quinta-feira, janeiro 04, 2018

O circo está sendo armado - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 04/01

PT pretende radicalizar o confronto a propósito do julgamento do ex-presidente Lula



“Em defesa da democracia e do direito de Lula ser candidato” – é a palavra de ordem com a qual o PT pretende manter-se em evidência, radicalizando contra tudo e contra todos o confronto a propósito do julgamento em segunda instância do ex-presidente, no caso relativo ao triplex do Guarujá. Até o dia 24, quando o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) decretará sua sentença em Porto Alegre, a militância petista e “movimentos sociais” manipulados por sectários da esquerda como João Pedro Stédile e Guilherme Boulos estarão mobilizados numa campanha que pretende ter âmbito nacional, com o ambicioso objetivo de promover uma rebelião popular em defesa do “maior líder popular que o Brasil já conheceu” e está sendo vítima de “perseguição” por parte de um “governo golpista” que se tem dedicado a acabar com as “conquistas populares”.

Numa democracia ninguém pode ser contra o direito de quem quer que seja de candidatar-se ao que bem entender, principalmente quando se trata de um líder popular – melhor dito, populista. Mas não é esta a questão em jogo. O que está em jogo na atual conjuntura é questão institucional da maior relevância: o império da lei e, em particular, das regras da disputa eleitoral que estabelecem, em defesa da legitimidade dos mandatos populares, restrições a políticos com “ficha suja”. São regras que cumprem o mesmo objetivo de “moralizar a vida pública” fortemente defendidas pelo PT antes de chegar ao poder.

No dia 24, o TRF-4 não vai decidir se Lula poderá ou não ser candidato à Presidência. Vai limitar-se ao que lhe cabe: confirmar, ou não, a condenação imposta ao ex-presidente em primeira instância pela mesma Justiça que já colocou atrás das grades adversários históricos do PT como Eduardo Cunha e Paulo Maluf e está investigando denúncias contra muitos outros. Se houver condenação em segunda instância – ou seja, por um órgão colegiado, como determina a lei –, a candidatura de Lula estará enquadrada na chamada Lei da Ficha Limpa, o que resultará no impedimento de sua candidatura à Presidência da República.

Nunca é demais lembrar, principalmente quando está envolvido na questão um partido como o PT, que se considera monopolista da defesa dos interesses populares, que a Lei da Ficha Limpa nasceu, em dezembro de 2010, por iniciativa popular. Foi coletado 1,6 milhão de assinaturas – 300 mil a mais do que o necessário – e o projeto tramitou normalmente no Congresso Nacional, sendo aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para ser, finalmente, sancionada a lei, em 4 de junho de 2010 pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

A estratégia adotada agora pelo PT, transparente em sua página oficial na internet, é politizar o julgamento do TRF-4 de modo a exacerbar a campanha de vitimização de Lula, na qual estariam empenhadas “forças poderosas” que conspiram contra os interesses do povo brasileiro. Para dramatizar a encenação programada até o dia do julgamento em Porto Alegre, Lula anunciou que pretende estar presente à sessão, tendo reivindicado ao tribunal o direito de se manifestar na ocasião.

Fica difícil entender que esteja em campanha “em defesa da democracia” um partido político que acredita que a lei deve valer para todos, menos para seu líder. Este “democrata”, num incontido impulso de revelar suas convicções mais genuínas, recentemente declarou, em mais uma tola e pretensiosa provocação à Justiça, que talvez algum dia ele mesmo decida prender aqueles que hoje querem botá-lo na cadeia. A “defesa da democracia”, para os petistas, resume-se no momento à preservação do “direito de Lula ser candidato”. O próprio ex-presidente e seu partido se apresentam como vítimas. Mas as vítimas são outras. Lula e o PT legaram essa sofrida condição ao povo brasileiro, como resultado de uma jornada de 13 anos que começou em festa e terminou em tragédia.

Quando a realidade bate à porta - ROBERTO FREIRE

FOLHA DE SP - 04/01

Além de todo o desmantelo moral e da estrondosa incompetência que marcaram os 13 anos de governos lulopetistas, não se pode desprezar o efeito deletério da máquina de propaganda enganosa, da mentira, da manipulação da realidade para a construção de narrativas falaciosas que pretendiam enganar o povo e vender a ideia de que o país avançava como "nunca antes" em sua história.

Os dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS 2017), levantamento divulgado pelo IBGE com base em uma análise estrutural dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, desnudam mais um engodo praticado pelos governos de Lula e Dilma —o de que o PT mudou efetivamente a realidade dos brasileiros mais pobres. Nada mais falso.

De acordo com o estudo, o Brasil terminou o ano de 2016 com 25,4% de seus habitantes tecnicamente situados na linha da pobreza —ou seja, vivendo com um rendimento médio que não passa dos R$ 387 por mês, ou US$ 5,50 por dia.

Esse contingente totaliza nada menos que 52 milhões de pessoas em situação de pobreza, o equivalente à população da África do Sul. Como se não bastasse tamanho descalabro, são mais de 13,4 milhões de brasileiros (ou 6,5% da população) que vivem na pobreza extrema, com rendimento domiciliar per capita mensal de até R$ 133,72 (ou US$ 1,90 por dia).

Os dados da pesquisa também revelam que o maior índice é verificado na região Nordeste, onde impressionantes 43,5% da população vivem na pobreza, percentual bem acima da média nacional (o Norte tem praticamente o mesmo índice nessa faixa, de 43,1%). As duas regiões são as que mais sofrem com a pobreza extrema (7,9% e 6,2%, respectivamente), ambas também acima da média geral do país (4,2%).

Recordo que fui uma voz quase isolada —inclusive dentro do meu próprio partido— a criticar a falácia de que o Bolsa Família e os demais programas assistencialistas do governo lulopetista seriam capazes de transformar a realidade.

Eu afirmava, na época do auge da popularidade de Lula, que aquilo nada tinha a ver com uma política social verdadeiramente progressista e de esquerda. Ao contrário: o programa reforçava o coronelismo tradicionalmente arraigado em várias regiões do Brasil mais profundo, além de funcionar como escandaloso instrumento eleitoral.

Transferência de renda serve apenas como algo paliativo que, de fato, melhora circunstancialmente as condições de vida das pessoas. Em um momento específico e de forma muito pontual, centenas de famílias deixaram a miséria absoluta.

Mas quando vem uma profunda crise como a que tivemos recentemente por efeito de políticas equivocadas do governo Lula e aprofundadas pela incompetência de Dilma, o resultado é desastroso, e a realidade do país acaba piorando, como se vê.

Sem alternativas concretas, essas famílias foram condenadas à pobreza inescapável, sustentada pela funcionalidade conservadora de um programa que pode até melhorar o presente para, ao fim e ao cabo, deixar tudo rigorosamente igual, comprometendo o futuro.

Os dados apresentados pelo IBGE reforçam o quanto os brasileiros foram enganados por aqueles que tomaram o Estado de assalto para perpetrar seus crimes contra o erário e os estelionatos eleitorais que lhes proporcionaram sucessivas vitórias nas urnas.

Não há mais espaço para a trapaça ou o discurso vazio e populista que tanto mal fez ao país. Depois de tanta mentira, a realidade bateu à porta e destruiu o castelo de cartas erigido por Lula e sustentado por Dilma e pelo PT por alguns anos. A sociedade brasileira não se deixará enganar novamente.

ROBERTO FREIRE, advogado e ex-ministro da Cultura (2016-2017, governo Temer), é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS

Os clichês de Natal e Ano-Novo - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 04/01

Assisti ao balé "O Quebra-Nozes", de Tchaikóvski, umas cinco vezes ao longo da infância, sempre no Teatro alla Scala, de Milão. E sempre em dezembro.

Resumindo a história, uma menina, Clara, pede, como presente de Natal, um quebra-nozes que tem a aparência de um soldado. O irmão de Clara quebra o braço do quebra-nozes, e Clara tenta consolar seu brinquedo. Enfim, ela sonha: chega um exército de ratazanas, e o quebra-nozes lidera os soldados que a protegem. Quando Clara acorda, ela encontra alguém que é exatamente o quebra-nozes do sonho.

Pelos sentimentos um pouco melados, pelo clima mágico e pela circunstância (o quebra-nozes é um presente de Natal e as nozes são um tira-gosto natalino), o "Quebra-Nozes" se tornou o espetáculo de Natal por definição mundo afora (no mês de dezembro inteiro, o balé da cidade de Nova York apresentou o "Quebra-Nozes", como a cada ano).

Para as crianças, à condição de elas saberem um pouco a história, o balé de Tchaikóvski não é chato. E os pais gostam de mostrar uma obra de arte a seus rebentos. Mas o que resta de uma obra de arte quando ela se torna um clichê?

Uma nota dos "Diários Íntimos" de Baudelaire diz: "Créer un poncif, c'ést le génie. Je dois créer un poncif" –criar um clichê, esse é o gênio. Preciso criar um clichê.

Nota: "poncif" é uma folha estêncil, "clichê" é uma folha estereotipada ou uma chapa fotográfica de negativo: instrumentos de repetição infinita do mesmo.

Vinda de Baudelaire, a frase talvez fosse irônica. Mas entendo que, mesmo ironicamente, ele tivesse a ambição de criar um clichê, como se essa fosse a marca do sucesso cultural.

Agora, não acho que um autor sozinho, mesmo do tamanho de Baudelaire, possa criar um clichê. Os clichês são o resultado de esforços coletivos e se afirmam porque prometem uma gratificação para todos.

O Natal, por exemplo, é um extraordinário clichê. A cada ano, desencadeado pela aproximação da festa religiosa, ele volta com o mesmo pacote de afetos e com a mesma aura. O Natal nos gratifica a todos nos fazendo acreditar que somos MUITO melhores do que somos –"melhores" significa aqui mais generosos, bondosos, caritativos e solidários. Os votos para o Ano-Novo, aliás, são outro clichê, preparado pelo clichê de Natal,

Nova York, nesta estação, é o clichê dos clichês de Natal. Os turistas deixam suas cidades decoradas de luzes, papais noéis e árvores de Natal para passear na cidade que tem a reputação de ser a mais decorada de todas.

Para os brasileiros, Nova York, nestes dias, é um imenso shopping enfeitado para o Natal, só que ao ar livre e onde, pelo frio, a neve e as renas fazem sentido. Como os shoppings brasileiros, Nova York inteira está imersa numa trilha sonora natalina permanente, da qual não há como escapar. Por sorte, em Nova York, as sirenes de ambulâncias, polícia e bombeiros quebram frequentemente o encanto, lembrando que a vida real ainda existe, atrás de "Jingle Bells" e "Noite Feliz".

Pela primeira vez na vida, fui ver as vitrines da Saks, loja de departamento na Quinta Avenida. A calçada é tomada por famílias de turistas numa espécie de sorriso congelado, não se sabe se é pela temperatura ou pelo êxtase do espírito de Natal –que inclui os olhos arregalados pela maravilha (do milagre, dos presentes, da bondade possível e das mercadorias nos mostruários das lojas).

Pois bem, as vitrines da Saks são péssimas ou, no mínimo, ordinárias –nada melhor do que cada turista já viu num comércio qualquer de sua cidade de origem. Neste ano, são cenas de "Branca de Neve e os Sete Anões", com algumas personagens se movimentando levemente.

"Branca de Neve" da Disney como decoração natalina é um clichê dentro de um clichê. E isso torna as vitrines da Saks ainda mais encantadoras aos olhos dos turistas e dos nova-iorquinos que desfilam sorrindo para contemplá-las, pois o que eles procuram não é nenhum prazer estético, mas apenas a confirmação do clichê, sua repetição.

Mas o que a gente ganha com o clichê? No caso do Natal, a convicção de sermos todos bons, "no fundo"? Uma sensação de estabilidade, porque o clichê volta a cada ano?

Talvez. Mas suspeito que o maior atrativo do clichê seja seu caráter quase universal: basta aderir ao clichê para fazer parte de uma coletividade. Melhor todos juntos no clichê do que cada um tendo que pensar por sua conta. Não é? (estou sendo irônico, tá?)