domingo, março 31, 2019

Construir, não destruir - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 31/03

Guerra contra o establishment significa ataque ao Legislativo, ao Judiciário e à mídia?



Muita coisa começou a fazer sentido quando o jovem Filipe Martins, assessor internacional da Presidência e amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, publicou no Twitter: “O establishment acusou o golpe. Eles estão com medo. É hora de continuar batendo no sistema sem parar, sem precipitar e sem retroceder”.

O que é o “establishment” a ser combatido? O Congresso, o Supremo e a mídia independente. Isso lembra alguma coisa? Sim, lembra a Venezuela de Hugo Chávez, com sinal trocado.

Chávez, coronel da reserva do Exército, aliou-se às Forças Armadas e a parte da esquerda para combater o establishment e implantar um regime ao seu gosto. Bolsonaro, capitão da reserva, atraiu os militares, a direita e os conservadores para criar uma “nova era”.

Logo, não se trata de direita e esquerda. Em duas democracias cheias de problemas e vícios, a liga política pró-Chávez e pró-Bolsonaro foi possível em torno de costumes, nacionalismo e combate à corrupção. Só que a guinada aqui conta com um arsenal de guerra mais poderoso que os Sukhoi russos de Chávez e Maduro: as redes sociais.

A destruição da Venezuela começou com ataques frontais e uma intensa propaganda contra parlamentares, funcionários, ministros da Alta Corte, jornalistas, e aqui tudo isso é ainda mais rápido, mas as instituições são mais sólidas. Lá, não sobrou nada. A Venezuela vai demorar décadas para se recuperar.

Como Chávez, Bolsonaro também se alia estrategicamente com o capital e as forças de combate à corrupção. Entram aí as figuras decisivas de Paulo Guedes e Sérgio Moro, que são legítimos integrantes do establishment, mas ampliam aliados e conferem grandeza e bons propósitos ao regime.

Guedes é um economista liberal que passou a vida ao largo do setor público e está determinado a repor o Brasil nos trilhos do desenvolvimento. Moro é um juiz que atuou sempre no setor público e se apegou à chance de ampliar a Lava Jato para nível nacional e contra o crime organizado.

Desde a campanha, o economista Pérsio Arida, um dos cérebros mais brilhantes de sua geração, já questionava como poderia funcionar a aliança Bolsonaro-Guedes. O histórico do agora presidente expõe uma alma corporativista, estatizante e nacionalista à antiga. Já seu ministro da Economia é o oposto: liberal, privatizante, globalizante.

Logo, não é surpresa Bolsonaro despejar a reforma da Previdência no Congresso e lavar as mãos, enquanto Guedes se esfalfa com o deputado Rodrigo Maia, outro liberal do establishment, para fazer a reforma acontecer e “salvar o futuro dos nossos netos”.

Quanto a Moro, ronda uma dúvida: a Lava Jato, que foca políticos, partidos e grandes empresários, está em que lado dessa guerra dos bolsonaristas contra o establishment? Vai manter sua ação contra vícios, métodos, desvios e seus agentes, ou vai usar sua ação para engrossar o exército de Bolsonaro, seus filhos, gurus, apadrinhados e soldados da internet contra o Judiciário, o Legislativo, a mídia?

Moro é caladão, discreto, determinado, mas é um atento observador e acaba de orientar “os meninos” a baixarem a bola para a Lava Jato não assumir um lado nessa guerra. Os meninos são os procuradores, à frente Deltan Dallagnol.

Se há um exército contra as instituições, surge outro para protegê-las. Quem tem discernimento nos dois lados quer mudança, mas sem implodir Congresso, Judiciário, mídia. A reação de Rodrigo Maia contra ataques à política não é pessoal, é institucional. Ao resistir às crescentes agressões a ministros, Dias Toffoli blinda o Supremo. E Moro defende negociação: “Precisamos construir, não destruir. Ou nos unimos na beira do precipício ou nos encontramos juntos no fundo do abismo”.

O golpe das vítimas - GUILHERME FIUZA

GAZETA DO POVO - PR - 31/03


"O Brasil passou boa parte da última corrida presidencial discutindo um regime instaurado mais de meio século atrás. Sinal impressionante de frescor intelectual e acuidade cívica: um país em dia com seus conflitos artificiais e seu viveiro de fantasmas. Mesmo assim chegou ao aniversário de 55 anos da ditadura de 64 se perguntando o que, afinal, se passou na ocasião.

Como você está cansado de saber o que se passou – assim como todo mundo – não vamos cair aqui também na armadilha desse disco arranhado. Temos mais o que fazer. Tratar, por exemplo, dos golpes depois do golpe.

Foram vários. E talvez o pior deles seja um que está ainda em curso, neste exato momento, perpetrado por uma legião de picaretas espalhados pelo vasto território nacional. É um golpe tipo aquele do falso telefonema do presídio, pedindo resgate por um sequestro de mentira. No caso, o truque é pedir voto, prestígio e grana ao país para combater uma assombração do século passado.

Esse aí engana muito mais gente que o golpe do presidiário (o do trote, não o do PT – que enganou o mundo inteiro).

Em 2019, o maior desrespeito às vítimas da ditadura militar, a maior afronta aos valores democráticos atropelados pelos tanques, enfim, a maior traição à verdadeira luta pela liberdade vem das falsas vítimas do golpe de 64. São personagens que se dizem de esquerda e fazem o jogo daqueles que assaltaram o país por 13 anos, fingindo combater a direita. Se fazer de vítima da ditadura para ter poder e parasitar o Estado também é atropelar a democracia – além de ser um vexame.

Não são poucos os que vivem desse golpe no Brasil. E não são só os que tomaram o poder central e viraram pobres milionários perseguidos por roubar honestamente. Nas artes, na imprensa, no mercado em geral vale uma fortuna você fingir que está lutando contra a censura – como aquelas almas penadas da MPB que tentaram surfar no verão denunciando a proibição do carnaval. Meu reino por uma fantasia de oprimido.

Como disse o gigante Carlos Vereza, de cima do palco, ao final de seu espetáculo sobre Judas Iscariotes: “Que censura, porra?!”

O país vive a mais plena liberdade que já conheceu em 500 anos de história, apesar das tentativas do PT de amordaçar a imprensa – disfarçando seus planos de censura prévia até em pacotes de direitos humanos. Lembra-se disso? Esqueceu? Não soube? Procure saber. E esses profissionais da lamúria contra a censura imaginária não deram um pio – ao contrário, tentaram instituir a censura prévia de biografias não-autorizadas. Obscurantistas são os outros.

Depois do impeachment de Dilma Rousseff – testa de ferro do escândalo sem precedentes desmascarado pela Lava Jato – esse Brasil que se finge até hoje de vítima do golpe de 64 tentou virar a mesa. Uma cena antológica: as viúvas do golpe tentando dar o golpe.

Mas o golpe deles era perfumado, bem penteado como a franja prateada de Rodrigo Janot – o ex-procurador-geral encarregado do serviço sujo. Foi praticamente uma ópera: essas sofridas e podres de ricas vítimas vitalícias de uma assombração morta e enterrada conspirando com o açougueiro biônico do PT (vitaminado com os bilhões revolucionários do BNDES, isto é, seus), com a ajuda de um supremo juiz petista empoderado, por sua vez, pelo açougueiro. Coisa fina, carne de primeira.

A armação para tomar o palácio na mão grande (sem perder a ternura, claro) contou com a parceria valiosa da imprensa FreeBoy – setor da grande mídia assim apelidado por seu esforço cívico para transformar o criminoso Joesley Batista em herói do combate à corrupção, no papel de empresário arrependido. Uma fofura. Com Janot ditando manchetes alopradas a partir de uma delação vagabunda e ilegal (hoje suspensa), tentaram todos juntos garantir um exílio de ouro ao bandido em Nova York – usando suas mentiras para derrubar o governo. Contando ninguém acredita.

O golpe de 2017 não deu certo por um único e singelo motivo: era ridículo. Foi montado e operado por uma galeria de trapalhões, covardes e fanfarrões, iludidos pela crença de que para cometer um crime basta ser desonesto. Ao fundo, essas mesmas e patéticas vítimas vitalícias de 64 aproveitavam a série de TV “Os dias eram assim” para pedir diretas já em passeatas melancólicas.

Esse golpe de estado fracassado não chegou à virada de mesa, mas parou o país – que vinha se recuperando da ruína petista com a saída da maior recessão da história em tempo recorde. Essa equipe econômica tinha o melhor presidente de Banco Central do mundo (ranking “Financial Times”) e foi sabotada pela tentativa de golpe. Coincidências: na ocasião, a reforma da Previdência foi jogada no lixo e um dos nomes citados para assumir a Presidência da República em caso de derrubada do governo era o de Rodrigo Maia.

Os simpáticos conspiradores estão por aí, quase todos soltos, com muito dinheiro e influência para continuar derramando suas lágrimas de crocodilo sobre 64 enquanto lutam pelo único valor cívico que lhes interessa de fato: poder. Quer se ligar no golpe, Brasil? Então olha pra frente."

A ambiguidade de André Lara Resende - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP 31/03

André não enfatiza as implicações fiscais de sua sugestão de alterar a política econômica


André Lara Resende tem provocado ruidoso debate ao afirmar que equilíbrio fiscal não tem importância e que o BC pode colocar o juro onde deseja.

Fui ler o texto original, “Consenso e contrassenso: déficit, dívida e Previdência”, e não foi o que lá encontrei.

Entendo que André está correto quando afirma que um Estado que emite dívida em sua própria moeda não enfrenta restrição financeira, mas somente a restrição de recursos da sociedade. Keynes nos
ensinou esse fato há 80 anos.

No modelo tradicional, a taxa de juros é o regulador da demanda agregada. O BC a fixa para manter inflação na meta. A política fiscal é determinada para garantir a solvência da dívida pública.

André propõe inverter. Manter a taxa de juros baixa —de preferência abaixo da taxa de crescimento da economia— e empregar a política fiscal para regular a demanda agregada.

No modelo tradicional, um parâmetro importante é a taxa real neutra de juros, aquela que mantém o mercado de trabalho a pleno emprego, e a inflação, estável e na meta.

Ao direcionar a política fiscal para o controle da demanda agregada e fixar os juros baixos para não gerar uma dinâmica explosiva na dívida pública, André está nos dizendo que a taxa neutra não é independente da política fiscal, como estabelece há décadas a teoria convencional.

Há anos tenho escrito que um dos motivos que explicam o fato de a taxa neutra de juros ser muito elevada no Brasil é o gasto primário da União crescer sistematicamente além da expansão da economia.

Entre 2008 e 2014, essa pressão sobre a taxa neutra de juros foi agravada pelo BNDES.

Até alguns anos atrás, as melhores estimativas de taxa neutra de juros no Brasil situavam-na em 6% ao ano.

A contenção do crescimento do gasto real da União desde 2015 e a redução das operações com BNDES já reduziram a taxa neutra. Hoje ela situa-se em torno de 3%.

André está certo e faz parte do saber convencional que diferentes regimes fiscais produzirão diferentes taxas neutras de juros.

Por hipótese, como funcionaria a política econômica se André fosse simultaneamente ministro da Fazenda e presidente do BC, no melhor período que tivemos, os anos Lula, quando crescemos 4% em termos reais? Ele fixaria a taxa de juros real abaixo de 4% e faria a política fiscal compatível com essa política monetária e inflação na meta.

Como aqueles foram anos de pressão inflacionária permanente, mesmo com juros reais praticados superiores a 6%, a política fiscal teria de ter sido mais apertada do que foi. Teria sido necessário aprovarmos uma reforma da Previdência e promovermos o ajuste fiscal estrutural desejado
por muitos em 2005.

O texto de André tem um problema retórico. Para tornar sua proposta mais palatável, não enfatiza as implicações fiscais de sua sugestão de alteração do regime de política econômica.

Ele tem ainda um problema histórico. O regime de André era o desejado, por exemplo, por Keynes, que defendeu contração fiscal para enfrentar o excesso de demanda no Reino Unido em 1937.

A experiência do pós-guerra nos ensinou que a política fiscal é muito lenta, pois depende essencialmente do tempo da política, enquanto a política monetária tem a agilidade necessária para manter a inflação controlada.

Com relação à proposta mais polêmica de André, manter os juros reais bem baixos, é sempre possível. Basta convencer o Congresso a produzir a política fiscal compatível com esse juro real baixo e inflação estável.

André fez muito barulho por nada.

Auto de fé e linchamento - ROBERTO ROMANO

O Estado de S.Paulo - 31/03

... Que não joguem livros à fogueira, como Savonarola, sobretudo o volume da Constituição


Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.

Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).

Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).

Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.

No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.

Lembremos o caso da Escola Base. A lei de Lynch cresce nas redes “sociais”, atos vis ocorrem sem informações corretas e prudência. Na internet se cumpre agora a profecia de Diderot, o grande enciclopedista do século 18: “Temos na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam, que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices” (Apologia do Padre Raynal). Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal.

O costume faz dos indivíduos impiedosas bocas do Destino. O dogmatismo das massas sustenta as piores ditaduras, à direita e à esquerda. “Nos últimos 60 anos, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros tomaram parte em linchamentos. No Brasil, as massas rebeladas matam, ou tentam matar, mais de um suspeito por dia”(Latin America, Awash in Crime, Citizens Impose Their Own Brutal Justice, em The Wall Street Journal, dezembro, 2018).

Os desonestos retiram das mesas o alimento necessário à vida. Larápios públicos ou particulares merecem punições. Movimentos surgiram para a luta contra o roubo dos erários. O Instituto Não Aceito Corrupção, liderado por Roberto Livianu, reúne um programa livre de partidos ou ideologias. Trata-se, naquele coletivo, de pesquisar os fatos em amplas dimensões, além de empreender análises para reduzir a sua efetividade social e política. Temos ali um esforço que merece apoio, pois combate os malefícios da corrupção sem preconceitos. Para vencer qualquer doença é preciso estudo, técnica médica, diálogo respeitoso entre o clínico e a pessoa por ele assistida. Diagnósticos parciais ou apressados causam mais dores ou mortes. Mazelas exigem cuidados não genéricos. Apelar para um só remédio significa piorar o malefício. O ressentimento das massas é desafio, impede soluções. Lutar contra a corrupção requer o contributo dos três Poderes e de setores lúcidos na sociedade. Isoladas, a promotoria ou polícia produzem resultados parciais, inoperantes.

Certas iniciativas da Justiça têm falhas na busca de combater as práticas corrosivas. A entrevista sobre a prisão de Michel Temer concedida pelo Ministério Público e pela Polícia Federal me preocupa. Antes do julgamento definitivo os acusados nela recebem epítetos infamantes, como “líderes de quadrilha”, e adjetivos depreciativos. Se posteriores à condenação definitiva, tais palavras já seriam indevidas. Até contra cidadãos de quem foi retirado o livre movimento é vetada a injúria. Acusados servem como bode expiatório para os acusadores. As falas com apodos aos políticos mostram o costume de mover ressentimentos populares.

Não é de hoje que tal hábito torce ações judiciais no Brasil. Sobral Pinto e demais causídicos, nas ditaduras do século 20, enfrentaram parquets ágeis na hora de acusar, lentos ao corrigir erros. Recordo o tratamento cruel aplicado ao magnífico reitor da Universidade de Santa Catarina dr. Luiz Carlos Cancellier, sem provas contra ele. A UFMG foi invadida e seus dirigentes, humilhados, sem provas. A corrupção (lembro Savonarola) não é vencida com autos de fé, mas com pesquisas minuciosas, cautela, respeito à Carta Magna. O linchamento impera se existe a guerra de todos contra todos.

No Estado de Direito a ira das multidões é afastada e nunca seguida pelos que têm o múnus de zelar por todos e cada um dos cidadãos. Que eles não joguem livros à fogueira, como o dominicano, sobretudo o volume da Constituição.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros Estados da razão' (Perspectiva)

Governo paralelo, castelos no ar - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 31/03

Cúpulas do Congresso querem ter 'pauta própria' e colaborar com 'parte do governo'


A cúpula do Congresso, Câmara e Senado vai trabalhar para que se aprove alguma reforma da Previdência, além de outros assuntos de grande consenso na elite econômica e de repercussão popular. Quanto ao mais, o governo que se vire.

No final da semana, esse parecia o saldo do arranca-rabo, explicitado em conversas com lideranças que se resignavam com o fato de Jair Bolsonaro ser mesmo o que sempre pareceu.

Não haveria patrocínio de tentativas de sabotagem do governo, que, no entanto, vai colher o que plantar caso provoque a massa parlamentar.

A reforma da Previdência será de certa forma um projeto do Parlamento, um roteiro adaptado, baseado na história original elaborada pelo Ministério da Economia. Será lipoaspirada. As dificuldades de aprová-la talvez sejam até maiores, mas o projeto não será largado pela cúpula do Congresso, como em 2017.

O plano, enfim, é governar com uma parte do governo (sic), em especial em economia e segurança pública. Seria uma espécie de parlamentarismo aéreo, um governo paralelo, quem sabe um castelo no ar.

Pode dar certo? No Brasil recente, viu-se coisa parecida no desastre de José Sarney (1985-1990) e no estágio terminal de Fernando Collor e Dilma Rousseff, que não foram sujeitos a governo paralelo, mas apenas neutralizados ou sabotados. A comparação não ensina grande coisa.

O MDB desde o início podou Sarney, presidente acidental, sempre um estranho no ninho do próprio governo. Não foi eleito, sua administração virou pó a partir de 1987; o MDB era majoritário na Câmara e um partido que liderou a transição transada para a democracia. Outro planeta.

Os casos de Collor e Dilma são de troca de fusível queimado, goste-se ou não dos motivos da interrupção do circuito. Incinerar Bolsonaro não interessa, antes de mais nada porque assim também viraria cinza a possibilidade de haver tão cedo um projeto de recuperação econômica.

De resto, por ora não se nota por aí nenhuma intenção, por nenhum motivo, de colocar fogo na casa.

Isto posto, a questão permanece. Como pode funcionar um sistema em que o governo não tem maioria ou coordenação, em que o Parlamento se propõe a ter um plano próprio de governo e uma massa de uns 250 parlamentares parece perdida na terra do nunca da desarticulação política?

Esses 250, por aí, são a metade do Câmara que não está na oposição, não é do PSL e que não faz parte dessa cúpula que se imagina capaz de criar uma “pauta própria” para o Parlamento.

Caso persista o padrão pendular de loucura do governo, até a Semana Santa haveria nova crise, mas o problema não para aí.

Como o bolsonarismo vai reagir ao Congresso com “pauta própria”, com seus projetos pegando poeira em alguma comissão inerte?

Sim, a liderança do Congresso, da Câmara em particular, vai tentar aprovar projetos também de interesse ou iniciativa do governo. Ainda não há guerra sem trégua. Pode ser até que o governo Bolsonaro nem mesmo consiga mandar muito mais coisa relevante para o Parlamento, com o que haveria um armistício por falta de bala.

Mas é preciso lembrar também que o núcleo puro do bolsonarismo tem crenças messiânicas, fantásticas, autoritárias e ignorantes, de que pode fazer uma revolução moral e contornar a política, com a força do grito da massa nas redes insociáveis, quem sabe nas ruas. Pode ser que essa ambição morra por pura incompetência. Ou não.

Gabeira e um Brasil que vale a pena - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 31/03

Seu papel é um alívio em tempos em que alguns tentam reescrever a história

Conheci Fernando Gabeira há 16 anos, quando eu estava no Ministério da Fazenda e ele, no Congresso. Encontramo-nos poucas vezes desde então.

Em tempos de desesperança, seu programa na GloboNews recupera a alma.

Há tanto que me comove: a descoberta dos recônditos do país, o carinho interessado pelos entrevistados, a câmera curiosa descobrindo detalhes inesperados, como uma placa de trânsito com uma palavra inclinada no canto.

Em um programa recente, visitou Exu, Pernambuco, e alguns de seus moradores. Com imagens espaçadas, como a da boiada passando pela cidade, descreveu um cotidiano. Não consigo imaginar homenagem mais delicada a Luiz Gonzaga, quase um contrabando do afeto.

Em vez de destacar o seu legado, Gabeira optou por mencionar de passagem seus gestos ao retornar ao vilarejo, como a doação de um acordeão a um parente ainda criança em quem anteviu a musicalidade.

Sutilmente, deixou-nos saber da música de Gonzagão que reverbera gerações, como na homenagem ao pai, Januário. As imagens retratavam a vida e a terra que ele cantara em seus baiões e xotes.

Aproveito para resgatar uma memória talvez curtida pela criatividade carioca.

Quando era criança, minha mãe contava-me da ditadura em que vivíamos e dos jovens que resistiam atabalhoadamente, às vezes com violência inaceitável. Falava do sequestro do embaixador americano e, em meio ao desespero dos relatos da tortura e da opressão, ria-se do manifesto demandado a ser lido em horário nobre. Os jovens sem rosto eram identificados pela escrita, dizia ela, em que muitos reconheciam o estilo de Gabeira.

Pura lenda. O autor foi Franklin Martins, contou-me Gabeira.

Sua narrativa na televisão, porém, tem mesmo personalidade. Lembra-me a compaixão de Tchekhov, o dos contos em que revela pessoas por meio de sutilezas do seu cotidiano, não o das peças de teatro e das personagens que anseiam pela mudança e terminam resignadas com as circunstâncias.

A delicadeza do contar fala muito do país, mas também do jornalista, momentaneamente transformado em guerrilheiro naquele período autoritário. Sua generosidade permite encontrar vidas surpreendentes onde a elite apenas se enaltece com o exótico.

Gabeira revela-se um liberal dos velhos tempos que procura conhecer o diferente. Um alívio nesta sociedade dividida em que, costeando a intolerância, alguns tentam reescrever a história.

Há um Brasil que vale a pena. Enfrentar os nossos graves desafios, porém, requer superar o passado e resgatar o diálogo, como, incidentalmente, faz Gabeira com maestria e gentileza.


Marcos Lisboa

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

Coalizão ou impasse - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 31/03

Com sistema político rumo à paralisia, só ação concertada das lideranças pode evitar que o país afunde na recessão e na bagunça administrativa


A teoria é quase tautológica. Quanto mais partidos representativos houver numa democracia, maior é a propensão a que o governo seja uma coalizão entre duas ou mais legendas. Vale para o presidencialismo e o parlamentarismo.

A realidade é que começa a dificultar as coisas —e a realidade brasileira as complica especialmente.

Aqui se decantou, ao longo de 30 anos de vigência desta Constituição, a combinação peculiar entre um presidente da República forte, embora menos do que era na largada, e um Congresso cada vez mais poderoso como instituição mas, paradoxalmente, ultrafragmentado na sua composição partidária.

O presidente, para realizar a sua agenda, necessita do Poder Legislativo. A coordenação de deputados e senadores em maiorias estáveis, porém, tornou-se tarefa mais difícil com o passar do tempo.

Para piorar, os mecanismos de incentivo às boas práticas administrativas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, atuam concentradamente sobre o chefe do Executivo.

Parlamentares adquiriram poderes —como o de evitar abusos nas medidas provisórias— e pleiteiam outros —como a execução obrigatória de mais um pedaço do Orçamento—, mas ainda atuam num vácuo de responsabilização e sob controle partidário evanescente.

Continuam livres para explodir pautas-bomba, que demolem o futuro em nome de imediatismos.

Acrescente-se o fortalecimento recente de organizações de controle do poder representativo, como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União.

Tudo somado, o impasse parece ter-se tornado o resultado inercial da governança política no Brasil. Para lá o processo ruma, salvo quando muito esforço, engenho e arte são empregados pelas lideranças eleitas no sentido contrário.

Os debates para reformar o sistema da representação são longos e controversos. É provável que inovações, como a cláusula de desempenho e a proibição de coligações em pleitos para deputado, ajudem a inverter, até certo ponto, a tendência ao despedaçamento partidário.

Há quem pregue remédios mais ousados e incertos. É o caso do chamado semipresidencialismo, em que uma figura parecida à de um premiê surgiria. O debate, de todo modo, é necessário e bem-vindo.

No curto prazo, no entanto, nada será capaz de substituir, como antídoto à paralisia decisória, a iniciativa e a capacidade de trabalho concertado das lideranças que a população e os partidos escolheram. Ou se entendem, ou o Brasil afunda de volta na recessão econômica e na bagunça administrativa.

Os presidentes da República, Jair Bolsonaro (PSL), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), precisam dar por encerrado o período das escaramuças. Passa da hora de trabalharem em harmonia pelo país.

O dissenso necessário - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 31/03


Aproximando-se o ciclo dos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já é possível constatar uma maneira de governar no mínimo heterodoxa, estimulada por embates permanentes com o uso das novas mídias sociais e baseada fundamentalmente em questões morais. Os pontos centrais, na Economia as reformas e as privatizações, na Justiça, a lei anticrime, têm atitudes dúbias por parte do presidente, cujo passado interfere nas supostas ideias atuais.

Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de um nicho da direita radicalizada, o que já lhe valeu uma queda acentuada de popularidade, principalmente entre a classe média, que foi fundamental para sua eleição.

O analista Fabio Lacombe, do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep), diz que a hipervalorização da animação ou reanimação dos “seguidores” estabelece limites muito estreitos para o exercício da convivência política, que requer muito mais do que um agrupamento em torno de determinadas ideias, pois prevê exatamente questioná-las. A desconvocação da cientista política Ilona Szabó de um conselho sobre segurança pública é exemplo disso.

Como Freud mostrou, diz Fabio Lacombe, as exigências morais, uma vez se impondo, se tornam cada vez mais rígidas, em vez de abrirem espaço para possibilidades que ainda não se revelaram. E a realidade política, diferente da postura moralista, está sempre promovendo essas aberturas.

“A questão do agendamento, se não estiver submetida ao propriamente político, é porque se presta mais, por suas dimensões exíguas, a colocar os cidadãos numa marcha onde o pensamento se recolhe às dimensões de reprodução das ordens agendadas”, analisa Lacombe, que lembra que Clausewitz, grande teórico da guerra, avaliou que ela se impõe quando os recursos políticos se esgotaram.

“Apoio político deve ser a adesão a um conjunto de ideias que manifestam a expectativa de que sua aplicação vai promover um estado de coisas que visam ao bem comum”, afirma o analista do Ebep. Delas não emerge nada parecido com um conjunto de regras que devem ser obedecidas sem serem questionadas.

Se, diante da desilusão de certos setores de eleitores que votaram em Bolsonaro mais para se livrar do PT do que propriamente em favor de suas propostas, surge um desapontamento com algo que emergiu, só se pode valorizar esse “desapontamento”, pois gera uma possibilidade de reflexão.

Não basta se encolher numa aparente recompensa, analisa Lacombe. “Mesmo porque ficar livre de algo não garante que essa ‘liberdade’ conquistada deixe em seu lugar algo melhor”, adverte. Se a grande questão era a condução da política submetida a uma rígida postura ideológica, o que tem sido apontado por alguns é que só teria sido invertido o sentido da seta que indicava a direção da ideologia.

Ideologia, lembra Fabio Lacombe, segundo Destutt de Tracy, o criador do termo, trata-se de uma “ciência das ideias”, portanto, nada que possa ser entendido como um conjunto de postulados norteadores de uma conduta política. “A ideologia supõe a necessidade de uma permanente reflexão a respeito da própria conduta”.

O que estaria acontecendo no mundo ocidental que possa estar servindo de sustentáculo para a disseminação do conservadorismo, e não apenas no Brasil? Para Fabio Lacombe, o conservadorismo, no seu manifesto aprisionamento a uma tentativa de evitar as mudanças, encontra nas questões ligadas aos costumes seu alimento maior.

Mas, ao mesmo tempo, destaca que nunca foi tão manifesta a dimensão da ganância, evidenciada no crescente recurso à corrupção, por exemplo. Por que o acento nos costumes, nas regras morais? Qual o lugar da busca pelo dinheiro, nas avaliações do comportamento político?

Na verdade, analisa Lacombe, estamos sendo envolvidos por uma “estimulação” informacional que assumiu proporções assustadoras. “Se pensarmos que os meios atuais colocaram o contato “a dois” numa escala de possibilidades inauditas, certamente criou-se a impressão de uma proximidade entre estamentos antes impossível”, ressalta.

“Se posso acessar um Twitter emitido por meu presidente, figura sempre tão distante em sua altitude, sinto-me numa proximidade que me distingue. Essa dimensão fantasiosa, certamente me preenche em minhas aspirações infantis de estar participando de um mundo ‘adulto’, antes inacessível”.

Fabio Lacombe admite que é “um pouco leviano” elaborar uma conceituação muito requintada do que estamos de fato vivenciando de transformação, “mas não pode passar desapercebido o fato de a relação presencial parecer menos importante da que o celular, por exemplo, propicia. E isso certamente tem uma dimensão política”, acentua Fabio Lacombe.

O 'aprendiz de presidente' - EDITORIAL O ESTADÃO

O ESTADÃO - 31/03

A mais recente edição da revista britânica The Economist publica um artigo intitulado Jair Bolsonaro, o aprendiz de presidente.


Depois de mencionar a crescente série de problemas enfrentados pelo País em razão da inação do governo Bolsonaro em todos os setores, especialmente em relação às reformas, a tradicional publicação comenta que “o maior problema é que o sr. Bolsonaro ainda não mostrou que entende seu novo trabalho”. E sentencia: “A menos que ele pare com suas provocações e aprenda a governar, seu mandato pode ser curto”.

A Presidência de Bolsonaro, diz a Economist, enfrenta um “teste crucial” com o encaminhamento da reforma da Previdência logo em seus primeiros meses, mas o próprio presidente parece não ter compreendido a dimensão desse desafio. Prefere antagonizar a imprensa, ao dizer, no Twitter, que “a mídia cria narrativas de que não governo, sou atrapalhado etc.” e, dirigindo-se a seus seguidores, acusa: “Você sabe quem quer nos desgastar para se criar uma ação definitiva contra meu mandato no futuro”. Ou seja, o próprio presidente Bolsonaro, como a reafirmar sua incrível inabilidade, trouxe à tona, em suas redes sociais, a sombria perspectiva de uma nova interrupção de mandato – e isso antes de se completarem cem dias desde a posse. A Economist disse, com razão, que “os democratas, por mais que abominem Bolsonaro, não deveriam querer que ele não completasse seu mandato”, mas o fato é que o presidente parece estar se esforçando para tirar o gênio da garrafa.

O clima de incerteza provocado pela falta de traquejo presidencial de Bolsonaro, que se reflete em uma relação hostil com o Congresso e em uma gritante falta de rumo administrativo, não autoriza otimismo de nenhuma espécie. Altos funcionários do próprio governo já não escondem de ninguém sua exasperação com o estilo de Jair Bolsonaro de governar – ou de não governar.

Em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que “tem havido uma falha dramática” do governo na relação com o Congresso e disse considerar que “o principal opositor dele (do governo) é ele mesmo”, pois “está falhando algo entre nós”. Esse “algo”, já ficou claro, é a atitude olímpica do presidente Bolsonaro diante do Congresso. Enquanto Paulo Guedes expunha publicamente os atropelos de seu chefe, Bolsonaro resistia a admitir qualquer erro. “Meu erro”, disse à TV Bandeirantes, “foi escolher um Ministério técnico, competente e independente” – sugerindo que está sendo boicotado pelo Congresso por não ter negociado cargos. Além disso, afirmou que governa respeitando, “acima dos colegas políticos, o povo brasileiro que me botou lá” – como se esses “colegas políticos” não fossem representantes do povo brasileiro tão legítimos quanto ele.

Bolsonaro foi eleito com a promessa de acabar com a relação fisiológica entre o Executivo e o Legislativo. De fato, essa era e continua a ser uma demanda de toda a sociedade. No entanto, o presidente parece entender que qualquer forma de negociação entre o Executivo e o Legislativo é necessariamente corrupta, transformando a política numa atividade criminosa por definição e todos os parlamentares em delinquentes até prova em contrário – essa “prova”, ao que parece, seria o voto a favor do governo em todas as matérias. Ora, o sr. Bolsonaro não foi eleito por unanimidade e muito menos tem desenvoltura suficiente para implementar o pensamento único no Brasil.

A sorte de Bolsonaro – melhor seria dizer, a sorte do Brasil – é que ainda há um clima favorável à reforma da Previdência no Congresso, porque predomina a opinião de que, sem essas mudanças, o País quebrará. Provavelmente não será a reforma pretendida pela equipe econômica, mas deverá ser suficiente para ao menos aplacar momentaneamente o pessimismo dos agentes econômicos e políticos a respeito do futuro imediato.

Contudo, apenas a reforma da Previdência não basta. Há muito mais a fazer, num país de infraestrutura muito precária, de educação quase sofrível, de saúde em pandarecos e com índices obscenos de violência. O País precisa de rumo, que deve ser dado pelo presidente. Até aqui, Bolsonaro não se mostrou nem remotamente à altura dessa tarefa, e não há razões para acreditar que algum dia estará.

Mais aposentados no campo do que agricultores - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 31/03
Há um número desproporcional de beneficiários do INSS em relação ao de trabalhadores rurais


É compreensível, mas não aceitável, que políticos, mesmo diante dos riscos de insolvência do próprio sistema de seguridade e, por consequência, do Tesouro, se oponham a algumas mudanças em nome da defesa dos mais “humildes”.

Sob esta chancela estão os atendidos pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), um salário mínimo para qualquer pessoa com 65 anos ou mais que se declare de baixa renda e/ou seja deficiente, mesmo que jamais tenha contribuído para o INSS.

Trata-se de uma ajuda de cunho social, de necessidade indiscutível. Pela proposta original da reforma, a pessoa poderá, já aos 60 anos, começar a receber R$ 400 e chegar ao salário mínimo integral aos 70. Políticos se insurgem contra o que consideram uma desumanidade, mas não se preocupam com a lisura das informações concedidas ao INSS, no enquadramento do beneficiário no BPC. Este é outro exemplo da clássica visão brasileira de que dinheiro público não tem dono nem custo, e por isso pode ser gasto sem cuidado. Sequer admite-se que a possibilidade de garantir um salário mínimo aos 65 anos é poderoso incentivo a que uma faixa da população deixe de contribuir para o INSS a partir de certa idade. E também não se reconhece a injustiça social de se pagar aposentadoria de um salário a quem contribui ou não.

Outra incongruência é o ataque às mudanças na aposentadoria rural, também devido a preocupações ditas sociais. O tamanho dos números desta aposentadoria por si só justifica uma análise das despesas.

Os segurados no campo representam 32% dos benefícios do INSS e respondem por 52% do déficit. No ano passado, a previdência rural arrecadou R$10 bilhões, mas gastou R$ 124 bilhões. Para este ano, o governo projeta receita de R$ 11 bilhões e despesas de R$127 bilhões.

Ora, apenas estes números justificam que algo deva ser feito na arrecadação. Daí propor-se uma idade mínima, para se pedir o benefício, de 60 anos para homens e mulheres — hoje, 60 e 55 anos —, com o aumento do tempo de contribuição de 15 anos para 20, coerente com o sentido de toda a reforma da Previdência — mais tempo no mercado de trabalho, aumento da contribuição. Mantém-se o recolhimento de 1,7% sobre o valor da produção ou um mínimo de R$ 600 por ano.

Além da dimensão dos números, chamam a atenção as evidências de fraudes. Supõe-se que muitas cometidas no período em que foi possível obter aposentadoria com uma simples e pouco idônea declaração de um sindicato rural que atestava a condição de trabalhador no campo.

Há números reveladores, da Secretaria da Previdência: existem mais de 9 milhões que recebem aposentadorias e pensões rurais; só dos chamados aposentados especiais são 7,3 milhões, enquanto trabalhadores autodeclarados no campo são menos de 7 milhões. Mais aposentados do que trabalhadores deveria preocupar o Congresso.