quinta-feira, março 01, 2018

A luta contra fantasmas FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 01/03
Existem várias comissões para fiscalizar a intervenção e poucas articulações para cooperar com o Exército

Outro dia, chamaram-me de general num desses blogs. Não me importo: são os mesmos de sempre, como diria um personagem de Beckett, depois de apanhar. O ponto de partida é minha visão positiva sobre o papel do Exército no Haiti. O que fazer? Estive lá duas vezes, vi com os meus olhos e ainda assim sempre consulto o maior conhecedor brasileiro do tema, Ricardo Seitenfus.

Não estive com o Exército apenas no Haiti. Visitei postos avançados de fronteira da Venezuela, junto aos yanomamis, em plena selva perto da Colômbia. Vi seu trabalho na Cabeça do Cachorro, no Rio Negro, cobri o sistema de distribuição de água para milhões de pessoas no sertão do Nordeste.

Não tenho o direito de encarar o Exército com os olhos do passado, fixado no espelho retrovisor. Além de seu trabalho, conheci também as pessoas que o realizam.

Nesse momento de intervenção federal, pergunto-me se o Exercito para algumas pessoas da esquerda e mesmo alguns liberais na imprensa, ainda não é uma espécie de fantasma que marchou dos anos de chumbo até aqui, como se nada tivesse acontecido no caminho.

Alguns o identificam com o Bolsonaro. Outro engano. Certamente existem eleitores de Bolsonaro nas Forças Armadas como existem na igreja, nos bancos e universidades. Mas Bolsonaro e o Exército não são a mesma coisa.

Existem várias comissões para fiscalizar a intervenção. Ótimo. Isso é democracia. Mas existem poucas articulações para cooperar com o Exército: isso é miopia.

Houve um certo drama porque os pobres foram fotografados por soldados. Quem dramatiza são pessoas da classe media que vivem sendo fotografadas, na portaria de prédios, na entrada de empresas. Por toda a parte alguém nos filma.

Há uma lei especifica sobre identificação. É razoável discutir com base nela. Mas é inegável também que os tempos mudaram. Na Europa e nos EUA por causa do terrorismo, aqui por causa da violência urbana.

Não se trata de dizer sorria, você está sendo filmado. É desagradável e representa uma perda de liberdade em relação ao passado. Mas expressa um novo momento.

O Ministro Raul Jungman tomou posse afirmando que a sociedade do Rio pede segurança durante o dia e à noite consome drogas. É uma frase muito eficaz em debates e artigos. Creio que apareceu até no filme Tropa de Elite.

Na boca de um ministro, que considero competente, merece uma pequena análise.

Parisienses, londrinos, paulistas e nova-iorquinos também consomem droga, suponho. No entanto não existem grupos armados dominando o território urbano.

Se isso é verdade não é propriamente a abstinência que tem um peso decisivo, mas sim a presença do Estado que garante uma relativa paz, apesar do consumo de drogas.

Núcleos de traficantes deslocaram-se para o roubo de cargas porque o acham mais rentável. É impossível culpar os consumidores de geladeiras e eletrodomésticos não só porque é uma prática legal.

As milicias pouco se dedicam ao tráfico de drogas. Vendem segurança, butijões de gás e controlam o transporte alternativo. São forças de ocupação.

Campanhas contra o consumo de drogas, nessa emergência, têm uma eficácia limitada, apesar de suas boas intenções.

Mas assim como há gente que vê um exército fantasma, perdido nas brumas do século passado, pode ser um erro mirar no consumo de droga e perder de vista a ocupação armada do território.

Uma das frases mais interessantes no Terra em Transe de Glauber Rocha é quando o personagem diz que não sabe mais quem é o inimigo.

Há tantos combatendo exércitos fantasmas ou investindo contra moinhos que é sempre bom perguntar: afinal, qual é o foco?

*Fernando Gabeira é jornalista e ex-deputado federal

A Constituição como fator de instabilidade fiscal - EVERARDO MACIEL

ESTADÃO - 01/03

Estamos diante do desafio inédito de desafiar o Estado patrimonialista

A reverência à Constituição, pedra basilar do Estado Democrático de Direito, não pode servir de pretexto para desconhecer os problemas associados à Constituição de 1988. A Assembleia Constituinte, instituída por força de emenda constitucional, pretendeu assumir competências próprias de uma constituinte exclusiva e originária. Assim, por exemplo, proclamou cláusulas pétreas, insusceptíveis de alteração por emenda constitucional, como se fosse uma assembleia pentecostal guiada pelo Espírito Santo.

Sua concepção exibe um curioso contraste: de um lado, há uma prodigalidade de princípios carentes de regras, muitas vezes em razão de uma recorrente mora legislativa; de outro, especificamente na matéria tributária, um furor analítico que torna o texto constitucional assemelhado a uma instrução normativa.

Desta contrastante combinação decorrem ativismo judicial e propensão ao litígio, que subsidiam uma perturbadora insegurança jurídica, minando a capacidade de administrar o Estado e o ânimo privado para investir. Destaquei alguns exemplos, no campo fiscal, de impropriedades na Constituição de 1988.

O pensador italiano Michelangelo Bovero, em entrevista ao jornal Valor (12.9.2014), assinalou, apropriadamente, que direitos sociais com repercussão orçamentária são apenas benefícios, cuja concretude demanda a existência de recursos.

Como o prosaico princípio da escassez não é matéria constitucional, o que se vê, notadamente na área da saúde, é uma profusão de litígios judiciais, cuja resolução exige recursos que não existem e fixa prioridades sem o necessário respaldo técnico.

Na matéria orçamentária abundam desacertos. Não consigo imaginar as razões que levaram os constituintes a sancionarem o bizarro conceito de orçamento da seguridade social.

Conseguimos a proeza de dificultar a compreensão dos déficits previdenciários e, simultaneamente, estressar os gastos com a saúde pública, em um dramático contexto de exacerbação da demanda por esses serviços.

A bem-intencionada proposta de instituição de orçamentos autônomos para os Poderes da República converteu-se, infelizmente, apenas em instrumento para concessão de privilégios remuneratórios e construção de suntuosos edifícios.

A também bem-intencionada tese de emendas à proposta orçamentária (artigo 166, § 3.º, III, a, da Constituição), a pretexto de corrigir “erros ou omissões”, até hoje, serviu tão somente para fundamentar uma pouco criteriosa expansão de receitas destinadas, quase sempre, ao financiamento de “emendas parlamentares”, que expandem o gasto público, deformam o precário federalismo fiscal e, não raro, constituem fonte de corrupção.

Essas disfunções orçamentárias se acentuam ainda mais porque não se logrou aprovar a lei complementar para disciplinar as finanças públicas, conforme prevê o artigo 165, § 9.º, da Constituição.

Passados quase 30 anos da promulgação do texto constitucional, a matéria orçamentária segue governada por obsoletas regras instituídas em 1964.

O federalismo fiscal é insubsistente. Incapaz de estabelecer critérios com mínima racionalidade na partilha de receitas públicas, a Constituição foi também claudicante na discriminação dos encargos públicos.

O parágrafo único do artigo 23 da Constituição remete à lei complementar o disciplinamento da cooperação entre os entes federativos no que concerne às políticas públicas, sem que se conheça sua correspondente discriminação.

Os problemas suscitados neste artigo, entretanto, não autorizam concluir que seu autor defende a convocação de uma assembleia constituinte.

Consideradas as circunstâncias políticas atuais, creio provável que se consiga produzir algo muito pior do que o atual texto constitucional.

Opcionalmente, no âmbito de uma iniciativa revisional, poderiam ser implementadas mudanças estratégicas, inclusive uma “lipoaspiração” como bem assinalou o ministro Nelson Jobim no Fórum Estadão (27.2.2018). Não convém, todavia, subestimar as forças reacionárias de índole corporativa.

Muito a esclarecer - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 01/03

O suposto “jogo duplo” de Marcelo Miller é um dos episódios mais graves da história da PGR e impõe uma rigorosa investigação, imune às eventuais pressões corporativas

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enviou para homologação do ministro Edson Fachin, relator dos processos da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), o pedido de revogação dos acordos de delação premiada de Wesley Batista e Francisco de Assis e Silva, sócio-proprietário e executivo do Grupo J&F, respectivamente.

A razão alegada por Raquel Dodge para revogar os benefícios concedidos à dupla é essencialmente a mesma que levou o seu antecessor no cargo, Rodrigo Janot, a requerer, em setembro do ano passado, a perda dos benefícios concedidos a Joesley Batista e Ricardo Saud, também do Grupo J&F.

Em ambos os casos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) entendeu que, já sob a condição de colaboradores, tanto os irmãos Batista como os dois executivos “omitiram deliberadamente fatos ilícitos que deveriam ter sido apresentados por ocasião das assinaturas dos acordos”. Tais “fatos ilícitos” estão bem explicados no documento enviado por Raquel Dodge ao ministro Fachin na segunda-feira passada.

Raquel Dodge foi bastante clara ao afirmar que um dos crimes omitidos pelo rol de colaboradores foi a “prestação de serviços ao grupo empresarial pelo então procurador da República Marcelo Miller”. Tal ato, prosseguiu a procuradora-geral da República em pedido ao STF, “configura corrupção ativa pela cooptação de funcionário público, mediante vantagem indevida, para a prática de atos em seu favor (do grupo)”.

O suposto “jogo duplo” de Marcelo Miller – que ao mesmo tempo que, como procurador da República, atuava no acordo de delação premiada dos executivos da J&F com a PGR, também representaria os interesses do grupo como advogado nas negociações do acordo de leniência conduzidas pelo escritório Trench, Rossi e Watanabe – é um dos episódios mais graves da história da PGR e impõe uma rigorosa investigação, imune às eventuais pressões corporativas.

Sobre Marcelo Miller paira a grave acusação de ter recebido R$ 700 mil de honorários nos meses de fevereiro e março de 2017 por supostos serviços prestados à J&F. Naquele período, Miller ainda era procurador da República, tendo se desligado do Ministério Público Federal apenas no dia 5 de abril daquele ano, quando passou a trabalhar no escritório Trench, Rossi e Watanabe.

Recentemente, foi divulgado o conteúdo de uma troca de mensagens por celular entre Miller e a advogada Esther Flesch, ex-sócia do referido escritório. As mensagens sugerem que Miller teria usado o contato direto que tinha com os controladores da J&F, por ocasião das negociações para o fechamento do acordo de delação premiada, como um “ativo” pessoal durante os acertos financeiros para sua transferência do serviço público para o escritório, onde veio a atuar justamente na condução do acordo de leniência da J&F.

As “lambanças” do ex-procurador Marcelo Miller e de seu então chefe, amigo e hoje desafeto Rodrigo Janot levaram o País a uma crise política de tal magnitude que custou, entre outros enormes prejuízos, a votação da imprescindível reforma da Previdência, dada como certa em maio do ano passado, quando veio a público a delação dos irmãos Batista. Tudo ao preço de duas denúncias ineptas oferecidas contra o presidente Michel Temer.

Ao afirmar em manifestação ao STF que Wesley Batista e Francisco de Assis e Silva cometeram o crime de corrupção ativa na “cooptação de funcionário público”, vale dizer, de Marcelo Miller, Raquel Dodge há de reconhecer que, a ser procedente tal acusação, há de se investigar a sério o ex-procurador pela eventual prática do crime de corrupção passiva, entre outros a serem apurados.

Os acordos de colaboração premiada são uma realidade na nova metodologia de persecução criminal no País. Há razões para crer que vieram para ficar. Graças a eles, investigações importantes estão em andamento e muitas figuras antes consideradas fora do alcance da lei hoje respondem pelos crimes de que são acusadas. Portanto, sobre eles não pode pairar qualquer suspeição.