quarta-feira, setembro 13, 2017

O crime e a política - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 13/09

A atuação do Ministério Público deve se ater estritamente ao campo jurídico. Tudo o que passa daí cai no terreno da política, fora de sua competência. A Operação Lava Jato deve perseguir os crimes, não a política


Na semana passada, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou ao Supremo Tribunal Federal a terceira denúncia, por organização criminosa, contra lideranças de um partido político. Antes haviam sido acusados políticos do PP e do PT. Agora, foi a vez de integrantes do PMDB. Os três casos parecem confirmar que a Procuradoria-Geral da República (PGR) faz uso distorcido do material recolhido pela Operação Lava Jato, dando por certo que os partidos são organizações criminosas. Ou, pior ainda, que a atividade política pressupõe a prática criminosa.

Uma coisa é a existência de criminosos em algumas legendas, outra coisa é que a legenda seja uma organização criminosa. Uma terceira, ainda, é que a política seja necessariamente espúria. Além de ser um tratamento abusivo das provas, já que se deduzem coisas que não estão nos autos, a confusão promovida pelo Ministério Público conduz à mais perigosa das conclusões, nunca dita, mas habitualmente insinuada: a equiparação entre atividade política e atividade criminosa.

Segundo a denúncia apresentada na sexta-feira passada, os senadores Renan Calheiros (AL), Romero Jucá (RR), Edison Lobão (MA), Valdir Raupp (RO) e Jader Barbalho (PA) e os ex-senadores José Sarney e Sérgio Machado “integraram núcleo político de organização criminosa estruturada para desviar em proveito próprio e alheio recursos públicos e obter vantagens indevidas”, tendo recebido R$ 864 milhões em propina por contratos na Petrobrás. O caso refere-se a um inquérito da Operação Lava Jato, aberto em março de 2015. A PGR sustenta que a atuação dos políticos do PMDB causou prejuízos de R$ 5,5 bilhões à Petrobrás e de R$ 113 milhões à sua subsidiária Transpetro.

Certamente, cabe à Justiça averiguar as provas contra esses políticos. Se não deve haver espaço para qualquer tipo de impunidade, muito especialmente a lei deve ser cumprida quando se refere à atuação de pessoas que ocupam ou ocuparam altos postos na vida pública. No caso, os denunciados são, ou já foram, membros do Senado Federal. Tais elementos não permitem, no entanto, afirmar que o PMDB e outros partidos políticos são organizações criminosas.

É importante entender o que dizem as investigações da Lava Jato. Elas revelaram que, nas administrações petistas, foi instalado um sistema criminoso no núcleo do poder público, com a cooptação de vários políticos de diferentes legendas. Isso não é o mesmo que dizer, como equivocadamente tenta induzir a PGR, que os partidos políticos eram organizações criminosas. Por mais que haja criminosos num partido, isso não transforma o partido numa organização criminosa.

Reconhecer essa realidade não representa qualquer desculpa para os políticos que desviaram recursos ou causaram prejuízos aos cofres do Estado, das estatais e das empresas de capital misto. Havendo provas de seus crimes, devem ser exemplarmente punidos. O que não se deve fazer é confundir os papéis de cada um dentro do esquema criminoso. Ao se apresentar determinado partido como um “quadrilhão”, apresentam-se seus integrantes como quadrilheiros, o que é evidentemente equivocado. O fato inegável é que, se se abrigam na legenda alguns criminosos, a maioria dos que nela militam é honesta.

Além de causar uma injustiça à honra de políticos honestos, essa deliberada confusão reforça o distanciamento e, em muitos casos, a rejeição da população em relação à política e suas instituições, como se fossem todas corruptas. Assim, a política fica parecendo uma prática ineficaz, esbanjadora e criminosa por definição. E, nesse caso, a democracia será tão vil quanto a política. A indistinção de papéis ainda beneficia o verdadeiro chefe do sistema criminoso, que se vê premiado com a possibilidade de ser encarado apenas como um criminoso a mais, sem uma adequada avaliação de sua responsabilidade, multiplicada pelo exercício de função pública.

A atuação do Ministério Público deve se ater estritamente ao campo jurídico. Tudo o que passa daí cai no terreno da política, fora de sua competência. A Lava Jato deve perseguir os crimes, não a política. E se criminosos se aproveitam da política para exercer seu ofício asqueroso, é justamente nessas horas que é mais necessário o estrito respeito às alçadas institucionais de cada agente da lei, na preservação simultânea da ordem e da democracia.


A disputa sobre o Fundef - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 13/09

A morosidade da Justiça e o desconhecimento de finanças têm levado a equívocos


A morosidade da Justiça e o desconhecimento de finanças públicas têm levado procuradores e magistrados a tomar decisões não só equivocadas, do ponto de vista jurídico, mas, também, com graves consequências econômicas para o País. Exemplo dessa decisão foi o recente julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de ações de autoria dos Estados da Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte e Amazonas, reclamando dos critérios utilizados pela União para calcular os repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que vigorou entre 1998 e 2006.

Por 5 votos contra 2, o STF acolheu as ações e obrigou o governo federal a pagar aos Estados as diferenças por eles reclamadas, no valor de R$ 50 bilhões. Como vários municípios também levaram a mesma reivindicação ao Judiciário e os Tribunais Regionais Federais (TRFs) a têm acolhido, quando transitarem em julgado essas ações podem acarretar para o Tesouro um gasto de mais de R$ 90 bilhões. Com isso, a soma do que a União terá de arcar com todos esses processos é próxima do rombo fiscal de R$ 159 bilhões previsto pelo governo federal para 2017.

Até a decisão do STF, a Advocacia-Geral da União (AGU) tinha esperança de que a Corte negasse os recursos dos Estados, o que acabaria estimulando os TRFs a rejeitar as ações dos municípios. Mas, com a derrota do governo, a AGU agora está preocupada com uma enxurrada de ações impetradas pelos municípios. “Para nós, o tema já está pacificado. A União desviou bilhões da educação”, afirma o presidente da Confederação Nacional de Municípios, Paulo Ziulkoski, que há anos estimula prefeitos a questionarem judicialmente os critérios de repasse do Fundef. Embora os advogados da AGU tenham alegado que esses processos podem comprometer as finanças públicas, prevaleceram no julgamento os argumentos do ministro Luís Roberto Barroso, para quem a crise fiscal dos Estados e municípios é tão grave quanto a da União. “Estamos repartindo escassez. Por temer o horror econômico, não podemos promover o horror jurídico”, disse ele.

Na realidade, a discussão não teria ganhado o vulto que tomou se o Ministério Público (MP) e a Justiça não tivessem ido além de suas competências, reinterpretando a lei que criou o Fundef e deixando de levar em conta os objetivos desse programa, que foi criado para diminuir as desigualdades regionais na área do ensino. Por meio dessa lei, a União se compromete a repassar recursos para os Estados carentes, equiparando o tratamento dado a todos os alunos do País.

A lei determina à União que divida a receita fiscal de cada Estado pelo número de matrículas do ensino fundamental do ano anterior. O valor obtido é o mínimo a ser gasto por aluno e, se o Estado não tiver capacidade financeira, a União fará o complemento. Mas, com apoio do Ministério Público, os Estados reinterpretaram a lei. Segundo eles, a União deve considerar o valor da receita fiscal de todos os Estados e dividi-lo pelo número de matrículas. O resultado seria o mínimo a ser gasto por aluno em todo o País e o Estado que não tivesse recursos para bancá-lo seria auxiliado pelo governo federal. Esse entendimento – que foi endossado pelo STF – aumenta significativamente o valor mínimo a ser gasto por aluno nos Estados com baixa receita fiscal. Esse problema foi agravado pela decisão do STF que, invocando a “uniformização da qualidade do ensino”, impôs suplementações iguais para os repasses, ignorando que as necessidades do Estado de São Paulo são bastante distintas das dos Estados menos desenvolvidos.

Não cabia ao MP endossar a mudança de critérios de repasse estabelecidos pela lei do Fundef nem ao STF decidir pela “melhor fórmula”, impondo um mesmo tratamento a realidades diferentes. Tais decisões mudaram o espírito e a letra da lei e criaram um vultoso esqueleto fiscal, agravando as dificuldades que o País tem de superar, para sair da mais grave crise de sua história.

Certas afirmações econômicas são como Jason e Freddy Krueger - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 13/09

Há algo comum entre Jason Vorhees, Freddy Krueger, Michael Myers e certas afirmações econômicas: não importa quantas vezes sejam mortos, seguem aparecendo, sem jamais se dar ao trabalho de explicar como renasceram.

Uma dessas ideias, divulgada com mais frequência do que recomendável, diz respeito à suposta alternativa portuguesa à austeridade fiscal e seu imenso sucesso, em geral acompanhada da sugestão de que o Brasil persiga caminho semelhante, muito mais fácil do que a penosa busca pela redução de gastos.

Para deixar claro desde o início, trata-se de uma falsidade e, o que é pior, uma falsidade facilmente demonstrável com não mais do que alguns minutos dedicados à nobre (e tão vilipendiada) tarefa de procurar os dados no sítio da OCDE (e devidamente cruzados com números provenientes do FMI, para termos mais confiança acerca da sua consistência).

Pois bem, depois desse imenso esforço de pesquisa, descobrimos que em seu pior momento (2010) o deficit português superava 11% do PIB; já no ano passado, registrou valor equivalente a 2% do PIB, o menor da série histórica, iniciada em 1995.

Na verdade, exceção feita a 2014, o deficit caiu de forma contínua de 2010 em diante, revelando que —a despeito da troca de governo em 2015— não houve mudança de rumo na política fiscal, muito pelo contrário.

Sim, há quem possa contra-argumentar que a melhora das contas públicas teria sido resultado da própria recuperação da economia e que, portanto, a redução do deficit não teria se originado das decisões de política, isto é, teria ocorrido mesmo sem medidas de austeridade.

Noto, porém, que o desemprego em Portugal hoje, pouco abaixo de 10% da força de trabalho, não difere muito do registrado em 2010, embora tenha caído cerca de sete pontos percentuais desde meados de 2013 (quando o deficit já havia caído a menos da metade do observado em 2010).

Posto de outra forma, é possível (e até provável) que a retomada da economia tenha contribuído para reduzir o buraco nas contas públicas, mas a magnitude da melhora fiscal é muito maior do que a que resultaria apenas do crescimento mais rápido.

A excitação acerca da experiência portuguesa provém da mudança política acima mencionada. Naquele momento, muito embora a centro-direita tenha obtido a maior votação, não conseguiu formar o governo, que acabou nas mãos da coalizão de esquerda liderada pelo Partido Socialista. Apesar disso, como se vê, acabou por manter a austeridade.

Muito menos atenção se dá, por exemplo, à vizinha Espanha, que se recuperou de forma semelhante (lá o desemprego caiu os mesmos sete pontos percentuais entre 2013 e 2017), enquanto o deficit fiscal foi reduzido de 11% do PIB em 2009 para 4,5% do PIB no ano passado.

A Espanha manteve a austeridade e retomou o crescimento, mas, por se tratar de continuidade (ainda que minoritária) da administração de centro-direita que governa o país desde a eclosão da crise, sua experiência tem sido convenientemente ignorada pelos adversários do ajuste fiscal.

Isso dito, não tenho a menor ilusão de ter matado mais um zumbi. Como no debate econômico brasileiro o que menos importa é a evidência empírica (e sim, a "narrativa"), não tenho a menor dúvida de que ainda ouviremos falar da "alternativa portuguesa".

A desonestidade é imortal...

Crime e cassino na eleição de 2018 - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 13/09

ADEPTOS DO governismo, adesistas por interesses diversos, animaram-se com as notícias econômicas e político-judiciais de setembro. Acreditam que o programa liberal tem mais chance de sobreviver até a eleição de 2018 e depois.

Os motivos da animação são três.

Um, o suposto enfraquecimento da Procuradoria-Geral da República e até da Lava Jato, dada a lambança no caso Joesley, o que reduziria a probabilidade de queda de Michel Temer ou de tumulto político crítico para a economia. No limite do otimismo, essa estabilidade podre tornaria possível até a aprovação de alguma reforma da Previdência.

Dois, a derrocada de Lula tornaria improvável a vitória da esquerda em 2018.

Três, mesmo a recuperação nanoscópica da economia, com perspectiva de um crescimento de 2% e algo mais em 2018, baixaria o nível de tensão socioeconômica, o que diminuiria o apelo de candidaturas "extremistas", "populistas" etc.

Hum. Se fosse preciso jogar na Mega-Sena política nesta quarta-feira (13), não seria desarrazoado dizer que a chance de queda de Michel Temer baixou bem.

Mas abriu-se um terceiro inquérito contra Temer; a turumbamba política, a volatilidade, continua. Além do mais, até agora o custo de evitar a decapitação do presidente tira ainda mais votos das reformas. A política ainda está no cassino dos gângsteres.

Sim, Lula está perto de sair de campo, expulso ou arrebentado. Sim, a economia tende a despiorar até 2018.

Ainda assim, cabem pelo menos duas perguntas a respeito do efeito dessas mudanças:

1) o que significa despiora?;

2) em quais termos vai se dar o debate da eleição (que é sempre político, que não depende apenas de economia)?

A diminuição do medo de perder o emprego ou de não reencontrar algum pode ser relevante (afinal, 87% da população não está desempregada).

A inflação baixa, a queda dos juros enfim chegando ao crediário e um ambiente menos desanimador podem mudar os ares de 2018 (embora as melhoras na inflação e nos juros tendam a zero ao longo do ano que vem).

Neste 2017, o PIB per capita ainda vai cair, embora a renda média dos salários comece a subir (bem menos para os mais pobres, a maioria).

Mas como o eleitor vai processar tais despioras? Não é impossível que empresas e consumidores reajam de modo extraordinário a juros, dívidas e inflação menores. Isto é, que consumam e invistam mais que o previsto. Quem sabe o crescimento vá além de 2%, 3%.

Mas a ociosidade da indústria está ainda no nível do fundo da recessão em 2016; o investimento, que poderia fazer saltar o PIB, deve ficar na retranca. O governo ainda cortará seu investimento. Os serviços públicos ainda vão minguar. Os empregos são piores.

Pouco se pensa sobre qual será a memória que ficará destes quatro anos de catástrofe social, econômica; de mentiras, descrédito, estelionatos e crimes piores na política. Pouco se pensa sobre a má fama que as reformas ganharam com Temer ou sobre o efeito do custo socialmente desigual do ajuste econômico.

O debate político de 2018 não está dado. Sim, as pesquisas parecem indicar que o eleitor quer "um novo". Até que alguém, talvez, invente um programa e uma conversa novos, de fato, que embaralhem os termos ora tidos como previsíveis da campanha eleitoral.

Paraíso perdido - PAULO DELGADO

ESTADÃO - 13/09

Numa terra onde a Justiça tem segredos e despacha em botequim, será árdua a regeneração


Um secreto acordo, em secreta comunhão, prospera. A facilidade de transgredir e infringir leis, espécie de osmose em organismo combalido, é a prévia manifestação do delito que marca o período. Curvado à adulação e ao cifrão, tudo vem como uma escritura que atrai quem já tem em si o germe desse temperamento. A ambição é uma intuição, o interesse estrutura a intenção. O anjo cobiçoso usufrui do paraíso a qualquer preço. Beneficiários de dádivas excessivas não veem víboras na lisonja, convencidos de que o carisma que os protege é o de um rei.

O nome da dinastia é apelido. Nada freia sua mania de honorários e autopercepção das coisas. Oferta de intimidade a quem não faz questão de identidade formou público adequado à sua má percepção da realidade. Não foram obrigações do poder ou sorteios impessoais que azedaram. Foi um estilo de oferta inconfundível que abriu fendas na conciliação nacional e cujas provas do encontro são o ávido sigilo e o insulto que ameaça toda testemunha. Somados à soberba com que o rei largou no cadafalso seus amigos.

O estranho familiar – o beneficiário da aura e da névoa do período – é ele a prova, a saída do enigma. Mas, enquanto a conduta pessoal do julgador não contiver vigor igual à honra e não for a mesma em todas as instâncias nem à revelia da balança em que pesa seus amigos, não haverá para acusado medo de punição nem glória em reconhecer a transgressão. E, não havendo medo do erro ou orgulho de fazer o certo, não haverá arrependimento.

O sagrado negativo do período é o desfrute do afeto do poder, sem exigir vigor ao seu comportamento. O privilégio vê por fora o que a pessoa não precisa ter por dentro alimentando o sucesso indevido.

Que pare de escorrer a náusea de maus juízes, dissimulados procuradores, podres políticos, poderosos acusados. Abominavelmente, venci não é boa sina para ninguém.

Sem nenhum imporém, o caos juntou tentadoras perversões. A desordem ordenou e a ganância se uniu. O maligno concedeu familiaridade ao presunçoso, garantiu preferência ao poder estupendo do dinheiro. Tão alto erguido e logo cercado de submissão, impôs quitar sua dívida com favores, desprezando a gratidão gratuita do convicto. Não se deu conta de que para quem é doente de dinheiro, o que parece um inferno é quase um céu, até deixar de sê-lo.

E foi quando deslumbrados trapaceiros, do lado da lei e do delito, começaram a fraudar a si próprios que o procedimento do pecado se impôs e envolvidos se enrolaram.

Com a moral recurvada do perdedor nato, a Pátria assiste a seus filhos poderosos desovarem répteis sobre a honra da Nação. O puro unido ao impuro em forçosa convivência, sem que alguém dê um basta à transgressão dos influentes. Os prediletos de toga se fazem de ingênuos e continuam, de degrau em degrau, com seus pensamentos e palpites, a descer, obedientes, voluntários, à jaula de lobos vorazes, persuasivos, cravejados de compromissos.

Tudo escapa a Deus, que tudo vê, e o mal da terra se universaliza na última dinastia popular. Sem estorvo, um rei do improviso, que tudo pode, se uniu a uma regicida improvisada, que nada deve, para gozar da doçura de impor sua maneira obstinada de agradar. Sem refrear seus impulsos, deram precedência à ambição e aos seus trocos. A linguagem e a conduta pública se arruinaram.

Burlando a boa-fé do mundo culto, o pior foi oferecido como certo. Desdenhando da capacidade humana de vencer fez a grana pública parecer o fim da boa vida. Testando a glória de esmagar o pobre com o Leviatã, feroz manipulador, anunciou que renda doada era classe conquistada. E o que parecia calor de cobertor tornou-se febre. O cuspidor de fogo fez filhotes. A fanfarrice tomou conta da Nação jactando de quem sabe o mal que é direito servido como esmola.

Paixão pura sem razão, o anjo do mal se agarrou ao nosso tempo e pregou na política a queda para o abismo; fez o mal e a mentira de uma vez por todas. E rastejou como serpente para dentro do palácio dos acusadores iluminando o obediente procurador de dupla face. Escancarou na casa da justiça o compadrio agropastoril do feio traidor, do mal acusador e do fraco relator, zombeteiros frios como a noite unânime.

Exposto o dogma do período, de que pela mão de incautos governantes é difícil de alguém sair da escuridão para a celebridade, o fluxo da osmose inundou todas as células. Tirou do Parlamento o senso do dever, impôs às duas casas, do promotor e do juiz, um porte cambaleante de quem não anda bem. Tal pandemônio os levou a dar-se ao espetáculo, como se fossem manequins.

Vendo tudo falso, postiço, o pai da fraude mandou Baco lavar, e cuspir aos poucos, a hipocrisia. Mas nenhum tempero de tal culminação afeta o padrão de decisão imperfeita que brota de poder encurralado, onde seus membros não dialogam temendo conhecer do outro a confidência.

Enquanto isso, esquecendo-se de levar em conta a Carta Magna, seguem rendidos à mania de dar entrevista ambiental, internacional, policial, racial, sexual. Só pensam em serem bons, não conseguem ser legais. Esculhambados por ébrios sedutores, convocam com cuidado o bon vivant. Algemas de pelica são usadas, pantufas alisam pisos de casas visitadas. Tudo isso para proteger o dique, represar a osmose e manter seca a mão suja que autorizou a inseminação artificial de tudo o que virou crime.

As trombetas avisam: não veja nosso povo alienado, é o poder que se anestesiou de vez e mudou a natureza da admiração que tem por seu papel.

Ao perceber que é filmado, um juiz, procurador ou um político não é mais eficaz e verdadeiro. Seu gesto é uma espécie de mentira demonstrativa, como alguém que lava a louça sem olhar o prato. O juiz julgando na TV é um objeto desarrazoado. Esvanecido, vive o langor de ser visto pelo tempo concedido à consistência da manteiga.

Será árdua a regeneração numa terra onde a Justiça tem segredos e despacha em botequim. E teremos perdido o paraíso onde essa gente consegue ser elite.

No fio da navalha - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 13/09

A resposta ao porquê de Janot ter pedido a prisão de Joesley e Miller é dada pela cronologia


O ruído em torno da sessão de hoje do Supremo Tribunal Federal (STF) prova a crescente instrumentalização de tudo relacionado à Operação Lava Jato pela luta pelo poder, tanto das corporações que se apropriaram do Estado quanto das facções e quadrilhas a elas associadas.

Nem a anulação de fatos que deponham contra Temer nem a anulação de fatos que deponham contra Marcello Miller, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a delação dos Batista. Uma coisa não implica necessariamente a outra. Nem, muito menos, a continuação ou não das delações premiadas. Estão em causa só as que porventura tenham sido comprovadamente “armadas”.

Sobre as maquinações de Joesley com Marcello Miller não há dúvida nenhuma. É o próprio Rodrigo Janot quem as denuncia agora. A questão ainda pendente é estabelecer se o procurador-geral mandou prendê-los porque descobriu a conspiração que desconhecia ou porque descobriu que tinham descoberto a conspiração que conhecia, agora com uma prova irremovível do processo.

A resposta objetiva a essa pergunta é dada pela cronologia. O relacionamento entre os Batista e a PGR começa em setembro de 2016 com a Operação Greenfield, chefiada por Anselmo Lopes, que investigava desvios dos fundos de pensão e bancos públicos, modalidade na qual são os campeões dos campeões. De Anselmo os contatos sobem para Eduardo Pelella, chefe de gabinete de Janot, e evoluem para a negociação de uma delação mais ampla. Marcello Miller é o cabeça do GTLV (Grupo de Trabalho da Lava Jato) da PGR desde maio de 2015. Desde pelo menos fevereiro de 2017, segundo e-mails coletados como prova, advogados da Trench, Rossi e Watanabe discutiam com Joesley, em nome de Miller, o pagamento pelo “sucesso” da negociação de sua delação premiada com a PGR. A 19, 20 e 21 de fevereiro há três reuniões, a última com participação oficial da PGR, para discutir a delação premiada da JBS. Só dois dias depois, em 23 de fevereiro, é que Miller se lembra de registrar seu pedido de exoneração. Janot, segundo a versão oficial, não sabia nem se interessou em saber a razão dessa decisão de seu auxiliar. Em 2 e em 6 de março há registro de duas outras reuniões, entre eles na sede da PGR. No dia seguinte, 7 de março, Joesley grava a conversa com Temer no Jaburu que, ocasionalmente, preenche os dois únicos requisitos que podem levar um presidente em exercício ao impeachment: obstrução de Justiça e crime cometido durante o mandato em curso. Miller só é oficialmente desligado do Ministério Público Federal dois meses depois, em 5 de maio. No dia seguinte, já dá expediente no novo emprego.

A 17 de maio a TV Globo estronda o “furo” da gravação no Jaburu. Para o dia seguinte, 18 de maio, estava marcada a primeira votação da reforma da Previdência, que extinguiria algumas das prerrogativas “especiais” para as aposentadorias públicas que explicam porque apenas 980 mil delas custam tanto quanto as 35 milhões de aposentadorias pagas ao resto dos brasileiros somados. Por todas as contagens publicadas, a reforma seria aprovada por mais de 311 votos. No mesmo 18 de maio o País ficou sabendo que os irmãos Batista tinham montado operação de US$ 1 bilhão no mercado de câmbio e outra de venda e recompra maciça das ações de sua própria companhia na véspera da divulgação do escândalo e “ainda longe” do acordo de leniência.

Em 20 de maio, dois dias depois do escândalo, Vera Magalhães publica neste jornal reportagem com todos os pormenores agora confessados de viva voz por Joesley e Saud em sua “conversa de bêbados”, da história da relação entre Marcello Miller, a PGR e a JBS. Mas em 21 de maio Rodrigo Janot afirma que, embora tendo-se bandeado para o inimigo, Miller “não tinha atuado nessa negociação”, e ponto. Em 30 de maio, com endosso de Luiz Edson Fachin, Janot fecha o acordo com os Batista que, agora, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga. Um mês depois de intensa polêmica sobre o perdão total aos dois réus pelo menos R$ 400 milhões mais ricos, o plenário do STF confirma a indulgência plenária em 28 de junho. Somente em 5 de julho, com a persistência da celeuma, Miller desliga-se de Trench, Rossi e Watanabe.

Acontece que todo mundo foi gravado por Joesley Batista, inclusive o próprio Joesley Batista, e tanto ele quanto seu “braço direito”, Ricardo Saud, são funcionalmente “pre-milennials”. “Eu tava sem óculos, puxei pra cá, gravou (...) sei lá, liga pro Denilson, ele é que entende (...).” Daí para a frente a gravação é ácido puro e a trama parece ser do destino. Por engano, o áudio corrosivo é entregue à Polícia Federal como prova da defesa em 31 de agosto. A 5 de setembro, faltando 12 dias para ser jubilado e na véspera do feriadão da Independência, o procurador-geral, em súbita “crise de consciência”, vai à TV comunicar seu “drama íntimo” à Nação, reconhece que Marcello Miller é Marcello Miller, pede a prisão dele, de Joesley e de Saud e, em seu “medo de ter errado”, sai anunciando, em ritmo torrencial, a condenação de todo mundo que passou seu mandato inteiro tratando de não incomodar.

Quanto desse enredo é amor à justiça, quanto é dinheiro no bolso, quanto é a luta pelo poder de salvar o Brasil ou de continuar sendo salvo por ele; em que doses esses componentes todos se misturam, personagem por personagem, são questões que podem ser tão fácil e objetivamente medidas quanto roubalheiras e “contrapartidas”. A impossibilidade de diferenciar métodos e objetivos de “mocinhos” e “bandidos” é que é a questão realmente espinhosa.

A sequência da “virada” do caso JBS abrir com a prisão apenas “temporária” de Joesley e Saud (máximo de dez dias contra a “preventiva” de extrair confissões que pode ser estendida por tempo indeterminado) e com a negativa de Luiz Edson Fachin de prender Marcello Miller, o potencial “delator bomba” plantado no coração do Poder Judiciário, está aí para confirmar. É da fundamental questão da prevalência da prova e do fato sobre o exercício da força (que hoje só o Judiciário detém) que se trata. Do restabelecimento do limite ou da derrocada final de uma fronteira clara entre a civilização e a barbárie, portanto.