terça-feira, outubro 31, 2017

A paranoia atual na França é que nada é natural e tudo é uma 'construção' - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 31/10

1. Como é triste a luta contra a ordem natural das coisas. Na França, sempre que uma modelo aparece em imagem comercial que tenha sido alterada digitalmente, esse abuso deve ser confessado na própria imagem. "Photographie retouchée", "fotografia retocada", eis a expressão para lutar contra a "ditadura da beleza".

Para as autoridades, as mulheres "normais" vivem oprimidas por ideais de beleza inatingíveis. O sofrimento físico e psicológico que isso provoca –distúrbios alimentares, ansiedade, depressão– exige medidas severas.

Dito e feito: se as francesas puderem ver uma Marion Cotillard sem Photoshop, dormirão descansadas depois de se confrontarem com a imagem de um ogro. "Vejam só como ela é grotesca!", dirá o bagulho redimido, com os olhos vidrados de asco.

Não tenciono perturbar as fantasias dos simples. Muito menos lembrar que essa exigência legal, com multas até R$ 140 mil, é de um paternalismo arrepiante para as mulheres. Prefiro contar uma história –a minha.

Sou colunista há 20 anos; faço televisão há praticamente metade. Isso levou-me a observar, e em certos casos a conhecer, fauna midiática diversa. Modelos, jornalistas, atores. Conclusão?

Existe a ideia difundida de que, sem maquiagem ou truques digitais, os belos não seriam tão belos. Eles mentem –e merecem ser denunciados como os falsários que são.

Não se iluda, leitor ou leitora. Ainda não conheci um só exemplar que comprove a esperança dos ressentidos. Em pessoa, os belos são quase sempre mais belos do que aquilo que aparentam. Em muitos casos, o excesso de maquiagem ou de Photoshop só estraga ou atrapalha.

A delirante medida francesa, tratando as mulheres como crianças, é uma expressão do "espírito do tempo": da ideia paranoica de que "nada é natural", tudo é uma "construção" (social ou, no caso, digital).

Na raiz dessa ideia está a mesma recusa em aceitar a inevitável injustiça da vida: a constatação melancólica de que existe alguém mais belo, mais inteligente, mais rico ou mais talentoso do que nós.

Eu, se fosse publicitário em Paris, começaria a produzir imagens comerciais com modelos "au naturel". Ou talvez não. Se o mundo descobrisse que a beleza existe mesmo, o mais certo era ilegalizá-la. Ou, no mínimo, criar cotas para a feiura.

*

2. Almoço quase sempre sozinho. Escolha pessoal. Gosto de fazer uma pausa no dia para revisitar, em sossego, a minha mobília mental.

Hoje, porém, o cardápio foi outro: na mesa do lado, uma mãe conversava com o filho como se fosse da idade do filho.

Sim, eu sei: é comum nos adultos de meia-idade a tentação humana, demasiado humana, de negarem a idade. Nos homens, então, a coisa atinge proporções de farsa.

E, se existem filhos adolescentes, com namoradas adolescentes, pior ainda: eles vestem-se como os filhos, querem ser amigos dos mesmos amigos, seguir as mesmas "tendências", partilhar os mesmos gostos e desgostos. Com sorte, quem sabe, ainda ficam com as sobras sentimentais.

Mas a neurose da idade não é apenas uma questão de vestuário. Também é de vocabulário. A mãe, para criar uma ilusão de "juventude" e "cumplicidade", partilhava com o filho as suas primeiras experiências sexuais. Com linguagem e pormenores de fazerem corar o marquês de Sade.

O rapaz, que teria uns 16 anos, escutava tudo com o olhar baixo e envergonhado. A mãe, sem entender aquela "timidez", aconselhava mais "espírito de aventura".

Sem efeito. Quando o filho percebeu que eu percebia o que a mãe não percebia, seu pensamento de náufrago foi audível para mim: "Por favor, que se abra um buraco no chão e que eu possa desaparecer dentro dele".

No fim, a mãe pagou a conta e, orgulhosa da sua "modernidade", saiu do restaurante com a esperança de que o filho, tratado como um "voyeur", jamais a irá abandonar. Sobretudo quando a velhice se tornar inapagável.

Pobre mulher. Parafraseando a célebre máxima, todos os filhos acabam por matar aquilo que amam. Um processo que dá pelo nome de maturidade.

Aos pais está reservado um papel mais modesto –e mais importante: entregar os filhos à vida, mas mantendo a dignidade.

Destruindo riqueza - HELIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 31/10

SÃO PAULO - A economia cresce encontrando soluções, em geral tecnológicas, para reduzir ineficiências e, nesse processo, libera mão de obra.

Um exemplo esclarecedor é o do emprego agrícola nos EUA. Até 1800, a produção de alimentos exigia o trabalho de 95% da população do país. Em 1900, a geração de comida para uma população já bem maior mobilizava 40% da força de trabalho e, hoje, essa proporção mal chega a 3%. Quem abandonou a roça foi para cidades, integrando a força de trabalho da indústria e dos serviços.

Esse processo pode ser cruel para com indivíduos que ficam sem emprego e não conseguem se reciclar, mas é dele que a sociedade extrai sua prosperidade. É o velho fazer mais com menos.

A internet, com sua incrível capacidade de conectar pessoas, abriu novos veios de ineficiências a eliminar. Se você tem um carro e não é chofer de praça nem caixeiro viajante, ele passa a maior parte do dia parado, o que é uma ineficiência. Se você tem um imóvel vago ou mesmo um dormitório que ninguém usa, está sendo improdutivo. O mesmo vale para outros apetrechos que você possa ter, mas são subutilizados.

Aplicativos como Uber, Airbnb e demais tecnologias de compartilhamento, ao ligar de forma instantânea demandantes a ofertantes, permitem à sociedade fazer muito mais com aquilo que já foi produzido (carros, prédios, tempo disponível etc.), que é outro jeito de dizer que ela fica mais rica (não discuto aqui a repartição dessa riqueza).

É claro que isso só dá certo se o poder público não estragar tudo, criando regulações desnecessárias que embaracem os acertos voluntários entre as partes. Lamentavelmente, é isso que o Senado deve fazer ao aprovar as novas regras que burocratizam a oferta de serviços como o Uber, tornando-os indistinguíveis dos táxis. Dá para descrever isso como a destruição de riqueza.


Criminalidade e democracia - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 31/10

Em todos os tempos e todos os lugares essa gente do poder voa quando o povo lhe dá asas.


O que leva o ser humano ao crime é uma questão controvertida, mas a da segurança pública é bem mais objetiva. Nós com 29,5, eles com 4,2 assassinatos por 100 mil habitantes, apesar de todas aquelas armas, as idas e vindas dos Estados Unidos no tratamento desse problema podem ter algum valor didático.

Na esteira da luta pelos direitos civis nos anos 50 e 60 a Suprema Corte, refletindo a “narrativa” política dominante na época, aprovou medidas para reforçar os direitos dos condenados. Sendo o crime “consequência da má distribuição de renda” e a política penal “enviesada por preconceitos de classe e raça”, era hora de o sistema se voltar precipuamente para a reabilitação das “vítimas da sociedade”.

A nova orientação resultou num declínio acentuado da população carcerária, mas a partir do meio da década as taxas de crimes violentos (incluem mais que assassinatos) começaram a subir. Foram de 200,2 por 100 mil em 1965 para 363,5 no fim da década e 487,8 por 100 mil em 1975.

O movimento pelos direitos das vítimas do crime decolou junto com o de libertação feminina, que denunciava as Cortes por culparem as vítimas nos crimes de estupro. Mas muito mais gente se sentiu embarcada nessa inversão. Surgiam associações por todos os lados exigindo o fim do prende e solta do Judiciário. Os “Pais de Crianças Assassinadas”, as “Mães Contra a Direção Alcoolizada”, a “Organização Nacional de Assistência às Vítimas do Crime” (NOVA)...

No mesmo 1975, Robert Martinson, do New York City College, publicou a primeira pesquisa nacional séria de resultados de programas de reabilitação. Eram praticamente nulos. Os fatos diziam que era impossível prever racionalmente a periculosidade futura de alguém pelo seu comportamento na prisão e que a reincidência era praticamente a norma para os criminosos que tinham tido penas encurtadas. Àquela altura, com todos os mecanismos de redução e de “penas alternativas” os condenados estavam cumprindo apenas 37% de suas sentenças na média nacional. O movimento focou, então, no conceito de “Veracidade das Sentenças”. Tanto para dar satisfação às vítimas quanto para desincentivar o crime, dizia-se, era necessário deter o prende e solta e o faz de conta do Judiciário e fazer com que as sentenças expressassem as penas que de fato seriam cumpridas.

Mas a execução foi mais difícil que a formulação da ideia. A discussão arrastava-se ainda quando em 1981, com Reagan presidente, os instrumentos de democracia semidireta, que andavam meio esquecidos, voltaram triunfalmente à cena com a revolta nacional contra impostos iniciada pela Proposition n.º 13 (dê um google que o caso é ótimo), uma lei de iniciativa popular contra um aumento abusivo do imposto sobre propriedade (IPTU) na Califórnia. Rapidamente o exemplo migrou para a área da segurança pública. Em 1982 os eleitores da Califórnia aprovaram, com a Proposition n.º 8, uma “Carta dos Direitos das Vítimas do Crime”. Ela começava por afirmar oficialmente que “a prisão serve para punir os criminosos”. Além de baixar a idade para tratar como adultos os criminosos juvenis violentos, ela estabelecia o conceito “Três Crimes e Você está Fora” (“Three Strikes and You’re Out”), dobrando a pena para o segundo e dando prisão perpétua a quem cometesse o terceiro. Na sequência, 21 Estados passaram leis populares impondo sentenças mínimas e critérios rígidos para a progressão de penas. “Comitês de sentença” independentes e instâncias de recurso contra reduções determinadas por juízes foram tentados. E a população carcerária começou a aumentar.

Com a “Epidemia do Crack”, que lá ocorreu nos anos 80, a situação tornou-se explosiva. Antigos hospitais, quartéis e depósitos foram transformados em presídios, às pressas. Estados como Michigan e Iowa passaram problemas tão graves que acabaram por criar mecanismos de “progressão de pena de emergência”, libertando prisioneiros escala de crimes acima toda vez que os níveis máximos de lotação dos presídios eram ultrapassados.

O movimento de refluxo teve início com a diferenciação entre traficantes e usuários e o estabelecimento de penas alternativas só para estes. Passo a passo, anos 80 afora, a nova tendência – “a segurança da sociedade vem em primeiro lugar e a conveniência do infrator deve estar subordinada a ela” – foi-se firmando com as penas de reclusão aumentando para crimes violentos e as alternativas se generalizando preferencialmente para crimes contra a propriedade.

Reconhecendo que o pêndulo tinha ido longe demais na volta do excesso de leniência, os californianos, em reformas sucessivas, também acabariam por revogar definitivamente a regra dos três crimes, em 1996. Mas com as experiências acumuladas o país chegou, em 1994, ao Violent Crime Control and Law Enforcement Act, assinado por Joe Biden, que recomendava 60 reformas incorporando o conceito de “Veracidade das Sentenças”, criando restrições mais bem definidas para a progressão de penas, institucionalizando os comitês de condicional para substituir a solitária discrição do juiz nessa tarefa, criando um fundo nacional para a construção de prisões e contratação de policiais, definindo crimes de ódio e dando outras providências.

As reformas nos Estados e nos municípios prosseguiram, então, a partir de um novo patamar mais claro e seguro para todos, pois o sentido do sistema de democracia semidireta é imitar a condição humana de mobilidade e ajuste permanente. O que ele tem de melhor é a força para trazer de volta à Terra as autoridades que o poder sem limites põe voando na estratosfera e obrigá-las a atacar os problemas que afligem a população pela vertente que lhes for indicada por ela. O resto acontece por ensaio e erro, como é adequado à nossa espécie, que, para além de estar sempre mais propensa ao erro do que ao acerto, vive num ambiente tão dinâmico que cada “solução” é sempre apenas o início do próximo problema.

Lógica - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 31/10

É isso mesmo, conforme leio por aí? O governo de Michel Temer existiu — e resistiu — enquanto longamente denunciado o presidente, mas acabou no instante em que derrubada a última denúncia contra ele? É isso mesmo, essa projeção extravagante, essa segundo a qual Temer esteve sólido para sobreviver aos movimentos dos três Rodrigos — à mala de Rodrigo Rocha Loures, ao projeto de poder de Rodrigo Janot e à traição dissimulada de Rodrigo Maia —, tudo, no entanto, para afinal amolecer e sucumbir a partir do dia em que se arquivou a derradeira acusação e, na prática, começou o pós-Janot?

Qual a lógica disso? Qual a racionalidade — senão aquela típica da torcida — em supor que um presidente há meses ameaçado por inéditas denúncias ao Supremo Tribunal Federal, classificado como chefe de organização criminosa pela Procuradoria-Geral da República, e que a todo esse conjunto de pressões institucionais suportou, torne-se fraco quando enfim engavetadas essas ações? Por favor: qual o nexo contido numa formulação dessa natureza?

Friamente, para cálculo objetivo de quem me lê, pergunto: se Temer chegou até aqui, apesar da gravação de Joesley, será provável que não chegue até lá, ao fim de seu mandato, agora que removidos os obstáculos formais erguidos pela delação do açougueiro?

Submetida a uma análise honesta intelectualmente, chafurda na ordem do ridículo a ideia de que a segunda vitória de Temer na Câmara — essa, também sobre o presidente da Casa — seria, porém, marco do fim do governo Temer, a se transformar numa espécie de rainha da Inglaterra (ou, como se falou, ao gosto empresarial, presidente do conselho de administração da firma), e início de uma gestão parlamentarista encabeçada pelo estadista Maia (o CEO da nação-empresa), a se tornar alguém capaz de liderar e propor uma agenda reformista para o país.

Curioso — mas eloquente — é que esse delírio que concebe um Rodrigo Maia primeiro-ministro do Brasil só sai das bocas de seus aliados e de membros da oposição, os petistas e suas linhas auxiliares, todos unidos para impor um discurso cujo objetivo é vender o definhamento político do presidente da República. Mas essa debilidade há? E a pujança de Maia, há?

Para que fique bem claro: não tenho dúvida de que Maia trabalhou contra Temer por ocasião da segunda denúncia — o que dá boa dimensão de sua verdadeira força. Que nos lembremos, portanto, da primeira, a de agosto, aquela — como confessaria sem querer — a que, a favor de Temer, dedicou-se para além do que lhe cabe institucionalmente, e da qual saiu como o maior vencedor. Derrubada — a contar, pois, com o empenho de Maia — com 263 votos.

Veio, então, a sessão que enterraria a última imputação contra Temer. Dessa vez, mais do que sem Maia — que, conforme dissera, apenas cumpriria sua função formal —, tendo o presidente da Câmara contra si. Resultado: 251 votos pelo arquivamento — para ser exato — de Janot. Modestos 12 a menos — eis a musculatura da falsa imparcialidade de Maia.

Um olhar objetivo — numérico — com o qual se pode colocar a assessoria de imprensa de primeiro-ministro em seu devido lugar: se, de fato, não é razoável afirmar que Temer saiu vitorioso do Congresso na quarta-feira, seguro é que Maia, contrariando a narrativa influente, foi o derrotado do dia.

Ocorre que Temer — o finado, de acordo com o jornalismo fantástico — é, no mundo real, o presidente da República, o dono da caneta, senhor das medidas provisórias e, particularmente, eficaz conhecedor do Parlamento, e isso num presidencialismo como o nosso, em que o Executivo detém pegada impositiva quase imperial. Maia, por sua vez, é o poderoso — a energia ascendente e irresistível, segundo a reportagem de fantasia — de um Legislativo, contudo, tísico, mal capaz de aprovar uma reforma, chamada de política, que outros interesses não atendiam senão os dos próprios parlamentares; o que dizer, então, de a Câmara conseguir articular e promover, como protagonista, sob a concepção de Maia, uma agenda de mudanças estruturais.

É preciso ter um pouco de vergonha antes de encampar a tese de que os méritos da evidente recuperação econômica do país — decorrente do trabalho da equipe formada e empoderada por Temer — sejam até de Maia, mas não... de Temer; o que significa lhe interditar o eventual direito de capitalizar o impacto (subestimado) da gestão econômica de seu governo sobre a vida político-eleitoral brasileira em 2018.

Sem alucinação, a pensar no futuro breve, duas possibilidades têm muito mais corpo para se materializar do que aquela — a de que Maia chefiaria um calendário reformista desde o Congresso — veiculada como mais provável; quais sejam: ou (minha aposta) o Brasil jiboiará paralisado até 2019, com o presidente protegido pelos bons indicadores econômicos, ou Temer, impulsionado por ótimos números na economia, conduzirá um enxuto programa complementar de reformas, que incluirá até um puxadinho da previdenciária.

Seja como for, convém tomar cuidado para não tornar pauta — dado da realidade — aquilo que nada mais é que sonho de Rodrigo Maia. Sim. Sei que o CEO sonha alto; mas: calma. No mundo real, a prioridade — a urgência — dele é fazer avançar a lei de abuso de autoridade.

COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO

DIÁRIO DO PODER - 31/10

APLICATIVOS: PROJETO PODE JOGAR O BRASIL NO ATRASO

Pode refletir em outros aplicativos uma eventual decisão do Congresso que proíba ou dificulte a utilização do Uber ou Cabify. Uma decisão equivocada pode condenar o Brasil ao atraso: assim como na Câmara já tramita proposta do lobby de hotéis para eliminar o aplicativo Airbnb, de aluguel de imóveis por temporada, bancários aguardam a derrota do Uber para pedir à Justiça o fim de aplicativos de internet banking.

VETA, TEMER
O ministro Moreira Franco (Secretaria de Governo) espera que Michel Temer vete qualquer prejuízo a avanços como aplicativos do tipo Uber.

CONTRA PRIVILÉGIOS
“O que não pode é prejudicar a sociedade para manter os privilégios de algumas pessoas”, afirma Moreira Franco, sobre a briga Uber x táxi.

FERRAÇO É MELHOR
Relator no Senado, Pedro Chaves (PSD-MS) quer substituir o PLC 28 da Câmara pelo PLS 530, do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES).

BOM PARA O USUÁRIO
Estudo em quatro cidades americanas mostra que para cada dólar de receita do Uber, seis dólares foram economizados pelos usuários.

PLANO DE SAÚDE DE PORTE MÉDIO COM DIAS CONTADOS
O mercado trabalha com a expectativa de que a Agência Nacional de Saúde (ANS) adotará iniciativas destinadas a cessar as atividades de planos de saúde com até 20 mil vidas (ou segurados) em 18 meses, a partir de resolução da Comissão Interministerial de Participações de Governança Corporativa. O objetivo seria concentrar o negócio nas mãos de grandes bancos e gigantes estrangeiras desse setor.

OBJETIVO CRIMINOSO
O objetivo é impulsionar o mercado privado só com vidas (segurados) de até 55 anos. Os mais velhos terão o lixo como destino. Ou o SUS.

JOGO PARA POUCOS
Quando a ANS foi criada havia no Brasil quase 4.000 seguros de saúde. Hoje restam menos de 300, e vão diminuir ainda mais.

GRANDE NEGÓCIO
As grandes corporações dominam cada vez mais o mercado de saúde suplementar, um dos melhores negócios do mundo.

PSDB NO DIVÃ
Para o ministro Moreira Franco (Secretaria de Governo), o próprio PSDB, rachado no apoio a Michel Temer, é que tem que resolver seus problemas: “Nós [do governo] não somos psicólogos”.

FIM DA MOLEZA
Ainda no carro, logo após receber alta do Hospital Sírio Libanês, o presidente Michel Temer telefonou aos ministros mais próximos insinuando que espera vê-los no “batente” durante o feriadão.

NOVINHO EM FOLHA
A expectativa em Brasília é quem irá inaugurar o presídio de segurança máxima da cidade, a partir de janeiro. As apostas são Lula, caso se confirme sua condenação no TRF4, Sergio Cabral e Eduardo Cunha.

SAUDADES DOS ‘MORTADELAS’
A ausência de milhões nas ruas protestando leva cientistas políticos ao divã do analista. Alguns acusam Michel Temer de “desmobilizar o povo”, certamente porque dinheiro público já não financia “mortadelas”.

NOME DO RIO EM VÃO
Em março de 2014, quando tentava substituir Michel Temer na chapa de Dilma Rousseff, o então governador Sérgio Cabral, hoje réu 15 vezes na Lava Jato, disse que “o Rio é Dilma”.

POSTO AMBICIONADO
Além de Sergio Cabral, que tentou substituir Michel Temer como vice de Dilma, o ministro Henrique Meirelles (Fazenda) admitiu ter sido cortejado para o mesmo cargo nas últimas duas eleições.

CONTRA O RACISMO
Sport, Náutico e Santa Cruz e o Ministério Público de Pernambuco lançam nesta terça (31) a campanha “Diga Não ao Racismo”, nos estádios locais, em novembro, mês da Consciência Negra.

PERTENCE, 80
Chega aos 80 anos no próximo dia 21 José Paulo Sepúlveda Pertence, mineiro de Sabará, torcedor doente do Atlético Mineiro e um dos mais importantes presidentes da história do Supremo Tribunal Federal.

PENSANDO BEM...
...dia que pode acabar na proibição dos aplicativos de transporte no Brasil não deveria ser Dia das Bruxas e sim Dia da Caça às Bruxas.

Estresse ou ressaca? - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 31/10

Finalmente chove em Brasília, após uma seca insuportável e em meio a um racionamento de água cruel e constrangedor, mas os três Poderes não vão comemorar, com o Feriado de Finados bem na quinta-feira. O presidente Michel Temer se recupera em São Paulo, parlamentares e ministros do STF viajam e há um enorme estresse – ou “ressaca”, como prefere o presidente da Câmara, Rodrigo Maia – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.

O Executivo atravessou o ano às voltas com as denúncias da PGR contra Temer e atuais ministros, prisão de ex-ministros, arrocho fiscal, recuos embaraçosos e impopularidade recorde do presidente, apesar de o governo, objetivamente, vir ganhando todas as votações fundamentais.

No Legislativo, é muito desgastante derrubar não só uma, mas duas denúncias contra o presidente da República no mesmo ano. E um ano pré-eleitoral, com boa parte do Congresso em compasso de espera, enquanto a rebordosa da Lava Jato não chega contra quem tem mandato e foro privilegiado. Deputados e senadores dividem-se em oposição e governo e quanto ao mandato de Temer, mas se unem no pavor ao bicho-papão da Lava Jato.

E o Judiciário chega a novembro cambaleando, com uma profunda divisão interna liderada por Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, julgamentos de imensa complexidade e responsabilidade, tudo isso transmitido ao vivo e em cores, com a “plateia” pressionando por mais rapidez e dureza nas decisões contra políticos e poderosos.

É assim que a semana começou ontem com as revisões do Orçamento de 2018, mas deve durar só até amanhã, véspera do feriado. Ninguém é de ferro. O próprio Rodrigo Maia, espremido entre as pressões do Planalto e dos seus pares, viajou para Israel, Portugal e Espanha até a semana que vem. Sem ele por perto, difícil imaginar alguma decisão bombástica no Congresso ou um movimento incisivo do governo, que já foi longe demais ao mexer no Orçamento por MP e contrariá-lo.

Mas nem em semanas assim as negociações nos três Poderes param, apenas ocorrem nos bastidores, e o foco neste momento está justamente no futuro da Lava Jato. Enquanto a Fundação Getulio Vargas e a Transparência Internacional articulam centenas de entidades por medidas que aprofundem o combate à corrupção, o Congresso vai na contramão, retoma a Lei do Abuso de Autoridade e costura projetos para, por exemplo, restringir conduções coercitivas e delações premiadas com investigados presos – consideradas, “delações sob tortura psicológica”.

O STF está dividido ao meio, com a presidente Cármen Lúcia tentando contemplar correntes divergentes e o decano Celso de Mello oscilando entre um lado e outro. É em meio a essa divisão que os 11 ministros podem derrubar a prisão de condenados em segunda instância, sem esperar o “transitado em julgado”.

Logo, o feriado serve como pausa para pensar, descansar, recuperar energias e traçar estratégias para agir, cada qual na sua direção. Isso não é ruim, é positivo. Ressalvadas as agressões grosseiras e desnecessárias entre Gilmar e Barroso, é assim, com polêmica, avanços e recuos, divergência e construção de convergências, que a democracia brasileira vai amadurecendo e a cidadania encorpando. Além de burra, a unanimidade é coisa de ditadura.

É bom também que esse debate sobre um futuro da Lava Jato que seja eficaz, mas dentro das leis e das regras, seja aqui e agora e desenhe o cenário para 2018. Há uma repetição enfadonha de pesquisas com Lula e Bolsonaro na frente e uma profusão de nomes novos ou reincidentes, mas eles são só nomes, nada mais que nomes. É o processo que define os candidatos, não os nomes que determinam o processo.


Distorções na concessão de aposentadorias - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 31/10

Caso em julgamento no Tribunal de Contas do Rio é exemplo de desvios que existem na previdência dos servidores e que agravam a má distribuição de renda


A apresentação do projeto de reforma da Previdência pelo governo Temer dá uma contribuição positiva, além dos efeitos em si nas desequilibradas contas públicas, ao aprofundar o debate sobre o tema, chamando a atenção para distorções que agravam a distribuição de renda no Brasil. Estes meses de debates já permitem constatar que privilégios garantidos a categorias de servidores públicos são poderoso indutor de injustiças sociais.

O déficit da previdência do funcionalismo da União, por exemplo, com apenas um milhão de aposentados, tem acumulado rombos anuais maiores que o do regime geral (INSS), do setor privado, com 33 milhões de segurados — em 2015, o sistema de aposentadoria dos servidores teve de receber R$ 90,7 bilhões para fechar as contas, enquanto o INSS, com 33 vezes mais aposentados, necessitou de R$ 85 bilhões.

Há distorções variadas. Esta é estrutural do sistema. Mas há também desvios, inaceitáveis, ocorridos dentro da máquina pública, de inspiração populista, para agradar a corporações, com fins político-eleitorais.

Está para ser julgado no Tribunal de Contas do Município do Rio um caso exemplar, que se arrasta há 12 anos. Trata-se da desobediência à emenda constitucional nº 41 aprovada e promulgada no primeiro governo Lula, em 19 de dezembro de 2003, e publicada pouco depois, no Diário Oficial de 31 de dezembro. Por ela, o funcionalismo deixou de se aposentar com o último salário e perdeu a vantagem, também fiscalmente inviável, de receber os reajustes concedidos ao quadro da ativa.

A emenda foi seguida, em 21 de junho de 2004, pela lei 10.887, que estabeleceu como regra de cálculo das aposentadorias a média aritmética simples dos maiores salários recebidos. Tudo muito claro, mas decreto municipal do prefeito Cesar Maia, de nº 23.844, de 19 novembro de 2003, antes da promulgação daquela emenda, colocou os servidores cariocas fora do alcance da Constituição. Uma espécie de declaração de independência.

O assunto tramita há mais de uma década sem que o Executivo cumpra decisões do Tribunal de Contas contrárias, por óbvio, à inconstitucionalidade. Está para ser apreciado no órgão voto do conselheiro Felipe Galvão Puccioni, que estabelece: não há dúvida de que os estados e municípios são autônomos, conforme a Constituição, mas não soberanos.

São milionários os prejuízos ao contribuinte carioca. No caso em julgamento, de uma assistente social, há uma manobra assustadora: com salário de R$ 3 mil, foi aposentada com benefício de R$ 17 mil, o quanto ela recebeu no último ano na ativa. Isso porque haveria um rodízio nas secretarias para inflar o salário do último ano do servidor, com esta finalidade. Mais um exemplo de como agem corporações de servidores dentro da máquina pública, contra os interesses da maioria da população, aquela que depende de serviços públicos básicos, afetados pela crise fiscal.


Violência se espalha pelo país e exige esforço conjunto - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 31/10

Reconhecer a gravidade da situação, como mostrou o encontro de governadores, é importante, mas há que se ter vontade política e capacidade para agir

O inédito encontro de 23 governadores, dois vice-governadores e quatro ministros de Estado, em Rio Branco, no Acre, na sexta-feira, para tratar de segurança pública, é um passo importante no reconhecimento de que o Brasil vive uma crise gravíssima nesse setor. E ela ultrapassa os limites dos estados. É, portanto, um problema nacional, que requer esforço conjunto entre a União e as unidades da Federação. A reunião, a que estavam presentes os ministros Sergio Etchegoyen (Gabinete de Segurança Institucional), Raul Jungmann (Defesa), Torquato Jardim (Justiça e Segurança Pública) e Aloysio Nunes (Relações Exteriores), resultou na Carta do Acre, que lista as principais reivindicações dos governadores.

Os estados pedem a criação de um Sistema Nacional de Segurança Pública, além de ações integradas entre forças de segurança e inteligências de todos os níveis. Reivindicam ainda a criação de força-tarefa para combater o tráfico de drogas, armas e munição; a ampliação progressiva da presença das Forças Armadas, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal nas fronteiras, “inclusive por meio de uso de tecnologia em sistemas de monitoramento”, e o fortalecimento da cooperação internacional em toda a faixa de fronteira.

Os governadores querem também liberações emergenciais de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) visando a fortalecer os sistemas prisionais, ampliar presídios estaduais e federais e integrar as inteligências das polícias.

Outro ponto acordado é o convite aos demais Poderes e ao Ministério Público Federal para participarem da discussão, com foco na revisão de leis e de medidas penais e administrativas.

Na Câmara dos Deputados, também cresce a percepção de que a violência já ultrapassou todos os limites. O presidente da Casa, Rodrigo Maia, prometeu priorizar, nas primeiras semanas de novembro, a votação de um pacote de medidas ligadas à segurança pública.

Ao mesmo tempo, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, tem defendido que o Congresso aprove leis mais rigorosas. Para ele, não é possível combater o crime com uma legislação de 1941.

O 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ontem, traça um retrato contundente da violência. O número de mortes violentas (homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de ações policiais) aumentou em 17 dos 26 estados, entre 2015 e 2016. O maior crescimento aconteceu no Amapá: 52%. No Rio de Janeiro, foi de 24%. Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, “os dados mostram que a violência está disseminada no país todo”.

Reconhecer a gravidade da situação e sugerir propostas para revertê-la são medidas importantes, sem dúvida. Mas, acima de tudo, há que se ter vontade política e capacidade de execução para avançar. Ou ficaremos só no diagnóstico. Já se sabe o que tem de ser feito. Falta fazer.

O custo da governança - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 31/10

Michel Temer tem sido mais eficiente que seus antecessores petistas porque governa com o Congresso, e não comprando o Congresso


A oposição ao governo de Michel Temer costuma acusar o presidente de “comprar” o apoio de partidos e parlamentares com verbas e cargos, já que, com baixa popularidade, não conseguiria governar de outra forma. Teria sido assim, segundo essa acusação, que Temer obteve os votos necessários na Câmara para escapar das denúncias de corrupção.

Tal versão procura caracterizar o governo de Temer como essencialmente dependente do fisiologismo do Congresso – dependência que, conforme dizem os opositores, faz o presidente gastar mais com deputados corruptos do que com as necessidades do País. “O Temer gastou R$ 14 bilhões comprando deputado”, disse o chefão petista Lula da Silva, referindo-se à votação da primeira das duas denúncias contra o presidente, dando o tom das críticas ao governo. O ex-presidente acrescentou que Temer gastaria “mais R$ 12 bilhões” e com todo esse dinheiro “daria para resolver o problema da educação”. E arrematou: “O que é melhor para o País? Investir em educação ou gastar com deputado para votar?”.

A bravata de Lula é obviamente simplista, como costuma acontecer em discursos políticos, particularmente nos pronunciamentos do ex-presidente, que nunca desceu do palanque. Apesar disso, não foi preciso muito esforço dos petistas para disseminar a ideia de que o governo Temer só continua de pé porque apelou para o mais rasteiro toma lá dá cá, em proporção jamais vista na história do País, e que está “enfraquecido” diante de uma presumida “inflação” no custo dos deputados em troca de apoio daqui para a frente.

O problema dessa versão é que ela é falsa. O custo da governança de Temer – isto é, o quanto o presidente precisa gastar, em verbas e cargos, para obter os votos necessários para aprovar os projetos de interesse do Executivo ou impedir ações da oposição – foi até aqui muito mais baixo do que o de Lula e de Dilma Rousseff. Foi a conclusão a que chegou o cientista político Carlos Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas, que ajudou a desenvolver um método para mensurar a eficiência do governo na sua relação com o Congresso. Carlos Pereira expôs os resultados de seu estudo em artigo na Folha de S.Paulo.

A medida é composta pela quantidade de Ministérios disponíveis, pelos recursos que o governo aloca entre os Ministérios que acomodam integrantes da coalizão e pelo valor das emendas dos parlamentares ao Orçamento que o presidente libera. O resultado é um Índice de Custos de Governo (ICG), de zero a 100 pontos. O governo de Michel Temer, até aqui, teve média de 15,4 pontos, o nível mais baixo da série histórica proposta por Carlos Pereira. Com Dilma Rousseff, o ICG médio foi de 58 pontos no segundo mandato e de 88,1 pontos no primeiro. Já Lula – aquele que se queixa de que Temer gasta mais com deputados do que com educação – chegou a 90,6 pontos no primeiro mandato e a 95,2 pontos no segundo.

Apesar dos custos de governança muito mais baixos que os de seus antecessores, Temer conseguiu aprovar projetos impopulares e controvertidos, como o teto dos gastos, a reforma trabalhista, a mudança do marco regulatório do petróleo e a reforma do ensino médio. E tudo isso em meio a uma incessante barragem de denúncias de escândalos e acusações diversas.

O segredo, conforme concluiu Carlos Pereira, é que Temer gerencia melhor a coalizão que sustenta seu governo. Em seu estudo, ele mostra que Lula e Dilma privilegiaram o PT na divisão dos recursos disponíveis, ao passo que Temer, além de gastar menos, concedeu mais recursos para os integrantes da coalizão do que para seu partido, o PMDB. Além disso, Temer montou uma coalizão com perfil ideológico razoavelmente homogêneo, ao passo que as coalizões nos governos petistas foram marcadas pela heterogeneidade – e é mais caro manter o apoio de partidos que só se juntaram ao governo em razão das verbas e dos cargos prometidos. Por fim, na divisão dos cargos, Temer compartilha mais o poder com os aliados do que Lula e Dilma fizeram em sua época.

De tudo isso se conclui que Temer, em situação bem mais adversa, tem sido mais eficiente que seus antecessores petistas, porque governa com o Congresso, e não comprando o Congresso.

segunda-feira, outubro 30, 2017

Resgate do trabalho escravo - DENIS LERRER ROSENFIELD

O GLOBO/O ESTADÃO - 30/10


Quando expressões do tipo ‘dignidade humana’ são empregadas a torto e a direito, elas revelam apenas uma ausência de precisão


Palavras iludem; palavras esclarecem. Palavras produzem concórdia; palavras produzem discórdia. Tudo depende do significado que a elas atribuímos e do propósito a que almejamos.

A recente portaria do Ministério do Trabalho, relativa a uma maior precisão na definição do trabalho escravo, é um exemplo de como uma discussão que deveria ser técnica, vê-se eivada de tergiversações ideológicas. Para alguns, que se caracterizam pela má-fé, o presidente Temer e o seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, procurariam restabelecer o trabalho escravo no país, quando, na verdade, visam a combatê-lo com armas precisas, dentre as quais o significado mesmo das palavras.

A imprecisão da legislação a respeito, assim como a sua utilização, fez com que tenham sido poucas as pessoas efetivamente condenadas e presas pelo que se considera como trabalho análogo a escravo. Se a atual legislação fosse eficiente, se os auditores, fiscais, promotores e juízes do trabalho tivessem feito verdadeiramente o seu trabalho, seriam muitos, provavelmente, os que se encontrariam atrás das grades.

Em vez disso, temos uma campanha midiática concernente a empresas que supostamente estariam utilizando trabalho escravo, vindo a fazer parte de uma lista “suja” do Ministério do Trabalho. Lá são obrigadas a ficarem dois anos, não tendo acesso a créditos públicos, mesmo que tenham sanado as eventuais falhas assinaladas. São “condenadas” e “punidas”, embora não tenham passado por um verdadeiro processo jurídico.

Quando fala-se de resgate de trabalho escravo, pensa-se em pessoas que teriam sido resgatadas do que se poderia considerar como uma espécie de escravidão moderna. Pode isto ocorrer ou não, dependendo dos casos. O que não pode é o arbítrio tomar o lugar de um verdadeiro julgamento. Ora, é o que acontece quando o conceito de trabalho análogo a escravo é definido em termos de trabalho degradante. Vejamos alguns exemplos.

Em abril de 2011, na cidade de Campinas, uma empresa sofreu um auto de infração por ter deixado “de dotar os chuveiros de suporte para sabonete e cabide para toalha”. Foi lavrado um documento, constatando-se “condições degradantes a que foram submetidos os trabalhadores da empresa, que culminou com o resgate de 63 deles para as cidades de origem”. Ou seja, “condições degradantes”, incluídas na definição de trabalho escravo, são, então, consideradas em termos de ausência de suporte para sabonete e toalha, vindo a resultar no desemprego de 63 pessoas, devolvidas a seu lugares de origem. Em nome da defesa do trabalho “digno”, foram desempregadas!

Em outro auto de infração, a empresa teria deixado de “providenciar para que os locais destinados aos extintores de incêndio tivessem sido assinalados por um círculo vermelho ou por uma seta larga, vermelha, com bordas amarelas”. Note-se que uma mera ilicitude trabalhista, facilmente sanável, vem a ser identificada a “condições degradantes”, às quais os empregados teriam sido submetidos. Novamente, o mesmo linguajar, segundo o qual os trabalhadores teriam sido “resgatados” e retornados às suas cidades de origem. O que pode bem significar resgaste, palavra associada a uma operação especial destinada a liberar pessoas de uma situação de servidão ou de degradação física? Se esse fosse o caso, tratar-se-ia de uma missão impossível, por falta completo de objeto.

Outros exemplos poderiam ser dados no que diz respeito a “condições degradantes” e “jornada exaustiva”, inviabilizando tanto empresas quanto o emprego de pessoas. Uma legislação mais precisa permitiria diferenciar o que é próprio a ilícitos trabalhistas, puníveis com as multas correspondentes, do que seria o efetivo trabalho escravo, com cerceamento da liberdade, retenção de documentos, escravidão por dívidas e efetivas condições degradantes. Desta maneira, o combate ao trabalho escravo poderia ser efetivamente realizado, vindo a extinguir esta barbárie que ainda perdura.

De nada adianta o recurso a princípios que, de tão genéricos e abstratos, a tudo servem, o que significa dizer que servem para nada. Quando expressões do tipo “dignidade humana” são empregadas a torto e a direito, elas revelam apenas uma ausência de precisão e definição de quem as utiliza. Tal expressão presta-se a tantos significados quanto os sujeitos que as utilizam, vindo a perder o seu propósito de moralidade que nela está embutido. Para conceitos serem aplicados juridicamente, devem eles ser precisos, sob pena de tornaram-se meros instrumentos demagógicos.

A discórdia nasce do uso arbitrário e ideológico de conceitos. A concórdia de sua precisão e, também, da boa-fé dos interlocutores. O ministro Ronaldo Nogueira, dada a celeuma suscitada, colocou-se na posição de quem sabe e pretende negociar, anunciando um aprimoramento dessa portaria, visando a corrigir eventuais distorções e incompreensões. Duas visitas à procuradora-geral, dra. Raquel Dodge, foram realizadas, tendo por objeto o entendimento.

Conforme noticiado pelo próprio Ministério Público, a procuradora-geral teria feito sugestões, como a de tornar o acompanhamento da Polícia Federal aos auditores uma tarefa própria de uma Polícia Judiciária. Assim, os empresários infratores seriam objeto de Boletins de Ocorrência, instaurando, em uma nova delegacia especializada, um processo efetivamente criminal. Criminosos seriam definitivamente punidos. A resposta do ministro, por sua vez, foi a de acatar esta proposta, além de outras que eventualmente vierem a ser negociadas.

A ministra Rosa Weber, por seu lado, concedeu uma liminar sustando a vigência desta portaria. Espera-se que o Supremo não venha, mais uma vez, a fazer parte do problema em vez de sua solução. Uma República faz-se pela harmonia de seus Poderes, em uma colaboração que tem como finalidade maior o aprimoramento geral das instituições. Se, em vez disso, tivermos um mero tiroteio ideológico, é o próprio bem comum que é a primeira de suas vítimas.
 

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A traição original - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/10

Lula da Silva poderia ter conduzido o País rumo ao benfazejo destino que antes era apenas sonhado. Mas, na encruzilhada da História, fez sua opção. Traiu o Brasil e os brasileiros

Uma característica bastante lembrada do sr. Lula da Silva - que muitos ingênuos chegam a considerar um “talento político” do ex-presidente - é a desfaçatez com que ele procura se desvencilhar de membros de seu mais íntimo círculo relacional sempre que, por imposição das circunstâncias, eles venham a representar um embaraço às suas pretensões de poder, estas postas sempre à frente de quaisquer laços que venham a ser estabelecidos com o ex-presidente, sejam pessoais ou políticos.

O caso mais recente desse esquecimento seletivo de Lula envolve a presidente cassada Dilma Rousseff, alguém que simplesmente não existiria na vida político-eleitoral não fosse a ação direta de seu inventor.

Diante do desastre que foi a passagem de Dilma Rousseff pelo Palácio do Planalto, cuja irresponsabilidade no trato das contas públicas, a frouxidão no combate à inflação, a profunda recessão econômica e o desemprego representam um legado indefensável até mesmo para os padrões do Partido dos Trabalhadores (PT), a presidente cassada vem sendo sistematicamente tratada como um estorvo pelo chefão e pelo partido que com ele se confunde.

Em recente entrevista ao jornal espanhol El Mundo, Lula da Silva disse que os eleitores de Dilma Rousseff “sentiram-se traídos” em virtude da agenda econômica adotada por ela após a vitória na eleição presidencial de 2014, agenda esta diametralmente oposta ao discurso da candidata durante aquela campanha.

“Houve uma decisão do governo de fazer o ajuste (fiscal). Quando o governo anunciou o ajuste, no final de dezembro (de 2014), o governo jogou fora a base social que tinha eleito o governo. As pessoas se sentiram traídas”, disse o ex-presidente.

Ora, é o caso de indagar por que “as pessoas se sentiram traídas”. O descalabro econômico que marcou o primeiro mandato de Dilma Rousseff, cassada por ter cometido crime de responsabilidade, impunha a adoção de uma dura política de ajuste fiscal a partir de seu segundo mandato, sob pena de paralisar o País e, assim, arruinar o plano engendrado por Lula da Silva para manter seu partido no poder durante décadas.

É importante lembrar que o próprio ex-presidente Lula, o mesmo que agora critica a tentativa de ajuste em jornais estrangeiros, fez enfáticas gestões com Dilma Rousseff para que esta substituísse a sua equipe econômica, nomeando para cargos-chave do governo profissionais de mercado que são publicamente conhecidos por suas posições em defesa da austeridade fiscal, o que contrastava com a política de gastos descontrolados que marcou as gestões lulopetistas e levou àquele estado de absoluto descontrole que uma campanha eleitoral mentirosa escondeu dos brasileiros.

Longe de qualquer sinal de contrição, as críticas de Lula da Silva à sua antecessora são movidas tão somente por seus interesses eleitorais, se não como o candidato do PT à Presidência na eleição de 2018 - o que hoje depende de uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) -, como um possível cabo eleitoral em defesa do “legado” petista.

Por mais que tente, Lula da Silva não pode se desvencilhar de seu verdadeiro legado desde a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder central, em 2003: uma profunda recessão econômica e a instalação de um sistema de corrupção sem precedentes na História do País, engendrado para submeter o Estado ao serviço do partido e de seu projeto de poder, além, é claro, de garantir uma próspera existência a seus próceres à custa do dinheiro público.

Tido como o primeiro operário a chegar à Presidência da República, favorecido por uma base de apoio popular e congressual sem precedentes, além de ter a seu favor a conjuntura internacional, Lula da Silva, caso inspirado por bons desígnios, poderia ter conduzido o País rumo ao benfazejo destino que antes era apenas sonhado. Mas, na encruzilhada da História, fez sua opção. Traiu o Brasil e os brasileiros.

Na boleia da dívida pública - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/10

Lá por 2022 o passivo do Tesouro Nacional poderá estar controlado, mas isso deverá envolver muito mais que o esforço da atual equipe do Executivo


Caminhão sem freio e dívida pública sem controle são prenúncios de desastre. Por isso, conter a dívida brasileira é uma das prioridades do governo desde a mudança no Palácio do Planalto, no ano passado. Por enquanto, o empenho vai dando resultado, como confirmam os números acumulados no ano, mas o trabalho à frente é longo e complicado. O presidente Michel Temer encerrará seu mandato, no fim do próximo ano, sem ter arrumado completamente o passivo do Tesouro Nacional. Mas, se o esforço der certo, entregará ao sucessor contas públicas em melhor estado e com risco muito menor de uma catástrofe. Isso dependerá tanto do Executivo como da base parlamentar, porque a arrumação das finanças federais, a partir de agora e nos próximos anos, dependerá de importantes medidas legislativas, a começar pela reforma da Previdência.

No mês passado o estoque da dívida pública federal atingiu R$ 3,43 trilhões, com aumento de 0,79% em relação ao valor de agosto. Pelo programa oficial, no fim do ano o valor devido pelo Tesouro deverá ficar na faixa de R$ 3,45 trilhões e R$ 3,65 trilhões.

A expectativa é terminar 2017 com o estoque dentro do intervalo definido no Plano Anual de Financiamento (PAF), disse há dias o coordenador-geral de Operações da Dívida Pública, Leandro Secunho. O pessoal da Fazenda tem conquistado alguns pontos importantes. Exemplo: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) devolveu em setembro R$ 33 bilhões ao Tesouro. Isso é a maior parte da devolução acertada para este ano, de R$ 50 bilhões. Os R$ 17 bilhões restantes devem ser pagos até 15 de novembro.

Os pagamentos do BNDES representam uma pequena parcela do total devido pelo governo central, mas contribuem para a melhora da composição das contas. Uma fatia do valor pago ao Tesouro – R$ 15 bilhões – foi entregue na forma de títulos. O cancelamento desses papéis diminui o estoque da dívida. A parte paga em dinheiro serve para eliminar operações compromissadas do Banco Central (BC).

Durante anos, a partir de 2009, o Tesouro se endividou para ampliar a capacidade de operação do BNDES. Foram emitidos cerca de R$ 500 bilhões em títulos, transferidos ao banco. Esse endividamento sobrecarregou o Tesouro e agravou as condições das contas públicas. Mas o esforço resultou em benefício de um número restrito de empresas, com pouco ou nenhum efeito em termos de crescimento econômico geral. O Produto Interno Bruto (PIB) pouco cresceu nos primeiros anos de mandato da presidente Dilma Rousseff e em 2015 e 2016 o País enfrentou a pior recessão registrada nas contas nacionais.

Outro avanço recente foi a redução do peso dos juros. O custo médio da dívida acumulado em 12 meses caiu de 10,62% em agosto para 10,47% em setembro. Mas, apesar disso, a dívida aumentou e continuará aumentando. Ainda por alguns anos, a receita federal continuará insuficiente para custear o funcionamento do governo, permitir algum investimento e, além disso, cobrir os juros vencidos no ano e, talvez, amortizar o principal.

Enquanto isso, algumas condições se deterioram. A parcela da dívida com vencimento em 12 meses passou de 16,32% em agosto para 17,22% em setembro. De um mês para outro o prazo médio dos títulos diminuiu de 4,37 para 4,34 anos.

A gestão da dívida no dia a dia é parte de um grande esforço de reconstrução das contas. A tentativa de contenção do gasto público é limitada, inevitavelmente, pela rigidez do Orçamento federal. A recuperação da economia, ainda moderada, começou a beneficiar a arrecadação de impostos e contribuições nos últimos dois meses. Receitas atípicas, como as prestações iniciais da nova renegociação de créditos fiscais em atraso, têm ajudado. Mas o governo ainda terá de se esforçar para chegar ao fim do ano com um déficit primário – isto é, sem a conta de juros – no limite de R$ 159 bilhões. Lá por 2022 a dívida poderá estar controlada. Mas isso deverá envolver muito mais que o esforço da atual equipe do Executivo.

domingo, outubro 29, 2017

Dois importantes pronunciamentos - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 29/10

O do primeiro-ministro chinês Xi Jinping e o do deputado federal brasileiro Tiririca


Na semana passada e na anterior tivemos dois importantes pronunciamentos: o de Xi Jinping, primeiro-ministro chinês, e o de Tiririca, deputado federal brasileiro. A importância do primeiro decorreu mais do peso econômico e político da China no mundo que de seu conteúdo. Afirmo isso porque a substância do pronunciamento é bem conhecida.

Em sua fala de três horas e meia, o mandatário chinês reafirmou que a China é hoje uma superpotência econômica e política e fadada a um importante protagonismo no cenário mundial. E não precisou bater no peito para indicar que ele, como líder do Partido Comunista, está próximo de atingir uma estatura política comparável à de Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping.

Mantidas as devidas proporções, Tiririca também disse uma coisa relevantíssima, embora desconhecida da maioria dos brasileiros. Anunciando que não pretende se recandidatar no ano que vem, ele afirmou: “Vim para cá pensando em aprovar projetos, mas a coisa aqui é muito complicada”. Para bom entendedor, pingo é letra.

A referência principal de sua curta sentença é, sem dúvida, o poder absurdo que as Mesas do Senado e da Câmara detêm. Nenhum senador ou deputado consegue aprovar projeto algum se elas não quiserem, só com uma paciência de Jó e puxando bastante o saco dos respectivos presidentes.

Esse mecanismo explica um dos maiores paradoxos do Legislativo, dois traços perversos que qualquer cidadão percebe a olho nu: de um lado, o governismo sem-vergonha que reduz as duas Casas a uma quase total impotência, fraudando a estipulação constitucional do equilíbrio de Poderes e desestimulando carreiras políticas sérias; do outro, revoltas inesperadas, surtos de rebeldia, notadamente no chamado “baixo clero”, cujo objetivo é invariavelmente aumentar o custo do apoio às Mesas e, por via de consequência, ao Executivo. Há quem singelamente acredite que a debilidade e a mediocridade do Legislativo sejam como uma danse sur place, um ponto de equilíbrio muito ruim, mas estático. Ledo engano.

O que se passa no Brasil, mercê do equivocado conjunto de engrenagens que compõe nosso sistema político, é um paulatino deslocamento para um equilíbrio cada vez pior. Uma das faces mais visíveis desse processo é a incapacidade do Legislativo, evidente já há muitos anos, de recrutar bons candidatos. Por que cargas d’água uma pessoa apta a desempenhar cá fora um papel de relevo vai se meter numa máquina de moer carne como aquela?

Tiririca disse que não vai se recandidatar, e eu acredito nele. Tem toda a razão: entre ser figurativo ou de verdade, é melhor sê-lo de verdade, cá fora. Circo por circo, os de cá são mais engraçados.

Claro, o deslocamento do equilíbrio para pior deve-se à operação de outros mecanismos, não só ao poder das Mesas. A proliferação desordenada de partidos carentes de identidade é um deles. É mais ou menos assim que a coisa se passa: um aventureiro ou um grupelho qualquer funda um partido e obtém no Tribunal Superior Eleitoral o devido reconhecimento. Só com esse passo ele (aventureiro ou grupelho) já se habilita a participar dos recursos do Fundo Partidário. Se conseguir eleger um punhado de deputados ou senadores, habilitar-se-á a vantagens não menos suculentas: entrará no universo conhecido como “presidencialismo de coalizão”, usando seus votinhos como poder de chantagem para integrar a maioria governista, que cedo ou tarde, no limite, vai precisar deles. A contrapartida do Executivo pode ser em cargos nos ministérios ou nas estatais, mas, em caso de necessidade, há quem a aceite em moeda sonante, como ocorreu abundantemente no “mensalão” arquitetado pelo ex-presidente Lula.

Claro, a proliferação de agremiações acirra a disputa na arena eleitoral. Em cada Estado, um número cada vez maior de pretendentes começa a dar cotoveladas, a azeitar o caixa 2 e a clamar por “chances” proporcionais à contribuição que haverão de prestar à jovem democracia brasileira. Foi assim que, pela Constituição de 1988, deixamos para trás aquele saudável teto de 400 e poucos deputados e passamos aos 513 que integram atualmente uma Câmara proporcionalmente muito maior que a dos Estados Unidos!

Sejamos francos: para que tantos deputados e senadores? Por que não estabelecemos um mínimo de seis (em vez de oito) deputados e dois (em vez de três) senadores por Estado?

Mas seria ainda o caso de rir, e não de chorar, se nossos parlamentares fossem totalmente cínicos, defendendo tais disparates tão somente como uma engrenagem apta a acomodar seus interesses. O problema é que muitos não são cínicos. Muitos há para os quais esses mecanismos são o alfa e o ômega da sabedoria política, a estrada real que levará nosso país ao que chamam de “verdadeira democracia”. Para esses, quanto mais assentos no Legislativo e quanto mais partidos, melhor. Ora, se assim é, por que não uma Câmara com cinco ou dez mil parlamentares, cada um com seu próprio partido? Os que assim pensam não percebem que um corpo superdimensionado é uma forma de debilitar, não de fortalecer o Legislativo, uma forma de desnaturá-lo e castrá-lo, transformando-o num apêndice (é certo que barulhento!) do Executivo.

No Paper Federalista n.º 51, um dos estudos que elaborou como contribuição à Constituição americana, James Madison escreveu: “Se a assembleia de Atenas tivesse dez mil membros, com certeza deveríamos vê-la como uma horda de arruaceiros, não como um corpo deliberativo sério”. Eu só faria um pequeno acréscimo: uma horda formada por um baixo clero de uns nove mil e novecentos, precariamente controlados por uma elite de talvez cem.

*CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A nova Argentina - LOURIVAL SANT'ANNA

ESTADÃO - 29/10

Macri tem adotado medidas impopulares, mas a economia começa a responder


É fascinante observar como as instituições tendem a se mover por consensos nas sociedades democráticas. Exemplo disso ocorreu essa semana, na Argentina. Depois da vitória do governo nas eleições de domingo passado, dois juízes emitiram ordem de prisão contra o deputado Julio de Vido, todo poderoso ex-ministro do Planejamento, Investimento Público e Serviços. Em seguida, a Câmara retirou, por unanimidade, o foro privilegiado do deputado, e ele foi preso.

Tecnicamente, não há uma relação causal entre esses fatos. Os novos deputados e senadores – metade da Câmara e um terço do Senado – só tomarão posse no dia 10 de dezembro. Antes mesmo das eleições, os deputados – não só governistas, mas também peronistas que não apoiam a ex-presidente Cristina Kirchner – haviam se comprometido a retirar o foro de De Vido se recebessem ordem de prisão contra ele.

Três ex-ministros de Kirchner, de pastas estratégicas do ponto de vista da corrupção – Transportes, Obras Públicas e Energia –, já haviam sido presos. Mas De Vido não era um ministro qualquer, como o nome de sua pasta indica. Ele controlava um orçamento de US$ 237 bilhões.

Ao longo de todo o governo do casal Néstor e Cristina Kirchner, De Vido assistiu à troca de mãos de dinheiro público e privado. Só em uma das investigações que o levaram à prisão, ele é acusado do desvio de US$ 7 bilhões na importação de gás natural liquefeito.

A Argentina aprovou recentemente uma lei de delação premiada, ainda não usada. De Vido e outros ex-funcionários poderão implicar Cristina, aspirante a candidata a presidente em 2019. Antes dela, seu filho, o deputado Máximo Kirchner, também pode ser alvo de mandado de prisão e perda do foro privilegiado.

A frente de partidos Cambiemos (Vamos mudar), que apoia o governo, ficou com 40% dos votos. Já o grupo de Cristina teve metade disso. Outros 20% foram para os peronistas “no K”, como se diz na Argentina, ou seja, que não apoiam a ex-presidente. Cambiemos venceu em Buenos Aires e em 13 das 23 províncias, que somam 66% dos eleitores.

Cobri as eleições, e notei que uma das razões que levaram a essa rejeição de Cristina é a associação de sua imagem a um passado de corrupção e ineficiência. Em contrapartida, o presidente Mauricio Macri, que veio do mundo empresarial, antes de ser governador de Buenos Aires, está associado a transparência e modernidade.

Desnecessário dizer que isso não se aplica a seus detratores, sobretudo à esquerda que o vê como um representante da elite empresarial e agropecuarista. Mas encontrei a maioria dos argentinos cansados do populismo. Em um país que foi praticamente o seu inventor, não é pouca coisa.

Macri tem adotado medidas impopulares, como o corte dos subsídios aos serviços públicos, mas a economia começa a responder, com crescimento da atividade e queda da inflação, e os argentinos aprovam o remédio amargo, sabendo que virá mais.

Foi nesse contexto que a Justiça deu o seu mais importante passo na direção de investigar a corrupção na “era Kirchner”, pedindo a prisão de De Vido, e a Câmara, incluindo parte da oposição, a autorizou. Os deputados não querem ter seu nome vinculado mais à impunidade.

Um dia depois da prisão de seu ex-ministro, Cristina foi depor no caso em que é acusada de “traição à pátria”, por um suposto acordo secreto com o Irã para encobrir o envolvimento do país no atentado a bomba de 1994 contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que deixou 86 mortos.

O caso envolve também a misteriosa morte do procurador Alberto Nisman, cujo corpo foi encontrado em seu apartamento em janeiro de 2015, horas antes de ele apresentar um relatório de 288 páginas com suas conclusões sobre o encobrimento do Irã. Cristina seguiu o manual populista, de espalhar acusações contra seus acusadores, em vez de se defender.

A Argentina de hoje exige mais que isso.

Um retrato dramático do ensino - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/10

Segundo a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), mais da metade dos alunos avaliados mostrou-se incapaz, mesmo tendo passado por três anos de escolarização, de ter a proficiência esperada para sua faixa etária


Divulgados pelo Ministério da Educação (MEC), os números da terceira edição da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) de 2016 são desalentadores, principalmente quando se consideram temas como o crescimento do País, a redução das desigualdades sociais e econômicas e a conquista de melhores padrões de bem-estar. A avaliação consiste em duas provas – uma de leitura e escrita e outra de matemática – que foram aplicadas em 14 e 15 de novembro de 2016 a 2,1 milhões de alunos de 48 mil escolas da rede pública de ensino fundamental.

Aprovado em 2014, o Plano Nacional de Educação prevê a alfabetização de todas as crianças até o final do terceiro ano desse ciclo educacional. O que as autoridades educacionais esperam desses alunos é que eles sejam capazes de entender o sentido dos verbos, reconhecer participantes de diálogos em entrevistas ficcionais e reconhecer a relação de tempo em verbos.

O resultado da avaliação é assustador, mostrando que o Brasil continua perdendo a corrida educacional, dado o fosso entre essas metas e a dramática realidade do ensino fundamental oferecido pelo poder público às novas gerações. Segundo a ANA, mais da metade dos alunos avaliados – dos quais 90% eram crianças de oito anos de idade – mostrou-se incapaz, mesmo tendo passado por três anos de escolarização, de ter a proficiência esperada para sua faixa etária. Os números mostram que não sabem localizar, ler e compreender informações constantes de textos de literatura infantil, de entender anedotas desenhadas em tirinhas e de realizar as operações aritméticas mais simples, como soma e subtração.

Mais grave ainda, os níveis de alfabetização desses estudantes está estagnado no mesmo padrão de insuficiência de dois anos atrás. Em matemática, por exemplo, 54,5% dos estudantes do terceiro ano do ensino fundamental revelaram baixo nível de proficiência em 2016, ante 57% na segunda edição da ANA, que foi realizada em 2014.

Eles não conseguem nem mesmo ler horas num relógio analógico, nem somar duas parcelas. Em leitura, 54,7% das crianças revelaram baixo nível de proficiência no ano passado, ante 56,1% na avaliação de dois anos atrás. E, em escrita, 34% dos alunos avaliados mostraram não saber redigir corretamente palavras com diferentes estruturas silábicas.

Já o número de alunos que demonstraram capacidade considerada suficiente de leitura passou de 43,83% para 45,27% do total de matriculados no terceiro ano do ensino fundamental. Em matemática, o número de alunos com proficiência adequada para a faixa etária passou de 42,93% para 45,53%, entre 2014 e 2016.

Na prova que avalia o desempenho na escrita, um terço dos alunos do terceiro ano mostrou desempenho insuficiente. O quadro também é desolador em termos de comparação regional. A avaliação mostrou que, nas Regiões Norte e Nordeste, 70,21% e 69,15% dos estudantes, respectivamente, têm nível insuficiente em leitura. Nas Regiões Sudeste e Sul, os números são de 43,69% e 44,92%, respectivamente.

Resultantes de décadas de políticas marcadas por prioridades equivocadas e orientação populista, que arrasaram a rede pública de ensino fundamental, os números da terceira edição da ANA voltam a mostrar um grave gargalo do sistema educacional brasileiro. Deixam claro que, nos anos seguintes ao terceiro ano do ensino fundamental, esses estudantes com baixíssimo nível de proficiência em escrita, leitura e matemática não terão preparo e habilidades básicas para aprender outras disciplinas, como química, física, biologia e estatística.

Esses estudantes não terão a formação necessária para romper o círculo vicioso do atraso cultural, da desigualdade socioeconômica e da pobreza, nem para dotar o País do capital humano de que ele tanto necessita para retomar o crescimento e passar a níveis mais sofisticados de produção.

Construir equilíbrio macroeconômico com juros reais baixos é possível - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 29/10

O Banco Central, na quarta (26), decidiu reduzir a taxa básica de juros, a Selic, de 8,25% ao ano para 7,50%. Corte de 0,75 ponto percentual.

Adicionalmente, o comunicado do Copom (Comitê de Política Monetária), órgão colegiado formado pelos diretores do Banco Central e comandado pelo seu presidente, afirmou que, "para a próxima reunião, caso o cenário básico evolua conforme esperado, e em razão do estágio do ciclo de flexibilização, o comitê vê, neste momento, como adequada uma redução moderada na magnitude de flexibilização monetária".

Ou seja, na próxima reunião, em 36 dias, se tudo ocorrer conforme as simulações dos modelos do BC —que são os mesmos modelos que todos usamos—, a taxa básica irá diminuir 0,50 ponto percentual, para 7% ao ano. É possível que um corte adicional ocorra no início de 2018.

Em janeiro, é provável que as expectativas de inflação para 2018 sejam de aproximadamente 3,5%, sinalizando que o juro real básico percebido pelas pessoas será de 3,14%. Dado que as simulações do BC sugerem que a taxa neutra de juros (aquela que mantém a inflação estável) é de aproximadamente 4,2%, haverá em 2018 estímulo monetário de pouco mais de um ponto percentual.

O estímulo monetário deve produzir um lento processo de reinflação da economia até a meta em 2020, de 4%. Qual deve ser o desenho da política monetária ao longo do ciclo de reinflação? Com o que podemos enxergar hoje, isto é, com os cenários para a recuperação da atividade econômica e para a queda da taxa de desemprego, sabemos que a ociosidade da economia deve desaparecer em meados de 2020.

Se a ociosidade desaparecerá em meados de 2020 e dado que há uma defasagem de uns três trimestres entre a política monetária e seus efeitos sobre a inflação, o BC tem que praticar juro neutro no início do quarto trimestre de 2019.

A meta de inflação em 2020 será de 4%. O juro real neutro deve ser algo por volta de 4%. Assim, no início do quarto trimestre de 2019, a taxa Selic terá que estar em torno de 8,25%. Dessa forma, ao longo dos três primeiros trimestres de 2019, a taxa Selic elevar-se-á de 7,0% (ou até um pouco menos) até aproximadamente 8,25%: ao menos cinco elevações de 0,25 ponto percentual.

Há inúmeras incertezas nesse desenho de política monetária. Não é possível saber quais serão os choques climáticos ou hídricos que atingirão a economia. Pode haver choques políticos sobre as expectativas inflacionárias, uma reversão inesperada do cenário global, entre tantas outras fontes de choques.

Além dos choques, quando olhamos os fatores estruturais, não está nada claro que a taxa neutra seja de fato 4%. Até bem pouco tempo atrás as melhores estimativas sugeriam taxa neutra na casa de 5,5%.

É possível que a ociosidade da economia feche antes do que pensamos. Esse será o caso se a destruição de capital promovida pela Nova Matriz tiver sido maior do que se julga.

Também não está claro se até lá o Congresso Nacional conseguirá aprovar as reformas que permitirão que a política fiscal deixe de ser expansionista, como tem sido na média nos últimos 25 anos, e passe a ser pelo menos neutra. Será necessário aprovar uma fortíssima reforma da Previdência e outras reformas que permitam que o gasto público não cresça sistematicamente além do crescimento da economia.

Ou seja, a construção de um equilíbrio macroeconômico com taxas de juros reais baixas é perfeitamente possível, apesar de politicamente difícil. Os juros não são elevados devido a uma conspiração da Faria Lima com o Leblon.

A indústria virou suco? - SÉRGIO LAZZARINI

REVISTA VEJA

“Serviços urbanos” podem fazer parte do rol de setores modernos


NO INÍCIO dos anos 80, surgiu na Avenida Paulista, em São Paulo, uma lanchonete com nome muito curioso: O Engenheiro que Virou Suco. Inspirado no título de um premiado filme nacional da época (O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade), o empreendedor montou e batizou a sua lanchonete após ter sido desligado de uma indústria mecânica na qual trabalhava havia anos. Essa migração da indústria para serviços se acentuou ao longo do tempo. Industriais brasileiros, vários deles agremiados na mesma Avenida Paulista, até hoje denunciam o declínio da indústria e pedem mais apoio do governo. Essa crítica tem eco entre alguns economistas de traço desenvolvimentista. Dani Rodrik, professor de Harvard, rotula a indústria como um setor “moderno”, de alta produtividade, em contraposição à agricultura, setor dito “tradicional”. Para esses economistas, países evoluem quando mais pessoas saem da agricultura e se empregam na indústria. Perder gente para serviços seria um sintoma de desindustrialização precoce e destruição de postos modernos de trabalho.

Surpreende, assim, um novo estudo do próprio Rodrik, em coautoria com Xinshen Diao e Margaret McMillan, no qual se examina a experiência recente de alguns países na América Latina e na África. A agricultura tornou-se o setor moderno: incorporou tecnologias, aumentou a produtividade e ajudou a acelerar o crescimento de vários países. Esses economistas (finalmente!) percebem que talvez o mais importante não seja se o empresário planta tomates ou produz pneus; o importante é se sua empresa incorpora técnicas eficientes de produção e gerencia adequadamente os seus recursos. Por certo, se um setor fica mais eficiente, pode acabar liberando gente para trabalhar em setores menos qualificados, incluindo serviços de baixa produtividade. Mas os autores agora também admitem que “serviços urbanos” podem fazer parte do rol de setores modernos. Uma lanchonete poderá ser altamente produtiva se incorporar sistemas para controlar os produtos, otimizar os processos de cozinha, incentivar os funcionários a aumentar as vendas e transplantar essas práticas para outras unidades. (A quem quiser ver isso na prática, recomendo o filme The Founder, sobre o crescimento de uma famosa franquia de sanduíches dos Estados Unidos.)

É claro, isso não significa que não deva ser dada atenção à indústria. É possível salvá-la? Aqui, ironicamente, o setor dito moderno poderia copiar as práticas dos seus pares. Imitando a agricultura, poderia buscar mais inserção internacional e mais foco em vantagens comparativas locais. Uma nova iniciativa, a Embrapii (apelidada de “Embrapa da indústria”) seleciona e apoia centros de pesquisa de excelência em associação com o setor privado, em vez de subsidiar indefinidamente setores eleitos com base em pressão política. Imitando o setor de serviços, a indústria poderia também tentar melhorar sua qualidade de atendimento, criar soluções customizadas para clientes diversos e vender inovações em lugar de produtos preconcebidos. Afinal de contas, o engenheiro pode ter virado suco, mas quem sabe se tornou mais produtivo e criativo do que seria no seu antigo posto na indústria.

A hora da social-democracia - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

ESTADÃO - 29/10

Do ponto de vista político, será essencial a eleição de um candidato reformista


Martin Wolf, o mais importante colunista econômico do mundo, analisando um possível governo trabalhista inglês, liderado por Jeremy Corbyn, nos lembrou recentemente que o socialismo não é exatamente uma ideia nova. Ele já foi experimentado mais de uma vez em três variedades: autocracia, populismo e social-democracia. O socialismo autocrático foi o da União Soviética e de Mao Zedong. Mostrou-se uma catástrofe. A social-democracia dos países nórdicos ou da Holanda, em contraste, tem sido um triunfo. Esses países estão entre as sociedades mais bem-sucedidas do planeta: ricas, dinâmicas e estáveis. Finalmente, o populismo socialista, tão característico da América Latina, nunca funcionou economicamente.

Por que a social-democracia europeia tem sido um sucesso?, pergunta Wolf. A resposta é que ela entende as restrições fundamentais para desenhar um programa que dê certo, especialmente para quem acredita em um governo ativo. Antes de tudo, é preciso aceitar que os recursos são finitos e que existem restrições orçamentárias ao gasto público a serem respeitadas. Em segundo lugar, o papel central do crescimento está no desempenho do setor privado, tanto na liderança da economia quanto no investimento e na introdução do progresso tecnológico. Por isso, são decisivos incentivos adequados, respeito às leis e estabilidade institucional. Como resultado, as coisas funcionam não porque o governo comanda, mas porque o governo motiva.

O experimento populista tem sido o oposto disso tudo. O segundo governo Lula e os anos Dilma foram exemplares. Restrições orçamentárias foram sistematicamente desrespeitadas, resultando na destruição do regime fiscal. A ideia de que tudo depende de vontade política deu origem a desastres como o da Refinaria Abreu e Lima, em que aproximadamente US$ 20 bilhões foram jogados no lixo. Não se buscou estabilidade institucional, mas, na verdade, a destruição das agências reguladoras. Finalmente, os incentivos ao setor privado foram muito mais na forma de subsídios do que de estímulo ao investimento produtivo, que resultasse em criação permanente de valor. Basta ver o que aconteceu com todos os queridos “campeões nacionais”.


O resultado do populismo foi a maior crise econômica da história do Brasil. Entretanto, as coisas ainda se tornaram mais graves, uma vez que uma recessão profunda afeta muito mais os mais fracos, seja nas famílias e nas empresas, seja nos setores e nas regiões. Além do evidente caso do desemprego, podemos mencionar a emergência de uma nova questão regional, expressa no fato de que, em muitos estados, o desemprego não dá mostras de cair, mesmo quando a média nacional começa a se reduzir. Esse é o caso de Piauí, Alagoas, Pernambuco (onde a desocupação se aproxima de 20%) e Rio de Janeiro.

Dessa forma, apenas um programa social-democrata será capaz de produzir um retorno do desenvolvimento sustentado que permita também a recuperação das perspectivas de progresso dos mais fracos. Esse seria o efeito da alavancagem de um crescimento que já existe e que será cada vez mais robusto, resultando na continuação da queda da taxa de desemprego.

A recuperação do equilíbrio fiscal resultante de reformas na Previdência e do controle dos grandes salários no setor público, e uma retomada gradual da taxa de investimento, decorrente dos leilões de concessões e privatizações e da volta da expansão do setor habitacional, complementarão as condições econômicas para a sustentabilidade do crescimento.

Do ponto de vista político será essencial a eleição de um candidato reformista, que consolide a trajetória acima descrita e que permita a melhora no padrão de vida dos cidadãos mais afetados pela recessão. Em particular, investimentos maiores nas crianças e nos jovens serão cada vez mais essenciais para que as novas atividades e tecnologias sejam universalmente acessíveis, garantindo a criação e a distribuição mais permanente de valor e riqueza.

* ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS.

COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO

DIÁRIO DO PODER - 29/10

PODERIA SER PIOR: CABRAL QUASE FOI VICE DE DILMA
As pesquisas mostram recordes negativos para Michel Temer, mas a situação poderia ser bem pior: Sérgio Cabral presidente da República. Em 2014, o PMDB rachou com as investidas do então governador, hoje preso e condenado por corrupção a meio século de cadeia, para tomar o lugar de Temer na chapa de reeleição de Dilma. Lula interveio para honrar o acordo que garantia a vice para o atual presidente do Brasil.

CHATO DE GALOCHA
Dilma foi importante para frustrar o plano de Cabral, mas tinha um certo chamego pelo então governador. Depois passou a considerá-lo “chato”.

APOIO DA CRIA
Prefeito do Rio em 2012, Eduardo Paes, cria de Cabral, defendeu que ele substituísse Temer: “É o nome mais importante do PMDB”. Humm...

NELSON TAMBÉM
Temer garantiu a vice ao derrotar Nelson Jobim na luta para presidir o PMDB. E apoiar o governo Lula, em troca da vaga na chapa de Dilma.

CABRAL 2018 (ARGH!)
Em 2014, o então presidente do PMDB, Valdir Raupp, disse que Cabral estava sendo “preparado” para ser candidato a presidente em 2018.

FILHO DE MINISTRO É LIGADO A AÇÃO CONTRA O TCU
O Solidariedade questiona no Supremo Tribunal Federal (STF), a competência do Tribunal de Contas da União (TCU) para fiscalizar a aplicação dos recursos de fundos de educação como Fundeb (ex-Fundef). Tudo porque o TCU proibiu 110 municípios do Maranhão de usar dinheiro do Fundeb para pagar R$1,4 bilhão de honorários advocatícios em estranha causa. Um dos advogados simpáticos à causa é Tiago Cedraz, filho do ex-presidente do TCU Aroldo Cedraz.

GRATIDÃO
Ministros acusam o advogado da ação no STF contra o TCU de ser tão próximo a Tiago Cedraz que lhe dedicou a tese de conclusão de curso.

CALOU FUNDO
Os Ministérios Públicos (federal e estadual) alegaram no TCU que a verba do Fundeb deve ser gasta em Educação. E não com advogados.

PF VAI INVESTIGAR
O TCU pediu a Polícia Federal para investigar o lobby, que conseguiu até obter pareceres internos contra a atuação do tribunal no caso.

JUIZ FORA DE PALANQUE
O TSE aguarda do TRE-PA o julgamento da suspeição do juiz Alexandre Buchacra, que votou pela cassação do governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), tendo sido filiado ao PT e participado em 2014 da campanha de Helder Barbalho (PMDB), derrotado pelo tucano.

APÓS TRÊS ANOS
Entre as nove empreiteiras enroladas na Lava Jato, que desvendou o esquema em março de 2014, apenas a Engevix, que quase faliu, e a Galvão Engenharia estão proibidas de contratar com o poder público.

QUEM DÁ MAIS?
Setores do governo maltratam produtores de açúcar e álcool, e tratam a pão de ló a indústria de veículos. Em crise, o setor sucroenergético gera cerca de 1 milhão de empregos diretos, enquanto as montadoras, com a economia bombando, mal chegam a 150 mil postos de trabalho.

O CÉU É O LIMITE
Em vias de extinção, a Justiça do Trabalho do Brasil não se sujeita à lei do Teto de Gastos. No ano passado, gastou R$15,6 bilhões somente com salários, pensões, benefícios e aposentadorias.

CURIOSO, O PSDB
Tucanos acham que Aécio Neves (MG) não serve para presidir partido, mas merece permanecer no Senado. E continuar filiado ao PSDB. É como defender o direito de presidiário de votar e não de ser votado.

PT MAL NO RANKING
No site Ranking dos Políticos, a pontuação depende da atuação de cada parlamentar. Só três do PT têm pontuação positiva, no Congresso. José Pimentel é o mais bem avaliado, em 275º lugar.

DIESEL É O FOCO
Projeto do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT) pretende isentar de PIS e Cofins a produção, a importação ou a comercialização de óleo diesel e outras correntes de petróleo. Mas nada de desconto para cidadãos.

TECNOLOGIA PARA POUCOS
Segundo dados do Ministério do Planejamento, os Três Poderes da União gastaram R$ 2,8 bilhões com Tecnologia da Informação. Diante da importância do setor, não é nada, não é nada, não é nada mesmo.

PENSANDO BEM...
...foi só Dilma reaparecer que choveu em Brasília com direito a trovoadas.

O lobby e a democracia - MARCELO ISSA

REVISTA VEJA
A regulação da atividade de defesa de interesses junto ao poder público vai promover mais transparência e pluralidade na participação política


DISCUSSÃO - Regulação do lobby já passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e agora deve ir a votação em plenário (Cristiano Mariz/VEJA)

Ainda que se possam questionar os alcances e limites conceituais da democracia, é inequívoco que configura seu próprio exercício a aplicação de estratégias legítimas e éticas para promover e defender interesses junto ao poder público. Nesse sentido, as atividades de participação política sistematizada e, por vezes, profissionalizada — conhecidas como lobby — surgem como campo de atuação e pesquisa autônomos, cujos objetivos podem ser resumidos em antecipar riscos, contrapor-se a retrocessos e concretizar agendas apresentadas ao setor público.

A realização legal e eficiente desses objetivos demanda a articulação entre diversas habilidades e competências, como um profundo conhecimento sobre o modus operandi e o processo decisório de cada órgão ou instituição pública, métodos específicos para o constante monitoramento de assuntos de interesse e análise de cenários políticos, além de uma adequada capacidade de comunicação.

Se corretamente realizado, o lobby pode fortalecer a democracia, mas sua regulação não tem — isoladamente — o condão de afastar riscos de corrupção. Qualquer profissional, seja sua atividade regulamentada, seja informal, pode escolher utilizar-se de meios legais ou ilegais. Um advogado pode tentar subornar um juiz. Um juiz pode deixar-se subornar. Do mesmo modo que um médico ou um engenheiro podem corromper-se ao prescrever um medicamento desnecessário ou firmar um laudo periclitante porque receberão propina de um laboratório ou de uma incorporadora.

Ainda que a mera regulamentação de atividades profissionais tenha impacto limitado sobre a prevenção de ilícitos, é indubitável que a consolidação de determinados protocolos e registros favorece o controle. No âmbito das interações entre particulares e agentes públicos e políticos para a defesa de seus interesses, no entanto, os corolários constitucionais de publicidade e motivação dos atos administrativos tornam imperativo o regramento da atividade, mas com a finalidade precípua de garantir pluralidade à participação política. Quanto mais participantes nos processos de elaboração e implementação, melhores leis e políticas públicas haverá. Entretanto, só é possível aumentar a participação política e a representatividade da cidadania com transparência nas decisões dos governos.

Governos transparentes dão informações indiscriminadamente, não apenas sobre as regras, mas também sobre o andamento de cada um de seus processos decisórios, assim como mantêm abertas todas as suas bases de dados que não implicam riscos à segurança individual ou coletiva. A opacidade do poder público não compromete diretamente a participação política porque alguns conseguem superar esse entrave, mas compromete a equidade do processo e, por consequência, o próprio exercício democrático.

É certo que, por mais transparência que haja, o exercício democrático sempre implicará alguma dose de esforço, mas a dificuldade de acesso à informação pública desequilibra as condições materiais da participação. Hoje, no Brasil, metodologias e práticas de intervenção eficiente nas instâncias oficiais ainda estão restritas, como regra, às grandes companhias e associações setoriais, que se valem de estruturas e ferramentas complexas, além de recursos humanos especializados no gerenciamento de seus interesses junto ao nosso intrincado setor público.

De outro lado, embora exerçam uma função de cunho público, ainda parecem ser raras as organizações brasileiras do campo social que aplicam práticas e rotinas sistematizadas para influenciar a formulação da legislação e das políticas públicas. A defasagem de democracia real fica, assim, evidente: em muitos casos as organizações da sociedade civil lidam com os efeitos diretos de leis e políticas públicas sem que tenham tido condições adequadas de participação na formulação dessas mesmas leis e políticas públicas.

Os atuais custos das atividades capazes de exercer influência compõem parte das razões do desequilíbrio na qualidade da participação política. Esse entrave certamente seria mitigado se a regulação do lobby também obrigasse os órgãos públicos a adotar mais e melhores medidas de transparência.

Entre as medidas de transparência que certamente facilitariam e qualificariam a participação cidadã no processo decisório estatal, destaca-se a divulgação da agenda de cada tomador de decisão, o que poderia abrir espaço para o contraditório. Ou seja: ao receber em audiência representante de determinado interesse, o agente público estaria obrigado a receber também sua contraparte.

A medida é ainda mais necessária porque, ao contrário do que ocorre na Justiça, a política é intrinsecamente aberta. Por isso, minimizar os desequilíbrios da participação democrática passa necessariamente pela adoção de providências, orientadas a ampliar para a arena pública a garantia do contraditório e da paridade de armas a todo aquele que dela se disponha a participar.

Em toda parte, uma profunda crise de representatividade desafia o sistema democrático, e sua superação demanda novos paradigmas de participação política. A regulação da defesa de interesses junto ao poder público, em gestação no Congresso Nacional, não pode prescindir de avançar nesse sentido.

* Advogado, especialista em relações governamentais pela FGV, mestre em ciência política pela PUC-SP, sócio-diretor da Pulso Público Consultoria Política e coordenador do Movimento Transparência Partidária

Sociedade em movimento - DORA KRAMER

REVISTA VEJA
Excesso de ceticismo faz o jogo de filhos e viúvos do imobilismo

“VEJAM, não há povo nas ruas”, apontam com um quê de alívio aqueles avessos a mudanças que lhes possam alterar as rotinas de desfaçatez. “Por que não há povo nas ruas?”, perguntam-se os inconformados com o atual clima de apatia em tudo destoante da ebulição que permeou o país de 2013 a 2016 e arrefeceu após o impeachment de Dilma Rousseff, não obstante o ambiente na política continuar indo de mal a pior.

Sim, não há povo nas ruas, mas nem só de passeatas e panelaços vivem as insatisfações sociais. Nem só nas manifestações estrondosas e volumosas são gestadas as transformações. Nem tudo é quantidade e/ou estridência. Valorosos também são os conceitos, os propósitos, a consistência das ações e a persistência dos agentes dos atos. No caso, os cidadãos de cuja percepção não parece fugir a evidência de que há a hora de gritar e a hora de providenciar uma solução com a cabeça bem equilibrada no pescoço e os pés firmes no chão.

Tudo isso dito para chamar atenção sobre os vários grupos de diversos matizes ideológicos que estão surgindo sob a bandeira da reformulação da política, notadamente a partir da arregimentação de gente nova interessada numa atividade hoje de difícil (se não impossível) acesso ao brasileiro comum. Aquele que não tem dinheiro, não é herdeiro político, não dispõe de fama nem do apoio de estruturas corporativas ou religiosas, mas tem vocação e disposição para o exercício da função pública em cargos eletivos.

Já há mais de dez grupos desses em início de funcionamento, integrados por empresários, estudantes, profissionais liberais, acadêmicos, funcionários públicos, em geral jovens e anônimos, embora alguns tenham o apoio de gente bem conhecida como Armínio Fraga, Luciano Huck, Eduardo Mufarej, Nizan Guanaes, Carlos Jereissati Filho, Guilherme Leal, entre outros. Ainda que o objetivo seja o mesmo, variam os métodos: da concessão de bolsas de estudos para a formação de lideranças ao debate de uma nova agenda para a política, aqui incluída a revisão dos meios e modos do ofício.

Iniciativas louváveis, pois não? Pois é. Antes mesmo que comprovem ou não eficácia nos procedimentos e lisura de propósitos, esses movimentos têm sido alvo de descrença, quando não de desqualificação, por parte dos ativistas de internet cuja ignorância no ramo não lhes permite distinguir engajamento político de ceticismo à deriva, para não dizer boboca. Gente que considera que a suspeição é geral e irrestrita e que tudo e todos se movem por intenções espúrias. Na visão desse pessoal, há sempre algo “por trás”, ainda que não identificado, e muito menos nominado.

Essas pessoas presumem sempre o pior, plantam sementes nas sombras, enxergam fantasmas ao meio-dia. Atuam no terreno do preconceito e, com isso, alimentam o ceticismo excessivo que veste como luva o figurino dos adoradores (aproveitadores, por que não?) do imobilismo do Congresso e da aversão ao avanço patrocinado pelo establishment partidário, situação contra a qual finalmente algo se move na sociedade.

Operação tira atraso - CELSO MING

ESTADÃO - 29/10

A idade da pedra não acabou por falta de pedra; assim, também, será com o petróleo



O sucesso do leilão de áreas do pré-sal realizado sexta-feira, no Rio, não é o principal gol a comemorar. Mais importante é o fato de que o Brasil deixou para trás desastroso período de equívocos na sua política do petróleo.

Ainda há focos de resistência à aceleração do desenvolvimento dos campos de petróleo no Brasil, como se viu pelos recursos impetrados na Justiça contra os leilões por parte de agrupamentos corporativistas e de outros que se dizem nacionalistas.

O atraso de pelo menos cinco anos na exploração e desenvolvimento do pré-sal deveu-se a vários fatores. Primeiramente, à ação de governos anteriores que pilharam a Petrobrás e lhe retiraram capacidade financeira e operacional. Em segundo lugar, à ideia de jerico de que era preciso esperar pela recuperação dos preços internacionais do petróleo antes de leiloar novas áreas, como se os atuais níveis de cotação fossem temporários. E, em terceiro, a outra bobagem de que o mais importante era manter afastado o setor privado do que se considera o filé mignon do setor.

Essa miopia já saiu caro demais para o Brasil. E para avaliação dos estragos há todo tipo de cálculo. O que importa mesmo considerar é que o crescimento da produção do petróleo e gás foi retardado e a indústria de fornecedores de equipamentos e serviços perdeu enormes encomendas. Dezenas de milhares de empregos ou não foram abertos ou, simplesmente, foram sumariamente fechados, como qualquer visitante do polo de Macaé pode conferir. O Brasil perdeu bilhões em arrecadação não realizada de impostos. Só o Estado do Rio de Janeiro deve ter perdido R$ 3 bilhões em receitas com royalties, em quatro anos. Toda essa tacanhice foi exercida em nome da aversão à concessão da exploração a empresas privadas ou estatais estrangeiras.

O que essa gente não entendeu ainda é que a era do petróleo está acabando. A participação dos combustíveis fósseis na matriz energética mundial está em acentuado declínio. A principal opção na Europa e na China, apenas para ficar com dois grandes polos de produção e consumo, passou a ser a produção de energia a partir de fontes renováveis, como a eólica e a solar. A indústria automobilística começa a eliminar os motores a combustão e, nos próximos dez anos, deverá ter avançado muito nessa direção. A própria Arábia Saudita, o maior exportador global de petróleo, acaba de tomar a decisão de colocar em marcha o Plano Vision 2030, que aponta para uma economia além do petróleo. Há dois meses, o presidente da Petrobrás, Pedro Parente, advertia que, a partir de 2040, o consumo mundial de petróleo estará em declínio inexorável.

A partir do início dos investimentos, um campo de petróleo precisa de sete a oito anos para começar a produzir. E deve continuar ativo por mais trinta. Ou seja, deixar de aproveitar já, ou enquanto ainda houver tempo, essas riquezas implica perder oportunidades históricas, perder PIB e emprego e correr enorme risco de chegarmos ao fim da era do petróleo com uma imensidão de ex-futuras riquezas enterradas no subsolo. A idade da pedra não acabou por falta de pedra; assim, também, será com o petróleo - advertia na década de 70 o ministro de Petróleo da Arábia Saudita, Ahmed Zaki Yamani.

O direito ao delírio - FERNANDO GABEIRA

O Globo - 29/10

Nos últimos anos de vida política em Brasília, disse a amigos que queria incluir uma nova bandeira entre as lutas cotidianas: o direito ao delírio. Sabiam que a palavra delírio não designava alteração da consciência, produzida por drogas. Ainda assim, não entendiam bem. Minha referência eram as alucinações que épocas, partidos, grupos e indivíduos cultivam sobre si próprios e, na maioria dos casos, são dissipadas pelo curso dos fatos.

Agora, posso voltar ao tema e avançar um pouco na explicação sucinta daquele momento. Pressinto que o próprio país caminha, depois de tantos embates, para uma fase que chamo de pós ideológica, consciente da precariedade do termo.

As duas correntes que as pesquisas indicam como as preferidas, no momento, são as que travam um debate ideológico. Minha própria ideia de que se caminha para uma fase pós ideológica também é uma dessas ilusões que precisam ser testadas na prática. O problema não é ter ilusões, mas sim buscar a maior proximidade com os fatos. Tanto o marxismo, de certa forma herdeiro do iluminismo, como os liberais conservadores partem do que pode ser um erro fundamental.

Não me interessam aqui as explosões radicais, as brigas cotidianas em si próprias. Mas sim o nobre fundamento sobre a qual estão apoiados os contendores. Ambos os lados procuram, através do diálogo e dos confrontos, um consenso sobre a melhor maneira de viver bem. Nesse sentido, perseguem uma ilusão inalcançável. Nas sociedades complexas e diversificadas, o consenso não existe, nem está no horizonte. No seu lugar, é preciso introduzir a ideia de convivência pacífica, o que alguns autores chamam também de modus vivendi.

Encontrar o modus vivendi entre tantas concepções antagônicas é muito difícil porque os conflitos prosseguem, envolvem as instituições, explodem desejos contraditórias por liberdade.

Tanto os herdeiros do iluminismo que trabalham com a hipótese de um consenso racional sobre a melhor vida, como os liberais que acreditam em preservar os valores tradicionais, tendem ao fundamentalismo, sobretudo quando entram em choque.

Assim como a existência das ilusões não quer dizer que a realidade inexista, a busca do modus vivendi não significa um relativismo amoral. É apenas uma constatação que, se aceita, pode reorientar a energia não apenas para o confronto, mas para hipóteses de acordo em temas de interesse mútuo, sobretudo os de reconstrução nacional.

Para o marxismo, talvez isso não seja um problema pois parte do princípio de ter uma saída para os problemas sociais, uma forma única de ver o mundo, uma vontade de convencer que o leva a uma ação missionária.

Para o liberalismo, tornar-se fundamentalista, no entanto, é contradizer algumas de suas principais correntes teóricas. Isso aparece, claramente, nos debates que antecedem as guerras dedicadas a implantar a democracia em países distantes, com história e costumes diferentes. Será que funcionam?

Ao longo desses anos, hesitei um pouco em lançar mão da ideia da liberdade de delirar. Não pelo fato de levar pancadas dos dois lados, pois considero isso parte do jogo. A ideia de que é possível estabelecer uma hegemonia no campo cultural foi, na verdade um dos estopins do debate. Ela é ingênua e inadequada às instituições flexíveis, baseadas na pluralidade.

Mesmo os que não conhecem Antonio Gramsci ou se importam com suas teorias percebem que a ideia de hegemonia significa a neutralização de outras correntes, um domínio amplo e detalhado do espaço cultural, uma negação do próprio conceito de cultura.

Não é possível clamar por tolerância e sonhar com a hegemonia. A tolerância é moldada precisamente na aceitação da pluralidade. Afirmar isto, vale também acusações de proteger o status quo, eternizar o capitalismo, bloquear mudanças.

Isso revela também uma outra divergência sobre a ação política. Não há na realidade salvação nem salvadores. Há apenas soluções provisórias para alguns problemas recorrentes, até mesmo a admissão de que alguns não serão resolvidos a curto prazo.

Na casa de Câmara Cascudo, li uma frase interessante na parede: o Brasil não tem problemas, mas sim soluções adiadas. Uma coisa é tentar viabilizar algumas dessas soluções adiadas. Não é isso que costuma aparecer nas eleições.

Muitos candidatos dizem que trarão consigo um projeto nacional. Isto dá a impressão de que o país é uma folha em branco e será esculpido para as próximas gerações. Não é bem assim, embora seja legítimo o delírio de moldar um país por muitas décadas. Ainda não descobri se os principais partidos que passaram pelo poder usaram a expressão com o objetivo de plasmar um novo país ou apenas para racionalizar seu desejo de ficar muitos anos no governo. Os fatos apontam para esta última hipótese.

Quanto mais se acredita no sonho de um consenso racional, mais escasseia a tolerância. O delírio de um, modus vivendi, acho eu, é mais próximo de nossa realidade diversa.