domingo, agosto 06, 2017

A volta da primavera burra - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

Nunca se falou tanto em ser de esquerda ou de de direita – mas pensar assim, em 2017, é um anacronismo

Olha o gigante aí outra vez, gente! Todo mundo sabe que ele passa a maior parte do tempo adormecido, mas de vez em quando acorda. Desta vez foi para a campanha dos 342 – ou seja, o engajamento pelo número de votos necessário para aprovar a denúncia contra Michel Temer na Câmara dos Deputados. Enfim, o gigante deu aquela espreguiçada e balbuciou “Fora, Temer”.

O Brasil vive um de seus momentos de maior politização – ou pelo menos acha que vive. Em décadas recentes, nunca se falou tanto em ser de esquerda e ser de direita. Evidentemente, esse tipo de classificação ideológica diz muito pouco – ou, eventualmente, nada – sobre posicionamentos políticos, ainda quase 30 anos após a queda do Muro de Berlim. Em outras palavras: o sujeito que desperta para a política em 2017 entusiasmado para anunciar-se de esquerda (ou de direita) já é, acima de tudo, um anacrônico convicto.
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A imensa maioria dos que se jogaram na campanha “342 agora” traz no fundo d’alma um anseio revolucionário progressista, um sonho de ajudar a esquerda (sic) a derrubar um regime imposto pela elite branca, velha, recatada etc. Melhor que isso, só se a causa estivesse conectada à realidade.

A tal denúncia redentora contra o presidente foi feita pelo procurador-­geral da República, Rodrigo Janot – um personagem do qual você ainda vai ouvir falar muito. Janot é herdeiro do sucesso da Operação Lava Jato, um arrastão virtuoso contra a corrupção montada no coração do Estado brasileiro pelo PT. O detalhe é que esse mesmo procurador-geral protegeu quanto pôde os maiores caciques desse mesmo PT contra essa mesma Lava Jato – conseguindo, por exemplo, a façanha de evitar que a investigação de Dilma Rousseff fosse autorizada no exercício do mandato presidencial, quando uma torrente de evidências do petrolão apontava sua responsabilidade nos movimentos da quadrilha.

Já quanto a Michel Temer, Janot produziu uma denúncia em tempo recorde, a partir de uma delação obscura do tubarão das carnes anabolizado pelo BNDES de Lula – aquele que nomeou o procurador, sendo devidamente refrescado por ele enquanto pôde.

Na tese bombástica de Joesley Batista, abraçada instantaneamente por Janot sem a devida participação da Polícia Federal ou mesmo da força-tarefa da Lava Jato, Temer é o chefão de toda a quadrilha – “a mais perigosa do país”, nas palavras dramáticas do açougueiro encampadas por Janot. Naturalmente o Brasil que ainda tem algum juízo não caiu nessa – porque acreditar que aquele vice obscuro e decorativo de Dilma mandava e desmandava em Lula, Dirceu e companhia era um pouco demais. No entanto, essa literatura malpassada e gordurosa foi homologada, também em tempo recorde, pelo companheiro Edson Fachin – ministro do STF que subia em palanques eleitorais de Dilma Rousseff, a presidente afastada.

Pois bem: nessa denúncia que despertou o gigante para o brado cívico dos 342 votos contra o mordomo do mal, está escrito que Temer patrocinou um “cala a boca” a Eduardo Cunha, o Darth Vader do PMDB. O detalhe é que não há sequer vestígios demonstrando o tal patrocínio, apenas uma interpretação livre e imaginativa do companheiro Janot. Você ainda vai ouvir falar muito dele.

A denúncia fatídica também traz a alegação de que Temer levou grana para mandar o Cade favorecer a JBS, do companheiro Joesley. Com outro pequeno detalhe tríplice: o suborno ao intermediário de Temer resultaria mais caro que a vantagem a ser obtida (!); a “operação controlada” misteriosamente não seguiu o dinheiro até Temer; e o Cade (oh, não!) recusou a vantagem pretendida pela JBS...

Essa é a denúncia histórica que mobilizou o gigante pela nova campanha da moralidade no país. Como pano de fundo, temos o governo intrigante do mordomo, que enxotou todos os ladrões da Petrobras bancando na presidência da empresa um executivo que não transige com falcatrua. Medida estranha para um chefão supremo de quadrilha. Enquanto isso, o ex-presidente da empresa que obedecia ao PT é preso pela Lava Jato.

Vá montando o quebra-cabeça aí, querido gigante. Aliás, seu último grande despertar foi em junho de 2013, na chamada Primavera Burra – que não fez nem cócegas no governo que estava arrancando as suas calças. Quer saber? Durma bem, gigante!


Artigo de imitação - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


Em matéria de democracia, como em tantas outras coisas que separam as nações desenvolvidas das subdesenvolvidas, o Brasil ficou só na foto



Um rei africano do século XIX, na atual Nigéria: roupas ocidentais que remetem aos trajes do Império Britânico (//Reprodução)

A DEMOCRACIA NO BRASIL lembra uma dessas fotos antigas de reis africanos que de vez em quando ilustram livros de história. Muitos deles, ouvindo oficiais do Império Britânico ou outros figurões europeus da época colonial que lhes davam lições de civilização, progresso e bons modos, parecem encantados. Acreditavam, como lhes era dito, que a Europa e as coisas europeias representavam o máximo a ser sonhado por um ser humano — e em geral chegavam à conclusão de que teriam muito a ganhar transformando a si próprios em soberanos civilizados o mais depressa possível. O meio prático de fazer isso, em sua maneira de ver as coisas, era imitar os trajes, jeitos e enfeites dos peixes graúdos que lhes falavam das maravilhas da rainha Vitória ou do imperador Napoleão III. Que atalho melhor para atingir esse estágio superior na evolução das sociedades humanas? O resultado aparece nas fotografias. As mais clássicas mostram uns negros magros, ou gordíssimos, com uma cartola de segunda mão na cabeça, ou um desses capacetes de caçador inglês, calças rasgadas aqui e ali, pés descalços — ou calçados com uma bota só, velha e sem graxa. Uns aparecem com casacas usadas, uma fileira de medalhas no peito e três ou quatro relógios saindo dos bolsos. Outros fazem questão de exibir-se para a câmera segurando um guarda-chuva aberto. É triste. Imaginavam-se nobres, modernos e iguais aos seus pares europeus. Eram apenas uns pobres coitados.

O problema é que nada tinha mudado na vida real. Junto com as novas roupas e os acessórios, as fotos mostram que os retratados conservavam, como sempre, seus colares com ossos, pulseiras de metal e argolas na orelha ou no nariz — e a história iria provar com fatos, em seguida, quanto foi inútil todo esse esforço de imitação. Das nações mais evoluídas, suas majestades copiavam os trajes. Não aprenderam as virtudes. Continuaram desgraçando a si e a seu país enquanto eram roubados até o último papagaio pelos que vieram ensiná-los a ter valores cristãos, avançados e democráticos.

Por outras vias, acontece no Brasil mais ou menos a mesma coisa. Na fotografia aparece uma democracia de Primeiro Mundo — mas a realidade do dia a dia mostra pouco mais que uma cópia barata e malsucedida do artigo legítimo. Temos uma Constituição, eleições a cada dois anos e uma Câmara de Deputados. Temos, imaginem só, um Senado e até um presidente do Senado. Temos um Supremo Tribunal Federal e até uma presidenta do Supremo Tribunal Federal; seus juízes se chamam ministros, usam togas pretas como os reis africanos usavam cartolas, e escrevem (às vezes até uma frase inteira) em latim. Temos partidos políticos. Temos procuradores gerais, parciais, federais, estaduais, municipais, especializados em acidentes do trabalho, patrimônio histórico, meio ambiente, infância, urbanismo e praticamente todas as demais áreas da atividade humana. Temos uma Justiça Eleitoral. Temos centenas de direitos legais, inclusive ao lazer, à moradia e ao amparo, se formos desamparados. Não falta nada — a não ser a democracia.


Pode passar pela cabeça de alguém que exista democracia num país com 60 000 homicídios por ano?


Em matéria de democracia, como em tantas outras coisas que separam as nações desenvolvidas das subdesenvolvidas, o Brasil ficou só na foto. Há uma Constituição, é claro, pois todo regime democrático precisa de uma — mas ela tem 250 artigos, que se metem a regular tudo, até a licença-paternidade, sem entregar realmente nada, e já foi modificada mais de 100 vezes em menos de trinta anos. As eleições são subordinadas a todo tipo de patifaria, a começar pelo voto obrigatório, seguido do horário eleitoral compulsório no rádio e na televisão e de deformações propositais que entopem a Câmara dos Deputados com políticos das regiões que têm menor número de eleitores. Os resultados são um monumento à demagogia, à corrupção e à estupidez. Dos quatro presidentes eleitos após a volta das eleições diretas, em 1989, dois foram depostos por impeachment e um está condenado a nove anos e meio de cadeia. Dos 513 deputados e 81 senadores, cerca de 40% respondem a algum tipo de procedimento penal, a maioria por corrupção — fora das penitenciárias, é a maior concentração de criminosos em potencial por metro quadrado que existe no território nacional. Na última campanha presidencial, a candidata Dilma Rousseff gastou 300 milhões de reais, boa parte fornecidos pelos maiores criminosos confessos do Brasil. O eleitorado, em grande parcela, é ignorante, desinformado e desinteressado pelos seus direitos. Temos uma aberração, a Justiça Eleitoral, que existe para dar ao país eleições exemplares — mas permite a produção dos políticos mais ladrões do mundo.

O Supremo Tribunal Federal, que na teoria tem a função de servir como o nível máximo da Justiça brasileira, é uma contrafação da corte suprema dos países desenvolvidos. Seu último feito, possivelmente sem similar em nenhuma outra nação, foi aprovar o perdão perpétuo para o autor confesso de mais de 200 crimes, dono de um patrimônio de bilhões de dólares, atendendo a um pedido até hoje inexplicável do procurador-geral da República — que, também na teoria, é encarregado justamente de pedir a punição dos criminosos. Seus juízes decidem tudo, do destino dos presidentes ao furto de codornas, e escrevem sentenças em português incompreensível. Temos 35 partidos políticos, que se reproduzem como ratos; alguns não têm um único deputado ou senador no Congresso. Essa monstruosidade não tem nada a ver com liberdade política. Quase todos os partidos brasileiros são criados apenas para meter a mão nas verbas de um “fundo partidário”, que já anda perto de 1 bilhão de reais por ano, tirados dos impostos pagos pelos contribuintes e distribuídos aos políticos. Recebem uma cota de tempo no horário eleitoral obrigatório, que põem à venda nos anos em que há eleição; também cobram para aceitar a inscrição de candidatos. Até outro dia, com o apoio em massa dos partidos de “esquerda”, o Brasil era talvez o único país onde se defendia um imposto, o imposto sindical, como se fosse um direito do cidadão — da mesma maneira como se transforma o voto, que é um direito, em obrigação legal.

Os direitos dos cidadãos, na verdade, talvez representem a área mais notável das semelhanças entre a democracia brasileira e os reis africanos que aparecem nas fotos-símbolo do colonialismo.

Nunca houve tantos direitos escritos nas leis; nunca o poder público foi tão incompetente para mantê-los. Não consegue, para desgraça geral, garantir nem o mais importante de todos eles — o direito à vida. Com 60 000 assassinatos por ano, o Brasil é hoje um dos países onde a vida humana tem o menor valor. Há uma recusa sistemática em combater o crime por parte de nove entre dez políticos com algum peso; o maior pavor deles é ser considerados, por causa disso, como gente da “direita”. Acham melhor, como as classes intelectuais, os comunicadores e os bispos, falar mal da polícia. Pode passar pela cabeça de alguém que exista democracia num país que tem 60 000 homicídios por ano?

A democracia, até agora, é uma experiência que não deu certo por aqui.


O elo perdido - RODRIGO CONSTANTINO

REVISTA ISTO É

Alguns sonsos condenam Maduro, mas é para poupar o verdadeiro culpado. Reclamam da febre mas omitem o nome do vírus. A praga é o socialismo

As cenas chocantes ganharam o mundo. Dois opositores do regime de Nicolás Maduro foram sequestrados pelas autoridades de madrugada. Milhares enfrentam os milicianos do governo nas ruas, e centenas de jovens já morreram. A “constituinte” foi uma clara tentativa de golpe – mais uma. As entidades internacionais “moderadas” não podem mais esconder: a Venezuela vive sob uma ditadura.

Não obstante, ainda temos partidos de extrema esquerda no Brasil, como o PT e o PSOL, defendendo oficialmente tal tirania opressora. É o que desejam para nosso País: o mesmo tipo de caos, de miséria e terror, para que usem a força estatal para sua “revolução” contra a “burguesia”, o “capital”, o “imperialismo”. São criminosos disfarçados de políticos, apenas isso. Eis, porém, o mais revoltante: nossa “imprensa golpista”, pela ótica desses mesmos esquerdistas, até condena Maduro, mas é mais raro encontrar o termo socialismo nos editoriais e reportagens do que achar um petista honesto. É como se a culpa da desgraça toda fosse apenas de Maduro, o truculento. Foi a mesma tática que usaram para explicar a nossa tragédia: culpa de Dilma. E assim Lula e o PT eram absolvidos, pois 2018 vem aí.

Não há efeito sem causa. E poucos querem encontrar a verdadeira causa dos problemas venezuelanos. Mas nós liberais apontamos para ela lá atrás, quando Hugo Chávez ainda estava no poder. E ela se chama socialismo. Foram os métodos adotados que levaram a esse destino sombrio, exatamente como antecipamos que aconteceria. Lula, PT e PSOL apoiaram o regime desde o começo, e os petistas tiveram participação direta no desfecho atual. Lula e Dilma gravaram vídeos de apoio a Chávez e Maduro, e articularam no Foro de SP as estratégias para que o socialismo avançasse. Tentaram impor o mesmo modelo ao Brasil, mas foram impedidos, depois de enorme estrago causado.

Não há nada de espantoso, portanto, nisso tudo. O PT e o PSOL nunca foram democratas, já defendiam a ditadura cubana há décadas. A diferença é que a Venezuela mergulhou na tirania recentemente, na era da internet, sem o “charme” dos barbudos revolucionários, e sem embargo americano para levar a culpa pela desgraça.

Quem sente decepção ou surpresa diante dos rumos venezuelanos e do apoio ou silêncio que recebe da esquerda radical não entendeu muita coisa de política ainda. Os dias eram e são assim: essa turma sempre apoiou ditaduras. Não deturparam o socialismo: isso é o socialismo! Foi assim em todos os seus diversos experimentos.

Agora alguns sonsos condenam Maduro, mas é para poupar o verdadeiro culpado, o elo perdido, que não aparece em uma só análise do caos venezuelano. Reclamam da febre, mas omitem o nome do vírus, pois ainda o defendem. A praga é o socialismo.


Vai dar praia em 2018 - MURILLO DE ARAGÃO

REVISTA ISTO É

O novíssimo ainda não se expressou. Nossa intelligentsia, afinal de contas, não é tão inteligente assim
A cada minuto que passa, as eleições de 2018 estão mais presentes nos cálculos de nossos políticos. O mesmo deve se dar no âmbito da Operação Lava Jato, cujos propósitos extrajudiciais são inequívocos. Entre os mais esclarecidos, poucos têm dúvidas de que os objetivos da força-tarefa vão muito além da punição de criminosos.

Atos e declarações visam a limpar práticas inaceitáveis do mundo político. Assim, caminhamos para um grande conflito em 2018, cujos limites vão além da disputa eleitoral. O que vai estar em jogo em 2018? Basicamente, duas concepções de política. A política de sempre, contaminada por relações espúrias entre governo, sindicatos, burocracia e empresariado; e a política voltada para a cidadania, sem corrupção e clientelismo, com resultados positivos na administração pública e eficiência nos gastos.

Do lado conservador estão quase todos os partidos, independentemente da coloração ideológica, pois, no raso, mesmo com discursos diferentes, quase todos foram mais do que iguais na prática de malfeitos. Até mesmo os partidos que posam de radicais de direita e de esquerda não passam de representantes do que há de mais arcaico no pensamento humano. Assim, a rigor, Bolsonaro e o PSOL transitam no mesmo paradoxo.

O novíssimo ainda não se expressou. Nossa intelligentsia, afinal de contas, não é tão inteligente assim. Adora uma “boca” estatal e verbas públicas. Não consegue produzir o novo. Ainda aguardamos um Dom Sebastião que possa encarnar as esperanças do novo. Em algum momento do futuro próximo, podemos assistir a multidões indo à casa do juiz Sergio Moro para implorar que ele se candidate a presidente.

Para o bem e para o mal, Moro é o limite do nosso novo. O que, cá entre nós, comprova que estamos desidratados em matéria de criatividade. Como Moro candidato é uma incerteza — ele enfrentaria muitas dificuldades pelas barreiras que os partidos tradicionais impõem às novas práticas —, o novo ainda não se apresentou.

Em que pese parte da mídia que deseja criar uma primavera árabe tupiniquim, nada acontece. Isso me lembra a situação vivida por Carlos Lacerda, narrada no magistral livro de Rodrigo Lacerda (República das Abelhas). Desejoso de fazer uma greve de fome para protestar por sua prisão durante o regime militar, Carlos comunicou sua intenção ao irmão, Sergio Lacerda. Ele respondeu dizendo que não o fizesse, afinal estava fazendo um lindo dia e ia dar praia no fim de semana. Ninguém ia ligar para sua greve de fome e para o inútil protesto.

Parece que, mesmo as pesquisas de opinião apontando o desejo pelo novo e pela renovação, o “vai dar praia” no fim de semana paralisa as intenções. Continuaremos a ser um país de muitas iniciativas e poucas “acabativas”?


Dançando na beira do abismo - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 06/08

Em 15 maio, antes da divulgação da explosiva delação de Joesley Batista, o câmbio estava em R$ 3,1. No dia 1º de agosto, a cotação era idêntica.

Parece que a situação está calma. O mercado resolveu esperar o processo eleitoral de 2018.

Tudo se passa como se a dominância política tivesse dado um refresco. Eu mesmo acredito nessa tese.

Temer, com sua quase que ilimitada capacidade de gerir o Congresso Nacional, conseguiu administrar a crise produzida por seu descuido. Temer "is back in business".

Mas, como quase tudo na vida, cobra-se um preço. O preço está escondido, pois outras forças foram na direção contrária. A dinâmica muito favorável da economia mundial no último mês escondeu os custos econômicos do escândalo envolvendo Temer.

De abril a junho, houve surpresa desinflacionária na economia americana da ordem de um ponto percentual. No índice de inflação limpo dos componentes mais voláteis, como energia e alimentos, conhecido por núcleo da inflação, houve surpresa desinflacionária de 0,5 ponto percentual.

A menor inflação sinaliza que o processo de subida das taxas de juros nos EUA será mais lento do que havia sido previsto no fim de 2016.

Uma das características mais importantes da economia brasileira é ser muito escassa em capital. Nossa ridícula taxa de poupança produz juros reais aqui dentro muito elevados. Quando juros no resto do mundo são menores, nossa vida é mais fácil.

Adicionalmente a Europa apresentou neste ano crescimento mais robusto do que o previsto, o que mudou a visão do mercado com relação à diferença de crescimento estrutural entre a Europa e os Estados Unidos.

Ao longo do primeiro semestre, a economia americana, relativamente à europeia, veio com menor inflação e menor crescimento do que se imaginava. Consequentemente, a percepção passou a ser a de um euro mais forte do que se enxergava anteriormente em comparação ao dólar americano.

O enfraquecimento do dólar costuma ser favorável ao Brasil por meio da correlação inversa entre a moeda americana e a cotação de commodities que exportamos (outros fatores também influenciam o preço das matérias-primas).

O mecanismo de transmissão de uma crise de confiança derivada da política ocorre por intermédio do risco. A subida da percepção de risco induz desvalorização do câmbio, que, por sua vez, atrapalha o combate à inflação e a queda das taxas de juros.

De 15 de maio até hoje, o risco Brasil de dez anos subiu 0,3 ponto percentual. Não parece muito em razão do tsunami político de maio.

Meu colega do Ibre Livio Ribeiro mediu a parcela dos movimentos do risco Brasil nos últimos meses que se deve às nossas querelas internas e aquela atribuída aos movimentos na economia internacional. O resultado é que, se não tivesse havido a melhora do ambiente internacional, o risco Brasil teria aumentado 0,9 ponto percentual. Essa diferença de risco significa aproximadamente R$ 0,4 a mais no câmbio,
o que é bastante substancial.

Nosso desequilíbrio fiscal avança. A cada mês que não aprovamos reformas, sancionamos aumentos de salários para a elite do funcionalismo e juízes vetam aumentos de impostos e impedem que o Tesouro sequestre legalmente renda de Estados que não pagam suas dívidas com a União, a dívida pública cresce.

O tempo corre.

Fatos e versões - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 06/08

Quando a aversão ao risco é alta os capitais fluem para países sem risco, como os EUA


No imbróglio da crise política atual, que prejudica a execução da “agenda de reformas”, o que se salva é a execução da política monetária. Inicialmente, o Banco Central foi acusado de excesso de conservadorismo, mas mesmo seus críticos mais severos têm de reconhecer que graças a seus movimentos iniciais “quebrou a espinha” da inflação, habilitando-se a reduzir agressivamente a taxa de juros.

Embora o Banco Central tenha um único mandato – entregar a inflação na meta –, tem o único instrumento que, nas atuais circunstâncias, é capaz de estimular a recuperação da economia. A expectativa de que a taxa Selic caia para 7,5% ao ano ao fim de 2017 já trouxe a taxa real de juros ex-ante para perto de 3,5% ao ano. As defasagens da política monetária são longas e o canal do crédito está obstruído, mas nem isso nem os desestímulos aos investimentos vindos da incerteza política impedem que uma taxa de juros real tão baixa quanto esta provoque uma moderada retomada do crescimento em 2018.

Já no campo da política fiscal o quadro é, no mínimo, preocupante. Há quem diga que a rejeição da autorização para processar Temer por crime de corrupção melhorou a perspectiva de aprovação da reforma da Previdência. Como a aprovação da idade mínima requer 308 votos, não sei de onde vem esse otimismo. E é claro que sem essa reforma não há como cumprir nos próximos anos o compromisso com o teto dos gastos. No curto prazo, a equipe econômica enfrenta o desafio adicional de entregar o déficit primário na meta de R$ 139 bilhões, cuja falha geraria um custo que seria baixo se a reforma da Previdência já tivesse sido aprovada. Mas esse não é o caso.

Consciente desse custo, a equipe econômica tem buscado elevar as receitas para cumprir a meta. Tentou, sem sucesso, gerar receitas com uma nova rodada de repatriação de capitais; propôs um Refis, mas corre o risco de ter de vetá-lo caso a Câmara aprove as mudanças indecorosas propostas pelo seu relator; buscou reonerar a folha de pagamento, mas os deputados postergaram tal decisão para o próximo ano; e o governo tentou acelerar as concessões, mas não teve capacidade de criar os projetos. Sem receitas e sem força ou vontade política para cortar mais gastos, somente lhe resta alterar a meta do déficit primário.

Será que a decisão de mudar a meta “já está no preço”? Afinal, as notícias dessa frustração já circulam há algum tempo e, apesar disso, o real vem moderadamente se valorizando, acompanhando as quedas das cotações do CDS. Não posso negar que, em parte, o comportamento dos preços dos ativos reflita a confiança que a equipe econômica leva a sério seu compromisso e conquistará mais vitórias do que derrotas na implantação das reformas. Mas tenho dificuldades de entender como tal confiança se mantém elevada diante da fraqueza política do governo. Na minha interpretação, o comportamento do câmbio e do CDS não é atestado de que o ajuste caminha bem, e sim reflexo do que se passa no mercado financeiro internacional, que vem dando mais um bônus à economia brasileira.

Se tomarmos países como Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Chile, Peru e Colômbia veremos que as moedas de todos eles vêm se fortalecendo desde o início de 2016 ao lado da queda das cotações de seus CDS. Por trás desses movimentos está uma combinação de forte queda da aversão ao risco no mercado financeiro internacional, quer medida pelo VIX, quer pelos spreads dos bonds de alto risco, com essas duas medidas mostrando níveis recordes de baixa desde o início de 2017. Quando a aversão ao risco é alta, os capitais fluem para países sem risco, como os EUA. Mas quando a aversão ao risco despenca os capitais ignoram essa proteção, preferindo os yields altos dos países emergentes. Curiosamente, nos últimos meses, o euro também vem se valorizando e indicando que, além da preferência pelos yields dos países emergentes, há também uma busca da segurança da Europa como proteção contra a percepção de aumento de risco provocada pelo governo Trump.

Ninguém é capaz de prever quando o bônus terminará, mas sabemos, pela experiência passada, que os países mais desarrumados são os mais penalizados quando isso ocorre.

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE NO PRIMEIRO DOMINGO DO MÊS

Mudança e desenvolvimento (2) - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

ESTADÃO - 06/08

Crescimento não é algo que cai do céu, mas um fenômeno a ser arduamente conquistado


Em minha última coluna escrevi que, após um certo número de anos de crescimento, sempre se formam crises macroeconômicas, que levam à perda do dinamismo do sistema que precisam ser corrigidas.

Também ocorrem alterações mais estruturais, como, por exemplo, mudanças no crescimento, na composição e na idade da população, que se acumulam e exigem respostas.

Finalmente, mencionei que, sem a correção dos desequilíbrios fiscais, não temos chance de voltar a crescer. Em particular, o peso das corporações públicas no Orçamento tornou-se insuportável, bem como a deficiência estrutural do sistema de Previdência Social, resultando numa crise sem precedentes. Basta pensar no inacreditável pedido de reajuste de 16% nos salários dos procuradores para ver como a elite do funcionalismo público se descolou da realidade.

Além desse ajuste, três outros desequilíbrios se colocam como obstáculo à retomada. A excessiva complexidade e detalhamento da regulação do mercado de trabalho resultou num permanente contencioso trabalhista e na necessidade de uma enorme burocracia nas empresas. Como resultado, o custo da mão de obra vem subindo há anos muito mais do que a produtividade, reduzindo a taxa de crescimento. Esse comportamento induz muitas companhias a acelerar a utilização da digitalização e da automação nos processos gerenciais e produtivos, diminuindo a demanda de mão de obra.

A recente aprovação da reforma trabalhista é, sem dúvida, um grande avanço. Entretanto, até essa lei se consolidar haverá muito questionamento judicial. E preocupa muito a possibilidade da volta do imposto sindical pela porta dos fundos de alguma medida provisória.

A questão da tributação, aliás, é outra área na qual a situação se tornou insuportável. Além do tamanho da carga, a complicação e a irracionalidade imperam nos diversos níveis de governo – basta pensar no ICMS. Temos um sistema de imposto de valor adicionado totalmente bastardo e uma legislação para cada unidade da federação, o que torna um inferno a vida das empresas que vendem para vários Estados. Todos tentam elevar sua arrecadação em certas áreas (como combustíveis, comunicação e energia) e dar incentivo em outras. Como os Estados dão incentivos semelhantes, ninguém se diferencia, e o custo de produção se eleva. Basta olhar o caso do Rio de Janeiro.

Além do ônus sobre a produção, criam-se um eterno contencioso e uma grande irracionalidade na alocação de recursos. Evidentemente, com o custo total do trabalho e dos tributos muito elevado, a competitividade da produção nacional se reduz. Não voltaremos a crescer sem que haja um esforço na direção de um sistema mais simples e racional.

O último obstáculo ao crescimento é o juro real brasileiro, excessivamente alto por tempo demais. Não é preciso elaborar muito para avaliar como o elevado custo do capital prejudica o crescimento. A tentativa de mitigar seu efeito levou à criação de um vasto programa de crédito subsidiado, que beneficia apenas algumas empresas e não resolve nada, como o passado recente demonstra.

Nessa área, porém, temos finalmente uma luz. Depois de tanto tempo “atrás da curva”, nosso Banco Central decidiu reduzir vigorosamente a taxa básica, apontando para algo como 7,5% no final do ano.

Nunca a necessidade de mudanças para crescer ficou tão evidente. Crescimento, já deve ter ficado claro em meio à maior crise econômica em décadas, não é algo que cai do céu – mas um fenômeno a ser arduamente conquistado. Terá o País, em meio à barafunda política, forças para mudar?

*ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Desinformando o público - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 06/08

SÃO PAULO - Preço é informação. Quando o tomate fica mais caro, os produtores podem estar sinalizando que houve problemas na safra. A alta também pode ter como causa um súbito desejo da população por devorar grandes quantidades do vegetal, caso em que os consumidores estão avisando os agricultores que eles vão se dar bem. Em qualquer hipótese, as informações contidas no preço permitem que as pessoas se posicionem melhor para satisfazer suas necessidades.

Se o preço cai muito, o produtor pode deixar de plantar tomates para cultivar abobrinhas. Já os consumidores podem, diante de uma alta, procurar substitutos para esse fruto. Pimentões são uma boa alternativa.

Quando o governo interfere num preço praticado entre agentes privados, ele introduz ruídos no fluxo de informações. Precisaria, portanto, ter excelentes motivos para fazê-lo —o que raramente é o caso.

Soam particularmente destrambelhadas as tentativas de órgãos de defesa do consumidor, liderados pelo Ministério da Justiça, de impedir casas noturnas de cobrar preços diferenciados de homens e mulheres.

Empresários usam o valor do ingresso para informar o público qual é o tipo de gente que falta no evento e, com isso, atrair as pessoas certas, tornando a festa mais prazerosa para os frequentadores e rentável para os organizadores. Todos ganham. Como ninguém depende de ir a boates para sobreviver, e a política de preços tende a ser anunciada com transparência, não há aqui nenhuma das falhas de mercado que poderiam em tese justificar uma intervenção das autoridades. O argumento de que a diferenciação objetifica e degrada as mulheres parece abstrato demais para contrapor-se à concretude do desconto que elas ganham.

Sempre que o governo interfere sem motivo em preços, ele falseia a livre troca de informações entre produtores e consumidores —o que não deixa de ser uma forma de censura.

Lula joga com a morte - MERVAL PEREIRA

O Globo - 06/08
Lula joga com a morte na disputa eleitoral. O ex-presidente Lula, na sua campanha para poder se candidatar à Presidência em 2018, tentando assim escapar de uma possível prisão, deu uma declaração em conversa gravada em vídeo com um deputado petista que resume bem sua disposição política atual. Embora bombástica, não teve a repercussão que provavelmente buscava, talvez pela desimportância do interlocutor, talvez pela postura claramente eleitoreira.

‘Deixa eu dizer uma coisa a quem me persegue: eu posso ser um bom candidato a presidente da República, se for candidato; eu posso ser um grande cabo eleitoral se não me deixarem ser candidato; e se morrer como mártir, eu serei um grande cabo eleitoral”.

Fazendo uso de sua morte como um instrumento eleitoral, assim como já fizera na morte de dona Marisa e, dias antes, havia repetido que a Operação Lava-Jato a matou, o ex-presidente Lula chega a uma situação paradoxal em que especula sobre a morte como mártir político justamente para tentar evitar essa situação limite.

Simula mais uma vez Getúlio Vargas, que já foi seu alvo e hoje é seu espelho. O Lula líder sindicalista defendia o fim da Era Vargas, de quem dizia que, se foi o “pai dos pobres”, era também “a mãe dos ricos”. Chegou a chamar a CLT, no início de seu primeiro governo, de “AI-5 dos trabalhadores”.

Ser ou não ser mártir político pode ser uma fabricação, lembra Maria Celina D'Araujo, cientista política do departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e estudiosa do período varguista desde os tempos do CPDOC da FGV. “O conceito de mito político é uma criação do início do século XX, recuperando a mitologia clássica e medieval. No contexto da crítica à liberal-democracia, um grupo de pensadores, autoritários e corporativistas, julgou necessário recuperar o peso dos símbolos e dos mitos na ordenação política das sociedades humanas. A democracia de massas, a quem se atribuía a responsabilidade pelos graves problemas da sociedade capitalista, deveria ser substituída pelo ‘culto à personalidade.’ As massas, o povo, precisavam de líderes para conduzi-los e protegê-los”.

Quando Lula afirma poder tornar-se um mártir, ressalta a cientista política, ele sabe que poderá construir essa imagem por meio de seu partido e de intelectuais e jornalistas que o apoiam caso seja condenado pela Justiça, ou impedido de concorrer a novas eleições. Poderá ser imortalizado como “vítima das elites contrárias aos interesses do povo”.

O mais importante para Maria Celina, no entanto, é indagar se a política brasileira precisa acionar conceitos tão antigos e tão pouco democráticos para pensar o seu futuro. “O lamentável é continuar pensando a política em termos de revanche e vingança, de mártires e infiéis, e não como instrumento para administrar o tão difícil entendimento em busca do bem comum”.

Tanto Celina quanto Lira Neto, o biógrafo de Getúlio Vargas, citam as vezes em que Getúlio ameaçou suicidar-se, ficando claro que era uma obsessão dele quando a situação parecia incontornável. Lira Neto lembra que Getúlio sempre manteve a ideia do que chamava de “sacrifício pessoal” como alternativa para sair, com honra, sempre quando confrontado em situações limite: em 1930, quando comanda tropas contra o governo de Washington Luiz, em 1932, quando irrompe a Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1945, quando os militares o retiram do poder encerrando o Estado Novo e, finalmente, em 1954.

Para Celina, foi um suicídio planejado, partilhado entre aliados, anunciado em bilhetes espalhados por seu escritório. Foi consumado naquela ocasião porque, ao contrário das anteriores, não havia alternativa de ganhar pelas armas, como em 1930 e 1932, nem havia a possibilidade de “voltar nos braços do povo" como em 1945. Do ponto de vista político, o suicídio foi um golpe de mestre. Fixou-se como mártir e mito. O impacto disso sobre a democracia brasileira, contudo, foi mais radicalização.

Mas Lira Neto acredita que a fala de Lula faz lembrar muito mais o “Ele disse”, quando Getúlio, derrubado do poder em 1945, execrado do poder, transformado em mártir pelos adversários, recomendou que seus eleitores votassem em Dutra.

O chamado mudou o rumo das eleições, ressalta Lira Neto, quando faltava menos de uma semana para o povo ir às urnas. O candidato favorito, Eduardo Gomes, antigetulista ferrenho, que todos já consideravam eleito, foi derrotado clamorosamente. Getúlio, assim, comprovou sua imensa popularidade.

“Lula, talvez, venha a fazer o mesmo. Se Moro prende Lula, o candidato que o líder petista apontar como seu representante nas urnas terá imensa possibilidade de ser o próximo presidente da República. Em suma: os adversários de Lula, que parecem desconhecer História, estão brincando com fogo”, diz Lira Neto.

Maduro inspira projeto autoritário no Brasil - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 06/08
Defesa da Constituinte feita pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, dá certeza de haver no PT um programa bolivariano para ser aplicado no país

Enquanto morriam pessoas nas ruas de Caracas e outras cidades venezuelanas, devido à forte repressão das tropas da Guarda Nacional Bolivariana e a ação de grupos paramilitares, a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), e a secretária de Relações Internacionais do partido, Mônica Valente, assinaram artigo na “Folha de S.Paulo” em defesa da Constituinte lançada por Nicolás Maduro, para converter de vez o regime numa ditadura.

Gleisi e Mônica ressaltam o acerto da decisão de Maduro de chamar o “povo” para resolver a grave crise política, desconhecendo as maquinações para a convocação desta assembleia, rechaçada em consulta popular feita pela oposição. Uma Constituinte eleita com baixa presença nas zonas eleitorais, em meio a fraudes que envolveram um milhão de votos, segundo a Smartmatic, empresa que forneceu a tecnologia usada na votação. Sequer todos os chavistas apoiaram a manobra.

Não teria importância se não assinassem o texto duas dirigentes do PT, uma delas presidente. À primeira vista, algo despropositado. Nada disso. O artigo reflete mesmo o que pensa uma corrente radical que existe desde sempre no PT, e que parece ganhar mais espaços dentro do partido à medida que se aproximam as eleições de 2018, tenha Lula ou não condições legais de disputá-las. Quem acompanha o PT não se surpreende. Nos 13 anos em que o partido esteve no poder em Brasília, há inúmeros exemplos de tentativas de impor esquemas bolivarianos ao país.

A Constituinte de Maduro já havia sido feita por Chávez em 1999, em outro contexto, com o presidente recém-eleito e sustentado por alta popularidade — ao contrário de Maduro. Como era o plano, a assembleia serviu para garrotear o Legislativo e o Judiciário. Maduro segue a mesma cartilha, mas a conjuntura lhe é adversa.

No Brasil, a cartilha foi seguida — sem êxito, devido à solidez das instituições — na proposta de uma “Constituinte exclusiva” para tratar da reforma política — ilegal, porque não pode haver uma assembleia com poderes constituintes a não ser em ruptura de regime.

Também é parte desta cartilha uma lei dos meios de comunicação, para desestruturar as empresas privadas que sustentam o jornalismo profissional. Na Argentina, o casal Néstor e Cristina Kirchner, aliado de Chávez, conseguiu aprovar esta lei, para desestabilizar o grupo “Clarín” e o “La Nación”. A derrota de Cristina para Macri barrou este projeto. Este e tantos outros necessitam de um regime fechado para serem executados. Daí a importância de uma “Constituinte”.

Não se deve esquecer, também, que, ainda no primeiro governo Lula, surgiram duas iniciativas cujo DNA é conhecido: a da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), idealizada no Ministério da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira, para controlar o conteúdo da produção audiovisual — leia-se, censura —, e o do Conselho Federal de Jornalismo, saído do Ministério do Trabalho, a fim de supervisionar a profissão, com objetivos óbvios. Diante da reação, Lula os engavetou.

No impeachment de Dilma Rousseff, o Diretório Nacional do PT aprovou resolução de autocrítica em que o partido lamenta não haver modificado o currículo das academias militares e intervindo na Polícia Federal e no Ministério Público. Portanto, o artigo de Hoffmann e Valente tem coerência com o PT. Não foi escrito por descuido ou desinformação. Reflete um projeto autoritário para o Brasil.

Uma fronteira com a tirania - FERNANDO GABEIRA

O Globo - 06/08
Cai ou não cai, o cara? O que é que vai acontecer por lá? As perguntas se sucedem nas ruas e não consigo respondê-las a contento. Não importa, também não há assim grande tensão nas perguntas. Se Temer cai, haverá apenas uma troca de seis por meia dúzia, parecem dizer. Todos pressentem um período medíocre, incapaz de provocar grandes paixões. Há quorum, falta quorum? Que interesse há nisso, uma vez que os deputados já fizeram suas apostas em cargos e emendas? E vão esperar um outro momento em que Temer se sinta com a corda no pescoço.

As pesquisas indicam que 81% dos entrevistados querem que a investigação sobre Temer prossiga, com todas as suas consequências. Mas essa mesma correlação de forças não se repete no Congresso. A opinião pública é refém dos eleitos, e eles se acham seguros para negociar. Ainda não se convenceram de que uma catástrofe eleitoral os espera.

Mesmo num quadro tão negativo, é possível se encontrar um certo alento. Se Dilma estivesse no governo, seria uma semana dura.

No auge de uma crise prolongada, mais de uma centenas de mortos nas ruas, a Venezuela entra numa ditadura: um fanfarrão de camisa vermelha dança “Despacito” e baixa o pau nos opositores. Pensei que a esquerda brasileira, na maré baixa, fosse mais discreta. Mas alguns dos seus partidos manifestaram seu apoio a Nicolás Maduro. Isso revela que, no fundo, o modelo bolivariano ainda a atrai. Está implícito em certas bandeiras, como no projeto de controle da imprensa.

Os projetos comuns no Brasil, como uma refinaria em Pernambuco, acabaram sendo um fardo para o Brasil. Chávez tirou o corpo fora e, no âmbito nacional, a corrupção correu solta. O governo petista mandou a Odebrecht que, para não perder a viagem, pagou US$ 9 milhões de propina à cúpula chavista, segundo a procuradora Luisa Ortega. A reeleição de Hugo Chávez contou com um decisivo apoio petista, somado à grana da Odebrecht, que, na verdade, era a grana do BNDES. Essa campanha foi narrada por João Santana e Mônica Moura e foi orçada em US$ 35 milhões.

Incapaz de compreender seus erros internos, parte substancial da esquerda brasileira mergulha nos erros alheios e defende um regime autoritário, violento e isolado internacionalmente.

O Brasil nunca seria uma Venezuela, talvez pudesse chegar perto se a crise avançasse. No entanto, a tentação de avançar nesse rumo não abandonou a esquerda e agora, com a queda de Dilma, ficou mais evidente por que o PT radicalizou.

O controle do Congresso, na base de cargos e verbas, é uma tática que se desdobra até hoje. Mas não é 100% eficaz em momentos dramáticos. O chamado controle social da mídia nunca foi palatável até para os aliados do governo petista. A única saída foi construir uma rede de apoios com blogs e guerrilha digital.

Resta outro ponto, presente na experiência da Venezuela, que jamais aconteceria no Brasil: o apoio das Forças Armadas. Sem esse apoio, o próprio Maduro já teria ido para o espaço.

Dilma pode ter sentido uma tentação de acionar os militares. Mas os sinais que vinham de lá eram desalentadores para um projeto de esquerda.

Apesar de ressaltar seus laços ideológicos e programáticos com o chavismo, no Brasil a esquerda não é protagonista no drama que se desenrola. Ela apenas é um ponto de apoio de um regime brutal. As lentes ideológicas de nada servem para tratar dos problemas que surgem com o mergulho da Venezuela numa ditadura.

Temos fronteiras comuns. Embora num nível menor do que na Colômbia, refugiados chegam em levas maiores em Pacaraima. Já temos um problema social na região. Roraima depende da energia produzida na Venezuela. Talvez seja necessário pensar em alternativas mesmo porque os constantes apagões são um aviso.

O território dos ianomâmi atravessa os dois países. Na década de 1990, chegamos a formar comissão mista Brasil-Venezuela para discutir uma política comum para os ianomâmi. Mas naquele tempo, ainda que imperfeitos, havia parlamentos com espaço para essa discussão.

Nas últimas viagens que fiz à fronteira, voltei com uma sensação de que era preciso uma avaliação do Brasil em face do novo momento. Um cenário provável é que a ditadura de Nicolás Maduro, produzindo mortes diárias, vai ser um tema global tratado na própria ONU.

No momento em grandes atores entram em cena, seria bom que o Brasil soubesse o que quer e o que precisa fazer. Caso contrário, seremos engolfados por uma política internacional sobre um tema que envolve, de uma certa forma, o nosso próprio território.

Não importa se Temer, Maia ou qualquer desses políticos assuma o comando, muito menos se o período é de desesperança. Escapamos, por exemplo, de ver um governo, em nome do Brasil, apoiar o golpe de Maduro e recitar a cantinela da solidariedade continental contra a pressão da direita. Pelo menos disso, escapamos. Agora, o resto está bravo.

Escalada traz instabilidade a níveis inéditos para a região - IGOR GIELOW

FOLHA DE SP - 06/08

A virtual ausência de conflitos entre Estados nacionais, ainda que haja questões fronteiriças irresolutas aqui e ali, sempre deu à América do Sul o status de área pacífica em fóruns internacionais.

Obviamente a designação é vazia quando um país como o Brasil tem mais baixas em sua guerra urbana (60 mil homicídios ao ano) do que qualquer outro país do mundo e a Colômbia apenas agora está encerrando 50 anos de um brutal conflito interno.

O recrudescimento da crise na Venezuela, contudo, insere um elemento inédito de instabilidade. A última guerra de fato por aqui foi um breve conflito entre Peru e Equador em 1995. Além da já citada situação colombiana, há também espasmos de violência na perene instabilidade política do Paraguai. Agora é diferente.

Como relataram oficiais colombianos a seus pares sul-americanos em encontros recentes, há três opções realistas na mesa hoje: a ditadura de Maduro reprimir a oposição e manter a Assembleia Constituinte operante, uma guerra civil ou as duas alternativas anteriores combinadas. Eles apostam no último cenário.

Com isso, como a Folha relatou neste sábado (5), o país vizinho já espera a chegada de até 2 milhões de venezuelanos, um movimento que nunca houve.

Além disso, dono da segunda maior fronteira com a Venezuela, o Brasil poderá ter de enfrentar não só a questão humanitária, mas eventuais transbordamentos de violência e ações armadas em seu território.

Se a ditadura se mantiver em pé, o cenário é ainda mais confuso, pois será um regime abertamente contrariado com seus vizinhos. Escaramuças de fronteira podem se tornar recorrentes, e o intercâmbio nas regiões vizinhas será afetado.

Retaliações de todo tipo podem acontecer, sejam contra os cerca de 30 mil brasileiros que vivem na Venezuela, sejam relacionadas aos diversos interesses empresariais do Brasil lá.

Nada é preto no branco, como a seletividade dos Estados Unidos em não sancionar atividades relacionadas ao petróleo venezuelano que compra indica.

Mas o sinal é de conflito aberto, como a suspensão que na prática significa expulsão exceto que Maduro ceda e desista de seu projeto ditatorial, o que parece no mínimo improvável.

Naturalmente, o ditador pode torcer para que o PT volte ao poder federal em 2018, uma vez que o partido de Luiz Inácio Lula da Silva legitima e apoia o regime chavista. Mesmo nesse cenário, não é factível pensar que o Brasil romperia com a decisão do Mercosul unilateralmente.

A decisão do bloco de isolar Maduro é a última cartada diplomática contra o regime, mas o histórico sugere que o ditador não vai largar o osso tão facilmente. A instabilidade, agora paroxística, veio para ficar.

As ilusões perdidas - MARIO VARGAS LLOSA

ESTADÃO - 06/08

Depois da revolução sandinista, Daniel Ortega virou um ditador corrupto


Não tinha lido a autobiografia de Sergio Ramírez, Adiós Muchachos (2007), e a terminei, comovido. É um livro sereno, muito bem escrito, eufórico na sua primeira metade e muito triste na segunda. Conta a história da revolução sandinista que, em 1979, pôs fim à terrível dinastia Somoza na Nicarágua, uma das ditaduras mais corruptas e cruéis na história da América Latina. Revolução na qual o comandante Daniel Ortega teve um papel importante, primeiro como conspirador e resistente e depois como presidente do país, do qual Ramírez foi vice-presidente.

Foram muitos anos de luta, sacrifício e heroísmo, em que milhares de nicaraguenses perderam a vida e a liberdade, foram torturados, exilados, passaram longos anos na prisão, enfrentaram uma Guarda Nacional cuja selvageria não tinha limites. Os rebeldes eram, sobretudo, pessoas humildes, os pobres entre os mais pobres, mas a eles foram se unindo a classe média e, no final, profissionais, empresários e agricultores, principalmente seus filhos, impelidos por um idealismo generoso, na esperança de que, com a queda da ditadura, teria início um período de justiça, liberdade e progresso para o povo de Rubén Dario e Augusto César Sandino.

Muitas mulheres combateram à frente dessa revolução, como também católicos. A Nicarágua talvez seja o país onde o catolicismo está mais presente na América Latina e Ramírez descreve com muita propriedade as diversas correntes que formaram essa aliança de comunistas, socialistas, democratas, liberais, castristas, que apoiou a revolução no início, até surgirem as inevitáveis divisões.

São emocionantes seus relatos em Adiós Muchachos, evocando o entusiasmo e a alegria vividos pela imensa maioria dos nicaraguenses nos primeiros tempos da revolução – as campanhas de alfabetização, a transformação de quartéis em escolas, a distribuição de terras, as fábricas expropriadas de Somoza e seus cúmplices e transferidas para setores de menor renda. Era o início do que parecia ser a grande transformação da Nicarágua em um país realmente livre, democrático e moderno.

Não foi o que ocorreu e Ramírez culpa os “contras” financiados pela CIA pelo fracasso da revolução sandinista. Tenho a impressão de que a contrarrevolução foi mais efeito do que causa, em virtude do descontentamento de um amplo setor da sociedade com a política equivocada do regime para transformar o país em uma sociedade estatizada e coletivista, com nacionalizações em massa e a criação de uma agricultura camponesa no estilo soviético e as emissões de moeda sem lastro, que, em vez de impulsionar, arruinaram a economia nacional, criando uma inflação galopante e afetou os mais pobres.

A desordem e o caos, a corrupção, a chamada piñata” (a repartição entre os donos do poder de bens e fundos públicos) que ele descreve magistralmente no capítulo do livro intitulado “Os rios de leite e mel”, tinham de desencantar e empurrar para a oposição muitos nicaraguenses que odiavam a ditadura de Somoza, mas não queriam que ela fosse substituída por uma segunda Cuba. A propósito, é fascinante descobrir que uma das pessoas que mais tentou moderar os dirigentes sandinistas em suas reformas foi Fidel Castro!
Despótico

A segunda parte do livro é de uma tristeza crescente, quando ele fala do progressivo revés da revolução, as divisões entre os sandinistas e a lenta, mas firme, ascensão de Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, a um tamanho poder do qual desfrutaram apenas alguns déspotas na história latino-americana. Terra de grandes poetas e excelentes escritores, como o próprio Sergio Ramírez, a Nicarágua terá de produzir algum dia um livro que narre a história de Daniel Ortega, esse alucinante personagem que, depois de comandar a revolução sandinista, foi se transformando em um Somoza moderno, ou seja, um ditadorzinho corrupto e manipulador que, traindo todos os princípios e se aliando a seus inimigos do passado, conseguiu desfrutar de um poder absoluto ao longo de 20 anos, sendo reeleito várias vezes e, por incrível que pareça, ainda desfrutando de alguma popularidade.

Para conhecer um pouco da sua história temos de fechar o livro Adiós Muchachos e ler o esplêndido ensaio do mesmo Ramírez, El Estallido del Populismo, onde está sintetizada com toques de realismo mágico a trajetória até nossos dias desse inverossímil personagem.

No momento, ele faz uma oportuna conversão ao catolicismo e agora recebe devotadamente a comunhão dada pelo cardeal Miguel Obando y Bravo, seu antigo inimigo mortal e hoje fervoroso aliado, que abençoou o governo “cristão, socialista e solidário” de Daniel Ortega e Rosario Murillo. E também firmou um pacto com empresários mercantilistas que, com a condição de não se falar nunca de política, realizam muitos bons negócios com o governo.

No entanto, talvez o mais surpreendente seja o fato de que, dessa disparatada aliança que conseguiram armar para se manter no poder, Daniel Ortega e Rosario Murillo (vice-presidente e que poderá ser a próxima governante se seu marido decidir entrar em férias) fazem parte bruxos, curandeiros, feiticeiros e milagreiros.

Ramírez escreve: “A mão aberta de Fátima, filha de Maomé, com um olho no centro, que representa bênçãos, poder, força e também proteção contra o mau-olhado, está desde 2006 em um imenso mural atrás do assento do casal presidencial na sala de reuniões”.

O ensaio também aborda os fantásticos projetos com os quais Ortega e Murillo, numa paródia de House of Cards, alimentam as ilusões dos seus eleitores, como o famoso Grande Canal da Nicarágua, que iria competir com o do Panamá e seria financiado pelo bilionário chinês Wang Ying (acordo já desfeito e esquecido) e um laboratório farmacêutico em Manágua para produzir nada menos que uma vacina contra o câncer. A lista de ficções é enorme e parece ter saído de Macondo.

Tudo isso Ramírez relata com objetividade, embora por trás da moderação e da elegância com que escreve observemos um profundo pesar. Que deve ser o de muitos nicaraguenses que, como ele, dedicaram os melhores anos da sua vida, seu tempo e seus sonhos a lutar por uma ilusão histórica que se converteu numa efêmera realidade, mas se desfez e transformou-se numa grotesca caricatura. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Um concerto para todos os naipes - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 06/08

Enquanto procura controlar suas finanças, o governo precisa fazer muito mais para reanimar a economia.


É hora de reforçar e ampliar a ação do governo, tanto para apressar a recuperação da economia quanto para facilitar a arrumação das contas públicas. Enquanto uma parte do Executivo se empenha em consertar as finanças, outra deve esforçar-se para dinamizar as concessões e mobilizar capitais para investimentos em infraestrutura. Sinais de animação continuam surgindo, principalmente nas empresas mais preparadas para exportar. Mas o desemprego continua muito alto, o consumo permanece fraco e a maior parte da indústria depende, ainda, de um puxão mais forte para ganhar velocidade. O setor público é o mais indicado, neste momento, para proporcionar tração ao conjunto dos negócios.

Com ampla capacidade ociosa, a maior parte da indústria só investirá de forma significativa quando a retomada dos negócios estiver bem mais avançada. Confiança é um fator importante para a decisão de investir, mas insuficiente. Mesmo com a redução da incerteza política, ainda faltarão razões objetivas para o empresário cuidar da ampliação ou mesmo da modernização da capacidade produtiva. Os juros em queda também serão um dado positivo, mas ninguém compra máquinas só porque o crédito ficou mais fácil – de fato, nem tão fácil ainda, no caso brasileiro.

Do lado do consumo, a inflação mais baixa e a consequente preservação da renda real também seriam estímulos poderosos, se as condições de emprego estivessem mais claras. Mas, apesar de alguma criação de oportunidades, ainda há cerca de 13,5 milhões de pessoas em busca de vagas. Isso equivale a 13% da força de trabalho. As famílias têm sido mais cuidadosas no endividamento e têm melhores condições de voltar às compras, mas o cenário ainda impõe muita cautela no uso do dinheiro.

Quanto ao governo, tem-se voltado principalmente para o desafio de arrumar as contas públicas. Com receita menor que a esperada, está muito difícil fechar o balanço do ano com um superávit primário (sem o peso dos juros) dentro do limite de R$ 139 bilhões. Em breve será preciso decidir se a meta fiscal de 2017 será revista e se o ajuste previsto para os próximos anos será recalibrado. Economistas do mercado têm-se mostrado dispostos a aceitar objetivos menos ambiciosos por algum tempo. A equipe econômica mantém um capital de credibilidade.

Com ou sem revisão das metas, será indispensável cuidar da reforma da Previdência e da renovação dos padrões do gasto público. É essencial tornar o Orçamento mais flexível para racionalizar o gasto público, dar mais eficiência à administração e facilitar a busca do equilíbrio fiscal. Um orçamento engessado, como tem sido há muito tempo o brasileiro, é um campo fértil para o desperdício, a pilhagem e o desajuste.

Mas o governo precisa oferecer mais que o esforço de reparação e racionalização das finanças públicas. Enquanto a produção se mantiver muito lenta e faltar dinamismo aos negócios, nem o trabalho na área fiscal produzirá resultados plenamente satisfatórios. Sem uma expansão razoável dos negócios, a arrecadação será insuficiente para as funções da administração, tanto as de rotina como as necessárias para a modernização do País e a promoção do bem-estar. Além disso, a receita da Previdência continuará prejudicada pelo desemprego elevado, mas o pagamento de benefícios continuará aumentando.

Enquanto procura controlar suas finanças, o governo precisa fazer muito mais para reanimar a economia. O caminho mais evidente é o das concessões e da promoção de investimentos em infraestrutura – importante por seus efeitos diretos e ainda mais, a curto prazo, pelos estímulos a indústrias e à geração de empregos. Algumas concessões, é preciso reconhecer, deverão servir de imediato principalmente para gerar receitas extraordinárias. Mas outras deverão gerar demanda para várias indústrias. É preciso, no entanto, fazer funcionar a orquestra do governo. Só se ouvem, por enquanto, os naipes da área fiscal. É urgente despertar os outros. Isso é trabalho para um bom regente. Cabe ao diretor-geral, o presidente da República, escalar esse maestro.

Na bocarra do centrão - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA

No campo calcinado da Câmara dos Deputados, finda a batalha que salvou Michel Temer de por ora ser desalojado do cargo, o ferido mais grave era o Partido da Social Democracia Brasileira, mais conhecido como PSDB. Decidir nunca foi o forte do partido de Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro e Mário Covas. A imagem do muro identifica-o, do lado derrisório, tanto quanto a do tucano do lado favorável. Nunca, porém, a indecisão foi tão patética quanto a de ficar ou não com o governo Temer. Dela o partido sai dividido e em frangalhos.

O PSDB foi humilhado na votação. Ao declararem o voto, os deputados mais abusados afirmavam fazê-lo em apoio ao “relatório do PSDB”. O relatório fora produzido por um quadro então considerado isolado do partido, o mineiro Paulo Abi-Ackel, mas com que prazer, escandindo as sílabas, atribuíam-no a uma orientação partidária. A mensagem era de boas-­vindas ao PSDB, tão elegante ao se olhar no espelho, na mesma canoa em que a massa dos deputados rema em busca de cargos, de verbas e de fugir da polícia. Ao concluir-se a votação, mais ainda valeriam as boas-­vindas ao revelar-se que, embora pela estreita margem de 22 a 21, a bancada tucana estava com Temer. A caminho do isolamento parecia não Abi-Ackel, mas seus contrários.

Fundado há 29 anos em nome da governança responsável e do combate à corrupção, o PSDB já antes da sessão da Câmara entrara na era da “refundação”. Quando dá o ar de sua graça, a “refundação” indica encrenca. Célebre “refundador”, o ex-­governador gaúcho Tarso Genro clamou repetidas vezes, desde a tragédia do mensalão, pela refundação do PT. Tasso Jereissati, presidente interino do PSDB, clama-a agora em socorro de seu partido. Ambos estão do lado certo da fronteira da ética. Embora nem um nem outro tenham explicitado o que querem dizer com “refundação”, algumas linhas gerais são de presumir, entre as quais reconhecimento dos erros do passado, propósito de não repeti-los, conduta transparente, unidade de ação e limpeza nos quadros.

O problema é que os que desprezam a conversa de refundação são mais espertos, e os mais espertos sempre se revelam mais hábeis em construir maiorias. O PT desprezou-a e foi do mensalão ao petrolão. Hoje, segundo orientação da presidente Gleisi Hoffmann, aprofunda-se no bolivarianismo. O PSDB foi da dúvida à divisão, da divisão a um incurável tormento interno, e nesse trajeto não conseguiu desatrelar-se das fatais companhias de uma mala e uma mochila — a mala dos 500 000 de Rocha Loures, o homem da “mais estrita confiança” de Temer, e a mochila de iguais 500 000 do primo de Aécio Neves.

Quatro economistas com atuação no Plano Real ou nos governos FHC — Edmar Bacha, Gustavo Franco, Elena Landau e Luiz Roberto Cunha — enviaram carta a Tasso Jereissati, depois do voto na Câmara, condicionando sua permanência no partido a uma mudança de rumos. A carta lamenta a incapacidade do PSDB de “dissociar-se de um governo manchado pela corrupção institucionalizada que herdou do PT” e propõe três medidas a ser adotadas na convenção nacional convocada para agosto: a renovação da direção nacional, o abandono dos ministérios que ocupa no governo e, na mesma toada de Tasso, o propósito de “refundar-se programática e eticamente”.

O PSDB nasceu na centro-esquerda, como indicam o nome de “social democracia” e as origens de seus líderes históricos. Com o tempo foi empurrado para a direita pelo PT e deixou-se levar. Hoje está sem rumo, ou melhor, abriga rumos diversos e conflitantes. A carta dos economistas acusa o partido de “deixar vazio o centro político ético de que o país tanto precisa”. Desde a vitória de Emmanuel Macron na França, o centro está na moda. No Brasil, um arremedo grotesco de centro foi batizado de “centrão”; é o mesmo agrupamento imenso, gelatinoso e mal-intencionado que Fernando Henrique, aproveitando-se de uma definição de Sérgio Buarque de Holanda, chama de “atraso”. O centro de que falam os economistas e de que se orgulha Macron seria uma opção para o PSDB refundado. A votação provou no entanto que a práxis do partido está mais para o centrão. É o centrão que, com a bocarra escancarada, lhe deu as boas-­vindas na votação da Câmara.


Há uma distância entre frase de efeito de Janot e seu poder sobre a Câmara - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP - 06/08

Apoiado no que há de pior na sua base parlamentar e valendo-se dos piores instrumentos de persuasão, Michel Temer mostrou a força de seu método e garantiu-se na cadeira de presidente. Confirmando sua ameaça de que "enquanto houver bambu, lá vai flecha", o procurador-geral Rodrigo Janot mira novamente em Temer e se prepara para apresentar novas denúncias contra ele.

Na flechada que a Câmara rejeitou, havia o áudio de uma conversa de Temer e o vídeo do Rodrigo Rocha Loures com sua mala preta. Faltou só um fundo musical, os deputados acharam pouco e mandaram o caso ao arquivo.

O que a Procuradoria-Geral teria a apresentar nas novas denúncias? Talvez um depoimento, devidamente documentado, com as impressões digitais de Temer. Ainda assim, a maioria governista já mostrou do que é capaz. Só Janot sabe o que guarda no bambuzal, mas há uma distância entre sua frase de efeito e seu poder sobre o plenário da Câmara. A vontade de condenar Temer com provas convincentes para o público, porém consideradas insuficientes pela Câmara lança sobre as ameaças de Janot o receio de que ele jogue o Ministério Público numa estudantada.

Estudantadas são aqueles gestos altruístas e destemidos que levam a juventude para as ruas. Passam os anos, as pessoas envelhecem e criticam a rebeldia dos jovens, mas sempre lembram das próprias aventuras com doce nostalgia. Estudante com cabeça de velho é uma desgraça. Velho com cabeça de estudante é um perigo.

A última grande estudantada nacional também nasceu de uma votação decepcionante da Câmara. Em abril de 1984 a emenda constitucional que restabelecia as eleições diretas para presidente foi derrubada pelos deputados. Era o amargo desfecho da maior campanha popular da história do Brasil apoiada por 85% da população (semana passada 81% queriam que Temer fosse a julgamento ).

No dia seguinte à derrota, com o brado de "a luta continua", começou a estudantada. Criou-se um Comitê Suprapartidário Nacional para prosseguir na campanha. Pensou-se até numa monumental marcha sobre Brasília. Aos poucos, o movimento murchou. A eleição direta estava morta e Tancredo Neves seria o candidato da oposição num pleito indireto, mas essa é outra história.

A situação de 2017 tem muitas diferenças em relação a 1984. Uma delas é que Janot sabe a consistência de suas próximas denúncias. Se as flechas forem boas, ótimo. Do contrário, se e quando se perceber que o bambu era curto, a estudantada ficará exposta, tendo prejudicado a confiabilidade da Operação Lava Jato.

Barroso expõe a Operação Lama a Jato
O ministro Luis Roberto Barroso pode vir a ser a novidade da temporada. Quando ele disse que está em curso uma operação para abafar a Lava Jato, sabia do que falava. Não se trata apenas de impedir que os larápios apanhados sejam punidos, trata-se de permitir que se continue a roubar. Só isso explica que Rodrigo Rocha Loures fosse buscar a mala preta na pizzaria Camelo. Barroso foi além: "Essas pessoas têm aliados importantes em toda parte, nos altos escalões da República, na imprensa e nos lugares onde a gente menos imagina".

Há dois meses, quando o Supremo Tribunal Federal cuidava da girafa da colaboração negociada pelo procurador Rodrigo Janot com os irmãos Batista, Barroso soltou um aviso: "Todos sabemos o caminho que isso vai tomar e, portanto, já estou me posicionando antes. Sou contra o que se quer fazer aqui lá na frente."

Foi o início de uma longa inimizade com o ministro Gilmar Mendes. O acordo aceito por Edson Fachin era uma girafa, mas o que se queria era fechar o zoológico e Barroso ajudou a impedir que isso acontecesse.

Produção de eventos para empulhar o povo do Rio ganhou novos animadores
A produção de eventos para empulhar o povo do Rio de Janeiro ganhou dois novos animadores. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, e o presidente Michel Temer fizeram saber que "sobrevoaram" as áreas onde forças federais reforçam a segurança da cidade. Sobrevoar arrastões, tiroteios e balas perdidas é tudo o que o carioca precisa.

O sobrevoo dos doutores compete com o passeio da diretora do FMI, Christine Lagarde, no teleférico do morro do Alemão, quando ela se sentiu "nos Alpes". (O teleférico continua parado.)

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e não entende de onde saiu a expressão derrogatória que fala de uma bancada "BBB" no Congresso. Seriam os representantes do boi, da bala e da Bíblia.

O idiota abstrai as características pessoais dos larápios ligados a ruralistas, policiais ou bispos. Para o cretino, o agronegócio é responsável por 23% da economia nacional, metade da população brasileira é a favor da pena de morte e a Bíblia é o livro mais vendido e mais lido no Brasil e em dezenas de outros países.

APOIO TOTAL
Temer teve 100% de apoio na bancada da tranca. Os seguintes deputados votaram contra a licença para processá-lo :

Celso Jacob (PMDB-RJ) –cumpre prisão domiciliar e vai à Câmara com sua tornozeleira eletrônica.

Marco Antonio Cabral (PMDB-RJ) –tem o pai e patrono na penitenciária de Benfica.

Lucio Vieira Lima (PMDB-BA) –tem o irmão Geddel em prisão domiciliar.

Paulo Maluf (PP-SP) é um réu global. Já foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal e não pode entrar nos Estados Unidos nem na França.

Pote de malvadezas espera Janot
Há um pote de malvadezas à espera do doutor Rodrigo Janot a partir do dia 18 de setembro, quando ele perde o foro do Supremo Tribunal Federal e vai para a alçada do STJ.

Gente que ele flechou pensa em processá-lo, nem que seja só para aporrinhá-lo.

DOUTOR LOPES
O professor Francisco Lopes, ex-presidente do Banco Central, produziu uma pérola de raciocínio econômico e político. Ele disse o seguinte:

"Não importa se a estimativa de R$ 139 bilhões para o deficit primário do governo central em 2017 vai ser 'estourada' em cerca de R$ 35 bilhões. Isto é totalmente irrelevante, não deveria ser motivo de preocupação nem para a mídia nem para o governo."

Tudo bem que a sabedoria do doutor possa lastrear a ideia de que R$ 35 bilhões não fazem diferença. Quem parlapateou a cifra foi o ministro Henrique Meirelles : meta de R$ 139 bilhões de deficit será cumprida, sim."

O que falta a Lopes é autoridade para dizer o que deve ser preocupação para a imprensa. A menos que ele esteja sugerindo que a imprensa não deveria ter dado importância à promessa do governo.

PAES SEM SORTE
O ex-prefeito do Rio Eduardo Paes precisa de um banho de folhas de arruda. Na quinta-feira deu aos cariocas um longo artigo falando bem de Eduardo Paes e comemorando sua Olimpíada.

O sujeito lia o texto do doutor, aprendia que sua gestão foi exemplar e estão aí obras como a linha da Transcarioca. O infeliz ligava a televisão e via a Polícia Federal levando para a cadeia Alexandre Pinto, secretário de Obras de Paes, acusado de morder as empreiteiras que fizeram a obra da Transcarioca.

A corrosão do consenso básico - FRANCISCO FERRAZ

ESTADÃO - 06/08

Quando tudo é contestado, o resultado é uma democracia instável, imprevisível


Vivemos uma crise multifacetada: econômica, política, social jurídica, cultural, ideológica e histórica. Mais grave que os aspectos econômicos, sociológicos ou jurídicos da crise, contudo é seu agravamento político. Estamos num rumo perigoso. No Brasil tudo está em questão. A isso nos levou a confusão cultural, normativa e comportamental que resultou da dilaceração do tecido social.

Qualquer sociedade democrática precisa institucionalizar valores básicos, subscritos por sua população, para assegurar sua estabilidade e um ordenado e legal processo político de mudança. Quando não há consenso em torno desses valores básicos ou quando se instala um conflito radical entre eles, a Nação tende a se dividir em dois blocos radicais e excludentes “qui hurlent de se trouver ensemble”.

É a conhecida situação da curva em U, em que o poder foge do centro e se aloja nos extremos. Caso da guerra civil, o pior dos conflitos, cujo exemplo emblemático é a Guerra Civil Espanhola, que em julho de 1936, mais que dois blocos, deu origem a “duas Espanhas”. Nessa situação, parentes e amigos evitam se encontrar, tal a hostilidade que os valores políticos antagônicos provocam entre eles. A guerra civil é a prova definitiva de que o ódio na política é muito mais forte que o ódio no amor.

Não nos encontramos nessa situação. Mas já estivemos muito mais longe dela... Entre a Espanha da guerra civil e o Brasil da crise, a Venezuela bolivariana de Maduro já se encontra muito próxima da guerra civil. Estamos ainda longe da situação espanhola, mas não tão longe da venezuelana. Atente-se para alguns valores essenciais à vida social organizada que se encontram em conflito, contestação e deslegitimação, no Brasil.

• Democracia direta para corroer a democracia representativa – A única condenação legítima é pelo voto: implica desqualificação da legislação penal; pressão por convocação de constituintes, plebiscitos, referendos e reformas políticas para substituir competências já definidas do Legislativo e do STF; manifestações com militantes “pagos” para pressionar, e forçar, decisões legislativas ou jurídicas em normal tramitação no Congresso e no STF.

• Quebra do consenso, tudo está em questão – Redefinição contra legem da família, do regime jurídico do funcionalismo (greve), da eleição direta de dirigentes de órgãos públicos.

Família: qual sua conformação em termos de gêneros? Malicioso enquadramento da discussão família tradicional x família moderna. Sexo: escolhe-se ou é predeterminado ao nascimento? Uso de sanitários é de livre escolha?

Democracia: qual a verdadeira democracia, a representativa ou a democracia direta? Qual o valor estruturante da democracia, igualdade e liberdade política ou igualdade econômica e social? Liberdade econômica macro: quem deve ocupar-se da atividade econômica: a livre-iniciativa ou os órgãos do Estado?

Propriedade privada é legítima e legalmente protegida ou tem legitimidade discutível e precária? A “invasão” é um delito ou é um direito?

O lucro é uma conquista legítima ou um roubo, sujeito à expropriação? O mercado é necessário ou prejudicial?

A escola deve transmitir conhecimentos ou ideologia? Educação ou doutrinação? É legítimo e legal a censura por deliberada exclusão? É óbvio que, na prática política, ideologia e doutrinação serão eufemisticamente definidas como “espírito crítico”.

O criminoso é responsável por seus atos ou vítima? Liberdade de imprensa é uma garantia de liberdade ou é o abuso dos proprietários? Qual o critério legítimo para a promoção salarial ou na carreira: desempenho (mérito) ou confiança política?

Símbolos religiosos não podem ser expostos em público ou é direito de qualquer religião expor seus símbolos? A vida humana é sagrada ou instrumental?

O que é a legalidade? O Estado Democrático de Direito, suas instituições e normatividade, ou esses são apenas atributos formais, inferiores aos critérios substantivos? O que é golpe de Estado, um conceito jurídico-político ou uma expressão usada na disputa política de significado arbitrário? Como entender esta frase: seguir a virtude prejudica o País (prejuízos e custos da Lava Jato)?

• Destruição da dignidade dos Poderes e das funções – Plenário do Congresso como palco para danças folclóricas, reunião indígena, concentração de minorias organizadas. Ocupação da Mesa do Senado por senadores de um partido. Legisladores usando cartazes, igualando-se a manifestantes. Cenas de pugilato, cuspidas. Obstrução invasiva apoiada por legisladores.

Como se constata, tudo é contestado. E quando tudo é contestado, corrói-se o consenso básico. Não se trata de um consenso absoluto e irreal. Trata-se de um consenso em valores básicos, centrais e de elevada hierarquia, mediante o qual a política e a administração são previsíveis; contêm regras que os cidadãos conhecem, praticam e as instituições protegem; e se consolida numa organização política democrática, unida em torno desses valores e dividida em torno de políticas públicas.

Quando tal não sucede, quando tudo é contestado, quando tudo está sempre aberto a mudanças, o que resulta é uma democracia instável, imprevisível, de precária legitimidade e duração. Tais democracias tendem a desembocar no totalitarismo, na ditadura populista ou na cronificação da instabilidade, o que parece ser o caso do Brasil.

A listagem apresentada permite identificar, no mínimo, 40 questões intensa e radicalmente divisivas. Considere-se, entretanto, que nenhuma é de importância periférica ou secundária. São todas elas indispensáveis para a configuração política, econômica, social, jurídica e cultural do País e para a qualidade de sua democracial.

A indagação que se impõe é de hierarquia correspondente à gravidade do nosso desafio como nação democrática: como uma nação com tal grau de conflito em seus valores básicos poderá construir e manter uma democracia moderna, autêntica e estável?

* Professor de Ciência Política e ex-reitor da UFRGS, é criador e diretor do portal politicaparapoliticos.com.br

Duradoura e aberta à inovação - PEDRO GEIGER / ADAIR ROCHA

O GLOBO - 06/08

Brasil precisa de uma Constituição enxuta, para durar, que não seja um regimento. De princípios básicos, de poucos artigos e expressando o acolhimento de inovação



Marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, de 1933, perguntava: “Quem foi que inventou o Brasil?”, e respondia, “Foi seu Cabral, no dia 21 de abril, dois meses depois do carnaval”. Realmente, o que se descobriu foi um território, sobre o qual o Brasil seria construído. A marchinha é simplesmente 50 anos anterior à publicação nos Estados Unidos de “Imagining America”, de Conrad, que ficou famoso ao declarar a América como um produto da imaginação. E já anunciava a pós-modernidade, ao associar o Descobrimento e o carnaval carioca.

No começo da colonização do novo continente, o Brasil chegou a ser economicamente mais desenvolvido do que os Estados Unidos, quando, na época do mercantilismo, o comércio internacional valorizou os produtos agrícolas tropicais. No entanto, hoje o país se encontra atrasado em relação ao desenvolvimento americano, “apegado ao passado”, carente do novo. Inova-se em supérfluos, como nas formas de acesso eletrônico de contas bancárias, dando trabalho a uma população cada vez mais idosa, não em setores essenciais. A ausência de uma industrialização guiada por classe empresarial nacional, o bacharelismo, a insularidade e outras razões têm sido citadas para explicar o atraso. Qual, porém, a origem destes óbices à inteligência brasileira?

Paga-se o preço do estabelecimento da Inquisição. Iniciada antes de 1500, o Brasil se tornara um refúgio da sua presença em Portugal, mas, ela acabou se estendendo para cá, tendo durado até 1824, e coincidindo com o processo da escravidão mais longa o mundo. A Inquisição, além de instituir práticas de corrupção, utilizando acusações de fé para confiscar fortunas, conseguiu moldar qualidades sociais pautadas em expressões como “ficar no muro” e “mineirice”. Ela criou barreiras ao pensamento lógico e dialético e à prática do debate público e obstáculos a inovações.

Depois de fases nas quais se voltou para a questão da diferença de classes, o Brasil passa por um novo momento, quando reage também ao quadro cultural de imobilidade centenária, sob a influência de novas gerações, e que se expressa em atos contra a corrupção endêmica e contra a desqualificação política. É em meio deste quadro que se coloca a discussão da convocação de uma Assembleia Constituinte, e que tem o nosso apoio.

Vozes têm se oposto sob alegações corretas, de que a Constituição não é um instrumento de planejamento do desenvolvimento e que no Brasil se tem visto a sucessão de Constituições. A visão dialética é que, por isso mesmo, uma nova se torna necessária. O que se tem visto é uma sucessão de emendas constitucionais, de acordo com cada momento histórico, como as atuais reformas trabalhista e assistencial, para uma Constituição de centenas de artigos, que mais se parece com um regimento.

A Constituição dos Estados Unidos é a mesma desde a Independência, do século XVIII, e contém menos de 20 artigos, os princípios básicos do regime. Qualquer medida reguladora nova é proposta pelo Legislativo, e sua constitucionalidade é julgada pela Suprema Corte. O que se propõe, atrelada à ideia de nova Constituinte, é uma Carta enxuta, para durar, que não seja um regimento. De princípios básicos, de poucos artigos, e expressando o acolhimento de inovação, imaginação e criação.

Pedro Geiger é professor da Uerj; Adair Rocha é professor da PUC-Rio

Convicção e esperança - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ESTADÃO - 06/08

É hora de sonhar com 2018, deixar de lado o desânimo e preparar o futuro


Escrevo antes de saber o resultado da votação pela Câmara da autorização para o STF poder julgar a denúncia oferecida pelo procurador-geral contra o presidente da República. É pouco provável que a autorização seja concedida. Houve precipitação da Procuradoria, que fez a denúncia sem apurações mais consistentes. Entretanto, para o que desejo dizer, pouco importa a votação: a denúncia em si mesma e a fragmentação dos partidos no encaminhamento da matéria já indicam um clima de quase anomia, no qual algumas instituições do Estado e os partidos políticos se perderam.

Esta não é uma crise só brasileira. Em outros países onde prevalecem sistemas democrático-representativos também se observa a descrença nas instituições, por seu comportamento errático, sobretudo no caso dos partidos. Mesmo nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França – países centrais na elaboração de ideologias democráticas e na formação das instituições políticas correspondentes – se nota certa falta de prestígio de ambas. Não falta quem contraste as deficiências dos regimes democráticos com as supostas vantagens dos regimes autoritários e mesmo ditatoriais.

O contraste é falacioso, sobram exemplos de ineficiência nos regimes autoritários, sem falar na perda da liberdade, individual e pública, cujo valor não pode ser medido em termos de eficiência dos governos. Nem faltam casos para mostrar o quanto podem levar ao desastre os regimes que de autoritários passam a ditatoriais, como na Turquia atual ou, mais impressionantemente ainda, na Venezuela, onde acontece um verdadeiro horror perante os céus. Nela, a inexistência das garantias democráticas se soma ao descalabro econômico-financeiro.

Não é, contudo, o caso do Brasil. Houve, é certo, a perda de controle das finanças públicas pelo governo anterior. Mas nunca se chegou a ameaçar diretamente a democracia. Aqui o que houve foi a generalização e a sacralização da corrupção, com as ineficiências decorrentes, aprofundando a perda de confiança popular no governo e na vida política. Nesse sentido, estamos imersos num mar de pequenos e grandes problemas e tão atarantados com eles que somos incapazes de vislumbrar horizonte melhor. É isso o que mais me preocupa, a despeito da gravidade tanto dos casos de corrupção quanto dos desmandos que vêm ocorrendo.

Falta alguém dizer como De Gaulle disse quando viu o desastre da Quarta República francesa e a derrocada das guerras coloniais: que era preciso manter uma “certa ideia da França” e mudar o rumo das coisas. Aqui e agora, guardadas as proporções, é preciso que alguém – ou algum movimento – encarne uma certa ideia de Brasil e mude o rumo das coisas. Precisamos sentir dentro de cada um de nós a responsabilidade pelo destino nacional. Somos 210 milhões de pessoas, já fizemos muito como país, temos recursos, há que voltar a acreditar no nosso futuro.

Diante do desmazelo dos partidos, da descrença e dos fatos negativos (não só a corrupção, mas o desemprego, as desigualdades e a falta de crença no rumo) é preciso responder com convicções, direção segura e reconstrução dos caminhos para o futuro. Isso não significa desconhecer que existam conflitos, incluídos os de classe, nem propor que política se faça só com “os bons”. Significa que chegou a hora de buscar os mínimos denominadores comuns que nos permitam ultrapassar o impasse de mal-estar e pessimismo.

Infelizmente, os partidos, sozinhos, não darão respostas a essa busca. O quadro desastroso – quase 30 partidos atuando no Congresso, separados não por crenças, mas por interesses grupais que se chocam na divisão do bolo orçamentário e no butim do Estado – isola as pessoas e os líderes, enclausurando-os em partidos que se opõem uns aos outros sem que se veja com clareza o porquê.

Penso que o polo progressista, radicalmente democrático, popular e íntegro precisa se “fulanizar” numa candidatura que em 2018 encarne a esperança. As dicotomias em curso já não preenchem as aspirações das pessoas: elas não querem o autoritarismo estatista nem o fundamentalismo de mercado. Desejam um governo que faça a máquina burocrática funcionar, com políticas públicas que atendam às demandas das pessoas. Um governo que seja inclusivo, quer dizer, que mantenha e expanda as políticas redutoras da pobreza e da desigualdade (educação pública de maior qualidade, impostos menos regressivos, etc.); que seja fiscalmente responsável, atento às finanças públicas, e ao mesmo tempo entenda que precisamos de maior produtividade e mais investimento público e privado, pois sem crescimento da economia não haverá recuperação das finanças públicas e do bem-estar do povo.

Um governo que, sobretudo, diga em alto e bom som que decência não significa elitismo, mas condição para a aceitação dos líderes pelos que hão de sustentá-los. Brizola, referindo-se a Lula, disse que ele era a “UDN de macacão”, lembrando a pregação ética dos fundadores do PT. Infelizmente, Lula despiu o macacão e se deixou engolfar pelo que havia de mais tradicional em nossa política: o clientelismo e o corporativismo, tendo a corrupção como cimento. Não é desse tipo de liderança que precisamos para construir um grande País.

Ainda que venham a ocorrer novos episódios que ponham em causa o atual governo, e melhor seria que não houvesse, de pouco adianta substituir quem manda hoje por alguém eleito indiretamente: ao líder faltaria o sopro de legitimidade dado pelo voto popular, necessário para enfrentar os desafios contemporâneos. É tarde para chorar por impeachments perdidos ou por substituições que nada mudam. É hora de sonhar com 2018 e deixar de lado o desânimo. Preparemos o futuro juntando pessoas, lideranças e movimentos políticos num congraçamento cívico que balance a modorra dos partidos e devolva convicção e esperança à política.

*Sociólogo, foi Presidente da República

As pressões contra o novo Fies - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 06/08

A Medida Provisória que impõe novas regras, a partir de 2018, para o funcionamento do Fundo de Financiamento Estudantil já recebeu 278 propostas de emendas


Baixada há um mês com o objetivo de acabar com a oferta indiscriminada de crédito estudantil, reduzir os custos operacionais e diminuir as taxas de inadimplência, a Medida Provisória (MP) 785, que impõe novas regras para o funcionamento do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) a partir de 2018, já recebeu 278 propostas de emendas. Desse total, 42 foram apresentadas por parlamentares vinculados a entidades como a Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) e Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes).

Isso dá a medida da resistência ao fim da farra que, durante os 13 anos e meio do lulopetismo, possibilitou vultosos negócios no âmbito do ensino superior privado, levando ao surgimento de grandes conglomerados educacionais financiados por fundos estrangeiros e com ações cotadas em bolsas de valores. Essas corporações reclamam, entre outras coisas, das medidas que aumentam sua responsabilidade nos casos de inadimplência, reduzindo as obrigações do governo federal.

Atualmente, as universidades privadas destinam 6,5% do valor das mensalidades para um fundo responsável por cobrir a inadimplência do Fies. Pelas novas regras do programa, esse patamar ficará entre 13% e 20%. Num total de 2,6 milhões de contratos ativos, a taxa de inadimplência dos estudantes financiados pelo Fies, por atrasos acima de 310 dias, era de 16,4%, no início de 2017. Segundo os técnicos do Tesouro Nacional, ela poderá crescer nos próximos meses, uma vez que uma parcela relevante dos contratos de financiamento estudantil não atingiu a fase de amortização, pois os alunos ainda não concluíram o curso.

Com as novas regras do Fies, as autoridades econômicas querem fechar um buraco negro nas finanças públicas. Só em 2017, o custo fiscal desse programa está estimado pelas autoridades econômicas em R$ 30,2 bilhões – o equivalente a 0,5% do PIB. “Enquanto mais de 1 milhão de novas matrículas (não financiadas) foram realizadas na rede privada entre 2009 e 2015, o Fies concedeu, no mesmo período, mais que o dobro de novos financiamentos, alcançando 2,2 milhões de estudantes. Assim, boa parte desses contratos foi celebrada com estudantes que já cursavam o ensino superior”, diz a Nota Técnica preparada para análise do tema pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara, o que revela como as universidades privadas usaram o Fies para transferir seus riscos para a União.

Os conglomerados educacionais reclamam, também, da obrigação de pagar uma tarifa de 2% sobre as mensalidades financiadas, que é a remuneração aos agentes financeiros responsáveis pelas operações de crédito. Só com essa medida, o novo Fies economizará aos cofres públicos R$ 300 milhões por ano. Isso significa que, em dez anos, o Tesouro estará poupando de R$ 6 bilhões a R$ 7 bilhões, que poderão ser revertidos para a educação pública, e não para multiplicar os lucros dos empresários do setor educacional privado.

O reajuste das mensalidades é uma das alterações que as universidades particulares querem promover na MP 785. Pela proposta do governo, as instituições têm de definir a previsão do reajuste na assinatura dos contratos de financiamento. Para elas, essa regra as impedirá de repassar para as mensalidades não só as taxas de inflação, mas, também, os eventuais investimentos que fizerem. Outra emenda patrocinada pelas instituições prevê o uso do FGTS para pagamento do financiamento estudantil.

Definidas em meio a um controle mais severo das finanças públicas, as regras impostas pela MP 785 ao Fies consolidam modelo mais restritivo e responsável na concessão de crédito estudantil. Acostumadas a registrar lucros milionários e a atuar sem riscos na época do antigo Fies, era natural que as universidades resistissem a essa mudança. Elas não perceberam que, com o fim do capitalismo de compadrio do lulopetismo, seus lucros, a partir de agora, terão de vir da qualidade de seus sistemas de gestão, e não de benesses do poder público.