terça-feira, junho 05, 2018

Trabalhos-bosta - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 05/06

Muitos trabalhadores-bosta florescem no narcisismo dos pequenos poderes

Tempos atrás, fui convocado para uma reunião "importantíssima". Disse que iria e perguntei a que horas começava. "Nove da manhã", responderam. E a que horas terminava?

Silêncio do outro lado da linha. Cinco segundos depois, a réplica: "Terminar? Como assim?". Entendo o pasmo.

Na cultura laboral reinante, a reunião pode começar a uma hora definida; mas só acaba quando Deus quiser.

A ideia de que as pessoas têm trabalho (verdadeiro) para fazer e uma vida (pessoal) para viver não passa pela cabeça do burocrata moderno. Ele acredita genuinamente que reuniões intermináveis —aquelas reuniões de 15 minutos que acabam durando duas ou três horas— são prova de excelência e produtividade.

Fui. A reunião durou três horas, quando teria sido possível tratar do assunto pelo telefone. Mas devo acrescentar, em minha defesa, duas coisas: primeiro, que não voltarei a pôr os pés em martírio semelhante; e, segundo, que esses martírios não fazem parte das minhas rotinas, embora façam parte da rotina do trabalhador comum.

Vamos por partes: existem "trabalhos de bosta" ("shit jobs"), "trabalhos-bosta" ("bullshit jobs") e "trabalhos que acabam virando bosta" ("jobs that were bullshitised"). Essas categorias filosóficas pertencem a Eliane Glaser em ensaio para o Guardian que merece ampla divulgação.

"Trabalhos de bosta" são trabalhos duros e necessários. Como limpar as ruas para que as nossas cidades não se convertam em antros fétidos e pestilentos. São trabalhos mal pagos que deveriam ser regiamente pagos.

"Trabalhos que acabam virando bosta" são trabalhos que não são bosta (originalmente), mas que se convertem em bosta pela burocracia demencial em que se afundam.

A academia é um excelente exemplo: em teoria, um professor universitário ensina e faz pesquisa; mas ensinar e pesquisar são hoje atividades marginais da profissão. O essencial está em mil tarefas burocráticas que transformam os acadêmicos em profissionais de "trabalhos-bosta". E o que são esses trabalhos?

Simplificando, são aqueles trabalhos que, se desaparecessem hoje, você não sentiria falta. São trabalhos sem sentido, normalmente de natureza "administrativa", que ocupam uma parcela cada vez maior do mercado laboral.

O antropólogo David Graeber, analisado por Eliane Glaser, escreveu um ensaio (que agora virou livro: "Bullshit Jobs") que resume o essencial: em 1930, J.M. Keynes profetizou que os avanços tecnológicos acabariam por permitir aos seres humanos 15 horas de trabalho semanal. Azar: nunca estivemos tão ocupados como agora. Mas ocupados a fazer o quê?

Nos Estados Unidos e no Reino Unido, escreve Graeber, diminuiu drasticamente o número de trabalhadores domésticos, industriais e agrícolas. Tradução: não estamos trabalhando em casa, na fábrica ou no campo.

Ao mesmo tempo, subiu vertiginosamente o número de trabalhadores no "setor administrativo". Isso se explica por razões econômicas?

Nem por isso, defende Graeber: a maioria dos "trabalhos-bosta" não tem qualquer racionalidade econômica. A razão é moral e política: as pessoas trabalham 40 ou 50 horas semanais, e não as 15 que seriam suficientes, porque é do interesse dos poderes estabelecidos que uma multidão de gente não dedique o seu tempo e os seus esforços a cogitar um mundo melhor.

Sim, a última parte do raciocínio de Graeber não me parece convincente: no seu cripto-marxismo, Graeber parte da premissa otimista de que a multidão, sem "trabalhos-bosta", estaria devotada à construção da utopia.

Além disso, confesso, eu preferia ter um "trabalho-bosta" a um "trabalho de bosta", que era o tipo de trabalho fatal dos nossos infelizes antepassados.

Mas a inquietação continua: como explicar a profusão de "trabalhos-bosta"?

Arrisco uma hipótese descartada por Glaser e Graeber: é preciso não subestimar a militância de "trabalhadores-bosta". Falo de trabalhadores que não deploram o tipo de trabalho que têm —mas, pelo contrário, encontram na burocracia infinita um sentido que me transcende e uma marca de distinção face aos restantes.

Não se queixam. Eles existem para que os outros se queixem. Adaptando uma expressão freudiana, há muitos trabalhadores-bosta que florescem no narcisismo dos pequenos poderes.

Basta lembrar a minha reunião: três horas escutando bosta —e que belos sorrisos naquelas caras em transe!

João Pereira Coutinho

É escritor português e doutor em ciência política.

A receita dos sindicatos - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/06

A contribuição sindical continua existindo. Ela apenas deixou de ser obrigatória

A reforma trabalhista alterou significativamente as receitas dos sindicatos. Antes, uma vez por ano era descontado do salário do funcionário o equivalente a um dia de trabalho a título de contribuição sindical. Não havia escolha. Todos os empregados eram obrigados a repassar parte da sua renda ao sindicato da sua categoria profissional. Com a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as contribuições sindicais tornaram-se voluntárias. Elas só podem ser descontadas do salário "desde que prévia e expressamente autorizadas", diz o novo art. 578 da CLT.

O caráter facultativo da contribuição sindical fez despencar as receitas dos sindicatos. Em reação, várias entidades recorreram à Justiça com o objetivo de relativizar a necessidade de autorização do empregado. Almejam, por exemplo, que a autorização individual possa ser suprida por uma aprovação coletiva em assembleia. Tal manobra, como é obvio, fere o que está previsto na Lei 13.467/2017 e cabe à Justiça dar o devido rechaço a essa liberalidade com o salário do empregado.

A voracidade dos sindicatos parece, no entanto, não ter limites. Recentemente, foi noticiado um novo arranjo para avançar sobre o salário do empregado sem o seu consentimento. O Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias dos Estados do Maranhão, Pará e Tocantins (Stefem) firmou com a Vale um acordo que, entre outros pontos, cria uma nova contribuição a ser feita pelo empregado, chamada de "cota negocial", para custeio das despesas do sindicato. A empresa fará um desconto anual, equivalente a meio dia de trabalho, do salário de cada empregado.

Na tentativa de dar à "cota negocial" uma aparente conformidade com a reforma trabalhista, o acordo estabeleceu que os funcionários não sindicalizados não serão obrigados a contribuir com o valor previsto. Para tanto, eles terão de manifestar expressamente que não estão de acordo com a cobrança. Essa exigência é uma inversão em relação ao que prevê a Lei 13.467/2017, que fala em autorização prévia do empregado. Além disso, o acordo não prevê que os funcionários sindicalizados possam manifestar sua oposição à nova cota.

O mais estranho nessa história é que o vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Renato de Lacerda Paiva, referendou o tal acordo, como se ele não contivesse patentes ilegalidades. Segundo o ministro, "o acordo é resultado de várias negociações, fruto de um consenso entre trabalhadores e empresa, com anuência do Ministério Público do Trabalho". Este, pelo visto, também não se deu conta de que a CLT tem agora novos requisitos para a cobrança de contribuição em favor do sindicato.

Com a Lei 13.467/2017, o trabalhador tem o direito de decidir se deseja ou não contribuir com o sindicato. Não existe acordo capaz de extinguir ou relativizar o exercício desse direito. Vale lembrar também que esse direito do trabalhador não é uma afronta ao sindicato. Antes, deve ser um poderoso estímulo para que essas entidades assumam a sua verdadeira missão, que é representar o interesse dos empregados.

A reforma trabalhista não extinguiu a fonte de receita dos sindicatos. A contribuição sindical continua existindo. Ela apenas deixou de ser obrigatória. É um equívoco, portanto, pensar, como às vezes se diz, que a Justiça do Trabalho teria agora de se preocupar em criar fontes alternativas de renda para essas entidades. O que é necessário é uma mudança de atitude dos sindicatos, para adequar-se à lei e também ao seu próprio caráter de órgão de representação. Em primeiro lugar, eles têm de perceber que o equívoco não está na situação atual, mas no regime anterior, que forçava o trabalhador a contribuir, em confronto com a liberdade de associação sindical prevista na Constituição.

A receita continua disponível aos sindicatos, mas, para obtê-la, eles devem necessariamente se aproximar do trabalhador e defender claramente os seus interesses. De outra forma, parece impossível que alguém se disponha a dar parte do seu salário a entidades interessadas primordialmente na boa vida de seus dirigentes.

Competência como problema - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/06

Parente não foi o primeiro a sucumbir diante da força do parasitismo estatal. Antes dele, caiu Maria Silvia Bastos Marques


O Brasil, ao que parece, não está pronto para uma gestão profissional e apolítica de suas empresas estatais. Sempre que uma estatal ou banco público começa a ter critérios racionais de administração, tornando-se infenso aos usos e costumes clientelistas e patrimonialistas, os grupos de pressão - sejam políticos, sejam sindicais - tratam logo de sabotar esses esforços. Donde se pode concluir que estatais, geralmente em nome de um obscuro "interesse nacional", jamais serão gerenciadas para manter seu equilíbrio financeiro e ter recursos para investir, pois só existem - é o que parece - para satisfazer objetivos estranhos ao seu negócio.

O recente caso da Petrobrás é apenas um exemplo. Como se sabe, a estatal chegou à beira da ruína depois de anos servindo aos projetos megalomaníacos dos governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff. Felizmente, o impeachment de Dilma interrompeu esse processo, pois o sucessor da petista, o presidente Michel Temer, tratou rapidamente de entregar a administração da empresa a Pedro Parente, um executivo com indiscutível capacidade administrativa. Nenhuma das qualidades de Parente, contudo, teria sido suficiente para salvar a Petrobrás se o presidente Temer não tivesse atendido às principais exigências do executivo para aceitar o cargo, isto é, total autonomia para definir os rumos da Petrobrás e garantia de que não haveria interferência política na sua gestão.

Os extraordinários resultados obtidos pela Petrobrás na gestão de Pedro Parente serviram para comprovar não apenas o quão importante é ter bons profissionais à frente da administração de estatais, mas principalmente o quão crucial é impedir que essas empresas sejam exploradas com propósitos populistas, eleitoreiros e corporativistas.

Apesar dessas constatações indisputáveis, o governo foi incapaz de sustentar a administração de Pedro Parente diante do primeiro solavanco causado pelas milícias do subdesenvolvimento - que impulsionaram uma greve de caminhoneiros para exigir que a Petrobrás deixasse de praticar sua racional política de preços de mercado, implementada por Parente, e voltasse a bancar combustível barato, como fazia na trevosa era lulopetista.

Parente não foi o primeiro a sucumbir diante da força do parasitismo estatal. Antes dele, em maio do ano passado, caiu Maria Silvia Bastos Marques, que havia tentado fazer do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) uma instituição voltada para sua função essencial - estimular o crescimento do País sem favorecer nenhum setor em especial e sem bancar os "campeões nacionais" que fizeram a festa durante os governos de Lula e Dilma. Convém lembrar que Maria Silvia teve que trabalhar em um BNDES repleto de funcionários que haviam ingressado durante a administração do PT e que, sob inspiração do partido, foram responsáveis por dar aval a uma política de crédito que se revelou ruinosa não apenas para o banco, mas para o País. Também neste caso, o Palácio do Planalto falhou na defesa de sua executiva justamente no momento em que esta mais sofria com pressões de todo tipo - de funcionários, de empresários e de gente de dentro do próprio governo.

Assim, observa-se quão inúteis são as iniciativas destinadas a melhorar a governança das empresas e dos bancos estatais. A mais recente dessas iniciativas, a Lei das Estatais - que impôs requisitos mínimos para o preenchimento de cargos, na suposição de que isso impediria a nomeação de apaniguados de partidos governistas e, portanto, protegeria as empresas de interferência política -, se tornou quase letra morta. E isso aconteceu não apenas porque os partidos continuam a ter influência na nomeação de diretores das estatais, mas principalmente porque, como se viu nos casos da Petrobrás e do BNDES, quanto mais competente e profissional for a administração dessas empresas, menos "estatais" - isto é, menos sujeitas à ingerência política e sindical - elas serão. E isso para os diversos grupos organizados que, a título de defender os interesses do "povo", pretendem se apoderar de pedaços do Estado - aí incluídas suas empresas e bancos - é simplesmente intolerável.

Cada um por si, quase ninguém por nós - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 05/06

A reconstrução do Brasil passa pela nossa capacidade de entender que o público que se tornou privado está roubando a todos nós um pouco a cada dia

O Brasil está tão viciado em subsídios, em benesses e em privilégios que chega a ignorar que essa conta, ao final, recai sobre a sociedade por meio de mais impostos ou maior desigualdade. O Brasil está tão tomado e o Estado tão capturado que não mais se distingue o público do privado. É o patrimonialismo que volta e meia dizemos atacar, mas que na prática continua aí, teimando em se perpetuar.

São sempre os mesmos, organizados em grupos de pressão, dentro e fora do setor público, que se beneficiam de recursos públicos, à custa de um País que já exauriu sua capacidade de tributar. São grupos que tomaram de assalto o Estado, as políticas públicas, as decisões legislativas e as ações de governo. Exemplos não faltam, nesses tempos difíceis que vivemos.

Ministérios se consolidaram como latifúndios partidários – e por vezes até familiares. Esta semana, o presidente Temer disse que considerava tirar o Ministério de Trabalho do PTB. Infelizmente, não é retórica. Assim como esse, vários são os ministérios e órgãos cujas ações financiadas com dinheiro público têm como única motivação o atendimento de interesses políticos específicos, na melhor das hipóteses. As ações públicas se tornaram moeda com a qual se compra apoio político aqui, um palanque ali ou um voto acolá. Como coordenar ações de governo nesse varejo de interesses? Afinal, se o loteamento leva ao atendimento de interesses específicos, não necessariamente convergentes entre si, onde estará o benefício público?

No Congresso, projetos de leis ficam à mercê de grupos de pressão. Modernizações necessárias e urgentes do nosso arcabouço legal e correções dos exageros e erros de políticas equivocadas esbarram nos lobbies de empresas privadas, organizações cartoriais ou sindicatos de servidores públicos barulhentos e influentes. Boa parte dos nossos parlamentares teve suas campanhas financiadas por esses grupos e, ao final do dia, acabam por servir aos seus financiadores e não aos seus eleitores. Afinal, quem ganha com a dificuldade de aprovação de leis importantes como a do cadastro positivo ou da duplicata eletrônica? E pelo não adiamento do aumento dos servidores públicos em pleno descalabro fiscal? A resposta, certamente, não é o cidadão.

No Judiciário, aquele poder que parece estacionado em Lisboa, o teto salarial e os auxílios-moradia deixaram de ser discutidos em uma ação de ninguém sabe, ninguém viu. Além disso, os supersalários, aqueles que o Conselho Nacional de Justiça disse investigar, estão guardados a sete chaves pois são legais e por isso, inquestionáveis. Esse mesmo judiciário se arma contra qualquer iniciativa de modernização que ameace as receitas dos cartórios, que são também suas receitas, e entrega uma justiça lenta, com tribunais abarrotados de processos e uma avaliação da população de que temos um dos piores – e mais caros – judiciários do mundo. Insisto, onde está o interesse público?

A reconstrução do Brasil passa pela nossa capacidade de entender que o público que se tornou privado está roubando a todos nós um pouco a cada dia. Nos Ministérios, nas empresas públicas, nas leis, na aplicação das leis e nas ações de governo. Cada subsídio, cada desoneração, cada política específica, ao beneficiar alguns, tira de muitos. Nos poucos casos em que há benefício coletivo indireto, custos e resultados têm de ser medidos, acompanhados, orçados e divulgados.

Precisamos fazer a pergunta certa e cobrar de quem detém a legitimidade do voto que reflita sobre como o interesse público se coloca em cada uma das suas ações. E nenhuma ação se justifica se não tiver nele o principal benefício. Hoje são poucos – mas os há e são louváveis e merecem o nosso reconhecimento e respeito – aqueles no governo que olham por todos nós. São bastiões que nadam em águas cada vez mais turvas, mas que mantém o rumo. São esses que agem em favor dos que padecem num Brasil pobre, deseducado, desmotivado e sem perspectivas. Quiçá 2019 nos traga esses e muitos outros assim, que trabalharão por nós e não por si.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN

É ridículo - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 05/06

Minhas viagens ao sítio em um veículo a diesel estão sendo subsidiadas pelo governo

Do meu carro eu já me livrei, mas conservamos um veículo na família, que minha mulher usa para trabalhar diariamente e que nos leva ao sítio aos fins de semana. É uma caminhonete a diesel.

Confesso que experimentei um prazer meio perverso quando, na sexta-feira, paguei menos para encher o tanque, mas isso não me impede de constatar que é ridículo que minhas viagens ao sítio estejam sendo subsidiadas pelo governo. Para dar mais concretude ao caso, é a família que ganha dois salários mínimos e compromete quase 50% de sua renda com o pagamento de tributos que está ajudando a financiar meu lazer. E essa conta agora deve ficar ainda mais salgada.

Subsídios sempre introduzem distorções. Basta lembrar que um bom pedaço dos infortúnios dos caminhoneiros teve origem nos subsídios para a compra de veículos pesados oferecidos principalmente durante o governo Dilma. Só em 2015, foram R$ 34 bilhões. Tamanha facilidade para comprar um caminhão acabou criando a superoferta de serviços de transporte que agora joga no chão o preço do frete.

Encontramos deturpações desse gênero onde quer que olhemos: Simples, Zona Franca de Manaus, sem mencionar outros desvirtuamentos como universidades públicas que não cobram mensalidades etc. Como mostrou reportagem da Folha publicada domingo, nos últimos 15 anos, o país gastou R$ 4 trilhões (em torno de 60% do PIB) com subsídios. É bastante provável que alguns desses incentivos se justifiquem. O problema é que não sabemos disso, pois não há uma política consistente de avaliação dos programas.

Num país com uma estrutura tributária regressiva como o Brasil e no qual categorias mais organizadas não têm dificuldade de arrancar prebendas do governo, subsídios são no mais das vezes tirar dinheiro dos mais pobres para dar aos mais ricos. É o Robin Hood ao contrário que pega do caixa comum para encher o meu tanque de combustível.

O muro de Bolsonaro - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 05/06
Não sei se Bolsonaro estudou as ferramentas de convencimento do presidente americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os métodos. Com sucesso até aqui

Só muito raramente escrevo sobre livros que edito. Esta é uma exceção. Impõe-se. O motivo é simples: a obra ajuda a empreitada daqueles que tentam — a sério, sem lhe subestimar a inteligência — compreender Jair Bolsonaro; ou melhor, oferece instrumentos aos que lhe querem decodificar o discurso. Refiro-me a Ganhar de lavada, trabalho em que Scott Adams disseca as técnicas de persuasão por meio das quais Donald Trump não apenas venceu a eleição presidencial americana, mas também reinventou o Partido Republicano, dinamitou o Democrata e minou, como sem precedentes, a credibilidade da imprensa tradicional.

Não se iluda, leitor: Trump ganhou — fez tudo isso — no discurso. Ele identificou os anseios fundamentais do público para o qual poderia falar, aquele que o queria ouvir e que lhe bastaria para vencer, e investiu todas as fichas na percepção de que as pessoas não tomam decisões com base em fatos, e que estão facilmente propensas a ignorar detalhes se atraídas por uma palavra hábil capaz de corresponder a suas prioridades e a seu estado emocional. Mais do que querer as mesmas coisas que o eleitor que cortejava, Trump era — tornou-se — as coisas que o eleitor que cortejava queria; e operou essa complexa justaposição de existências exclusivamente graças à sua apreensão da realidade e ao modo como se comportou a partir dessa leitura.

Não sei se Bolsonaro conhece Adams, se estudou as ferramentas de convencimento do presidente americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os métodos. Com sucesso até aqui. Todos se lembram do “muro de Trump”, o paredão que, eleito, ergueria para separar os EUA do México. Trata-se da hipérbole exemplar, a âncora a partir da qual o então candidato cravou para si — com ódio de um lado tanto quanto paixão de outro — uma bandeira objetiva capaz de mobilizar milhões de eleitores e transformá-lo em protagonista, em pauteiro-mor, da campanha.

Não há moralidade quando se emprega tal nível de persuasão. Somente eficácia. Quando Trump afirmava, espetacular e radicalmente, que deportaria milhões de imigrantes, inclusive legais, outra coisa não fazia do que se inscrever — na mente das pessoas — como o único que se preocupava com a porosidade das fronteiras nacionais e com a imigração ilegal, e o único que faria algo prático a respeito, daí o muro. Pormenores sobre como implementar o que prometia? Ora, ele se aprofundaria nas formas de execução quando empossado, com o auxílio de especialistas. Impossível não pensar em Paulo Guedes, no caso bolsonarista, como emblema tranquilizador dessa mensagem postergadora.

Bolsonaro joga esse jogo. Mapeou as duas principais sensibilidades do brasileiro médio — o desprezo pelo establishment político (vide o modo como tentou capitalizar a mobilização de caminhoneiros) e a demanda por segurança pública — e, sobretudo no caso da segurança, estabeleceu-se como o senhor do assunto, o único que verdadeiramente se sensibiliza com o problema, e o único que o enfrenta com a prioridade exigida pela população. Ele também ergueu seu muro. E aqui falamos de ferramentas de convencimento, pouco importando a violência da proposta, segundo seus detratores, tanto quanto sua realização impraticável, segundo o mundo real. A amarra mental de Bolsonaro — o gatilho de choque por meio do qual se eleva como dono da pauta da segurança — é a ideia, afirmada e reafirmada, de armar a população; o tom dessa pregação se intensificará daqui até outubro.

Quem já o viu falar sobre segurança pública certamente se espantou com a superficialidade de seus comentários a respeito. Puro método, no entanto. O deputado pode passar horas tratando da questão sem mencionar, nem sequer de passagem, seu cerne, a fragilidade das fronteiras por meio das quais drogas e armas entram no país, e ainda assim convencer multidões de que é o único consistentemente preocupado com a insegurança do brasileiro. Uma arma na mão e uma defesa na cabeça. Aí está. Abordagem genérica com solução micro: eis o discurso de Bolsonaro. Funciona. Comove. Arrebanha. Persuade. É chamamento individual; convite à participação de sujeitos historicamente excluídos; solução compartilhada — não interessa se estúpida. Bolsonaro, a rigor, não fala de outra coisa senão de proteção à propriedade privada. E acerta.

Não adianta, portanto, cobrar-lhe que se aprofunde, que apresente um programa, tampouco supor que o simplismo exagerado de sua fala sobre segurança seja falho. Não é. Não para efeito eleitoral. Bolsonaro não é um parvo no lugar e no momento certos. Há ciência em sua generalidade. Ele é objetivo. Descarta pormenores próprios à política porque estica seu verbo no sentimento, o da moda, que repele tudo quanto derive da política como atividade. Ele foge da minúcia porque constrói seu discurso numa camada narrativa que prescinde da razão para comunicar e seduzir – uma faixa, legítima, que é essencialmente emocional, e para a qual nuance é blá-blá-blá.

Como Trump, Bolsonaro trabalha para se converter numa ideia, num valor. Ao contrário de Trump, porém, não vencerá. Como Trump, contudo, já ganhou.

Carlos Andreazza é editor de livros

Um novo ciclo da política - MURILLO DE ARAGÃO

ESTADÃO - 05/06

Caminhamos para uma República submetida ao poder burocrático dos atores do Judiciário

Independentemente de quem venha a ganhar as eleições presidenciais deste ano, algumas questões já estão postas. A primeira é que o próximo governo manterá o presidencialismo de coalizão.

Afinal, sem uma grande coalizão o presidente da República não conseguirá governar, já que o polo central da política se deslocou do Planalto para o gabinete do presidente da Câmara dos Deputados. Portanto, sem uma identificação política entre governo e presidência da Câmara a administração funcionará aos soluços e dependente de medidas provisórias que poderão ser rejeitadas in limine.

Outra questão posta e assegurada é que a Operação Lava Jato e seus sucedâneos continuarão a produzir efeitos e a emparedar o mundo político. Em consequência, a imprensa - que nunca nutriu simpatia pelo establishment político - continuará sua faina diária de desinstitucionalizar o universo político. Independentemente do tamanho e da gravidade da culpa de seus atores.

A terceira questão posta é que o mundo político, entre cético e acovardado, assiste à sua destruição institucional sem esboçar reação. Aceita a perda de terreno para o Judiciário, não se rebela contra o seu ativismo de forma consequente e não constrói uma narrativa minimamente coerente.

Políticos caminham em meio aos destroços como se as bombas atiradas pelo Ministério Público e pela Justiça não os atingissem. Engana-se o mundo político, pois vivemos tempos em que praticamente tudo na política foi criminalizado e a presunção da inocência deu lugar à certeza antecipada de culpa.

Assim, as eleições de 2018 vão marcar apenas mais um passo rumo ao fim da política conforme estabelecida após o fim do regime militar.

Após os fracassos iniciais de Sarney e Collor, uma aliança rentista-burocrática promoveu o aumento da taxa de juros e da carga tributária para pagar a conta fiscal e controlar a inflação, em meio a uma alegoria democrática. Ao lado de certa disciplina fiscal, permitia-se uma bacanal partidária sustentada por três pilares: cargos públicos, verbas orçamentárias e intermediação de negócios. A estabilidade da aliança rentista-burocrática dependia, também, de bons salários para os cargos no Estado dos quais se executavam as políticas vigentes.

A equipe econômica era minimamente blindada para fazer política fiscal e monetária, e o mundo político era financiado para ajudar ou, ao menos, não atrapalhar. Sob a vista grossa de todos, políticos e empresários exploravam a intermediação de obras públicas e a venda às estatais. E a máquina pública impunha uma perversa política tributária, além de sufocar o federalismo.

Paradoxalmente, o ex-presidente Lula - o líder operário e esquerdista - foi o ápice do "novo-republicanismo", ao conciliar a manutenção da aliança rentista-burocrática com a expansão da classe média baixa e o aprofundamento do capitalismo tupiniquim de vendas ao governo. E uma expressão perversa do conservadorismo retrógrado de nossas esquerdas.

Rentismo e popularismo deram algum resultado. Os miseráveis viravam pobres. E os pobres viravam devedores das Casas Bahia! Por sua vez, a alta burocracia ganhou mais privilégios e aumentos salariais generosos, enquanto os ricos ficavam milionários.

O ocaso de Lula vem com o naufrágio da Nova República, cujo féretro está sendo conduzido por uma República que ainda não tem um nome, mas que arrisco chamar de República Judicialista.

Estamos caminhando para uma República submetida ao poder burocrático dos atores do Judiciário, e não necessariamente aos ditames das leis e da Constituição. Algo que, tempos atrás, chamei de "novo tenentismo".

Obviamente, o naufrágio da Nova República ocorre por contradições inerentes ao sistema, que, se por um lado permitiu a farra de verbas públicas, por outro aboliu a disciplina partidária, institucionalizou a corrupção e doações por dentro e por fora, fragilizou o federalismo e permitiu que o governo fosse capturado por corporações burocráticas.

O episódio do mensalão iniciou um processo irreversível de mudanças. Pela primeira vez o sistema político foi incapaz de se proteger no Judiciário. Mas como nada vem sozinho, a cretinice do mundo político veio acompanhada de outras transformações que retroalimentaram o processo.

Por conta da dificuldade de chegar a consensos políticos importantes, recorreu-se à Justiça para arbitrá-los. Abrindo mão de decidir, o Legislativo estimulou o Supremo Tribunal Federal a assumir o papel de terceira câmara legislativa. Não só julgando, mas também legislando sobre temas relevantes.

Isto posto, proponho que estamos vivendo o naufrágio da política conforme estabelecida no fim do regime militar, como já dito, e reconheço a emergência de uma nova política, exposta tanto pelos índices de rejeição aos políticos quanto pela evidente supremacia do Judiciário sobre os demais Poderes.

As eleições não devem mudar significativamente o universo da política em termos de renovação. O judicialismo prosseguirá emparedando o mundo político e, aqui e ali, pondo algum político importante na cadeia. A política continuará criminalizada. Já que nem políticos nem imprensa, muito menos o Judiciário, conseguem e/ou desejam separar o joio do trigo.

Duas consequências estão claras: a ascensão do Judiciário como Poder e a dependência, cada vez maior, da validação do Judiciário às políticas públicas. Nada estará fora do escrutínio do judicialismo. Até mesmo o que não deveria ser judicializado. Novos tempos já estão em vigência e não poderão ser mudados nem sequer pelas eleições de 2018. Caberá ao Supremo Tribunal Federal conter excessos e, minimamente, tentar restabelecer o império da lei, ora ameaçado por um ativismo muitas vezes desenfreado.

MURILLO DE ARAGÃO É ADVOGADO, CONSULTOR, CIENTISTA POLÍTICO, DOUTOR EM SOCIOLOGIA (UNB) E PROFESSOR NA COLUMBIA UNIVERSITY

A marcha da insensatez - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 05/06
O estágio final do processo do controle de preços dos derivados de petróleo é a Argentina de 2015 e sua máquina de gasto público

Os mais velhos devem ter percebido que o título do artigo é o do livro de Barbara Tuchman — recentemente lembrado por Marcos Lisboa — que aponta como uma sucessão de eventos baseados em certa lógica acabou gerando efeitos opostos aos pretendidos pelos propulsores desses eventos. É impossível não lembrar da expressão quando se assiste ao manicômio nacional.

Quando os historiadores estudarem a atual década com distanciamento, talvez as manifestações de 2013 apareçam como epicentro da análise. Ali se iniciou uma etapa que demorará para ser fechada. Naqueles dias, tivemos todo tipo de passeatas, acompanhadas de ataques a postos de pedágio, bancos etc. No Rio, bandos fecharam avenidas e, num dos dias, o BarraShopping — que deixa de abrir apenas três ou quatro dias no ano — fechou, por falta de condições de funcionamento. A catarse começou pelos protestos contra o aumento da tarifa de ônibus, que grosso modo acompanhava a inflação e foi recebida pela mídia com a exaltação da “reivindicação de direitos justos”, sem reparar no que representava: a quebra de contratos a granel, colocando por terra a segurança jurídica. Desde então, o flerte com a anarquia aumentou. Se continuarmos assim, podemos vislumbrar dois desfechos em perspectiva: continuaremos nossa caminhada em câmera lenta rumo a um Estado desfuncional; ou o pedido de restabelecimento da ordem aumentará. Nesse caso, não vamos dourar a pílula: haverá uma demanda maior por uma intervenção militar. É esse o futuro ao qual aspiramos?

A impopularidade das instituições é tal que qualquer um se sente no direito de bloquear uma estrada fazendo discurso contra os “políticos ladrões” e a carga tributária e pode ser recebido com júbilo por motoristas com a bandeira do Brasil. Uma coisa é fazer greve. Outra muito diferente é impedir o abastecimento do país. Quando a interrupção de estradas ocorre em centenas de pontos, com festa e congratulação, sejamos francos: um país que age assim sabe o que não quer, mas não sabe o que quer.

O que o país presenciou na paralisação dos caminhoneiros e nas críticas à Petrobras foi o que chamo de “kirchnerismo em seu mais alto grau”. Todos os grupos políticos, sem exceção, se deixaram levar por um populismo avassalador. Por que essa denominação? Pelo paralelo com o que aconteceu no Governo Cristina Kirchner. Diante de reclamações acerca dos custos da energia, o governo lá determinou a fixação de limites para preços como energia elétrica, gás e combustíveis — em nome da justiça social. Como a gasolina barata beneficia tanto o morador de uma villa miseria de Avellaneda quanto o dono de uma 4x4 morador de Palermo, em pouco tempo o Orçamento se converteu numa fábrica de gasto público para compensar o que as empresas deixavam de receber. O crescimento do fenômeno levou a uma exacerbação da inflação, cujo desfecho foi a intervenção no IBGE argentino para “desenhar” um índice fake. Isso deixou sequelas tão profundas na Argentina que o atual governo está tendo grandes dificuldades para reverter o processo, dado o apego do cidadão médio a esse status quo que revelou-se insustentável. Que fique claro: o estágio final do processo que começa com o controle de preços dos derivados de petróleo é a Argentina de 2015 e sua máquina monstruosa de gasto público sem sentido. O Orçamento deve servir para financiar a saúde e a segurança — e não para compensar tarifas subsidiadas.

No episódio recente, o que mais se ouviu foram falsas soluções. Houve críticas ao Fundo Partidário, esquecendo que R$ 3 bilhões não são nada frente ao R$ 1,6 trilhão da despesa primária federal. Ou a defesa da privatização da Petrobras, esquecendo que na Argentina de Cristina as empresas de energia afetadas pelo controle de preços eram todas privadas. E críticas aos impostos, sem uma única palavra contra as aposentadorias precoces. Não nos enganemos: um país onde ninguém pensa no bem comum tem um encontro marcado com o caos. O Brasil precisa de diálogo e soluções racionais — e o que temos visto é cacofonia e a defesa do pensamento mágico na economia. Ou o Brasil aprende a respeitar a Lei e seguir as regras do capitalismo ou nosso futuro será sombrio. Será uma espécie de suicídio gradual. Em matéria de desordem econômica, a Venezuela é logo ali.

Fabio Giambiagi é economista