domingo, março 12, 2017

A cobrança dos netos - CELSO MING

ESTADÃO - 12/03

Se essa reforma ficar apenas no cosmético e nas gambiarras, a atual geração corre o risco de ser acusada de egoísmo; a definição de um limite de idade é tecnicamente imprescindível

A reforma da Previdência Social é inevitável e inexorável, mas será incompleta.

Além disso, enfrenta grave potencial de conflito entre gerações e algumas grandes contradições. O que deixar de ser feito agora será dolorosamente cobrado no futuro, porque a conta será descarregada sobre os que vêm vindo aí.




Infográficos/Estadão

Se essa reforma ficar apenas no cosmético e nas gambiarras, a atual geração corre o risco de ser acusada de egoísmo, de excessivamente acomodada e de falta de compromisso com filhos e netos. Quanto maior for o rombo futuro da Previdência, tanto maior será o tamanho da conta a ser descarregada sobre os que estiverem começando.

A definição de um limite de idade é tecnicamente imprescindível. Mas enfrenta uma contradição. Quanto mais tempo tiver de esticar sua vida ativa para fazer jus ao benefício da aposentadoria, tanto mais o trabalhador manterá fechada sua vaga para os que vêm depois. Em outras palavras, o aumento do limite de idade tende, por esse lado, a contribuir para o desemprego entre os mais jovens.

Essa conclusão não pode ser absolutizada porque, entre os problemas permanentes do mercado de trabalho em quase todos os setores, está a baixa oferta de emprego para os cinquentões. Esse é fator que tira importância à contradição anterior, mas leva a outra. Se não encontrar emprego depois dos 50 anos e tiver de esperar até os 65 anos para se aposentar, o trabalhador terá dificuldade em honrar sua contribuição para a Previdência e, nessas condições, não ajudará a cobrir o déficit.

Há quem argumente que essa faixa etária tende a migrar para o trabalho autônomo, especialmente para o setor de serviços. É o caso do metalúrgico que vira motorista do Uber ou o da funcionária de indústria têxtil que passa a vender cosméticos de porta em porta.

O problema aí é que, mesmo que esses autônomos garantam o pagamento da própria contribuição mensal para o INSS, ficará faltando a parte da empresa na cobertura do rombo.

Não é apenas o envelhecimento da população e outros determinismos demográficos (veja o gráfico) que vêm sabotando o esquema convencional de financiamento da Previdência. A radical metamorfose do emprego também contribui para isso. Toda atividade econômica enfrenta hoje revolução tecnológica altamente poupadora de mão de obra.




Infográficos/Estadão

A inteligência artificial, a internet das coisas, a tecnologia da informação e toda a parafernália digital vieram para ficar e por onde ficam fecham empregos. São os bancos que transformam celulares e iPads em agências bancárias; são as vendas do comércio pela internet que dispensam instalação de lojas e contratação de vendedores; é a nova arrumação da produção e a automação industrial que levam as empresas a operar com uma fração do contingente de funcionários com que operavam antes.

Ou seja, embora inevitável para conter a trajetória em direção à insolvência, a reforma da Previdência que vem aí será necessariamente insatisfatória. No dia seguinte à sua aprovação pelo Congresso, será necessário começar a pensar nas etapas seguintes, de maneira a não deixar as novas gerações na rua da amargura.


Na corte do Rei Artur - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 12/03

Janot decidiu não quebrar o sigilo da ação internacional da Odebrecht: é o que dizem os jornais



As revelações dos dirigentes da Odebrecht inauguram a fase da tsunami que deverá levar o Brasil a reformar seu sistema político. Não podia dar certo. A Odebrecht deu R$ 10,5 bilhões aos políticos. De um modo geral, ela ganha quatro vezes o valor de suas propinas. Uma só empresa, portanto, deve ter faturado R$ 42 bilhões de vantagem nessas operações. Janot decidiu não quebrar o sigilo da ação internacional da Odebrecht: é o que dizem os jornais. Isso esconderia um pedaço do Brasil por algum tempo.

É um pedaço tão sinistro que, no futuro, de alguma forma, o país terá que se desculpar por ele. Interferência em seis processos eleitorais estrangeiros, compra de ministros e até de presidentes, como no Peru — tudo isso é um escândalo sem precedentes. Ele vai se tornar muito mais grave se concluirmos que a Odebrecht foi financiada pelo BNDES. A corrupção no continente e na África era movida com dinheiro oficial, um eufemismo para dinheiro do povo.

Os danos à imagem do Brasil, infelizmente, não se esgotam nessa trama que Janot, aparentemente, quer manter em sigilo. O jornal “Le Monde”, numa reportagem de grande repercussão, afirmou que o Brasil teria comprado a escolha do Rio para a Olimpíada. Um empresário brasileiro depositou cerca de US$ 1,5 milhão na conta de um dirigente do COI. Nesta semana, um dos envolvidos no episódio, Frank Fredericks, pediu demissão. Ele monitorava o sorteio e levou US$ 300 mil. O mais interessante da história é o personagem que surgiu como o corruptor ativo, o empresário brasileiro Arthur César de Menezes Soares Filho, velho conhecido da política fluminense: o Rei Artur. Ele era dono da Facility e tinha amplos negócios com o governo Cabral. Eram amigos. Lá fora, isso não importa. O que as pessoas guardam é a ideia de que o Brasil comprou a Olimpíada.

Se chamo a atenção para as manchas na imagem do país é porque realmente me sinto um pouco confuso sobre o país em que estou vivendo. Em 1949, os norte-americanos fizeram um filme chamado “Na corte do Rei Artur”. É a história de um mecânico que leva um golpe na cabeça e acorda na corte do Rei Artur, no século XVI, e se apaixona por Alessandra. São os artifícios da máquina do tempo. Agora, levamos uma pancada na cabeça e acordamos na corte do Rei Artur, uma versão pós-moderna na qual o melhor amigo do rei é, na verdade, o Tio Patinhas, Sérgio Cabral, que estocava dinheiro, joia, ouro, diamante, quem sabe um dia para despejá-los em sua piscina de Mangaratiba.

Sempre se falou no Rei Artur e em seus negócios escusos. Mas comprar uma Olimpíada é algo que surpreende pela audácia, assim como surpreende pela audácia a fortuna de seu amigo, que considerávamos apenas um corrupto de médio porte. Nesse livre devaneio, a corte do Rei Artur se estende por todo o país. Levamos uma pancada na cabeça e constatamos que o sistema partidário brasileiro está em vias de desaparecimento.

Marcelo Odebrecht, bobo da corte? É um luxo mesmo para um lugar com tanta esperteza. Literalmente, essas empresas devem ter roubado do Brasil o valor do déficit orçamentário deste ano, R$ 139 bilhões. Associadas a um governo corrupto, roubaram tudo o que podiam aqui e, com uma parte do dinheiro, foram comprar autoridades lá fora. E como se não bastasse, o tronco fluminense teria comprado uma Olimpíada, uma festa internacional teoricamente voltada a estimular valores éticos e fraternidade entre os povos.

Finalmente roubaram também a limpidez da imagem do país no exterior. Esse sistema político partidário está pela hora da morte. A insistência da esquerda em negar o gigantesco processo de corrupção e o papel de Lula no seu comando é um dado imutável, mas, ao mesmo tempo, decisivo para as eleições de 2018. A autocrítica é uma saída que poderia fortalecer a esquerda a longo prazo, mas a tiraria do páreo. Por outro lado, o confronto com a avalanche de dados que surgem das delações e documentos é um caminho masoquista que vai arrasá-la ainda mais.

Apesar da pancada na cabeça que me levou à corte do Rei Artur, creio que posso imaginar paisagem depois da batalha ao acordar desse golpe. Passada a tsunami, o sistema partidário será levado na enxurrada ou terá de se abrigar em patamares éticos mais elevados, através de uma reforma.

E as eleições presidenciais brasileiras podem tomar, por caminhos diferentes, o mesmo rumo da francesa. Pela primeira vez, a tradicional alternativa esquerda-direita não irá ao segundo turno.

O chamado momento pós-ideológico não significa o fim do populismo, pois na França, assim como nos Estados Unidos, ele assume outras formas, canaliza o ressentimento popular e torna-se um dos atores principais do processo.

No filme “A corte do Rei Artur”, o mecânico americano Frank Martin, de Connecticut, termina pedindo reformas no reino. Aqui, além de reformas, algumas prisões são necessárias, inclusive a do próprio rei.

CLT é uma fábrica de conflitos judiciais - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 12/03
O resultado de se manter uma legislação trabalhista arcaica e onerosa é o desestímulo ao emprego formal e o incentivo a um improdutivo contencioso jurídico


Desembarcar de forma desavisada no longo debate que se trava sobre a modernização da anacrônica legislação trabalhista pode levar a equívocos. Motivos para atualizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não faltam. Na sua essência, trata-se de uma legislação forjada na década de 40, no Estado Novo de Getulio, inspirada no controle da sociedade pelo fascismo de Mussolini.

Assim tem sido, mesmo que o Brasil pouco industrializado daquela época haja mudado de patamar de desenvolvimento — e também de problemas. O próprio avanço econômico e a urbanização do pós-guerra teriam de levar a adaptações naquele modelo paternalista e, com o passar do tempo, desincentivador do emprego formal. Não foram feitas reformas de peso, e, para tornar tudo mais difícil nas relações trabalhistas, a revolução da microeletrônica e a internet, bases da fragmentação das linhas de produção, pulverizaram o que restava da ideia de emprego embutida na CLT, sob a proteção do Estado. Eis por que a legislação trabalhista foi convertida numa usina de litígios, dada a sua inadequação crescente à forma como funcionam os mercados globalizados. Mesmo com Trump na Casa Branca.

Apenas no ano passado, a Justiça Trabalhista — inexistente em vários países — recebeu 3 milhões de novas ações, estatística impulsionada pelo desemprego. Com uma CLT arcaica tudo pode justificar uma reclamação trabalhista, e sempre haverá um escritório de advocacia especializado em arrancar um acordo com o patrão e uma indenização com deságio, parte da qual remunerará advogados. É uma indústria rentável. Por isso, segundo o sociólogo José Pastore, especialista em relações de trabalho, o Brasil é campeão mundial de processos trabalhistas.

Mas todo este aparato criado para supostamente defender o assalariado não consegue obter, por exemplo, o que os trabalhadores chineses têm conseguido em um país sem a miríade de direitos incluídos na CLT: os salários chineses triplicaram na última década; o pagamento por hora já é maior que o praticado em toda a América Latina, com exceção do Chile. E já representa 70% da remuneração salarial nas economias menores da zona do euro. Por exemplo, Portugal. Não se sustenta, portanto, o argumento de que a regulação excessiva do mercado de trabalho ajuda o emprego e a melhoria de remuneração. É o oposto. Outra prova disso é que, enquanto o salário dos chineses tem subido, o dos brasileiros e argentinos — dois dos mais “protegidos” assalariados — tem caído. Também em função dos equívocos das políticas econômicas kirchneristas e lulopetistas, ambas intervencionistas.

É por isso que há inclusive segmentos do sindicalismo a favor da proposta de reforma pela qual, com a exceção de certos itens da CLT, questões acertadas entre as partes serão aceitas pelos tribunais trabalhistas, independentemente da legislação. Será um choque de bom senso.

O erro de antecipar o processo eleitoral - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 12/03

Movimentação tão antecipada tem um efeito certo: a desvalorização do exercício da Presidência da República até o final de 2018



É compreensível que Lula da Silva queira antecipar o processo eleitoral de 2018, manifestando desde já sua disposição de concorrer uma vez mais à Presidência da República. Com tal gesto, o ex-presidente evidencia o duplo desespero que o move: o medo de ser condenado e preso e o temor de ver extinto o seu partido político, afogado no mar de lama que ele mesmo criou.

É estranho, no entanto, que essa antecipação do processo eleitoral também esteja sendo promovida por políticos que fazem parte da base aliada do governo federal. Recentemente, o governador Geraldo Alckmin afirmou sua pretensão de ser candidato à Presidência da República, ressaltando o óbvio: que a efetivação desse desejo depende da vontade do partido. Já tem ao menos um aliado para seu objetivo, pois, no mesmo dia, o prefeito João Doria disse que o governador de São Paulo é seu candidato ao Palácio do Planalto em 2018.

Essa movimentação tão antecipada – faltam ainda 19 meses para as eleições – tem um efeito certo: a desvalorização do exercício da Presidência até o final de 2018. Será esse o objetivo de tanto açodamento? Ainda há muito a se fazer para que o País comece a discutir os nomes de quem poderá estar no governo em 2019. Há uma grave crise social e econômica a ser enfrentada. Há importantes reformas a serem votadas. Agora, o que importa ao País não é 2018 – é o presente.

Há, no entanto, políticos que parecem ter dificuldade em compreender as circunstâncias do País e suas atuais batalhas, mais se preocupando – assim denotam algumas de suas palavras – em garantir uma vaga nas inscrições para a corrida presidencial. É natural que, numa democracia, os políticos se preocupem com as eleições seguintes. Mais do que uma questão de simples sobrevivência pessoal, trata-se de uma legítima e necessária preocupação com a continuidade das ideias e ideais políticos de seus eleitores.

O problema ocorre quando a preocupação com as eleições solapa as batalhas presentes. O dever fundamental da base aliada do governo é apoiar o presidente Michel Temer em seu compromisso de levar adiante as reformas de que tanto o País necessita. Quando, nas vésperas da votação da reforma da Previdência, alguns políticos ensaiam uma antecipação do processo eleitoral estão de fato, qualquer que seja sua intenção, diminuindo o presidente da República.

Mais do que representar um caso de enfrentamento pessoal – o que já seria grave –, a antecipação do processo eleitoral prejudica o atual andamento das reformas no Legislativo. Tal movimento faz parecer que o País vive tão somente um mandato presidencial tampão, simplesmente a preencher uma lacuna temporária até 2019. Entende-se que o PT, em seu desespero, pretenda dar ao mandato de Michel Temer esse enquadramento. O que não se entende é que a base aliada atue com semelhantes modos.

Tal postura não significa “apenas” uma desunião na base aliada, o que já seria grave, pois atrapalharia o governo em sua obrigação de tirar o País da crise. Ela manifesta uma perigosa cegueira a respeito da realidade do governo de Michel Temer.

Não se trata de uma questão de afinidade política reconhecer que o atual governo não é meramente um governo-tampão. Basta simplesmente um breve repasse no conjunto das ações já tomadas e nas medidas propostas pelo Palácio do Planalto nesse período de menos de um ano para perceber que há um governo disposto a pôr o País nos trilhos.

Constatar o compromisso do atual governo com as reformas não significa esconder eventuais equívocos cometidos pelo Palácio do Planalto. Há erros não pequenos, que merecem pronta correção. Nada disso, porém, legitima uma atuação que beira a irresponsabilidade, especialmente nesses momentos decisivos para o País, quando, depois de muito tempo, reformas importantes estão em debate.

Fossem os políticos envolvidos no episódio menos experientes, até caberia classificar seu açodamento como ingenuidade. No entanto, são eles bem curtidos na lide do jogo político, conhecendo como poucos as consequências políticas de seus atos e de suas palavras.

Gastos previdenciários no Brasil são altos na comparação com OCDE - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 12/03

O quadro representa o gasto previdenciário para diversos países. Os dados foram obtidos no site da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). No eixo horizontal, está representada a razão de dependência de diversas sociedades. Trata-se da razão entre a população com 65 anos ou mais e a população economicamente ativa, isto é, com idade entre 20 e 64 anos.

No eixo vertical está representado o gasto do setor público com aposentadorias e pensões de servidores e trabalhadores do setor privado, além de benefícios não contributivos, e outros benefícios para a terceira idade, como gastos com mobilidade de idosos e subvenção pública para asilos. Foram excluídos os gastos com aposentadoria por invalidez.

Para o Brasil, empregamos os dados públicos, do Tesouro e do Ministério da Previdência Social, sobre os gastos com aposentadorias e pensões dos servidores e do setor público, rurais e urbanos, além dos benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas).

Editoria de Arte/Folhapress



Nosso gasto se equipara ao da França e é pouca coisa menor do que o da quebrada Grécia, apesar de a razão de dependência por lá ser quase três vezes maior do que a nossa.

É óbvio que as regras de concessão de benefício previdenciário são no Brasil totalmente fora do razoável em comparação aos países da OCDE. Diversas simulações indicam que, quando tivermos a estrutura demográfica da Grécia, se nada fizermos, o gasto atingirá 22% do PIB. Antes disso, nossa economia perderá a capacidade de crescer e nossos filhos serão ainda mais pobre do que somos.

A reforma da Previdência, além de ter importante impacto de lon- go prazo sobre o Orçamento, aumentará no médio prazo a taxa de poupança, contribuindo para a redução de forma sustentada das taxas de juros.

Trata-se da reforma mais importante para recuperarmos a solvência fiscal e com ela a estabilidade macroeconômica e o crescimento econômico.

A resistência das corporações - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 12/03

Demandas salariais das forças de segurança ocasionalmente ultrapassam a negociação administrativa e repercutem na política.

A questão militar foi um dos motivadores da Proclamação da República. Um movimento em que o principal marechal apoiava a monarquia e o imperador até a véspera e a maioria da população terminou por ser excluída do processo eleitoral.

O golpe de 64, que inaugurou uma longa ditadura, foi antecedido pelas virulentas manifestações de militares de todos os andares, nas mais diversas direções.

A extrema esquerda e a extrema direita, no Brasil, divergem nas alianças que fazem, mas compartilham muito da agenda econômica e do desrespeito ao Estado de Direito para impor as suas demandas.

Ambas são nacionalistas, protecionistas, acreditam na capacidade do Estado em liderar o desenvolvimento econômico e têm pouca confiança nos mecanismos democráticos de mediação de conflitos.

Existem muitos exemplos da resistência de algumas corporações ao ajuste necessário decorrente de um poder público que prometeu mais do que pode oferecer. Empresários rejeitam discutir os benefícios obtidos nos últimos anos, como desonerações ou incentivos fiscais. Grupos de servidores reagem a medidas de ajuste, como no Paraná em 2015 ou no Piauí em 2016.

Recentemente, houve a paralisação da Polícia Militar no Espírito Santo, o que é proibido pela Constituição. Os agentes, com salários em dia graças ao ajuste fiscal, pleiteavam reajustes inviáveis diante da queda de receita.

Segundo investigação da Polícia Federal, reportada pelo jornal "O Estado de S. Paulo", havia uma rede de apoio ao movimento, incluindo vários deputados federais que compartilham uma agenda identificada com a extrema direita.

O governo não cedeu e a paralisação foi interrompida. Centenas de policiais estão sendo processados, alguns presos.

Esse conflito exemplifica as consequências de um ajuste fiscal organizado. As corporações reagem, em alguns casos com o inaceitável sacrifício de inocentes, mas seu poder de barganha é reduzido. A transparência e o ajuste compartilhado auxiliam resistir à demanda por benefícios dos grupos organizados em detrimento da maioria.

Outros governos estaduais, porém, cedem às corporações, e o resultado é uma crise fiscal desorganizada. Alguns obtêm reajustes e recebem seus salários em dia, enquanto os demais sofrem com atrasos nos pagamentos.

A resposta desorganizada lembra as consequências da alta inflação dos anos 1980, em que grupos de interesse conseguiam reajustes ou subsídios e a conta era paga de forma difusa pelo restante da sociedade, com a perda de renda real e a deterioração da economia.

Pressão estrutural por gastos públicos (1) - PEDRO MALAN

ESTADÃO - 12/03

Corremos o risco de um 'futuro adiado' se não nos erguermos à altura dos desafios do presente



Este é o primeiro de uma série de três artigos sobre três processos de mudanças de longo prazo que marcaram nossa experiência ao longo de décadas passadas e continuarão a marcar décadas vindouras. Muito além dos debates de 2017-2018 e dos próximos mandatos presidenciais de 2019-2022 e 2023-2026.

As três mudanças de longo prazo estão na raiz da pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil. Uma pressão que acabou por tornar imperativa a emenda constitucional sobre limites à expansão continuada desses gastos e da reforma da Previdência, ora no Congresso, sem a qual, entre outras, o Brasil não terá condições de retomar o crescimento sustentado com inflação sob controle e maior justiça social.

O primeiro processo, como pano de fundo, é o elo crucial entre mudanças demográficas e urbanização: o Brasil é hoje a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. O Brasil será um “case” (estudo de caso) de relevância e interesse global, dada a sua extraordinariamente rápida transição nessa área.

O segundo processo diz respeito às nossas flagrantes necessidades e carências de infraestrutura “física” (transporte, energia, portos, saneamento) e à força histórica do apelo ao “desenvolvimento nacional”, tido por muitos como “intensivo em Estado”.

O terceiro processo de mudança de longo prazo está ligado às nossas não menos flagrantes necessidades e carências de “infraestrutura humana” (educação, saúde, segurança) e às legitimas pressões por menor desigualdade na distribuição de renda e de oportunidades.

Esses três processos de mudança exigem respostas de sucessivos governos – democráticos (como no Brasil de 1946-1964 e de 1985 ao presente) ou centralizadores e autoritários (como em 1937-1945 e 1964-1985). Todos, sem exceção, tentando responder aos desafios postos por essas mudanças nas circunstâncias e restrições sob as quais operam.

Regimes democráticos permitem uma ampla gama de expressões dessas demandas. Mas nas suas respostas a elas estão sujeitos a ritos do Parlamento e a decisões judiciais, enquanto regimes centralizadores/autoritários podem restringir a expressão dessas demandas, por um lado, e, por outro, ser mais seletivos no atendimento daquelas a que decidem responder – ou ignorar. O restante deste artigo trata da extraordinária singularidade brasileira no quesito demografia/urbanização.

O Brasil é o quinto maior país do mundo em termos de população (e extensão territorial) e o quarto maior país em termos de população urbana. É o terceiro em termos do aumento, em números absolutos, da população urbana entre 1950 e o presente, superando o aumento equivalente dos EUA no período. Enquanto nossa população total aumentou cerca de quatro vezes entre 1950 e 2017 (de 51,9 milhões para 207,6 milhões estimados), a nossa população urbana passou de 36% do total em 1950, para cerca de 86% em 2017 (isto é, de 18,7 milhões para 178 milhões, um aumento de 9,5 vezes). Nem nos EUA o aumento absoluto da população urbana no período chegou aos nossos 160 milhões (178-18) no período. Nem as populações urbanas da China e da Índia no período se multiplicaram 9,5 vezes. Somos hoje a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo, após Índia e EUA.

Mais importantes são a rapidez vertiginosa com que cresceu a nossa população (total e urbana) desde o pós-guerra e a velocidade não menos vertiginosa com que nossas taxas de crescimento populacional vieram declinando no curto espaço de pouco mais que uma geração, desde os anos 90. De taxas de crescimento que chegaram a superar os 3% ao ano nos anos 50 e 60 (média de 2,8% ao ano entre 1950 e 1980) passamos hoje, em 2017, a uma taxa de crescimento populacional da ordem de 0,77% e declinará para menos de 0,4% na segunda metade da próxima década.

Nossa população total, hoje de 207,6 milhões, chegará aos 218 milhões por volta de 2025, alcançará seu ponto máximo de pouco mais de 228 milhões no início dos anos 2040 e começará a declinar, voltando aos 218 milhões em 2060. A partir de 2050 só a faixa etária dos 60 anos de idade ou mais estará crescendo.

A expectativa de vida ao nascer de um brasileiro em meados na década dos 1940 era da ordem de 45 anos. Hoje a expectativa de vida ao nascer é de mais de 75 anos (79 para mulheres e 72 para homens). Mas para quem chega aos 55 anos (próximo da idade média de quem se aposenta por tempo de contribuição) a expectativa de vida é de 81 anos, ou seja, 26 anos mais. Para quem chega aos 65 anos, a expectativa é de 82 anos para homens e 85 para mulheres.

Os idosos representam hoje 12 dentre cada 100 trabalhadores. Em meados da próxima década devemos chegar a 18 para cada 100. Em 2050 chegaremos a 30%. Em 2060, dado que só a faixa etária dos 60 anos ou mais estará crescendo, e todas as outras diminuindo, os idosos representarão cerca de 45% do total. Parece longe? Infelizmente, não.

Sem mudanças como as contempladas na PEC ora em discussão, os benefícios previdenciários e os déficits da área cresceriam, aceleradamente, nos próximos dez anos, reduzindo a participação de outras áreas no Orçamento, incluídos os gastos com educação, segurança e serviços na área de saúde, exatamente quando estarão aumentando as demandas derivadas do crescimento rápido da população relativa de idosos no conjunto da população.

É muito real o risco de ficarmos “velhos” muito antes de ficarmos “ricos”, por exemplo: chegar, pelo menos, ao nível de renda per capita de países do sul da Europa, que têm de 50% a 66% da renda per capita dos EUA (o Brasil tem hoje pouco menos de 30%, na mesma base de comparação). Corremos o risco de um “futuro adiado” – mais uma vez –, e por vários anos, se não nos erguermos à altura dos conhecidos e nada triviais desafios do presente. Como estamos tentando – forçados por uma crise, que veio sendo contratada muitos anos antes de 2014.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC