domingo, janeiro 07, 2018

Regra de ouro e nosso contrato social - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 07/01

O terceiro inciso do artigo 167 da Constituição Federal impede (ou veda) "a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta".

Essa vedação, conhecida por regra de ouro, impede que o governo se endivide para pagar gastos com custeio. Permite-se o endividamento para financiar o investimento em capital produtivo e a rolagem da dívida, isto é, emitir dívida nova para pagar dívidas vincendas.

No período em que a inflação era muito elevada, a regra de ouro não era problema. Com inflação alta, a maturidade da dívida pública era curta. O grosso do gasto público era com a rolagem da dívida pública.

Como argumentei na coluna de 27 de agosto do ano passado, gastos com rolagem da dívida não são, do ponto de vista econômico, efetivamente gastos, apesar de o serem do ponto de vista da contabilidade pública.

Após a estabilização da economia, o contínuo aumento do gasto com custeio -salários, aposentadorias e programas sociais- foi financiado pela elevação da carga tributária.

Desde 2012, quando os impostos passaram a crescer com a economia, mas os gastos continuaram a se expandir bem acima do PIB, o deficit primário tem aumentado.

Dado que o deficit público é causado essencialmente pelo gasto obrigatório de custeio -o investimento já se encontra em nível muito baixo-, o governo tem tido que se endividar para pagar gasto corrente.

Até agora não houve violação da regra de ouro, pois o BNDES tem antecipado o repagamento de empréstimos que o Tesouro Nacional fizera ao banco.

Apesar de esse repagamento, do ponto de vista econômico, não constituir renda do setor público, trata-se de receita do ponto de vista da contabilidade pública, podendo, portanto, ser empregado para gastos de capital.

No entanto, em alguns anos não teremos mais esse expediente. A não satisfação da regra de ouro reflete o impasse de nosso contrato social: o Congresso Nacional nem eleva os impostos nem aprova medidas que cortam o gasto. O Ministério da Fazenda não tem instrumentos para atender a regra de ouro.

Assim, é necessário que haja alguma regulamentação caso a regra de ouro não seja satisfeita. Como ocorre com o teto do gasto, é necessário que o não cumprimento da regra de ouro deflagre automaticamente medidas corretivas.

Por exemplo, impedir aumento nominal de salários de servidores, novos concursos, renovação de incentivo ou qualquer desoneração tributária etc.

Essas válvulas de escape são necessárias para auxiliar nossa sociedade a sair do impasse.

Que fique bem claro: ausência de ajuste fiscal nos recolocará inexoravelmente no abismo inflacionário dos anos 1980.

Basta olhar a dificuldade atual da Argentina para combater a inflação, que era de 30% há um ano e meio, e a tragédia da Venezuela para nos lembrarmos de que qualquer situação sempre pode piorar.

Há colegas que consideram que não há necessidade de nenhum ajuste, visto que o governo pode contornar a regra de ouro por meio de crédito suplementar ou especial.

Créditos dessa natureza são para pequenos ajustes no Orçamento, e não para descumprimento da regra de ouro em mais de uma centena de bilhões de reais.

Que Brasil queremos? - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 07/01

Sair da recessão é fácil. Difícil é o aumento persistente da taxa de crescimento, que depende da taxa de investimentos e da produtividade do trabalho


Graças ao Banco Central, que ancorou as expectativas e recompôs a credibilidade antes de iniciar a queda da taxa de juros, e à aprovação da emenda constitucional que congelou os gastos primários reais, a confiança começou a ser restaurada. A isso se somam: a reforma trabalhista; a decisão de acabar com os subsídios implícitos do crédito por parte do BNDES; e várias ações no campo microeconômico. Confiança mais alta, juros mais baixos e a pequena melhora no mercado de trabalho levaram à retomada do consumo das famílias, mas, observando os dados e os riscos políticos, não há nada muito animador ocorrendo com os investimentos.

Sair da recessão é fácil. Difícil é o aumento persistente da taxa de crescimento, que depende da taxa de investimentos e da produtividade do trabalho. No passado distante, a demografia ajudava. Altas taxas de natalidade elevavam o crescimento da população em idade ativa, aumentando o PIB. Com um regime previdenciário de participação, os “moços” (em maior proporção) contribuíam para os benefícios pagos aos “idosos”. A mudança demográfica reduziu o crescimento da população de “moços” e sua contribuição para o PIB, e o aumento da proporção de “idosos” nos leva, a menos que se realize uma profunda reforma da Previdência, à crise fiscal.

No pós-guerra o Brasil cresceu acima de 10% ao ano, mas não devido aos investimentos, e sim ao deslocamento da população rural para a indústria, elevando a produtividade média do trabalho. Mas esse movimento esgotou-se e, se quisermos elevar a produtividade, teremos de aumentar a eficiência e investir em capital humano. Como as poupanças domésticas são baixas, maiores investimentos obrigam a absorção de poupanças externas e, para atrair os capitais para financiar os déficits em contas correntes, é preciso o equilíbrio fiscal e uma excelente gestão monetária.

A realidade demográfica obriga a elevação da idade mínima de aposentadoria, mas isso sozinho é insuficiente devido à pressão das corporações que não querem perder privilégios. Para elevar a produtividade são necessárias reformas microeconômicas, e temos de enfrentar a natural pressão de empresários cujas sugestões muitas vezes levam à sua queda – e não ao seu aumento. Em artigo no Valor, Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli descreveram o desastre que foi o Inovar-Auto. Leis de conteúdo nacional, como no caso das sondas da Petrobrás; o fechamento da economia brasileira ao mercado internacional; pressões para crédito subsidiado; e as distorções do sistema tributário são apenas alguns exemplos.

Este é um país desigual, com crianças sem oportunidades futuras porque foram mal alimentadas e não tiveram escolas apropriadas. Essas questões se resolvem com transferências diretas de recursos, avaliando periodicamente os resultados. A longo prazo, contudo, a solução está nos investimentos em educação, equalizando oportunidades e melhorando a distribuição de rendas, com ganhos de produtividade e de justiça social. Infelizmente, governos populistas preferem elevar o salário mínimo acima da produtividade. Em um prazo curto, a distribuição de rendas melhora, porém, à custa da elevação do custo unitário do trabalho, que reduz a competitividade da indústria e agrava o desequilíbrio fiscal.

A reação natural dos empresários é pedir a desoneração da folha de salários, como ocorreu no governo Dilma Rousseff. Do ponto de vista de cada empresa, essa aparentava ser uma boa ideia, mas a crise fiscal se agravou, levando à depreciação cambial, mais inflação e juros mais elevados. Políticas fundamentais para o crescimento têm de ser consistentes, levando em consideração os ganhos para a sociedade como um todo, e não somente a grupos isolados.

Não há como reproduzir os anos do “milagre”, nem o crescimento do governo Geisel, quando os altos investimentos das estatais levaram à crise da dívida externa. Ao contrário, temos de privatizar empresas, ganhando eficiência, como no governo FHC. Mas precisamos de mais investimentos, que diante da crise fiscal somente podem vir do setor privado. A primeira condição é um governo que abandone o populismo, que vende a ilusão de que tudo se resolve aumentando gastos e abusando de bancos oficiais – o modelo preferido por Lula. A segunda é que se realizem as reformas micro e macroeconômicas, sem as quais não haverá crescimento.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE NO PRIMEIRO DOMINGO DO MÊS

Ainda há tempo? - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ESTADÃO/O GLOBO - 07/01

É cedo para responder. O Brasil precisa de bom senso. O pior pode sempre acontecer


Começo de ano. A praxe indica que nestas ocasiões é melhor expressar os desejos de um próximo ano melhor e lastimar o que de ruim houve no anterior, sem deixar de soprar nas brasas de esperança suscetíveis de serem encontradas no meio de desvarios e extravagâncias porventura havidas. Será?

Não sei. Fui formado com a obsessão da dúvida metódica cartesiana. A certa altura, lendo Pascal, percebi que mesmo para os mais crentes o caminho da salvação não se encontrava no cômodo embalar da fé sem pitadas de dúvidas. Melhor tê-las e tentar responder, com a lógica (e a esperança), ao demônio da descrença. Por isso coloco o ponto de interrogação no título deste artigo.

Mantenho a esperança, mas convém reconhecer que 2017 mostrou que não dá para ter certeza de que os riscos da guerra e do irracional não prevaleçam. Já tivemos sonhos de cooperações entre Estados quando os diplomatas se dedicavam ao multilateralismo para resolver problemas ou pelo menos promover convergências de opiniões, mas só vemos confrontações. Quantos atentados terroristas houve? Muitos. E mesmo que um só tivesse havido, matando crianças e adultos que nada têm que ver com as fúrias políticas e religiosas dos fanáticos, já seria suficiente para assustar a Razão. Que dizer do Boko Haram, das mortes provocadas pela Al-Qaeda e pelo Estado Islâmico, dos atentados na Tunísia, no Iêmen ou onde mais seja, que prosseguem no caminho perverso do ataque, já antigo, às torres gêmeas ou ao Bataclan? O mundo parece percorrer um longo ciclo de desrazão que pode muito bem levar a uma guerra mundial.

Quase a cada mês vem nova má notícia. Pior, não são apenas os ditos terroristas que matam a rodo. Nas cidades brasileiras o crime organizado, muitas vezes com fuzis na mão, em conluio com o narcotráfico e o contrabando de armas, mata nas nossas barbas milhares de pessoas por ano. Estamos longe das terras conflagradas da Síria, do Iraque, da Península Arábica ou de onde mais seja, mas nos morros cariocas, nos presídios amazônicos, nas terras desbravadas do oeste ou nas ermas periferias de São Paulo se mata sem piedade, embora com menos repercussão global do que quando ataques terroristas são realizados em capitais europeias.

E que dizer de outro tipo de matança, não apenas moral, mas concreta, quando a corrupção praticada pelos criminosos de colarinho branco, em escala e despudor sem precedentes, além de arrasar moralmente setores ponderáveis das elites dirigentes, deixa ainda mais à míngua os que dependem dos serviços do Estado, sobretudo os pobres?

Diante deste quadro, cujas tintas espessas sublinho para dar nitidez ao olhar, embora sabendo que também se possam ver paisagens menos sombrias, qual tem sido a resposta dos povos? Nos Estados Unidos, Donald Trump elegeu-se, contrariando o establishment, os partidos, boa parte da mídia e de Wall Street. Na Europa Central e do Leste, governos com participação de forças de extrema direita se afirmam na Hungria, na Áustria e na Polônia. Nas pesquisas brasileiras de opinião, pelo menos até agora, sem o quadro eleitoral formado, despontam um capitão irado de cujas propostas pouco se sabe e um líder populista sobre o qual pesam acusações (e mesmo condenações) que destroem o sonho que outrora representou.

Será que, antes de recobrar a Razão, o mundo precisará passar por novas privações e testemunhar o abrir do cogumelo atômico que a irada Coreia do Norte ameaça despejar no Japão, quem sabe saltando sua irmã do Sul pelo temor do contágio, podendo mesmo alcançar os Estados Unidos? Viveremos os horrores de uma guerra globalizada? Há décadas parecia que a confrontação dos Estados Unidos com a antiga potência soviética ou mesmo com a China, sem falar nas fricções entre Índia e Paquistão, ou na potencial reação atômica de Israel ao Irã dominador da técnica nuclear, estava controlada. O que esperar quando Donald Trump decreta Jerusalém capital de Israel, animando um conflito milenar?

E no Brasil? Já não terá bastado o descalabro econômico-financeiro produzido pelo “capitalismo de laços” que o lulopetismo patrocinou, envolvendo e beneficiando empresas e partidos políticos, para que aprendamos a lição de que não há atalhos fáceis para o desenvolvimento e que este requer o império da lei? Será que o Bolsa Família (que se originou em governos anteriores e sem tanto alarde) foi suficiente para amortecer a consciência popular e fazer crer que a esperança em dias melhores se contenta com migalhas?

É cedo para responder. Mas não para agir com convicção e tudo fazer para que tais horizontes não despejem novas tempestades. Que não se iluda o leitor: o pior pode sempre acontecer. Evitá-lo depende de cada um e de todos nós. Não há fé cega na Razão ou nos bons propósitos que barre o Irracional se não se criarem alternativas que impeçam o pior de prevalecer, pela guerra ou pelo voto. As consequências, já dizia o conselheiro Acácio do Eça de Queiroz, vêm sempre depois...

Posta a dúvida, construamos caminhos mais razoáveis. Pelo menos no que está ao alcance da nossa mão. O Brasil precisa, urgentemente, de bom senso. Se as forças não extremadas se engalfinharem para ver quem entre vários será o novo líder e não forem capazes de criar consensos em favor do País e do povo, o pior acontecerá. No afã de juntar, importa diminuir as divergências sobre o que não é essencial. Com esperança, e falo simbolicamente, as forças representadas (ou que os adiante mencionados gostariam de representar) por Alckmin, Marina, Meirelles, Joaquim Barbosa, ou quem mais seja (incluídos os setores ponderados da esquerda) precisam entender que os riscos se transformam em realidade pela inércia, pela covardia ou pela falta de visão dos que poderiam a eles se opor.

Bom 2018!

*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Como nos tornamos o que hoje somos? - BOLÍVAR LAMOUNIER

REVISTA ISTO É

Somos uma gente impedida de empreender e trabalhar, pois até hoje não conseguimos nos livrar do Estado patrimonialista

Durante a primeira metade do século passado e até algumas décadas atrás, numerosos escritores tentaram compreender o “caráter nacional” brasileiro. Uns o descreviam como otimista, alegre, bondoso e cordial; para outros seríamos justo o contrário: pessimistas, tristes, egoístas, violentos. Prepotentes para uns, subservientes para outros.

Tais tentativas nunca deram bons resultados, pela singela razão de que partiam de uma premissa insustentável: a de que o caráter de um povo seja imutável ao longo do tempo e possa ser retratado por meio de um traço ou de um pequeno conjunto de traços comuns.

Auxiliado por Francisco Almeida e Zander Navarro, o senador Cristovam Buarque retomou a questão mencionada de uma forma instigante e inovadora no livro “Brasil, brasileiros: por que somos assim?” (Editora Verbena, 2017). Na condição de organizadores, os três convidaram dezesseis autores renomados a responder a questão, oferecendo cada um sua definição daquele “assim” do título – sua imagem dos brasileiros como povo – e tentando explicar como se formaram nossos traços predominantes.

Por que somos como somos: eis a indagação que permeia os dezesseis ensaios. Não vou contar o fim do filme. Vou apenas insistir em minha tese de que todo povo é heterogêneo e mutável. Os traços que o definem mudam ao longo do tempo, em função das circunstâncias. Por exemplo: acho razoável dizer que a maioria dos brasileiros tem um jeito cordial, pacífico, avesso à violência, mas o fato é que, de umas três ou quatro décadas para cá, passamos a viver em redutos fortificados, protegidos por grades de ferro, muito arame farpado e cães que não brincam em serviço. Somos contraditórios; podemos ser ao mesmo tempo bondosos e cruéis.

Na economia, não somos aquele povo preguiçoso e sem iniciativa imortalizado por Mário de Andrade no romance “Macunaíma”; basta ver o pujante agronegócio que construímos no transcurso do último meio século. Somos, isso sim, uma gente impedida de empreender e trabalhar, pois até hoje não conseguimos nos livrar do Estado patrimonialista, essa máquina que nos reduz à impotência a fim de preservar o que alguns chamam de capitalismo de Estado e que eu prefiro chamar de capitalismo de compadrio, de corruptos e de burocratas incompetentes.


A ele não interessa a lei - CARLOS JOSÉ MARQUES

REVISTA ISTO É

O azougue petista entrou em campo. A agremiação convoca a todos para a arruaça. Desavergonhados representantes da cúpula como José Dirceu – condenado por vários crimes e, não se sabe por que, ainda fora da cadeia – falam em colocar fogo no País se condenarem seu líder máximo, Luiz Inácio Lula da Silva, no próximo dia 24 na Corte do TRF-4, em Porto Alegre. Os incendiários João Pedro Stédile, Guilherme Boulos e quetais fazem o mesmo. Até a deposta Dilma, sem um pingo de vergonha na cara pelo que já causou de mal aos brasileiros, promete vigília na porta do Tribunal. O próprio Lula tenta politizar um julgamento que é eminentemente técnico. Faz firula. Diz que estará presente no dia para animar a claque. Reivindica o direito de se manifestar na ocasião – algo completamente fora de propósito nesse estágio do processo. Confronta os juízes. Tripudia das decisões. Ataca os investigadores. Tempos atrás ameaçou prender, caso volte ao poder, aqueles que hoje querem colocá-lo atrás das grades. Continua a se fazer de vítima numa estratégia que não cola mais. Exacerba na tática de procrastinação. Catimba como pode. Lula se coloca como um réu político quando não passa de mero condenado comum por crime de corrupção em sentença já beirando os dez anos. Pode vir mais tempo de pena. A militância, os asseclas do lulopetismo, a trupe de agitadores dos MSTs da vida tratam a apelação em segunda instância como final de Copa do Mundo ou um Fla/Flu que devem levar no grito ou no tapetão. Querem armar uma fuzarca sem tamanho. Não entenderam nada. Nas palavras de ordem falam em “defesa da democracia” e no “direito” de Lula em ser candidato. A questão não tem nada a ver com democracia. Não há ninguém sendo perseguido por viés ideológico ou o que valha. O que o TRF-4 vai julgar também não é a candidatura presidencial de Lula. São crimes previstos na Constituição, evidenciados por um calhamaço de provas testemunhais e documentais. Não há nada de defesa da democracia nesse movimento que tenta impor à força a sua vontade, à revelia da Justiça, radicalizando manifestações que, de mais a mais, só carregam um único objetivo: provar que Lula tem de estar acima da lei. Parece piada. Mas não é. Do ponto de vista institucional, está nas mãos do TRF-4 delinear a cara do Brasil daqui para frente. Seu veredito não pode vir contaminado pela antiga ideia de que alguns são mais iguais que outros perante o primado das regras em vigor. Condenação em segunda instância dá cadeia. Políticos com “ficha suja” não devem concorrer. Qualquer regime de exceção fora desses parâmetros deixará na sociedade a sensação de que transgredir compensa. Que a impunidade vai continuar a prevalecer, não obstante a Lava Jato e todos os esforços para frear a bandalheira que tomou conta do Estado. Lula é réu em inúmeros processos. Do triplex ao sítio em Atibaia, do terreno do Instituto às palestras regiamente pagas em troca de favores, não faltam demonstrações de seus desvios. E mesmo assim o PT prega com veemência a entrada dele na disputa de 2018 como algo legítimo. Deliberadamente ignora a Lei da Ficha Limpa, aprovada, diga-se de passagem, por pressão popular, imaginando talvez que só o Partido detém o monopólio sobre o que é do interesse do povo ou não. Na prática, os talibãs do PT apelam com falsas bandeiras para convencer a turba, mas não conseguem arregimentar hoje em dia sequer meia dúzia de gatos pingados em seus protestos, além dos militantes de sempre. O exército de araque se pinta para a “guerra”. No lero-lero para driblar o inevitável incluiu até um manifesto em inglês, espanhol e francês para levantar a lorota de que tudo não passa de um grande esquema com o objetivo de evitar a volta de Lula ao poder. A mesma ladainha de golpe. Debocha-se dos fatos. O PT se apequenou e Lula, que nem remotamente lembra mais aquele idealista de outrora, agora confronta a Lei como um Quixote sem destino.

Coragem nas eleições de 2018 - BERNARDO ROCHA DE REZENDE (BERNARDINHO) E MARCELO TRINDADE

O Globo - 07/01

Cumpre aos candidatos a coragem de buscar, pelo debate, a compreensão dos eleitores de que o Estado sequestrado não os beneficia, mas sim à minoria que dele se apoderou


Candidatos às eleições deste ano precisam ter coragem de atacar o sequestro do Estado. É impossível iniciar 2018 sem refletir sobre o que as eleições de outubro reservarão ao país. A nosso ver, isto depende menos de quem serão os candidatos e mais da sua coragem em discutir, com honestidade e clareza, os assuntos urgentes para o Brasil. Porque a situação do país é grave, e somente quem tiver jogado limpo na eleição terá legitimidade para fazer o que é preciso depois da posse. Os demagogos não chegarão ao final dos mandatos ou, pior, nos levarão direto ao fundo do poço.

Entre os assuntos mais delicados, mas que precisam ser enfrentados com coragem, está a reforma do Estado brasileiro. Se o Estado sucumbir, dominado pelas minorias que o agigantaram e o sequestraram, a democracia também pode fraquejar, cedendo lugar a falsas soluções, milagrosas e radicais.

Neste e em outros temas, a alternativa que se apresenta em 2018 é muito melhor. Trata-se de, democraticamente e sem ruptura, livrar o Estado brasileiro dos interesses daqueles poucos que dele se apropriaram, redimensionando-o para os serviços e os destinatários a que realmente precisa dedicar-se, que são a maioria de nossa população.

Haverá, é claro, resistência dos interesses atingidos. Entidades que representam empresários favorecidos com subsídios, empréstimos a taxas módicas, benefícios tributários e relações por vezes promíscuas com empresas estatais e outros entes governamentais, vão reagir. Lideranças sindicais de funcionários públicos que se acostumaram com aposentadorias precoces, salários iniciais superiores aos de mercado, jornadas de trabalho reduzidas e produtividade e eficiência muito abaixo das desejadas também se agarrarão a suas vantagens.

Não há nada de errado em que os interessados defendam seus pontos de vista, desde que o façam às claras e por métodos legítimos. Mas cumpre aos candidatos ter a coragem de buscar, pelo debate, o convencimento dos eleitores, e a compreensão, por estes, de que o Estado sequestrado não os beneficia, mas sim à minoria que dele se apoderou. A demagogia corporativista ou será derrotada pelo voto ou pela falência do Estado. O melhor, para todos, inclusive os que se beneficiam do estado atual de coisas, é que a mudança venha pelo voto.

Este é um dos assuntos em que não pode haver meias palavras na boca de candidatos, porque será preciso agir após a posse, e não vale a pena ganhar e depois fraquejar, pagando o alto preço da omissão. É preciso enfrentar o tema em todas as suas frentes. Às questões mais presentes no debate público — como a reforma da Previdência e a privatização de estatais — devem somar-se outras, como a extinção de subsídios, a adequada regulação dos serviços públicos concedidos e a prestação de serviços de saúde e educação de qualidade, geridos modernamente, oferecidos gratuitamente a quem não possa por eles pagar e mediante cobrança justa a quem possa.

O funcionalismo público é um caso à parte, e de extrema relevância na demonstração de coragem dos candidatos. É fundamental realizar uma radical alteração de paradigma, reduzindo-se ao mínimo os cargos de confiança, vinculando parte relevante da remuneração a resultados mensuráveis e estabelecendo planos de carreira em que os salários cresçam à medida em que aumente a eficiência e a satisfação de quem usa os serviços públicos — inclusive no campo vital da segurança. Um modelo em que a carreira pública volte a ser um plano de vida e de realização dos mais elevados valores da cidadania, e não um objetivo egoísta tido por alcançado com a mera aprovação no concurso.

Haverá muitos custos na transição de um Estado sequestrado para um Estado eficiente, e isto também precisa ser discutido às claras. Propostas que impliquem ruptura não são palatáveis na prática democrática. Os candidatos precisam ser criativos e conceber períodos de transição, de adesão voluntária incentivada aos novos regimes e outros mecanismos que viabilizem as reformas.

Refundar o Estado brasileiro, em todas as suas dimensões, é tarefa árdua, como tantas outras que desafiam o país. Mas se este e outros temas relevantes forem debatidos com coragem nas campanhas de 2018, os compromissos dos eleitos, sejam quem forem, serão irreversíveis, e o Brasil reafirmará a sua vocação democrática.


BERNARDO ROCHA DE REZENDE (BERNARDINHO) E MARCELO TRINDADE Bernardo Rocha de Rezende (Bernardinho) é economista, empresário e treinador bicampeão olímpico de vôlei. Marcelo Trindade é advogado e professor no Departamento de Direito da PUC-Rio.

Multa da Petrobras reafirma o crime do petrolão - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 07/01

Acusados e condenados costumam continuar a jurar inocência, mas a indenização bilionária que a estatal se propõe a pagar descredencia essas juras


Sempre negar é regra seguida por acusados de crimes. Mesmo que as evidências o desmintam, não importa que já seja um condenado. No mundo do colarinho branco, Paulo Maluf é o símbolo maior deste costume, e deve sair da Papuda sem mudar. No seu caso, de desvio de dinheiro de obras em São Paulo, lavagem e remessa para o exterior, na última passagem pela prefeitura da cidade, há, entre outras, provas documentais (assinaturas etc.). Mas isso não importa.

O mesmo se repetiu no mensalão do PT (também no do PSDB) e ocorre no petrolão, do PT e associados (MDB e PP, os principais). O ex-presidente Lula sempre negou o mensalão, mesmo que várias estrelas mensaleiras de primeira grandeza do partido tenham cumprido penas em prisão (José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares etc.), definidas pelo Supremo Tribunal.

O roteiro é seguido também no petrolão, desbaratado pela Lava-Jato, e hoje com vários processos em andamento e diversas condenações — inclusive de Lula, em primeira instância, no caso do tríplex do Guarujá, e prestes a ser julgado em segundo grau. Porém, é necessário continuar a negar, por questões jurídicas e também políticas. Político jamais confessa.

O acordo a que a Petrobras chegou com investidores que aplicaram em papéis da empresa no mercado americano, como indenização por perdas causadas pelos efeitos das falcatruas do lulopetismo na empresa, é outra forte chancela que sacramenta como verdadeiras as acusações contra políticos e diretores da estatal ligados ao PT, MDB e PP, que patrocinaram um assalto bilionário à companhia.

Por que a empresa proporia pagar US$ 2,95 bilhões em multas (cerca de R$ 9,5 bilhões) a participantes de uma ação coletiva instaurada na Justiça americana se não estivesse convencida de que inexiste alternativa? Ou seja, de que é impossível provar que não houve o petrolão. Provas e evidências são graníticas.

Esta proposta da estatal, que ainda precisa ser aceita pela Justiça — a mais elevada multa a ser paga no país por uma empresa estrangeira — é mais uma comprovação deste crime. Têm o mesmo efeito multas elevadas acertadas no Brasil por empreiteiras sócias do lulopetismo, aliadas no assalto à Petrobras, para financiar o projeto de poder do PT e coligados, assim como elevar o patrimônio de vários políticos e operadores financeiros que fizeram passar centenas de milhões por suas lavanderias.

Esta multa histórica que a Petrobras deve pagar nos Estados Unidos desmente todo aquele que continua a negar o esquema. Vale, é claro, para o ex-presidente Lula com o apartamento tríplex do Guarujá e o sítio em Atibaia, produtos, segundo provas e testemunhos, da corrupção na estatal, motivo que leva a empresa a desembolsar bilhões de reais para escapar de penas mais severas. Depois disso, se já eram, os desmentidos e negativas ficam ainda mais patéticos.

Por um outro Banco do Brasil - MAÍLSON DA NÓBREGA


REVISTA VEJA

A privatização será benéfica ao país e aos seus funcionários


O Banco do Brasil é a estatal mais emblemática do país. Nasceu em 1808 como banco privado para emitir moeda, uma necessidade criada pela chegada da família real ao Brasil e pela abertura dos portos.

O primeiro BB quebrou em 1829. Emitiu mais do que o lastro. Segundo Pandiá Calógeras, por erros atribuíveis “quase que exclusivamente ao governo, por causa dos empréstimos dispensáveis que solicitara, ou melhor, impusera”.

O segundo BB surgiu em 1853 focado em crédito. Nasceu da fusão do Banco do Brasil — criado pelo barão de Mauá em 1851 — com o Banco Comercial. Manteve-se sob o controle privado.

O terceiro resultou da fusão do segundo BB com o Banco da República do Brasil, em 1905. Com a Carteira de Redescontos, criada por lei de 1920, descontava seus empréstimos nele mesmo, algo inédito. Começava sua grande ascensão, sob o controle crescente do governo.

A Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (lei de 1937) seria sua principal marca. Novas funções, inclusive de banco central, lhe foram atribuídas: o monopólio do câmbio, o controle e o financiamento do comércio exterior, a fiscalização bancária e a de depositário de recursos dos bancos.

Na lei que criou o Banco Central (BC, de 1964), o BB constou como o principal instrumento da política de crédito oficial via Orçamento Monetário, uma estimativa dos balanços anuais do BC e do BB.

Nasceu a “conta de movimento”, que supriria automaticamente o BB de recursos pelo BC, permitindo-lhe conceder “empréstimos sem limite”. Nos anos 1970, o BB virou o oitavo banco do mundo, mais pela forma de expandir seus empréstimos do que pelo porte da economia.

O BC atuava como banco de desenvolvimento, em esquema similar ao do BB, e geria a dívida pública. Um departamento do BB executava o Orçamento da União.

Nos anos 1980, fortes pressões inflacionárias tornaram a situação insustentável. Entre 1983 e 1984, estudos da Fazenda preconizavam abolir a “conta de movimento”, as atividades de desenvolvimento do BC e o Orçamento Monetário. Sugeriam a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, para que esta assumisse as funções fiscais do BC e do BB.

As medidas foram aprovadas entre 1986 e 1988. O BB foi autorizado a atuar como qualquer outra instituição financeira. Malograram os temores de que ele não venceria os desafios.

Em 1995, o BB iniciou sua transformação. Diversificou operações, sofisticou a base tecnológica e ganhou eficiência. Arca, ainda, com o ônus de ser estatal. Tem sede em Brasília. Muda frequentemente a administração e a estratégia. Sofre o custo da fiscalização do Tribunal de Contas da União e da subordinação à Lei de Licitações.

A saída é a privatização. O BB está pronto. Poderá premiar funcionários por geração de negócios e produtividade, como ocorre em bancos privados. Livre do jugo do governo, aumentará a competição no mercado bancário e ampliará o papel de apoio ao desenvolvimento do país.

Surgirá um banco mais competitivo. O quarto Banco do Brasil da história será mais forte e promissor. 

É o que temos - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente? (…)
Que famas lhe prometerás?
Que histórias?
Que triunfos? Que palmas?
Que vitórias?
Luís de Camões, Os Lusíadas

O VELHO DO RESTELO, esse homem difícil, pessimista e dado a falar o contrário do que se espera, disparou as perguntas acima a Vasco da Gama e outros peixes graúdos da corte de Portugal no momento em que largavam do cais de Belém, sob as palmas da multidão, para a viagem que os levaria a descobrir o novo Caminho das Índias. Denunciava, nas palavras que Camões tornou imortais em seu poema, a “glória de mandar” e a “vã cobiça” de Gama e de seus parceiros — eles juravam estar indo “além da força humana” pelo bem da pátria, mas só estavam interessados mesmo em sua fama, fortuna e ambições pessoais. Se ainda estivesse circulando hoje por aí, o áspero velho bem que poderia perguntar ao e­­x-presidente Lula: “Que promessas farás em tua campanha eleitoral de 2018?”. Promessa nunca foi problema para Lula, é verdade. Mas, se for candidato a presidente mais uma vez, ele vai ter de arrumar alguma promessa, qualquer promessa — e no seu repertório de hoje não há nada que possa realmente entusiasmar as multidões.

Lula tem prometido, por exemplo, virar o país de cabeça para baixo, mas não parece que há muita gente interessada nisso — o que se quer, pelo que dá para entender, é que o país fique com a cabeça onde está e vá em frente. Ele promete, também, mudar tudo na Petrobras. Mudar para quê? É a primeira vez em quase quinze anos que a Petrobras tem uma diretoria que não rouba a empresa. O que Lula está propondo? Criar de novo a situação de ladroeira alucinada que arruinou a companhia durante seus governos e os de Dilma Rousseff? Outra promessa é recuperar “direitos que foram cortados” do povo brasileiro. Quais? O imposto sindical, por exemplo, abolido na reforma trabalhista? Não dá, ao mesmo tempo, para prometer um novo “trem-bala”, um segundo “pré-­sal” ou a transposição das águas do São Francisco no sentido contrário.

Até algum tempo atrás, Lula punha muita fé em prometer na campanha uma reforma monumental na economia. Hoje a coisa já parece mais complicada. Fazer o contrário do que está sendo feito pelo governo de Michel Temer significa, por exemplo, aumentar os juros, que chegaram à menor taxa da história. Não dá para prometer um negócio desses. O ex-pr­esidente também não pode prometer que vai aumentar a inflação, que hoje é a mais baixa dos últimos vinte anos. Nem jogar o Brasil de volta à maior recessão jamais vista por aqui — obra-prima de sua criatura, que conseguiu fazer a economia recuar mais de 7% em 2015 e 2016.

Sempre existe à mão, naturalmente, a história da “ascensão social”, um dos maiores contos do vigário jamais aplicados neste país. Ao final de seu governo, Lula anunciou que a pobreza havia sido extinta por ele no Brasil. Acreditaram nisso, na época, de São José dos Ausentes até a Universidade Harvard — e talvez dê para reembalar a mercadoria e passar adiante mais uma vez. Segundo o ex-­presidente, só haviam sobrado aqui e ali uns poucos pobres para ser salvos; segundo ele, não tinha sido possível localizar fisicamente esses coitados, de tão poucos que eram em nosso vasto território. Dilma teria só de fazer o acabamento. Ela foi rápida. Em 2013, proclamou que a miséria tinha sido extinta de uma vez por todas; a partir de então, só havia no Brasil de classe média para cima. O truque aritmético que usaram para fabricar essa nova realidade é conhecido. Um desses órgãos públicos encarregados de fazer estatísticas, que o PT então utilizava como parte do seu departamento de propaganda, decretou que a classe média no Brasil começava em 1 280 reais por mês; com 1 281 o sujeito já não era pobre. Pronto: acabou a pobreza.

O problema com tudo isso é que o IBGE, com dados apurados durante os próprios governos de Lula e Dilma, acaba de divulgar números oficiais em que a verdade aparece. Em 2016, ano em que Dilma foi despachada, em 31 de agosto, 52 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da pobreza — o que, pensando um pouco, é gente que não acaba mais. Se Lula e o PT eliminaram a miséria, de onde, então, saiu todo esse povo que sobrevive com 18 reais e alguns centavos por dia? O ex-­presidente e sua corte têm uma explicação: foi Michel Temer, de agosto do ano passado para cá, quem criou sozinho os 52 milhões de pobres que andam por aí. Só mesmo Lula, agora, para salvar a vida deles. É meio duro de engolir. Mas, em matéria de promessa, é o que temos no momento.

Não, senhores, não pode mais - REVISTA VEJA



Denúncias de assédio sexual e as novas condutas pautadas pelo feminismo fazem empresas vetar caronas, beijinhos e outras interações entre homens e mulheres

Por Fernanda Bassette e João Pedroso de Campos




Outros Tempos - Cena de 'Seduzidos pela Maldade', do inglês Basil Dearden, com Anne Heywood. O filme é de 1958 — claro (Alamy/Fotoarena)


Um gerente chega ao escritório e, ao ser apresentado a uma nova funcionária, cumprimenta-a com um beijo no rosto. Na sequência, recebe a portas fechadas membros da sua equipe para avaliações individuais, incluindo a estagiária. Ao dar bom-dia à secretária, elogia o seu perfume. Mais tarde, aceita o convite para a happy hour da firma e oferece carona a uma subordinada. No fim do dia, agradece a uma funcionária no WhatsApp por uma tarefa bem executada e despede-­se com “bjs”. Se você, leitor, nem desconfia que pode haver algo de condenável nas atitudes do nosso gerente, esteja certo de que corre os mesmos riscos que ele. Hoje, pelas regras de muitas empresas, esse chefe hipotético teria batido um recorde de condutas inadequadas — e, a depender da visão de seus colegas e patrões, poderia ser um sério candidato ao título de assediador da turma.

Sim, os códigos de conduta entre os sexos estão passando por uma transformação radical, impulsionada pela explosão das denúncias de assédio e pela crescente afirmação feminina. E há gente confusa com isso — em particular, homens criados no tempo em que era aceitável virar a cabeça diante da passagem de um derrière feminino. Mas, ei, isso também não pode mais? Não, senhores, não pode. O mundo não apenas mudou — mudou rapidamente. Daí o fato de muitos homens reagirem com perplexidade aos olhares de repreensão provocados por algo que eles sempre fizeram e que ninguém antes lhes havia dito que não podiam fazer.



Disque-Denúncia – Na consultoria Crowe Horwath, a gerente de gestão de pessoas Rosana Marques (em pé) participou da implantação de um canal para queixas contra desvios morais: regras para evitar constrangimento (Paulo Vitale/VEJA)

Como costuma acontecer em momentos de grandes e velozes transformações, as novas regras ainda não estão claras para todo mundo. O que “pode” e o que “não pode” se embaralham, a depender do ambiente e dos protagonistas da ação. Gestos como abrir a porta para uma mulher, por exemplo, uma manifestação de cavalheirismo para a maioria, já podem parecer ofensivos para algumas mulheres, que enxergam ali um galanteio indevido. Dessa forma, episódios de grosseria explícita e atitudes sem segundas intenções correm o risco de acabar entrando no mesmo índex, penalizando igualmente machistas irremediáveis e pobres exemplares do gênero masculino francamente boquiabertos com o mundo novo. Pelo sim, pelo não, muita gente — e um número crescente de empresas — tem preferido a prevenção.



“Almoço, só em grupo” – Sou bem mais precavido hoje do que era alguns anos atrás. Quando comecei a gerenciar uma equipe de treze vendedoras, vi que não haveria espaço para piadinhas, brincadeiras ou qualquer coisa que pudesse sugerir assédio. Passei a tomar o cuidado de não almoçar no refeitório na companhia de uma só vendedora, mas apenas em grupo. Quem está em cargo de chefia precisa agir assim. Em meu trabalho, as mulheres são a maioria. Então, não faço nenhum comentário que possa ter duplo sentido. Penso duas vezes antes de fazer uma crítica ou mesmo um pedido.
Luiz Carlos Pulini, executivo de vendas de uma distribuidora de álcool em São Paulo (Paulo Vitale/VEJA)


A rede de clínicas médicas populares dr.consulta, por exemplo, prepara para o primeiro trimestre deste ano a distribuição de uma cartilha a seus 1 000 funcionários em que proíbe, entre outras coisas, cumprimentos que incluam beijos e abraços. “Cada um tem o seu limite. Então, é melhor evitar”, justifica Anna Karla Ribeiro, diretora de gente e gestão da rede. Na GuardeAqui, líder no setor de boxes de armazenagem no país, as normas de convivência já vigoram há um ano. As proibições, nesse caso, abrangem coisas evidentes, como “solicitação de favores sexuais”, “olhares maliciosos” e “exibição de fotos sexualmente sugestivas”. Na rede dr.consulta, as novas regras de conduta incluirão um tipo de disque-denúncia destinado a acolher relatos de abuso tanto da parte de funcionários como dos 1 300 médicos credenciados. Empresas como a ­Crowe Horwath e a Intel do Brasil abriram um canal semelhante. A segunda recebe casos por e-mail e telefone — eventualmente, os episódios registrados são levados para a arbitragem do CEO. “Uma profissional se queixou de receber abraços em excesso de um colega. Falei com ele, e não aconteceu de novo”, diz Maurício Ruiz, CEO da multinacional no Brasil.



“Deixo a porta da sala aberta” – Dou aulas de história há trinta anos. Ficar sozinho com alguém em uma prova ou tirando dúvidas até mais tarde sempre foi corriqueiro. Mas, com tantas reportagens sobre casos de assédio e depois de ouvir o relato de um episódio em ambiente educacional, comecei a sentir receio. Passei a tomar cuidados que nunca imaginei necessários para não dar margem a interpretações erradas. Hoje, deixo a porta da sala aberta ou procuro ter mais gente por perto em conversas individuais. E não chamo aluna para almoçar, a não ser que seja em turma.
José Marcelo Bussab, professor de cursinhos e do ensino médio em São Paulo (Paulo Vitale/VEJA)

Obviamente, nem todos os casos terminam assim tão bem. Por medo de pisarem em falso e prejudicarem sua carreira, muitos homens têm redobrado a vigilância. Para o executivo de vendas Luiz Carlos Pulini, a mudança começou quando ele passou a gerenciar uma equipe de treze vendedoras. Agora, no almoço, não aceita mais companhia individual. “É um cuidado para evitar falatórios.” Fernando Martins, CEO da tecnológica AgroTools, está no grupo dos que logo esticam o braço para cumprimentar uma mulher. “Não dou beijo e só chamo alguém para almoçar se for para tratar de trabalho, com a conta paga pela empresa. Não faço elogios a roupa nova nem a perfume”, conta. As caronas, antes inseridas no terreno da gentileza, agora derrapam em solo pantanoso. “Não basta sermos éticos, temos de parecer também. E, se a estagiária é promovida depois da carona, o que podem dizer?”, avalia Wagner Giovanini, diretor da consultoria Compliance Total.



A era pós-Weinstein – A atriz Gwyneth Paltrow, que acusou o produtor Harvey Weinstein por assédio cometido há duas décadas, e as “rompedoras de silêncio”, eleitas as “pessoas do ano” na revista Time por terem trazido casos à tona: o mundo nunca mais será o mesmo (Jamie McCarthy/FilmMagic/Getty Images)

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 88% das ações de assédio sexual em 2016 se deram na esfera trabalhista. O assédio, evidentemente, pertence a uma categoria bem diferente da que abrange carona e beijo no rosto. No país, o assédio é crime previsto no Código Penal desde 2001. Incorre nele todo indivíduo que tentar obter “vantagem carnal” usando a condição de superior hierárquico ou lançando mão de sua ascendência sobre alguém. O problema está em definir com clareza a linha tênue que separa a saudável gentileza entre os sexos do momento em que começa a brutalidade do assédio. No Brasil, os processos por assédio sexual aumentaram 200% num período de três anos.




(Arte/VEJA)

A pedido de VEJA, a consultoria Kurier Analytics fez um levantamento inédito na base de dados do Conselho Nacional de Justiça. Em 2013, houve 1 530 novas ações de assédio em primeira instância. Em 2016, o número chegou a 4 450. Pelo andar da carruagem, no fim de 2017 pode ter quintuplicado (veja o quadro ao lado). Ainda que isso ocorra, os números permanecerão aquém da realidade. Se atrizes com salário de sete dígitos como Gwyneth Paltrow levaram anos para trazer à tona os abusos perpetrados por um homem com o poder de estender-lhes o tapete vermelho ou puxá-lo de seus pés para sempre, quantas assalariadas estão dispostas a pagar o alto preço de quebrar o silêncio? O caso de Harvey Weinstein — o poderoso produtor de cinema acusado em outubro de assediar nove entre dez estrelas de Hollywood, Paltrow incluída — desencadeou um rastro de denúncias de assédio mundo afora — e chegou ao Brasil. É bom que o assédio esteja sendo cada vez mais policiado e denunciado. O dado nebuloso é como tudo isso vem afetando, de modo mais amplo, as relações entre os gêneros. O Brasil, nessa história, corre o risco de estar importando certas concepções culturais dos Estados Unidos, um país cuja moral sexual é distinta da brasileira. Entre os americanos, há uma tradição puritana que nunca chegou a ser expressão majoritária por aqui. Lá, por exemplo, o beijo de cumprimento e o contato físico em geral não têm a mesma aceitação que no Brasil.

Com o alerta amarelo da acusação constantemente aceso, também aumentam os riscos de injustiça e linchamento de “réus”, pondera o sociólogo Francisco Bosco, autor do livro A Vítima Tem Sempre Razão?, editado pela Todavia. “As acusações têm misturado casos de evidente comportamento abusivo e outros em que, mesmo diante das inconsistências das denúncias, os homens são sumariamente considerados culpados pela opinião feminista.” Para Bosco, não há dúvida de que “os homens devem mudar radicalmente sua conduta em interações heterossexuais”. Mas há um equívoco no que ele chama de “convocações totalizantes” — a adesão automática de latinos a denúncias feitas por latinos; de negros a acusações oriundas de negros; de mulheres a relatos feitos por mulheres, tudo isso sem que se dê muita atenção a provas ou argumentos da defesa. “O princípio da empatia tende a fazer com que as pessoas valorizem aquelas mais parecidas com elas mesmas”, afirma Bosco. Assim, os julgamentos morais podem se tornar muito próximos do preconceito, diz o sociólogo.

Pesquisas recentes nos Estados Unidos alertam sobre os efeitos deletérios de certos tipos de treinamento. Segundo estudo da socióloga Justine Tinkler, da Universidade da Geórgia, reforçar os estereótipos de machos poderosos e fêmeas vulneráveis acaba minando a confiança delas para ocupar espaços na hierarquia empresarial — em outras palavras, isso ameaça lançar pelo ralo o que vem sendo conquistado a duras penas nas últimas décadas pelas mulheres.

O sociólogo Michael Kimmel, professor de estudos de gênero da Universidade Stony Brook, no Estado de Nova York, considera que há uma dose de cara de pau nesse debate. “Homens mais velhos podem até ficar confusos quanto às novas condutas, mas, no que se refere aos jovens, eles dizerem que não entendem o que está mudando é uma desculpa paté­tica”, afirma. “Além disso, não é preciso que as regras tenham mudado para dizer que tocar os seios de uma mulher é inadequado. Sempre foi.”

Em linha com Kimmel, ativistas feministas têm vindo a público para criticar o que seria o “falso coitadismo” dos homens confrontados com o novo feminismo. A colunista americana Anne Victoria Clark, por exemplo, propôs um “método” para ajudar homens em dúvida quanto à própria conduta a evitar acusações de assédio. “Façam de conta que todas as mulheres são o Dwayne Johnson”, provocou, citando o ator americano conhecido como “The Rock” (A Rocha) por ser uma montanha de músculos. O método funciona mais ou menos assim: está em dúvida se coloca a mão na perna da estagiária enquanto conversam sobre uma promoção? Finja que ela é The Rock e decida. Na ironia de Anne, a resposta oferece uma diretriz infalível para guiar a conduta masculina.

Não consta que a colunista tenha perguntado se todas as mulheres gostariam de ser tratadas como Dwayne Johnson. Mas isso talvez seja conversa para daqui a alguns anos, quando os ânimos estiverem serenados, os exageros aparados e o respeito entre os gêneros não depender de consulta a cartilhas. O certo é que as novas regras de convivência entre homem e mulher não podem confundir assédio, que é um crime intolerável, com a gentileza e mesmo com o jogo saudável da sedução, que é da natureza humana. Do contrário, como na piada de Luis Fernando Verissimo, será melhor entrar para uma ordem religiosa oriental, que substitui o sexo pela contemplação da alcachofra.
BEIJINHO, BEIJINHO? TCHAU, TCHAU

Alguns dos gestos cotidianos já estão banidos de empresas brasileiras

Falar “pegando”
Aquele colega que costuma encostar no interlocutor durante a falajá incomodava. Agora, em algumas empresas, o gesto tornou-se oficialmente inadequado. No treinamento antiassédio da Intel no Brasil, um vídeo mostra um homem tocando o ombro de mulheres. Em seguida, uma placa indica: “Pare!”. Se o contato avança para seios e nádegas, o problema passa a ser coma Justiça — casos de mulheres tocadas dessa forma terminaram, nos últimos anos,em indenizações de até 50 000 reais às vítimas.

Cumprimentar com beijinhos
O manual de conduta de alguns escritórios começa a banir a saudação, tão comum no Brasil. Em elaboração, o código da redede clínicas médicas dr.consulta deve incluir um aviso contra abraços e beijinhos no rosto. “É melhor evitar o toque, pois nunca se sabe qual é o limite da outra pessoa”, diz a gerente de gente e gestão, Anna Karla Ribeiro.

Piadas e palavrões
Empresas como a farmacêutica Bayer e a armazenadora GuardeAqui coíbem piadas maliciosas e linguagem sexualmente explícita. O comportamento será considerado pior, é claro, se fizer referência a uma funcionária específica. Um caso recente na Justiça do Rio Grande do Norte resultou em indenização de 6 700 reais por dano moral a uma profissional por “comentários com conotação sexual do superior hierárquico”.

Elogios a roupas, perfume e forma física
Para o advogado trabalhista Denis Sarak, elogios a roupas ou ao perfume de mulheres no ambiente de trabalho não são considerados assédio se não há “conotação ofensiva”. Mas como ter certeza desse limite?Algumas empresas e organizações orientam a equipe a evitar esse tipo de comentário. “Pode ser entendido de outra forma e causar problemas”, diz o superintendente do Sesi José Antonio Fares.

Dar carona a colegas
Empresas com códigos mais detalhados têm aconselhado carona entre colaboradores apenas quando mais de duas pessoas embarcarem. Já para o sociólogo americano Michael Kimmel, deixar de transportar uma colega por medo de consequências é uma reação “desonesta” dos homens. “Não há nada de problemático em ser gentil com alguém do trabalho, desde que você não pense que isso lhe dá o direito de fazer alguma coisa.”

Reuniões a portas fechadas
“Por que isso seria um problema?”, indaga Michael Kimmel, para quem a situação, por si só, dificilmente deve ser interpretada como assédio. No entanto, em algumas organizações, entre elas o Sesi, há orientações para que professores não fiquem sozinhos com um único aluno na sala de aula a portas fechadas.

Mandar “beijo” no final de e-mails e mensagens
Não há notícia de que isso tenha acabado em processo, mas, por receio de que a atitude seja interpretada como tentativa de ampliar a intimidade, muitos profissionais têm preferido o “abraço” ou simplesmente o “obrigado”.

Com reportagem de Françoise Terzian e Leonardo Lellis