domingo, abril 22, 2018

Qual é mesmo a divergência? - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 22/04

Moto-perpétuo é a crença de que o gasto público se autofinancia


Eu e Marcos Lisboa temos travado interessante debate com Nelson Barbosa sobre a economia do moto-perpétuo.

Moto-perpétuo é a crença de alguns economistas heterodoxos brasileiros de que o gasto público se autofinancia: o crescimento promovido pelo impulso fiscal mais do que compensa o efeito do gasto sobre o endividamento. No frigir dos ovos, a dívida como proporção da economia se reduz.

Exemplo de crença no moto-perpétuo encontra-se no texto "O papel do BNDES na alocação de recursos: avaliação do custo fiscal do empréstimo de R$ 100 bilhões concedido pela União em 2009", de Thiago Rabelo Pereira e Adriano Nascimento Simões, publicado na revista do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em junho de 2010.

Os autores sustentam que o impacto dos empréstimos do BNDES sobre o crescimento e a receita de impostos mais do que compensa o custo fiscal das ações do banco. Temos a versão BNDES do moto-perpétuo.

Em sua última resposta na Folha, de 17 de abril, terça-feira passada, Nelson Barbosa alega que nós o acusamos injustamente de defender a economia do moto-perpétuo. Não fomos nós que o acusamos.

Como apontamos no artigo que iniciou nossa conversa, na seção Tendências/Debates de 26 de março, Nelson, em coautoria com José António Pereira de Souza no texto "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda", apontou que " (...) o eventual financiamento do investimento público por meio da emissão de dívida não seria necessariamente incompatível com a meta global de redução da relação dívida/PIB do setor público brasileiro, visto que tal investimento resultaria na elevação da própria taxa de crescimento do PIB".

A resposta de Nelson Barbosa nesta Folha em 17 de abril não tratou da economia do moto-perpétuo. Barbosa cita trabalhos que calculam que o impulso fiscal sobre o crescimento econômico é positivo, por vezes superior a 1 e, sob algumas circunstâncias, superior a 2. Qualquer estudante de introdução à economia conhece esse fato.

Nossa discussão não se refere ao impacto do impulso fiscal sobre o crescimento. Refere-se ao fato de o impulso fiscal ter impacto muito forte sobre o crescimento da economia e sobre a receita de impostos.

O impacto inicial da elevação do gasto público sobre a dívida seria mais do que compensado pelo crescimento da receita de impostos e da economia, de sorte que a dívida pública, como proporção da economia, reduzir-se-ia no fim do processo. Por isso a denominação de economia do moto-perpétuo. Nenhum dos trabalhos mencionados por Barbosa trata desse tema.

Em tempo: na primeira coluna dessa troca de ideias com Barbosa, citamos artigo de DeLong e Summers publicado no Brookings Paper on Economic Activity em 2012, que descreve uma condição para que ocorra o moto-perpétuo. Mesmo considerado um multiplicador fiscal na casa de 2,5, a economia brasileira nunca atendeu a essa condição.

Resta a Barbosa apresentar algum trabalho acadêmico que mostre que a condição do artigo de DeLong e Summers foi atendida no Brasil entre 2006 e 2010.

Passou despercebido o artigo "Notícias de Maracaibo", de Paula Ramón, publicado na piauí de março. O nível de decomposição do poder público venezuelano assusta.

A Venezuela não caminha em direção à ditadura cubana ou norte-coreana. Caminha em direção à desintegração e total desorganização do poder público; caminha na direção da Somália.

A velha ordem abalada - CELSO MING

O ESTADÃO - 22/04

A globalização reduz a capacidade de controle das nações


Tudo se passa como se a ordem global constituída por Estados nacionais autônomos não esteja mais dando conta das funções a que se propôs executar desde o século 17. Não estão claras nem as consequências dessa quebra de paradigma nem o que vem por aí para ocupar seu lugar.

No último dia 15 (no site, o texto foi publicado no sábado, 14), esta Coluna tratou de situação, digamos, aflitiva dos chefes de Estado do G-20, o grupo das 20 maiores potências globais, que já não conseguem controlar a arrecadação de impostos sobre o comércio de serviços, e até mesmo sobre o comércio de produtos. São transações que se transformaram em cada vez mais caudalosos fluxos digitais que ignoram fronteiras e que, assim, fogem à tributação convencional. Este é apenas um dos sintomas que refletem a perda de controle dos Estados nacionais sobre as novidades – e aí não são apenas as novas tecnologias – que vêm-se impondo globalmente.

O diário londrino The Guardian publicou, no último dia 5, amplo estudo do escritor britânico de origem indiana Rana Dasgupta, intitulado A extinção do Estado Nação (The demise of the nation state), dedicado ao mesmo tema, ou seja, dedicado à obsolescência do atual sistema político internacional.

A geometria geopolítica que emergiu da Idade Média era difusa, mas dominada por ampla teia de dinastias hereditárias ou por chefes militares que conquistavam territórios e os controlavam. Nessa ordem política, povos ou nações podiam ser governados ora por um rei, ora por príncipe, ora por um capitão militar, cujas sedes de governo podiam situar-se em terras que não tinham fronteiras entre si. Até hoje, por exemplo, a letra do hino nacional da Holanda lembra esse tipo de arranjo. É a proclamação do Príncipe de Orange (Guilherme de Nassau) que se orgulha de seu sangue germânico e que, na condição de chefe dos Países Baixos, promete honrar sempre o rei da Espanha.

A nova ordem, que consagrou a divisão do Ocidente em Estados nacionais geograficamente determinados, depois estendida ao resto do mundo, surgiu em 1648, dos escombros da Guerra dos Trinta Anos, por meio do Tratado de Westfalia. As pessoas e as comunidades locais já não são mais súditas do príncipe da hora, mas cidadãos de países nacionais delimitados por fronteiras, que têm constituição, bandeira, instituições e governo próprio.

A globalização, o cada vez mais incontrolável fluxo de capitais, a tecnologia digital, o rápido crescimento das criptomoedas que escapam ao controle dos bancos centrais, a disseminação dos chamados big data controlados por grandes empresas de informática, o aparecimento de 65 milhões de refugiados vitimados por violências não provocadas propriamente por guerras entre Estados, os novos impactos destrutivos sobre o meio ambiente, a incapacidade dos Tesouros nacionais de seguir garantindo o pagamento dos benefícios do bem-estar social, a impressionante capacidade do narcotráfico de criar poderes paralelos em muitos países – tudo isso é sintoma e, ao mesmo tempo, causa da desagregação da ordem global prevalecente até aqui.

É compreensível que as reações a esse desmanche sejam as mais disparatadas. O presidente Donald Trump, por exemplo, ameaça deixar a política de supervisão da ordem do Ocidente e proclama o princípio do “put America first”, sabe-se lá com que alcance. O Brexit, a proliferação de partidos populistas em todo o mundo, os movimentos separatistas da Europa, o acirramento dos conflitos tribais na África, a tentativa de criação do califado pelo Estado Islâmico, o aumento do ressentimento das classes médias – todas essas novidades parecem ensaios destinados a procurar escapes às pressões e à sensação de perda de patrimônio e renda que a desarticulação do antigo arranjo vem provocando. E, mais do que isso, parecem à procura de uma nova ordem cuja escala seja capaz de controlar as forças que ganham autonomia a partir do megadesmonte.

Ninguém imagine que os Estados nacionais estejam nas últimas. Como as pessoas, as instituições também gozam de prolongadas expectativas adicionais de vida. E, no momento, não há o menor indício do que possa ser apresentado como opção ao que está aí.

O que parece tendência inexorável é que o modelo em formação aponta para mais globalização, e não para menos. A necessidade imperiosa de unificar a tributação entre os países e os blocos econômicos é sinal disso. E mais globalização implica ainda maior integração financeira, fiscal e política.

Em todo o caso, tudo ainda está à espera de diagnósticos e de prognósticos. Um olhar mais atento sobre essas coisas pode ser o primeiro passo para entender a natureza e o impacto do admirável mundo novo em formação.


Vacas mortas na sala da economia - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 22/04

Análises da recuperação lerda preferem ignorar o colapso do investimento público



Um elefante na sala é um assunto constrangedor e evidente, que se ignora por alguma conveniência. Na economia brasileira destes tempos bicudos, há umas vacas mortas no sofá. Comenta-se a lerdeza da recuperação, mas pouco se fala dos bichos mortos faz anos, à vista de todo o mundo, empesteando o PIB.

O investimento federal, despesa em obras, em capital, caiu em 2017 a 48% do que era em 2014. No conjunto dos governos estaduais, a baixa foi similar, de acordo com dados compilados pela Instituição Fiscal Independente (deflacionados aproximadamente por esta coluna, pois os números são apenas anuais).

O investimento na construção civil chegou ao fundo do poço, apenas parou de cair, no fim do ano passado, sugerem números do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Entre os setores maiores da economia, é o mais retardado, afora o crédito bancário.

Quanto ao emprego, a construção civil ainda está de certa maneira em recessão. O número de empregos formais no país, com carteira assinada, cresceu 223 mil em um ano, até março, segundo dados do Ministério do Trabalho divulgados na sexta-feira (20). Alta modesta, de 0,6%. A construção civil ainda sangra bastante, porém, perdendo 64 mil postos de trabalho no mesmo período, baixa de 3%.

O colapso não se deve apenas aos cortes feitos a machadadas na despesa de investimento do governo federal e dos estados, é claro. O setor padece do superinvestimento em imóveis nos anos de boom, imóveis que encalhavam até o ano passado.

Mas o talho na despesa de investimentos de 2014 a 2017 foi enorme, ficou perto de 1,2% do PIB, uns R$ 80 bilhões. Equivale a quase dois pacotes de saques de contas inativas do FGTS, aquele dinheirinho que parece ter evitado a estagnação da economia em 2017.

Os estados grandes que mais talharam investimentos não causam surpresa: Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco. Fluminenses e pernambucanos estão entre os brasileiros que mais sofrem com a crise do emprego formal. Não foi apenas a construção que quebrou no Rio, decerto. O estado foi saqueado e destruído por uma das grandes gangues do MDB e sofreu com a ruína do setor de petróleo no Brasil.

Alguém que tenta ignorar esses elefantes e vacas mortas na sala poderá dizer que a baixa do investimento público era dada e inevitável, pois os governos vivem penúria extrema, quando não estão falidos. Gastos privados com novas instalações produtivas também seriam implausíveis, dadas a ociosidade nas empresas e a incerteza sobre o que será o Brasil de 2019.

Além do mais, haveria outros motivos, ainda obscuros, para a lerdeza. A massa de rendimentos do trabalho tem crescido mais do que as vendas do varejo e muito mais que a demanda de serviços, na verdade em queda. Mesmo quem tem emprego e renda estaria, portanto, pouco propenso a gastar.

Qual o motivo? Um chute mais ou menos informado atribui parte da retranca do consumidor a receios políticos. Outra especulação, tão ou mais razoável, explica a reticência nas compras aos fatos de que ainda há medo de perder o emprego e de que os trabalhos que surgem desde o ano passado são majoritariamente precários. Sem carteira, sem outro vínculo formal e estável: bicos, "por conta própria".

Pois bem, esta aí uma das vacas mortas na sala da economia: a recuperação lerda do emprego formal, que não reage também porque um setor grande como a construção civil ainda está no buraco.

A ditadura na academia e o golpe de 2018 - CARLOS MAURÍCIO ARDISSONE

O ESTADÃO - 22/04

O aliciamento ideológico é feito diariamente em grande parte das escolas e universidades do Brasil


É bastante duro, para não dizer impossível, ser ao mesmo tempo liberal e professor de Ciências Sociais no Brasil. Vida inglória a do professor que leciona num curso de humanidades e ousa proclamar-se publicamente “de direita”. O professor de Ciência Sociais que ousa questionar a cartilha marxista-gramsciana predominante e se recusa a se comportar como um intelectual orgânico em sala de aula enfrenta duras penas: é tachado de reacionário por muitos colegas, torna-se alvo de risadinhas e fofocas na sala de professores e frequentemente é punido com a perda de disciplinas e prejudicado em bancas de seleção para muitas universidades públicas por não integrar nenhuma das panelinhas ideológico-partidário-sindicais que dominam os corpos docentes nessas instituições.

Digo isso por experiência própria. Em 2004, durante um evento universitário alusivo aos 40 anos do golpe de 64, arrisquei-me a questionar os propósitos democráticos e libertários dos grupos que apoiavam João Goulart e dos que, após a tomada do poder pelo militares, organizaram a insurgência armada. Tinha ao meu lado opiniões de alguns historiadores e cientistas sociais e entrevistas de ex-integrantes das fileiras da resistência. Esclareci então que não propunha esse olhar para justificar nada a respeito da ditadura militar. Mas de nada adiantou. Fui alvo da reação agressiva e verborrágica de um dos integrantes da mesa (um professor mais experiente) que comparou o cenário do pós-64 com o de uma “guerra” para buscar uma justificativa moral para atos guerrilheiros de grupos armados, mesmo os que, sabidamente, atingiram civis inocentes, que nada tinham que ver com a repressão. Na plateia, outros professores apoiaram a reação do colega e vieram me censurar ao final do colóquio e revelar desapontamento comigo. Corria o ano de 2004, era professor universitário havia pouco mais de três anos e desde então me retraí para evitar ser repelido.

Esse singelo episódio é uma boa ilustração do ambiente repressivo que, diariamente, constrange inúmeros professores liberais, aos quais é imposta uma lei de silêncio quase marcial, por causa do temor de possíveis retaliações. São professores que dependem exclusivamente do magistério para sobreviver e, por essa razão, não podem expor abertamente o que pensam em redes sociais, em congressos, em seminários, em entrevistas de emprego ou em processos seletivos, especialmente para instituições públicas.

Não me referi à sala de aula porque esta merece uma atenção especial. Para os professores marxistas-gramscianos, a sala de aula é um espaço de desenvolvimento do pensamento crítico. Até aí, nada demais. Quem poderia discordar disso? O problema começa quando passam a pregar para os alunos que a única forma de aprender a ser crítico é a partir do receituário conceitual e ideológico em que acreditam. Daí para a doutrinação é um pulo, uma mera formalidade. Por mais maduros e esclarecidos que os jovens de hoje sejam, quem consegue resistir criticamente ao sonho de mudar o mundo e de corrigir todas as injustiças existentes, a começar pelas diferenças de classe? Quem resiste a culpar algo (o capital) ou alguém (o imperialismo americano, a burguesia, etc.) pelas mazelas universais? Funciona à perfeição o “canto da sereia”. E professores doutrinadores sabem como tirar proveito.

Para muitos dos professores marxistas-gramscianos, a impossibilidade de neutralidade axiológica representa, parafraseando o slogan de James Bond, uma “licença para doutrinar”. Funciona como uma espécie de álibi ou salvo-conduto para exercer sua militância travestida de atividade pedagógica, sem nenhum peso na consciência. Como estão convictos de que conhecem intimamente a fórmula para a redenção da humanidade e de que detêm o monopólio da virtude, naturalizam o processo de aliciamento ideológico que diariamente é realizado em grande parte das escolas e universidades do Brasil. Convocam alunos para passeatas e panfletagens de partidos, candidatos e sindicatos, sem a menor cerimônia. Pressionam-nos a se envolver e a apoiar agendas de movimentos sociais de esquerda, dentro e fora da sala de aula. Tudo sem jamais oferecer contrapronto digno de nota e confiança, nos conteúdos que supostamente cumprem como profissionais de magistério.

Diante de ambiente tão inóspito, não surpreende que em 2018 muitos cursos sobre o “golpe de 2016” estejam sendo oferecidos em universidades brasileiras. O panfletarismo ganha aparência de ciência normal nas mãos de professores-militantes. Regras das mais básicas da metodologia científica como a de não tratar hipótese como tese são simplesmente ignoradas.

Numa rede social, cometi a ousadia de transmitir a um professor que divulgava um desses cursos minhas restrições a tratar como inconteste que o impeachment de 2016 foi um golpe. Expus que o mínimo a esperar, como ponto de partida, seria garantir espaço para o contraditório a partir de uma pergunta inicial que poderia coincidir com o título do curso – por exemplo, “O impeachment de 2016: normalidade institucional ou golpe?”. Tal atitude permitiria que adeptos das duas versões pudessem dialogar e confrontar suas posições, chegando às suas próprias conclusões, sem maiores direcionamentos. Ainda mencionei as opiniões de um amplo leque de juristas, historiadores, escritores, jornalistas e intelectuais em geral, do Brasil e do exterior, para os quais o impeachment foi um ato perfeitamente legal e constitucional.

Recebi respostas muito “delicadas e receptivas” que prefiro não descrever aqui. Mas, se não foram das mais elegantes, revelaram-me claramente o que acontece quando narrativas com interesses específicos são elevadas ao patamar de História e ganham status acadêmico. O golpe é aqui e agora.

* DOUTOR E MESTRES EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA PUC-RJ

O outubro de nossas preocupações - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 22/04

Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito

O script é difícil e o elenco deixa a desejar. Essa a proposição dominante a respeito da eleição presidencial e de seus efeitos na recuperação econômica do País. Dela podemos derivar uma conclusão provisória: em 2019 o quadro pode melhorar um pouco ou piorar muito.

Sobre o script não precisamos alongar-nos muito. O governo Temer conseguiu evitar o desastre iminente que se delineou durante o segundo mandato de Dilma Rousseff e chegou a aprovar alguns projetos importantes no Congresso Nacional. Mas ao entrarmos no ano eleitoral as coisas tornaram-se mais difíceis, o tsunami da corrupção pôs toda a classe política em xeque e as relações do Executivo com o Legislativo tornaram-se escorregadias, para dizer o mínimo. Não passamos nem a reforma da Previdência, com o que a questão fiscal continuará a pairar sobre o País como uma espada de Dâmocles, premonição de um possível retrocesso.

Mas a variável-chave, como comecei a dizer, é o elenco. Temos aí uma dúzia e meia de candidatos ou quase candidatos, todos por enquanto muito débeis, nenhum que arrebate os corações e as mentes. O aspecto mais curioso – para não dizer patético – é a óptica pela qual os analistas e observadores tentam decifrar esse caleidoscópio. A maioria se contorce para tentar encaixá-los na dicotomia esquerda x direita. Poucos se dão conta de que esse esquema já deu o que tinha para dar. Os augures (adivinhos) da Antiguidade provavelmente chegariam mais perto da realidade, pois se contentavam em examinar o voo de certas aves ou as entranhas de certos animais, e aí diziam qualquer coisa, o que lhes viesse à mente. Os príncipes ficavam contentes e iam ou não à guerra conforme a “previsão” que lhes era passada.

Os termos esquerda e direita, como se recorda, provêm da Revolução Francesa; surgiram como indicativos das posições ocupadas na Assembleia Nacional pelos jacobinos e girondinos. Assumiram, desde então, pelo mundo inteiro, inúmeros significados, adaptando-se aos interesses políticos das forças em confronto em cada país. Tentar entendê-los por meio de uma análise rigorosa de seus conteúdos é perda de tempo, pois eles variam no tempo e de país para país. Funcionam como totens tribais. Esquerda é o totem dos que se arrogam uma maior sensibilidade social, um conhecimento mais preciso dos meios necessários para aliviar o sofrimento dos pobres e o caminho que leva ao paraíso terrestre – a “sociedade sem classes”. Direita são aqueles que, arrogando-se também os dois primeiros pontos, descartam o terceiro como uma fantasia (ou uma falcatrua intelectual) e conferem importância decisiva à estabilidade social, à segurança, à lei e à ordem. Desde o advento das pesquisas de opinião por amostragem, após a 2.ª Guerra Mundial, inúmeros levantamentos foram feitos sobre essa questão. Em dezenas de países, instados a informar o que entendiam pelos termos esquerda e direita, a maioria dos eleitores nem sequer conseguia oferecer definições genéricas como as que enunciei acima. Tanto nos países mais escolarizados do norte da Europa quanto naqueles, como o Brasil, onde a maioria é quase analfabeta, o porcentual que conseguia tal proeza sempre ficou entre 15% e 20%.

Não creio que algum pesquisador sério conteste essa afirmação. Portanto, na eleição de outubro, é fácil adivinhar que pelo menos uma dúzia dos candidatos tratará simplesmente de encontrar um “nicho” discursivo desocupado onde se possam abrigar: à direita, à esquerda, acima ou abaixo, como disse certa vez o prefeito Kassab ao lançar um novo partido, o PSD.

Considerando, pois, a anemia analítica da dicotomia esquerda x direita, haverá a esta altura algo útil que possamos dizer sobre a eleição e seus efeitos econômicos putativos? Creio que sim. Ao menos por ora, penso que o problema não é o perfil – de esquerda, centro ou direita – dos candidatos mais cotados, mas a dinâmica que vai predominar na campanha: polarização entre um “esquerdista” e um “direitista” exaltados ou uma tendência “centrista”, com a maioria do eleitorado convergindo para um ou mais candidatos de perfil moderado.

A contragosto, dado o raciocínio que venho de expor, tento identificar alguns nomes. O mais fácil é o totem esquerdista, ou seja, o candidato ungido por Lula, admitindo-se que este conseguirá transferir para ele uma grande quantidade de votos. Fala-se em Fernando Haddad, mas aqui surge uma indagação. Haddad não tem perfil incendiário. Nesse cenário, teremos, então, os Stédiles e os Rainhas da vida, que já falam abertamente em “guerra civil”, e talvez o próprio Lula, pressionando um candidato de índole centrista a assumir um papel radical. No polo oposto, com os dados hoje disponíveis, temos Bolsonaro – e outra indagação. Oriundo das Forças Armadas, Bolsonaro presumivelmente atrairá sobretudo eleitores aflitos com a segurança e quiçá adeptos de um modelo econômico nacional-estatizante; mas Paulo Guedes, o economista incumbido de elaborar seu programa de governo, abomina tal modelo.

Dada a manifesta inconsistência dos extremos, é plausível especular que o “centro”, por ora anêmico, venha a se fortalecer. Nesse nicho, o nome óbvio é Geraldo Alckmin, que tem a seu favor uma longa experiência de governo no Estado de São Paulo e um temperamento afável. O problema, além dos modestos índices que ostenta nas pesquisas, é que a recuperação econômica dificilmente atingirá um ritmo suficiente para reverter a sede de sangue que se disseminou em grande parcela da sociedade.

A título de conclusão, devemos, pois, voltar à segunda das duas proposições que enunciei no início. Dependendo da dinâmica eleitoral e do presidente eleito, a situação do País poderá melhorar um pouco, ou piorar muito. Chato é pensar que esse “piorar muito” poderá ser quase uma recaída na era das cavernas.

Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito.

* SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, É AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERAIS – A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS)

Fonte de incerteza - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 22/04

É surpreendente o fato de haver juízes no Brasil que afrontam um dispositivo legal redigido em português cristalino


A entrada em vigor da Lei n.º 13.467/2017, em novembro do ano passado, corrigiu um problema de ordem semântica que corrompia a natureza da contribuição sindical. Até então, não era um ato de vontade que marcava o recolhimento anual aos sindicatos do valor equivalente a um dia de salário dos trabalhadores, filiados ou não. A rigor, tratava-se de mais um imposto.

Isso mudou e a palavra voltou a valer por seu sentido original. “O desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão”, diz o artigo 579 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), já com a nova redação dada pela Lei n.º 13.467/2017. O que era obrigatório passou a ser facultativo.

A nova lei, denominada de reforma trabalhista, fez nada menos do que respeitar o que está disposto na Constituição. Lê-se no artigo 8.º da Lei Maior que “é livre a associação profissional ou sindical”. No inciso V do mesmo dispositivo está claro que “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”.

Vários sindicatos em todo o País, no entanto, vêm tentando obter liminares na Justiça para que as empresas continuem recolhendo a contribuição sindical dos trabalhadores, garantindo-lhes, assim, a sobrevida de uma de suas principais fontes de receita. Livres da antiga cobrança obrigatória, muitos trabalhadores destinam o valor recebido por um dia de trabalho a outros fins mais proveitosos. Mal acostumados a viver em um mundo de fantasia onde muito dinheiro aparecia sem demandar grandes esforços, os sindicatos viram despencar suas receitas após a vigência da reforma trabalhista. Mas ao invés de se ajustarem à nova realidade, buscam guarida no Poder Judiciário.

Segundo um levantamento feito por advogados de associações de trabalhadores, ao qual o Estado teve acesso, já são 123 decisões judiciais favoráveis à cobrança obrigatória da contribuição sindical, sendo 34 em segunda instância. Que os sindicatos fossem às barras da Justiça pleitear a manutenção do pagamento do imposto já era esperado. Surpreendente é o fato de haver juízes no Brasil que afrontam um dispositivo legal redigido em português cristalino.

É importante ressaltar que os números são incompletos. O Poder Judiciário não tem um levantamento oficial sobre o tema. Sabe-se quantas liminares foram concedidas aos sindicatos nos últimos cinco meses, mas não há dados sobre as que foram derrubadas em instâncias superiores. No entanto, uma liminar que fosse concedida em favor de um sindicato já seria grave, posto que redação mais clara do que a do artigo 579 da CLT é impossível.

Os sindicatos têm se valido de um parecer da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) para ingressar na Justiça. Segundo o entendimento da associação, a contribuição sindical tem natureza de imposto e, portanto, só poderia ser modificada por uma lei complementar, e não uma lei ordinária, como foi a reforma trabalhista. A questão é que o entendimento de um clube de juízes não tem qualquer valor legal. É tão somente uma opinião. O que vale nessa questão é a Lei n.º 13.467/2017.

O ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Ives Gandra Martins Filho diz que “a lei (reforma trabalhista) consagra o princípio constitucional de que a associação ao sindicato é livre. Portanto, não pode haver contribuição obrigatória”.

A validade da cobrança da contribuição sindical deverá ser resolvida pelo STF. Há 15 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) em tramitação na Corte Suprema. Até lá, os sindicatos continuarão, por um lado, tentando driblar a lei por meio de decisões de suas assembleias “autorizando” a cobrança e, por outro, as empresas irão se valer das declarações expressas de seus funcionários contra a contribuição. No meio, o Judiciário fica como fonte de incertezas nesses tempos estranhos.

Reforma trabalhista passa pelos primeiros testes - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 22/04

Apesar de toda a resistência de corporações, primeiros meses de aplicação das medidas aumentam a formalização de empregos e reduzem volume de processos
Convicções político-ideológicas costumam ter fundo religioso. Portanto, difíceis de serem abaladas. São profissões de fé. Mas há provas de equívocos do sectarismo difíceis de contestar, a não ser pelo escapismo pretensamente bem fundamentado. Como na tese sem sustentação aritmética de que a Previdência é superavitária, e não estruturalmente deficitária. Acredite quem quiser.

O mesmo começa a acontecer em torno de outro tema polêmico, a reforma trabalhista, combatida pelos grandes beneficiários da estrutura de representação sindical de inspiração fascista edificada por Getúlio Vargas, na ditadura do Estado Novo: as cúpulas sindicais. Como fortes corporações, as dos sindicalistas têm suas representações no Legislativo, duras opositoras de qualquer flexibilização da rígida e anacrônica Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

Mérito do governo Temer é de ter conseguido executar uma reforma que quebra o engessamento da aplicação das leis do trabalho, e por meio de medidas que tendem a reduzir a grande informalidade do emprego. Causada pela própria rigidez da CLT. A tendência também é o desafogo da Justiça trabalhista, usada por algumas categorias de trabalhadores como fonte de complementação de renda, dada a certeza de que receberiam indenizações em certos tipos de reclamações. E se não fossem vitoriosos nas demandas, não arcariam com qualquer custo. Virou um cassino com grande chance de acertos nas apostas feitas sob orientação de sindicatos. Isso também acabou.

Recentes reportagens do GLOBO e da “Folha de S. Paulo”, sobre reflexos da reforma que passou a vigorar em novembro, comprovam o êxito das mudanças, medido por alguns indicadores. No âmbito do mercado de trabalho propriamente dito, a criação, de novembro a fevereiro, de 13.858 vagas formais de emprego em trabalhos intermitentes (garçons, balconistas etc.) comprova o acerto de se estabelecerem regras específicas para determinadas atividades, em vez de se tentar fazer com que a velha CLT abrangesse todas as relações patrão/empregado. Apenas produziu estrondosa informalidade e entulhou a Justiça trabalhista de reclamações.

A adoção do princípio simples e eficiente de que o “negociado” vale mais que o “legislado” contornou o arcaísmo da CLT e também passou a contribuir para combater a indústria da causa trabalhista. Direitos clássicos como salário mínimo, férias e outros são inegociáveis. Vários outros, não mais. Medidas nesta direção sensata fizeram com que, em janeiro e fevereiro, em todo o país, o número de processos abertos (210,2 mil) caísse 45% em relação ao mesmo período de 2017. Resulta delas, também, a redução do alto custo administrativo dos empregadores, o que facilita a abertura de novas vagas.

É preciso continuar no acompanhamento deste universo tornado grande pelas próprias deficiências da legislação que o gerou. Em essência, tudo deriva da visão do Estado tutor da sociedade.