temer. Hoje, está lotado na assessoria do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Ou seja, dá expediente no quarto andar do Planalto, a um lance de escada do gabinete presidencial. Na resposta que irritou Olavo de Carvalho, Villas Bôas foi duro. Mas não não desceu ao nível do autoproclamado filósofo que os Bolsonaro idolatram.

O general escreveu num trecho do seu texto: "Mais uma vez o senhor Olavo de Carvalho, a partir de seu vazio existencial, derrama seus ataques aos militares e às Forças Armadas, demonstrando total falta de princípios básicos de educação, de respeito e de um mínimo de humildade e modéstia. Verdadeiro Trótski de direita, não compreende que, substituindo uma ideologia pela outra, não contribui para a elaboração de uma base de pensamento que promova soluções concretas para os problemas brasileiros. Por outro lado, age no sentido de acentuar as divergências nacionais no momento em que a sociedade brasileira necessita recuperar a coesãoe estruturar um projeto para o país."

Viver entre sonâmbulos - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 07/05

Filme 'Entardecer' é tentativa admirável de captar um 'estado de alma' histórico

Na cultura popular, a Segunda Guerra Mundial é sucesso de bilheteria. Se olharmos bem para o conflito, encontramos dois inimigos dignos de filme (Hitler e Churchill); duas superpotências rivais operando do mesmo lado (Estados Unidos e União Soviética); um genocídio sem comparação na história (o Holocausto); e duas bombas nucleares que foram usadas contra o Japão e que confrontaram a humanidade com a certeza da sua própria aniquilação. E, no entanto...

No entanto o conflito que define o século 20 não é a Segunda Guerra, mas a Primeira. Às vezes, nos meus momentos de ociosidade, pergunto o que teria sido da Europa e do mundo se o arquiduque Franz Ferdinand, putativo herdeiro do trono austro-húngaro, não tivesse sido assassinado em Sarajevo por Gavrilo Princip, um obscuro terrorista sérvio.

Nessa história alternativa, não teriam morrido 20 milhões de pessoas (civis e militares), não teriam desaparecido três impérios seculares (o russo, o austro-húngaro, o otomano).

E, abrindo um pouco mais o quadro, Lênin não teria chegado ao poder e Hitler não teria explorado, com sucesso, o ressentimento alemão contra o Tratado de Versalhes.

A história alternativa vale o que vale. Em 1914, Franz Ferdinand foi mesmo assassinado —e o sistema de alianças que se tinha formado na Europa (com a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Itália de um lado; a França, o Reino Unido e a Rússia do outro) entrou em funcionamento. E como se chegou até ao abismo?

Existem milhares de livros que procuram explicar as causas da guerra. Sugiro apenas um: "Os Sonâmbulos", de Christopher Clark. É um título perfeito para traduzir o estado de não consciência com que as nações europeias se entregaram ao massacre.

Pensei em Christopher Clark quando assistia ao segundo longa de László Nemes, "Entardecer", em cartaz no Brasil.

Fiquei cliente do diretor húngaro com "O Filho de Saul", o melhor filme que conheço sobre o Holocausto. É a história de um Sonderkommando —um ajudante-prisioneiro dos nazistas nos campos de extermínio— que, no meio do horror, procura um rabino para que possa enterrar condignamente o seu filho.

A câmera de Nemes, sempre colada ao rosto e aos movimentos de Saul (assombroso Géza Röhrig), era tão concentracionária como o espaço infernal em que o personagem se movia.

Exceto na sequência final —uma das mais belas do cinema europeu contemporâneo—, em que há pela primeira vez distanciamento, libertação e espaço.

"Entardecer" obedece ao mesmo dispositivo formal, recuando no tempo histórico. Estamos em 1913, em Budapeste. Irisz Leiter (Juli Jakab) regressa à cidade depois de uma longa ausência para procurar emprego na loja de chapéus que já foi dos seus pais.

Mas Irisz quer mais do que um emprego; ela deseja saber o que se passou com os progenitores (que morreram em circunstâncias obscuras) e, no processo, encontrar um irmão ainda vivo.

"Entardecer" é a história dessa busca permanente, obsessiva, destrutiva. Mas Nemes utiliza as demandas de Irisz como pretexto para algo mais ambicioso.

Nas suas memórias sobre as vésperas da Primeira Guerra, o escritor Stefan Zweig comentava: é mais fácil reconstituir os fatos que deram início ao conflito do que o "estado de alma" que se vivia na Europa.

O filme de Nemes é essa tentativa admirável de captar o que é volátil e intangível —um "estado de alma" histórico. Para isso, ele recria uma atmosfera ameaçadora, violenta, opressiva, povoada por seres que falam e atuam nesse estado de sonambulismo de que falava Christopher Clark.

Mas o livro de Clark não empresta apenas o seu título ao torpor histérico de "Entardecer". Em entrevistas várias, László Nemes parece reproduzir o que Christopher Clark escreveu na sua obra: o universo de 1914 voltou a estar bastante próximo de nós.

Durante a Guerra Fria, a estabilidade de um mundo bipolar transformou os personagens que fizeram a Grande Guerra em seres anacrônicos, irreais, vindos de outro planeta.

Pois bem: com a anarquia reinante que a queda do Muro de Berlim proporcionou, libertando forças que os dois blocos ideológicos tinham mantido sob controlo, estamos de volta a 1914.

Com elites distantes; massas revoltosas; terroristas imprevisíveis; e uma espécie de irracionalismo político que é transversal a todas as famílias ideológicas.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

A crise no Estado-Maior - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 07/05

“Todas as crises no governo foram criadas pela própria corte de Bolsonaro, pois, desde as eleições, a oposição perdeu a capacidade de iniciativa política”


As tragédias na política costumam acontecer quando os governantes não conseguem formar um estado-maior e deixam se aprisionar numa “jaula de cristal”, na qual pululam os áulicos da corte, que são aqueles que realmente têm acesso à sua personalidade. O presidente Jair Bolsonaro tem um Estado-Maior predominantemente formado por generais acostumados ao planejamento estratégico, a partir de construção de cenários, definição de objetivos e construção de alternativas, mas sua corte é formada pelos filhos e áulicos, com um guru sem papas na língua, o escritor Olavo de Carvalho, que zela pela “pureza” ideológica do governo.

Via de regra, um governante é um homem sem vida privada, na vitrine da opinião pública, que não pode aparecer perante os cidadãos como é realmente nem deixar transparecer seu estado de ânimo. Aparentemente, durante a semana, Bolsonaro não tem muito como fugir dos protocolos, da agenda oficial, da rotina imposta pelos generais que controlam o Palácio do Planalto; no fim de semana, porém, a família e os áulicos se encarregam de “libertá-lo” desse esquema de quartel. E é aí que o circo pega fogo. Na maioria das vezes, o fogaréu é provocado pelo escritor Olavo de Carvalho. Não foi diferente no último fim de semana, quando o amigo e ideólogo do governo novamente direcionou sua metralhadora verbal de baixo calão para o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, aprofundando a disputa entre os militares e o grupo político do clã Bolsonaro.

A diferença, desta vez, foi a reação do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas, que hoje ocupa uma discreta assessoria no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, mas é uma eminência parda no governo. Apesar de gravemente enfermo de uma doença degenerativa, com seu estoicismo e capacidade intelectual, Villas Boas ainda é o grande líder das Forças Armadas. Foi duríssimo com Olavo de Carvalho: “Verdadeiro Trotski de direita, não compreende que substituindo uma ideologia pela outra não contribui para a elaboração de uma base de pensamento que promova soluções concretas para os problemas brasileiros. Por outro lado, age no sentido de acentuar as divergências nacionais no momento em que a sociedade brasileira necessita recuperar a coesão e estruturar um projeto para o país”.

A comparação com Trotski é até injusta, pois o líder comunista foi o responsável pela formação do Exército Vermelho e teve um papel na história muito mais relevante, pois rivalizou com Stálin na disputa pelo comando da antiga União Soviética, enquanto Olavo de Carvalho é escritor radicado nos Estados Unidos que ganhou fama e influência com a eleição de Bolsonaro, mas não ocupa nenhum cargo no governo. Com essa declaração nas redes sociais, porém, acentuou a principal contradição do atual governo: como Carvalho, Bolsonaro aposta na divisão ideológica do país, num momento em que a nação precisa de coesão política para enfrentar seus desafios.

Crises internasPor pura ironia, como aconteceu com Trotski, porém, Bolsonaro faz história, mas não tem consciência de que não controla as circunstâncias em que isso ocorre. Por isso, a divisão entre seus generais e os políticos que o cercam está se tornando um fosso cada vez mais profundo, ainda que o presidente da República tente minimizar o problema. No fim da tarde de ontem, mais uma vez, pôs panos quentes na crise: “Não existe grupo de militares nem grupo de olavos aqui. Tudo é um time só”, disse.

A declaração serviu para acabar com os boatos de que Santos Cruz estava demissionário. O general havia se reunido com Bolsonaro no domingo e saiu do encontro sem dar entrevistas. “O que eu tenho falado é que, de acordo com a origem do problema, a melhor resposta é ficar quieto. Essa orientação que eu tenho falado”, disse o presidente da República, resumindo a conversa com o ministro. Segundo afirmou, Santos Cruz segue prestigiado no cargo e saberá lidar com a situação: “Estamos em uma guerra. Eles, melhores do que vocês, estão preparados para uma guerra”, disse Bolsonaro, a propósito dos ataques de Olavo de Carvalho nas redes sociais tanto a Santos Cruz quanto ao vice-presidente Hamilton Mourão, alvo constante de ataques de Olavo e do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República.

Mas que guerra é essa? Bolsonaro é um governante com metas ambiciosas de diferenciação política. O que está sendo posto à prova é sua capacidade e a de sua equipe para alcançar essas metas. Uma das maneiras de dissimular as próprias dificuldades e justificá-las é a linguagem bélica, atribuindo os fracassos aos inimigos. Todas as crises no governo foram criadas pela própria corte de Bolsonaro, pois, desde as eleições, a oposição perdeu a capacidade de iniciativa política. Um governo não pode ser melhor do que o gabinete do presidente da República.

Grandes aliados objetivos da esquerda: Olavo, Weintraub e, claro, Bolsonaro - REINALDO AZEVEDO

UOL - 07/05

Abraham Weintraub: ele tem tudo para ser o grande gênio do fortalecimento do movimento estudantil de esquerda. E sem ninguém com coragem para enfrentá-la e defender o indefensável! Está de parabéns! Naquele seu boletim cheio de zeros, uma nota 10

Já afirmei aqui algumas vezes que o governo Bolsonaro faz pelo renascimento moral das esquerdas o que elas não têm conseguido fazer por si mesmas, ainda um tanto atônitas e paralisadas pelos resultados das eleições de outubro.

Nesse sentido, seus aliados objetivos mais importantes hoje são Abraham Weintraub, Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo e, claro!, o trio do barulho da Família Bolsonaro: o próprio presidente e dois dos filhos: Carlos e Eduardo.

Leiam o que informa o Painel da Folha. Volto em seguida:


Cresça e apareçaO fato de as manifestações de estudantes terem ocorrido, ainda em que em pequeno porte, em diversas cidades das regiões Sudeste e Nordeste impressionou parlamentares da oposição. Isso seria, na avaliação deles, sinal de que há margem para dar amplitude aos atos.

Erva daninhaA oposição debate a crise na educação, nesta quarta (8), com as lições tiradas das jornadas de 2013 na cabeça. Naquele ano, quando os partidos entraram em campo, primeiro, foram rejeitados. Depois, perderam o controle da pauta —nascedouro da ruptura que desaguou na queda de Dilma Rousseff.

Registre-seO despertar do movimento estudantil ocorre às vésperas de greve convocada pelos professores, dia 15.


Retomo
Olavo de Carvalho tem a sua importância porque é a inspiração da porra-louquice de extrema-direita que faz a cabeça de alguns. Mas o mais eficaz em criar uma rede de mobilização contra o governo é mesmo o espetacular Weintraub, aquele que, como ministro, é um excelente aluno de economia da USP…

O mais espetacular em seu anúncio de corte de verbas das universidades e outras áreas da educação — deixando claro, inicialmente, que se tratava de uma iniciativa que obedecia a um "viés ideológico" — é que conseguiu unir todas as correntes contra o governo.

Ora, nas instituições federais, sempre houve descontentamentos com a hegemonia de correntes de esquerda que comandam a representação docente e discente. Mas me digam: quem se atreveria, sendo estudante ou professor das federais, a defender a ação de Weintraub e Bolsonaro?

Vélez Rodríguez era de tal sorte incompetente que nem reação negativa conseguia gerar. Weintraub não! Ele demonstrou ser um homem de ação. Se é que me entendem.

Com Weintraub é diferente: naquele seu boletim cheio de zeros na Faculdade de Economia da USP, ele mereceria acrescentar uma disciplina em que é nota 10: tiro no pé.

Sobre chantagem e amores bandidos - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 07/05

Para sair da Idade das Trevas o Brasil inteiro terá de rever seu amor pelo pequeno privilégio


Democracia é a resposta natural que toda comunidade de iguais tende a dar aos seus problemas comuns. São muito raros na História, entretanto, os “povos sem rei”. Com exceção da Suíça, que nunca teve um e criou em 1291 o modelo que viria a ser o de soberania absoluta do eleitor que hoje todo o mundo que funciona copia, essa situação só se configurou pelo isolamento em territórios distantes de súditos de monarquias europeias, como os que vieram colonizar as Américas. “Como sobreviver? Quem vai cuidar de construir os abrigos e fortificações? De caçar e plantar o que comer? Quem se dedicará à defesa? Quem ditará as leis? Quem se encarregará de fazê-las cumprir?” Foi disso que trataram o Pacto do Mayflower e os town meetings (assembleias em praça pública) das primeiras colônias de Massachusetts. Foi para isso que evoluiu na prática, mais de cem anos antes, o modelo das Câmaras Municipais do império português, onde durante séculos comunidades isoladas nas vilas dos sertões votaram e foram votadas, em pacífica e regularíssima sucessão, para organizar os meios de prover por si mesmas todas as suas necessidades.

Desde 1808, porém, um filtro de seleção negativa instalou-se no Rio de Janeiro. E cumpriu darwinianamente o seu papel. Não era mais do feito d’armas nem da ousadia empreendedora ou do financiamento privado de Bandeiras que se poderia subir na vida. Surgira um meio mais fácil. E de lá a velha doença europeia veio arrancando o Brasil à sua americanidade. Sai Reinado entra Império, sai Império entra República, nunca a corrupção pelo privilégio foi tão extensamente socializada. Impossível prosperar sem se compor com o Sistema. Quem não se deixou contaminar já morreu, se não física, com certeza econômica e politicamente. Afundou no lúmpen. Está reduzido a cuidar de sobreviver até amanhã ao tiroteio...

Hoje os laços de família, e não a ideologia, é que são o maior obstáculo à mudança. Está invertida a lei antinepotismo. Nenhum brasileiro com voz ou algum grau de acesso aos centros de decisão deixa de ter pelo menos “cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive (...) investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, (...) no exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”, ou de deter, ele mesmo, um privilegiozinho corporativo menor que não está disposto a perder. E a conta da Previdência é onde tudo isso deságua, no ponto mais alto das remunerações por “direitos adquiridos” mediante aquele toque mágico que transporta instantaneamente pobres mortais das incertezas deste vale de lágrimas para a segurança da “estabilidade vitalícia no emprego”.

No contexto do isolamento perfeito entre o País Real e o Oficial que atingimos em função do monopólio até da prerrogativa de pedir votos ao povo reservado aos membros dessa privilegiatura, o desafio que se apresenta ao solitário agente que os governos importam do País Real para lidar com a economia dos desprivilegiados que eles nunca viveram não é apenas o de convencer o povo do ponto de vista do presidente e seu governo, mas antes o de convencer o presidente e seu governo a firmarem um ponto de vista diverso daquele que formaram como agentes da privilegiatura alienada que foram até ontem. Só então, e na medida do sucesso sempre relativo dessa primeira operação, poderão partir para a tentativa de convencer os caronas e os caronas dos caronas do Estado aqui fora de que não haverá escapatória ao amargo fim se transferirem o tratamento do problema para onde ele não está.

A minoria com superprivilégios – a dos donos do Estado e seus funcionários – é de meros 0,5% da população. E a minoria com hiperprivilégios é uma fração dentro dessa fração. Só a cumplicidade da maioria pode, portanto, explicar a resiliência dos privilégios de parcela tão ínfima do eleitorado num país que em algum momento ainda vota.

Dois fatores elucidam esse falso mistério. O primeiro é a falta de enraizamento do País Oficial no País Real que enseja esse nosso sistema eleitoral, que não permite identificação entre representados e representantes uma vez eleitos. A bordo de um partido bem aquinhoado de dinheiro “público” de campanha eles não precisam mais dos eleitores nem para se reeleger. Podem dedicar-se exclusivamente ao único jogo de soma zero, que é o do poder, no qual o Brasil é meio, e não fim. Daí o espantoso na afirmação do solerte Paulinho da Força de que para derrotar Bolsonaro convém manter os 210 milhões de brasileiros semiafogados mais alguns anos debaixo d’água ser apenas a sinceridade com que foi feita, e não o significado do que foi dito, como este jornal lembrou em editorial.

Mas o segundo fator é que é o mais insidioso. Agora mesmo, no Olimpo do Judiciário, está sendo armada a cama para Rogério Marinho, o articulador da reforma. O formidável poder de chantagem e intimidação que essa minoria dentro da minoria privilegiada detém pelo controle do gatilho do acionamento (ou não) da lei é o que tem decidido as paradas. A corrupção, inerente à condição humana, é eventual. Mas a corrupção institucionalizada, aquela que nos rouba com a lei, e não contra a lei, essa é sistemática e transfere todo santo dia montanhas de dinheiro das favelas para os palácios, que, no entanto, podem continuar posando de virtuosos, o que a faz triplamente subversiva.

Para que possamos sair desta nossa Idade das Trevas, o Brasil inteiro terá de rever o seu amor bandido pelo pequeno privilégio. Mas o Brasil “indignado”, em especial, este terá de reconsiderar fria e racionalmente quanto do “pega ladrão” em que se deixa a toda hora embarcar é gritado para fazer ou para impedir que se faça justiça, ou o sol jamais voltará a brilhar.

Help! - ANA CARLA ABRÃO

O Estado de S.Paulo - 07/05

As contas em frangalhos dos Estados refletem o desequilíbrio entre as trajetórias de despesas e receitas

O governo divulgou o Plano de Estabilidade Fiscal (PEF) para socorrer Estados em crise fiscal. Batizado de “Plano Mansueto”, o crédito faz jus ao trabalho do secretário do Tesouro Nacional e sua equipe de técnicos, todos muito competentes e profundos conhecedores da deterioração fiscal que assola os entes subnacionais. Mais ainda, conhecedores também do caminho que os levou à atual situação.

O PEF não é exatamente uma novidade. Afinal, desde a década de 90 que Estados e municípios são sistematicamente socorridos pela União. Assunção de dívidas; novos empréstimos; mais empréstimos e ainda mais generosos; revisão do indexador das dívidas com a União (amparando os amigos do rei – ou da rainha, nesse caso); renegociação e repactuação dessas mesmas dívidas; distribuição de receitas extraordinárias para garantir pagamento de salários, e outras tantas ações que se sucederam para amenizar um crise que já se tornou antiga.

Junte-se a isso uma Suprema Corte camarada, que ignora os impactos do desrespeito a contratos e permite que garantias sejam desconsideradas e juros simples considerados, e temos aí os ingredientes de uma crise que também já se tornou crônica. Não é à toa que ações de socorro se tornaram corriqueiras como consequência da romaria de governadores a Brasília e que recomeça a cada novo mandato presidencial.

Por trás desse processo, está um desequilíbrio estrutural que precisa ser entendido e enfrentado. As contas em frangalhos dos entes subnacionais refletem o desequilíbrio entre as trajetórias de despesas e receitas que vem, há décadas, abrindo um fosso entre o que os Estados arrecadam e o que eles se comprometem a gastar.

Os Estados não estão quebrados em função do seu endividamento. Eles estão quebrados porque aumentaram suas despesas de pessoal de forma contínua, acelerada e crescente ao longo dos últimos anos, comprometendo parcelas cada vez maiores das suas receitas com despesas cuja rigidez é imposta por uma combinação de impossibilidade de demitir com expansão vegetativa dos gastos de pessoal, estes definidos por leis de carreiras cada vez mais benevolentes.

Para que a correção definitiva ocorra, os gestores locais devem adotar medidas de ajuste. Não é nem nunca será o governo federal o responsável por fazê-lo. E é por isso que, mesmo não sendo novidade nos objetivos, o PEF inova no ponto de partida e é isso que o torna diferente.

Os ajustes locais são o início – e não o fim – do plano. O socorro é consequência do ajuste, e não vice-versa, como nos casos anteriores. O PEF atua preservando a Capacidade de Pagamento (Capag) como a base do socorro aos Estados. A Capag teve sua credibilidade recuperada no biênio 17/18, quando o Tesouro Nacional atualizou seus conceitos e a fortaleceu como único critério possível para concessão de garantias. O PEF, ao exigir que ajustes sejam feitos na direção da recuperação do equilíbrio fiscal e ao condicionar desembolsos financeiros à aprovação e aos resultados desses ajustes, mantém a Capag no centro das decisões. Além disso, o socorro, antes generoso, está calibrado para funcionar como um fôlego e não como uma forma de empurrar o problema para o próximo governante.

Outras medidas saneadoras acompanharão o PEF como, por exemplo, a proibição de reajustes salariais que ultrapassem o mandato do governante que os concede – artifício populista usado e abusado nos últimos anos. Deveria também proibir concessão de auxílios e penduricalhos, que na prática atuam como aumentos salariais invisíveis para a Lei de Responsabilidade Fiscal, e exigir a revisão das leis de carreiras e a eliminação de dispositivos que geram o crescimento indiscriminado das despesas de pessoal. Todas prerrogativas do governador – e inevitáveis para os que de fato quiserem ter acesso a alívio financeiro relevante.

Mas já será um desafio garantir que o PEF seja mantido pelo Congresso Nacional conforme foi concebido. Afinal, que governadores estão gritando por socorro está claro. Que a União está mais uma vez amparando Estados que não fizeram o ajuste das suas contas, também. O que falta saber é se o PEF também ajudará a colocar os pés dos nossos governantes de volta no solo. Isso dependerá do Congresso e da sua quase incontrolável vontade de desidratar as boas soluções.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman

Paciência tem limite - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 07/05

Como Bolsonaro prefere ficar ‘quieto’, militares destacam Villas Bôas para falar grosso



Muitos perguntam o que está por trás da guerra entre “olavetes” e militares, ou melhor, de “olavetes” contra os generais do governo. Simples. Trata-se da velha disputa de poder, mas também a disputa pelo coração, a mente e a tutela do presidente Jair Bolsonaro. Quanto mais fraco, mais ele se torna refém dos dois lados.

Segundo Bolsonaro, “não existe grupo de militares nem de olavos. O time é um só”. Isso não é exatamente verdade. Se a mídia tradicional não serve, basta uma busca nas postagens do tal Olavo de Carvalho, dos filhos do presidente e suas tropas nas redes sociais. Os ataques de um time e a defesa do outro são estridentes.

Os militares do Planalto e arredores se contorciam e apanhavam calados, mas tudo tem limite. O vice-presidente Hamilton Mourão reagiu e agora calou. O ministro Santos Cruz também reagiu e entrou no alvo da enxurrada de palavrões como “bosta engomada”.

Ficou claro que a fila de generais agredidos não teria mais fim. Após Mourão e Santos Cruz viriam Augusto Heleno (GSI), Floriano Peixoto (Secretaria Geral), Fernando Azevedo e Silva (Defesa), Edson Pujol (comandante do Exército). Tiro ao alvo.

Foi por isso que o ex-comandante Eduardo Villas Bôas entrou na guerra. Ele tem força e liderança, como várias vezes já dito aqui neste espaço, e ninguém como ele para dar um basta e repor as coisas nos seus devidos lugares, já que o capitão Bolsonaro não faz nada e ainda permite (ou estimula?) o apoio dos seus filhos aos desaforos aviltantes dos olavistas aos generais.

Bolsonaro diz que “a melhor resposta é ficar quieto”, mas agraciar Olavo de Carvalho com o grau máximo da Ordem de Rio Branco (condecoração do Itamaraty) não significa ficar “quieto”, mas sim tomar partido. E a paciência dos disciplinados militares foi se esgotando e, com Villas Bôas, a reação mudou de patamar. Ele é o principal líder militar e tem respeito nas Forças, no meio político, na opinião pública e até em setores da esquerda. Isso é uma virtude e um trunfo, não um defeito, como quer fazer crer o tal Olavo.

Segundo o general, o “filósofo da Virgínia”, como é chamado, não passa de um “Trotski da direita”, apoiado no seus “vazio existencial” e na “total falta de princípios básicos de educação, de respeito e de humildade”.

Importante é que, na reação, Villas Bôas ratifica um alerta insistentemente feito pelos de bom senso, que não são obcecados por ideologia e querem que o País melhore e entre nos eixos: “Substituir uma ideologia pela outra não contribui (...) para soluções concretas para os problemas brasileiros”.

Só falta acusarem o ex-comandante de esquerdopata... Aliás, não falta mais. O próprio Olavo já partiu para essa baixaria e quem quiser se irritar leia os comentários da turba à manifestação do general. Uma saraivada de ironias e críticas misturando ignorância com má-fé, bolsonaristas radicais com o que parece uma tropa de robôs esquerdistas. Tem de tudo, menos inteligência e bons propósitos.

Se Bolsonaro falou efetivamente algo relevante ontem, após os palavrões de Olavo de Carvalho, de uma conversa de mais de uma hora com Santos Cruz e da reação de Villas Bôas foi que... “há coisas muito mais importantes para discutir no Brasil”. Ninguém discorda.

A lista é longa: a previsão de crescimento cai pela décima semana consecutiva, o desemprego cresce, Bolsa e dólar voláteis, violência insana, o MEC investe contra universidades, incerteza sobre a reforma da Previdência... Querem mais?

Bolsonaro, porém, está tão “quieto” diante das infâmias do guru do seu governo como diante dos grandes problemas nacionais. “Olavetes” atacam os generais porque os dois lados disputam quem vai tomar conta da bagunça.

"Um governo em autocombustão" - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 07/05


"Depois de Gustavo Bebianno, Ricardo Velez e Hamilton Mourão, agora é o ministro Santos Cruz quem sofre ataques de seus inimigos íntimos. Resgataram uma entrevista de um mês atrás em que ele supostamente trataria de controle de mídia, e fizeram dela motivo para críticas. Tudo é motivo para quem não precisa de motivos.

Carlos Andreazza aponta o óbvio: a fritura de Santos Cruz tem como causa próxima o controle da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social), subordinada à Secretaria de Governo. O núcleo ideológico quer o comando da casa de máquinas, pois o twitter presidencial já não basta. Propaganda é a alma do negócio.

O espantoso é que tais ardis se deem dentro do governo, orquestrados por gente do governo. Agora me pergunto: se quem escolheu um por um os ministros e secretários foi Bolsonaro, e não a imprensa, que culpa tem a imprensa – ou a oposição – por toda a bagunça político-institucional? De fofoca em fofoca dois ministros já caíram.

A não ser que se considere razoável e republicano que o condecorado ideólogo ofenda e acuse o vice-presidente e quase todos os ministros, sob anuência ou vista grossa do presidente; a não ser que se considere prudente e democrático que os condecorados filhos falem constantemente num ataque ao establishment, como se eles não fossem o próprio establishment.

Se isso lhes parece normal, Deus me livre de saber o que considerarão loucura.

Bolsonaro se vangloria de ter adotado critérios técnicos nas escolhas. Também se orgulha de não ter negociado vagas e ministérios em troca de apoio. Portanto, se ele teve plena autonomia para montar sua equipe, ele tem toda responsabilidade por quem entrou e saiu, por quem vier a entrar e sair do governo.

Sendo assim, que coisa maluca é essa de ter se cercado de incompetentes, traidores e golpistas, como gente muito próxima tem denunciado? “Dize-me com quem andas…” Bolsonaro convocou dezenas de golpistas para governar, militares que ele conhecia desde os tempos em que também era militar. Todos aproveitadores?

Mais um pouco e vou começar a suspeitar do próprio Bolsonaro.

A culpa disso tudo será minha, sua, da imprensa – ou mesmo do PT? Não. Mas há quem esteja muito confortável na espreguiçadeira da indignação barata, aquela que balança no modo automático desde 2002. Antipetismo virou sinônimo de consciência crítica. Criticar o PT se transformou em meio de vida intelectual para muita gente que parece sentir saudade dos tempos em que o objeto da crítica e o governo se confundiam. Era tão mais fácil apontar os erros do governo quando o governo era do PT, não é mesmo? Agora o governo é outro, o PT se desmantelou e dá trabalho repensar as categorias, ajustar o foco, aprender palavrinhas novas.

O PT destruiu o país, arrebentou as contas, desviou bilhões, loteou o Congresso e sabotou a democracia real – ponto pacífico. No entanto, Bolsonaro tem se mostrado um presidente que não sabe se quer ser presidente ou oposição. Fala, desfala, manda, desmanda, indica, desindica, avança, recua, condecora, desrespeita, conspira, denuncia conspirações.

É um governo em autocombustão."

O que motiva a blitz contra Santos Cruz - CARLOS ANDREAZZA


O que motiva a blitz contra Santos Cruz
Publicado em 5 de maio de 2019 por Carlos Andreazza.

Fátima Meira/Estadão Conteúdo


A entrevista do general Santos Cruz a Vera Magalhães é de 5 de abril – e ele absolutamente não diz o que lhe é ora atribuído. Para que fique claro: não fala em controlar a internet; não fala em regular mídias. É importante ressaltar isto – a deturpação e o requentamento de conteúdos – porque nada é mais expressivo do bolsonarismo do que o fato de seus agentes estarem explorando o que o ministro NÃO DISSE em uma entrevista dada HÁ UM MÊS.

Isto, a rigor, é a essência do bolsonarismo. A campanha contra Santos Cruz, aliás, é a exata ilustração do que seja o bolsonarismo, conforme escrevi em meu último artigo em O Globo:

Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar — sob tal conformação — que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.

Este, tragando Santos Cruz, não se trata de movimento na cruzada contra um general em si, mas contra o grupo militar do qual ele é parte. É operação – blitz – claramente orquestrada, de natureza artificial, forjada e coordenada, regida pelo endosso do presidente da República e tocada por integrantes do governo, alguns com lugar no Planalto, contra uma entre as forças que o bolsonarismo considera não submissas a seu esquema de poder; e uma, no caso, que controla muitos recursos, alvo preferencial.

Porque há também o componente aditivo particular que justifica acionar as milícias virtuais: esse ataque, não nos enganemos, é desdobramento ostensivo da investida bolsonarista pelo domínio da SECOM e de seus muitos milhões, uma área estratégica para o projeto da autointitulada ala anti-establishment do governo.


A batalha dos mortos e dos vivos - NIZAN GUANAES

FOLHA DE SP - 07/05

Se você quer sobreviver, é bom saber quem é a Arya Stark da sua empresa, ágil e jovem como uma startup



Nesses 40 anos de publicidade, vi impérios florescerem e ruírem. A diferença no mundo de hoje é a velocidade com que ambas as coisas acontecem. Mas o padrão do declínio, aos meus olhos, segue bastante parecido, permeado por nuances nos diferentes setores.

Não é científico o que vou descrever, nem baseado em data. É baseado em tudo o que vi e senti, nas coisas que passaram pela minha frente e pelas minhas costas, nas coisas que ficaram para trás e que foram para a frente, inclusive nos meus negócios.

Os passos que levam ao fim, seja o fim de um negócio, de um setor, de uma era, de uma vantagem competitiva, começam com um primeiro passo que é negar o futuro. Adoro a palavra inglesa “denial” (negação).

Organizações e pessoas perdem tempo precioso negando um sol nascendo, um novo modelo de negócio, uma disrupção tecnológica. Quando lançamos o iG, em 2000, vivia ouvindo chacota. Para muitos, o modelo de internet grátis parecia uma aberração. Ia às agências vender mídia, e profissionais muito inteligentes perguntavam: “Você acha mesmo que esse troço de internet vai dar certo?”.

Assustador que perguntassem isso no passado, mas mais assustador que perguntem isto hoje: “Você acha que a venda online vai vingar?”. A resposta é Magalu, uma rede de lojas com valor de mercado de mais de R$ 35 bilhões, que tem uma senhora rede física e uma experiencia digital incrível.

A negação consome anos que a empresa podia estar devotando à reinvenção. No pior cenário, pode levá-la ao fim.

A indústria da carne vai gastar um tempo precioso negando empresas de “carne vegetal” como Beyond Meat e Impossible Foods, mas Beyond Meat estreou na Nasdaq semana passada com uma alta de 163% no primeiro dia. E um amigo que sabe tudo desse mercado disse que o sabor do hambúrguer vegano da Impossible Foods é fantástico.

O segundo passo terminal é tentar evitar o futuro com vantagens regulatórias. O consumidor, cada vez mais empoderado e informado, vai ruir esse escudo que o faz pagar mais caro por produtos piores do que os que um mercado aberto e competitivo pode oferecer.

O terceiro passo terminal é tentar replicar o futuro de um jeito antigo, o que é perda de tempo (irrecuperável) e de dinheiro (idem).

Outro passo rumo ao fim é gastar tempo demais com os resultados do trimestre, do dia a dia, e, de tanto focar o resultado, não ter gente suficiente na empresa olhando o vento, a nuvem, o céu.

Fica a pergunta que não quer calar: de que lado você está? Dos vivos ou dos mortos-vivos? A batalha dos vivos e dos mortos-vivos em “Game of Thrones” é a batalha das empresas, dos pensamentos, dos Estados.

E, se você quer sobreviver, é bom saber quem é a Arya Stark da sua empresa, a corajosa personagem da série da HBO, ágil e jovem como uma startup, que mata com sua adaga o Rei da Noite, comandante dos mortos-vivos.

E, antes que eu encerre esta coluna com a soberba dos sabe-tudo, quero revelar um momento em que não dei a devida atenção ao futuro.

Fui convidado para falar sobre o Brasil num evento organizado por Bill Gates. Estavam lá os maiores presidentes-executivos do mundo e gente como Jeff Bezos, Warren Buffett, Martin Sorrell, Barry Diller.

Um sujeito chegou do meu lado e se apresentou: “Oi, sou o Reed Hastings, tenho uma empresa que está começando aqui nos EUA e precisando de ajuda no Brasil”.

Eu não ouvi o cara direito, não dei muita atenção, mas o nome da empresa dele era Netflix.

Nizan Guanaes
Empreendedor, fundador do Grupo ABC.

Governo acerta com medidas para eliminar a burocracia - EDITORIAL VALOR ECONÔMICO

Valor Econômico - 07/05

Enquanto a reforma da previdência passa por sua via crucis no Congresso, a equipe econômica começa a colocar em prática a sua agenda microeconômica - reduzir a parafernália de leis, decretos, regulamentações e papelório, que deu poderes indevidos à burocracia e transformou a vida de quem dela depende em um inferno. Essa agenda é essencial.

No arsenal de propostas, muitas delas idealizadas já na época de formação da equipe de transição de governo, está a Medida Provisória (MP) 881, que cria a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, divulgada na semana passada, não por acaso no Dia do Trabalho. A expectativa do governo é que ela ajude a destravar negócios e a criar emprego. A MP foi apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro como iniciativa para restringir "o papel do Estado no controle e na fiscalização da atividade econômica". Segundo o presidente, a MP tem o compromisso de incentivar o desenvolvimento da atividade econômica de baixo risco para o sustento próprio de famílias, a produção e geração de renda e de não restringir a liberdade do empreendedor para definir o preço de produtos e de serviços.

À parte a contradição frente às recentes tentativas do próprio presidente de interferir no preço do diesel e nos juros dos bancos, a MP estabelece garantias para o livre mercado e o amplo exercício da atividade econômica, com foco nos pequenos empreendedores e startups. Permite que empreendimentos considerados de baixo risco sejam desenvolvidos sem depender de qualquer ato de liberação pela administração pública. Com mudanças no Código Civil, dispensa atividades econômicas que não oferecem risco sanitário, ambiental e de segurança de obter licenças, autorizações, registros ou alvarás de funcionamento.

Um dos principais alvos da MP 881 é reduzir a burocracia, que geralmente coloca o Brasil entre piores países para se empreender e de produtividade mais baixa. A MP dispensa qualquer tipo de licença, incluindo alvará de funcionamento, sanitário e ambientais para atividades de baixo risco, independentemente do tamanho do empreendimento. As empresas poderão desenvolver atividade em qualquer horário ou dia da semana desde que não causem danos ao meio ambiente, poluição sonora ou perturbem a vizinhança. Todos os papéis poderão ser digitalizados e descartados A empresa terá liberdade para definir preços, em ambiente competitivo e favorável ao surgimento de novos modelos de negócio. Estabelece isonomia no tratamento dado pelos fiscais.

Startups são especialmente apoiadas uma vez que nenhuma licença poderá ser exigida enquanto estiverem testando, desenvolvendo ou implementando um produto ou serviço que não tenha riscos elevados. A MP ainda contém medidas não diretamente relacionadas, como o fim do fundo soberano, que havia sido tentado pelo governo de Michel Temer, mas foi barrado pelo Congresso. Há também dispositivos que dependem da regulamentação, como a simplificação da legislação das Sociedades Anônimas, que deverá ser feita pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), franqueando o acesso de pequenas empresas ao mercado de capitais, prometendo que as "empresas brasileiras não precisarão mais ir ao exterior fazer ofertas iniciais de ações".

Outros projetos na mesma direção estão sendo elaborados pelo governo. Um deles é o Marco Legal das Startups, que deve ampliar as conquistas garantidas pela MP 881 e abrange os aspectos de ambiente de negócio, tributação, relações trabalhistas, compras públicas e facilitação de investimentos. No fim de abril, foram lançados a Empresa Simples de Crédito (ESC), que pode fazer empréstimos, financiamentos e desconto de títulos, exclusivamente com recursos próprios, para microempresas e empresas de pequeno porte e ao microempreendedor individual (MEI); e o Inova Simples, regime diferenciado para abertura e fechamento de startups. Está sendo desenhado o desconto de recebíveis para pequenas empresas. O governo ainda promete para este mês o pacote de 50 medidas.

Toda essa hiperatividade não deve se limitar apenas a anúncios midiáticos destinados a alardear que o governo está fazendo alguma coisa. É preciso cuidar para colocar as providências em pé. A MP 881 tem 60 dias para ser regulamentada e 120 dias para ser aprovada pelo Congresso. Além disso, as medidas microeconômicas sozinhas não fazem mágica. É preciso continuar insistindo nas reformas fundamentais da previdência e dos tributos.

A relação com o Congresso - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 07/05


Diante da imperiosa necessidade de aprovar a reforma da Previdência, o desgaste prematuro do Executivo diante do Legislativo preocupa. A situação pode ser revertida. Basta fazer política.


A conturbada tramitação da reforma da Previdência na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados foi mais um sinal da dificuldade que o governo de Jair Bolsonaro tem de se relacionar com o Congresso. “Está péssimo o relacionamento. Muito, muito ruim. De cada 10 deputados, 8 reclamam e 2 ficam quietinhos. Ninguém defende o governo”, afirmou o deputado capitão Augusto Rosa (PR-SP) em entrevista ao jornal Valor.

Em seu segundo mandato na Câmara, o deputado capitão Augusto Rosa é o presidente da Frente Parlamentar da Segurança Pública, a segunda maior bancada temática do Congresso. Durante a campanha eleitoral do ano passado, ele apoiou fortemente o então candidato Jair Bolsonaro e, até o mês passado, era o vice-líder do governo na Câmara. Alegando motivos pessoais, o deputado renunciou, em fins de abril, à vice-liderança. O seu diagnóstico da relação entre Executivo e Legislativo preocupa.

“A estrutura política está completamente errada”, disse o deputado capitão Augusto Rosa, relembrando o histórico do presidente Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Apesar de ter exercido sete mandatos parlamentares, “Bolsonaro sempre teve péssimo relacionamento na Casa. Nunca foi de dialogar, de ter grupos, de relatar projetos, de convencer os outros. Na última vez que tentou a eleição para a presidência teve quatro votos. Eu e mais três”, afirmou o capitão reformado.

Certamente, o cargo de presidente da República exige atitude diferente. O diálogo com o Legislativo é uma necessidade, já que o presidente da República não tem poderes absolutos. “Quando você é dono, você manda, mas quando você é presidente você comanda, compartilha o poder com os outros para se sentirem parte do governo”, lembrou o deputado do PR. “Hoje as pessoas não se sentem governo. Por isso, o PSL está sozinho na base.”

Se a aprovação da reforma da Previdência é de fato a prioridade do Executivo federal – já que, sem ela, o desequilíbrio fiscal levará ao colapso o Estado e a economia –, o bom relacionamento com o Congresso é uma necessidade absoluta para o governo. Seria equivocado – na verdade, uma irresponsabilidade – pensar que o papel do Poder Executivo acabou no momento em que levou ao Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) a respeito das regras previdenciárias.

A impressão, no entanto, é a de que o governo Bolsonaro não apenas não se esforça para construir um bom relacionamento com o Congresso, mas trata os parlamentares com certo desleixo. “Os ministros dão chá de banco nos deputados, não atendem”, relatou o exvice-líder do governo na Câmara. É inexplicável essa atitude para um governo que diz ter como prioridade a aprovação da reforma da Previdência. “O governo não entende que o regime é presidencialista, mas a Constituição é parlamentarista. Para aprovar os projetos, (o governo) depende do Congresso”, disse.

É urgente que o governo entenda que o que ele fez até agora não funcionou. “Bolsonaro recebeu todos os partidos e as três bancadas – boi, bala e bíblia – e ninguém declarou apoio à reforma. Precisa de algo mais indicativo?”, indagou o presidente da Frente Parlamentar da Segurança Pública.

Diante da imperiosa necessidade de aprovar a reforma da Previdência, o desgaste prematuro do Executivo diante do Legislativo preocupa. A situação, no entanto, pode ser revertida. Basta começar a fazer política – a boa e necessária política. O primeiro passo é acabar com a ideia de que fazer política é renderse ao toma lá dá cá, transformando a relação com o Congresso num balcão de negócios.

Política é diálogo, negociação, articulação, construção de consensos. Como lembrou o deputado capitão Augusto Rosa, Jair Bolsonaro não fez muito disso enquanto esteve na Câmara. Agora, no Palácio do Planalto, não tem outro caminho. O País necessita de um presidente da República que exerça a dimensão política do seu cargo, muito especialmente na relação com o Congresso Nacional.