quinta-feira, maio 23, 2019

Cristina Kirchner grita truco - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 23/05

O afobado Bolsonaro já havia entrado antes no jogo


A quem nunca jogou truco, breve explicação: quando um jogador acha que tem na mão cartas imbatíveis, grita truco. Se os adversários aceitam o desafio, quem vencer leva o dobro de pontos naquela jogada.

De certa forma, foi o que fez Cristina Fernández de Kirchner na semana passada: em vez de fugir da raia, dobrou a aposta. Indicou para cabeça de chapa outro Fernández, no caso Alberto Fernández, que havia sido chefe de gabinete (uma espécie de primeiro-ministro) tanto com Néstor Kirchner, marido e antecessor de Cristina, como com a própria Cristina.

O curioso nessa história é que Jair Bolsonaro já havia decidido entrar no jogo antes mesmo de Cristina gritar truco: deu várias declarações em que pintava o caos no caso de Cristina voltar à Casa Rosada.

Ao fazer o seu lance, a hoje senadora mudou o cenário em que havia se metido o presidente brasileiro.

É a constatação virtualmente unânime entre analistas argentinos. Cito um, Fernando Manuel Suárez, professor de História pela Universidade Nacional de Mar del Plata, em artigo para Nueva Sociedad, a revista editada pela social democracia alemã:

“O candidato [Alberto Fernández] vem para limar as arestas mais ásperas do kirchnerismo e oferece a Cristina Fernández a possibilidade de demonstrar certa vocação de amplitude e desapego em concentrar o poder.”

Alberto Fernández é considerado um kirchnerista moderado, capaz até de fazer duras críticas à que agora é sua companheira de chapa. Rompeu com ela em 2008 e, em 2015, chegou a dizer que “é dificílimo achar algo de virtuoso” em seu segundo (e último) mandato.

A aposta de Cristina por ele é, pois, arriscada. Qualquer marqueteiro de segunda põe no ar, durante a campanha, as críticas de Alberto Fernández que desqualificam a ex-presidente. Fora o fato de que ela responde a processo por corrupção.

Mas não é maluquice. Cristina é para a Argentina mais ou menos o que é Lula para o Brasil, guardadas, claro, as diferenças entre os dois países e as duas personalidades e biografias.

Há uma massa que a apoia com fervor quase religioso, assim como há outra multidão que a odeia de coração e fígado. Mais ou menos como Lula.

Qual a fatia maior depende dos ventos políticos do momento. Em 2015, sopraram contra ela, e seu candidato foi derrotado por Mauricio Macri, que vestiu com gosto o traje de antikirchenerista. Como Bolsonaro foi essencialmente o anti-Lula em 2018.

Em 2019, os ventos sopram contra Macri: a inflação é desbocada (talvez 50% este ano), a economia retrocedeu 2,8% em 2018 e cairá 1,9% este ano, a pobreza voltou aos insuportáveis (para a Argentina) 32% do período pré-Macri, o dólar disparou e o país teve que correr para o colo do Fundo Monetário Internacional, um anátema para boa parte do público argentino.

Significa que a aposta de Bolsonaro é ainda mais arriscada do que a de Cristina. Pior: os argentinos têm um repúdio profundo a ditaduras e, portanto, veem com antipatia os que a defendem. Se um defensor da ditadura brasileira, como Bolsonaro, veta Cristina, leva votos para ela.

É cedo, no entanto, para dizer para que lado cairão os pontos em dobro desse truco. O que se sabe é que não faltarão emoções fortes até outubro, mês da eleição.

Clóvis Rossi
Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

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