terça-feira, novembro 15, 2016

Alguém deveria informar Brennan que a democracia evoluiu desde Platão - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 15/11

Li com interesse a entrevista de Jason Brennan nesta Folha. Motivo duplo. Primeiro, porque escrevi sobre o seu "Against Democracy" (contra a democracia) menos de dois meses atrás. E, segundo, porque não é todos os dias que encontramos um cientista político sério a questionar os méritos do regime democrático.

Brennan acredita que a democracia premia a ignorância do eleitorado. Donde, a conclusão: epistocracia. Só deveria votar quem entende do assunto.

No livro, Brennan faz uma analogia –para mim, absurda– entre votar e dirigir um carro. Só podemos dirigir se tivermos licença. Em política, e uma vez cumprida a maioridade, todos podem votar. Faz sentido? Não faz, diz ele. Más escolhas democráticas provocam mais danos na vida de todos do que a incompetência rodoviária de alguns.

Não compro a tese. A política não é uma "ciência", ao contrário do que pensam os "cientistas políticos" (ridícula expressão); e pessoas politicamente analfabetas podem saber com lucidez aquilo que desejam para as suas vidas, mesmo que desconheçam macroeconomia ou sistemas eleitorais.

Além disso, e para retomarmos a metáfora do autor, pessoas com licença para dirigir continuam a provocar acidentes. Os sábios também falham. Quando o assunto é política, os sábios falham ainda mais.

E um desses sábios é Platão, o "pai espiritual" de Brennan (como Hélio Schwartsman escreveu com razão).

Depois de Atenas ter condenado à morte o seu mestre Sócrates; e depois da derrota traumática dos atenienses face a Esparta, Platão jogou a democracia no cesto dos regimes degenerados. Como é possível entregar os destinos da Cidade às paixões irracionais do povo?

A democracia só poderia ser corrigida pela emergência de um tirano que, após educação "epistocrática", talvez pudesse chegar ao trono do Rei-filósofo.

"A República" é um dos textos centrais da filosofia. Mas foi Aristóteles, discípulo de Platão, quem inaugurou as críticas à sua utopia.

Para dizer algo que, sem exagero, nunca mais foi esquecido na tradição democrática ocidental: a "pólis" precisa de saber equilibrar as paixões do povo com os interesses da elite.

Esse "regime misto", tão apreciado pelos romanos, encontrava-se no próprio funcionamento da República: os cônsules, os senadores e as assembleias populares, reunindo os elementos monárquico, aristocrático e democrático, permitiam que todas essas instituições se controlassem mutuamente.

Os "checks and balances" não nasceram com os Pais Fundadores dos Estados Unidos. Eles apenas aprenderam a lição com Políbio, Cícero e todos os seus herdeiros.

Hoje, as nossas democracias não são, ao contrário do que Jason Brennan acredita, regimes de "vontade geral" (para usar a sinistra expressão de Rousseau), em que as escolhas do povo são totais –e totalitárias.

Em qualquer democracia liberal civilizada, existem "elementos aristocráticos" (e epistocráticos) que complementam (e, claro, limitam) a mera vontade popular. Para ficarmos nos Estados Unidos, a existência de um Congresso bicameral ou de uma Suprema Corte são os melhores exemplos.

E, para lembrar Tocqueville, a existência de uma sociedade civil forte ou de uma mídia vigilante e livre também se assumem como "ilhas" independentes no meio da ignorância das massas.

Jason Brennan, para defender a sua proposta "epistocrática", apresenta uma versão de "democracia" que é uma caricatura das democracias liberais em que vivemos.

Alguém deveria informar esse "cientista político" que a democracia evoluiu muito desde Platão.

P.S. - Com as eleições americanas, a minha caixa de e-mail rebentou: havia leitores "conservadores" que se sentiam menos sós por eu não defender Trump; e havia leitores "conservadores" que me insultavam com vigor por eu não apoiar Trump.

O cenário divertiu-me porque revela um certo primitivismo no debate intelectual: para os fanáticos, a política não é uma conversa pluralista; é uma inquisição ideológica.

Na minha qualidade de herege, agradeço todos os insultos.

Eles são medalhas na lapela da minha liberdade.

Legislativo e Judiciário são corresponsáveis pela crise - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 15/11
Líderes dos três Poderes têm o dever de unir esforços para construir, juntos, uma saída emergencial para o estado. Cortar na própria carne é bom começo

Reportagem do GLOBO, no domingo, mostrou que Assembleia e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio já custam ao bolso dos fluminenses até 70% mais do que o Legislativo e o Judiciário de São Paulo e de Minas Gerais.

Cada habitante do Estado do Rio desembolsou R$ 76,88 no ano passado para pagar os gastos dos 70 deputados estaduais com sua estrutura de organismos, mordomias (de carros de luxo aos selos postais) e séquitos de assessores bem remunerados.

Em São Paulo e em Minas, o custo do Legislativo por habitante foi bem menor: R$ 29,40 para os paulistas e R$ 55,64 para os mineiros.

O custo do Judiciário estadual também é muito significativo no Estado do Rio. Ano passado, cada habitante do território fluminense entregou R$ 126,07 para sustentar a máquina da Justiça estadual, também adepta de mordomias e vantagens multiplicadoras dos salários básicos. Pagou-se bem menos em Minas (R$ 72,62) e em São Paulo (R$ 75,87).

Paga-se muito pelo Legislativo e Judiciário fluminenses. São caros porque resultam em serviços legislativos e judiciários deficientes à comunidade. Basta acompanhar a rotina da atividade legislativa, ou verificar os indicadores sobre a morosidade das decisões judiciais no estado.

O custo alto e os padrões de ineficiência compõem parte do retrato da desorganização das contas públicas estaduais. O descontrole nas despesas desses dois Poderes é evidente e tem causa objetiva — o abuso na autonomia orçamentária, que precisa ser contido, revisto e revertido em médio prazo.

O peso do Legislativo e do Judiciário nas contas do Rio vem crescendo. A Assembleia e seu organismo de contas consumiram 1,61% do orçamento estadual em 2014. Em um ano, sua despesa aumentou para 1,93% do gasto público total. O custo do Tribunal de Justiça subiu de 4,61% em 2014 para 6%.

Gostem ou não os representantes desses Poderes, o fato é que eles são corresponsáveis pela crise de governança em que se esvaiu o erário estadual, deixando o estado em calamidade, com ameaça real aos serviços essenciais.

A crise não é obra exclusiva do Executivo. Um exemplo: 60% dos incentivos fiscais concedidos nos últimos anos, e hoje questionados, nasceram nos gabinetes e no plenário da Assembleia Legislativa, lembra o governador Luiz Fernando Pezão.

Os custos são eloquentes e absolutamente incompatíveis com a realidade de penúria. Não é mais possível sustentar um Legislativo de R$ 1,4 bilhão por ano, um Ministério Público de R$ 1,2 bilhão e um Judiciário de R$ 4,2 bilhões anuais.

Os líderes dos três Poderes têm o dever de unir esforços para construir, juntos, uma saída emergencial para o estado. Cortar na própria carne é bom começo.

Retrato do populismo petista - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 15/11

As eleições municipais demonstraram que os brasileiros estão desiludidos com esse populismo de esquerda campeão na promessa de “distribuição” da riqueza, mas absolutamente incompetente na tarefa de criá-la


A constatação da existência de irregularidades no pagamento do Bolsa Família a cerca de 1,1 milhão de famílias – o equivalente a 8% dos quase 14 milhões de famílias inscritas no programa – levou o governo a cancelar 469 mil benefícios e bloquear – até que as objeções levantadas sejam esclarecidas, num prazo de três meses – o saque de outras 654 mil contas em todo o País. Explicou o ministro Osmar Terra, do Desenvolvimento Social e Agrário, que não se trata de “corte ou economia de recursos, mas do necessário controle de gastos”. E acrescentou: “O objetivo é separar o joio do trigo. Quem realmente precisa vai continuar recebendo o benefício”.

Um pente-fino no Bolsa Família era indispensável diante das evidências de que os governos petistas, por criminosa negligência ou simples incompetência, haviam perdido o controle do programa. Há cerca de dois meses, no início de setembro, o governo Temer anunciara a decisão de fazer uma ampla varredura no cadastro do Bolsa Família, com a intenção de garantir que, depurado dos pagamentos que vinham sendo indevidamente feitos, o programa passasse a beneficiar um número maior de famílias realmente necessitadas de ajuda.

As irregularidades que agora começam a ser corrigidas foram apuradas mediante o cruzamento de informações de 6 bases distintas de dados: o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, o Instituto Nacional do Seguro Social, o Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos, o Sistema de Controle de Óbitos e a Relação Anual de Informações Sociais.

A existência de mais de 1 milhão de benefícios suspeitos de estarem sendo concedidos indevidamente não é surpresa ao cabo de mais de uma década em que o Bolsa Família foi manipulado pelo lulopetismo como poderoso instrumento para a consolidação de seu projeto de poder. A história é conhecida, revelada anos atrás pelo ex-petista Hélio Bicudo, e remonta ao início do primeiro mandato de Lula, no momento em que o comando político do governo promovia a transformação do projeto original, Fome Zero, em Bolsa Família.

O Fome Zero era, mais do que um programa de transferência de renda, um amplo, complexo e dispendioso projeto de inclusão social que demandaria tempo para ser implantado e para produzir efeitos políticos. Em reunião no Palácio do Planalto, os responsáveis pelo Fome Zero, entre eles Hélio Bicudo, questionaram o então ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil de Lula, a respeito da troca de um programa socialmente reestruturante que ambicionava promover uma transformação social, por outro que atingiria desde logo uma quantidade muito maior de beneficiários, mas praticamente se limitaria àquilo que o Fome Zero também previa: a transferência direta e mensal de uma “renda mínima”. A explicação do chefe da quadrilha do mensalão foi curta e grossa: “O Bolsa Família representa 40 milhões de votos”.

O Bolsa Família, de qualquer modo, cumpre o papel de prover minimamente necessidades materiais básicas, como a de ter o que comer, de uma população carente de outras fontes suficientes de recursos. Nem se trata de questionar, como ocorreu no passado dentro do próprio governo petista, a capacidade desse programa de abrir de fato a possibilidade de futura inclusão dos desvalidos na vida econômica do País. Mas é claro que, tendo sido o Bolsa Família concebido primordialmente para garantir ao lulopetismo um curral eleitoral de “40 milhões de votos”, durante os governos Lula e Dilma ninguém se preocupou para valer com o controle rigoroso dos cadastros. Daí aberrações como as reveladas agora, de que pelo menos 3 mil famílias beneficiárias do programa fizeram doações a campanhas eleitorais no pleito municipal.

A oposição sem voto já acusa o governo de promover “cortes” no Bolsa Família como prova de sua intenção de reduzir os investimentos sociais e, conforme o que está proposto na PEC do Teto de Gastos, “congelar” gastos na educação e na saúde. É um discurso fácil e mentiroso que tem, de qualquer modo, apelo emocional. Mas as eleições municipais demonstraram que os brasileiros estão desiludidos com esse populismo de esquerda campeão na promessa de “distribuição” da riqueza, mas absolutamente incompetente na tarefa de criá-la.

Remédio inevitável - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 14/11

O insolvente sistema previdenciário está no centro da crise do Rio de Janeiro — de resto, do Brasil —, como um dos fatores que conduzem à ingovernabilidade sugerida pelo governador Luiz Fernando Pezão. Mas o estado padece, ainda, de circunstâncias adicionais, que se somam para produzir o assustador quadro que hoje faz mergulhar poder público, população e instituições em agônica incerteza quanto aos desdobramentos que estão por vir.

Algumas particularidades extras são de origem, de certo modo, exógena, como recessão, desemprego, falência do setor público, derivados do continuado equívoco lulopetista na condução da política econômica do país. Adicione-se a isso uma tendência crônica de pressões sobre o Tesouro, ecoando no estado ações em permanente curso em nível federal, por corporações que buscam assegurar ou ampliar privilégios salariais incompatíveis com a realidade.

Outras, no entanto, foram fabricadas internamente, a mais grave delas, à exceção da Previdência, a caução de despesas fixas, em grande parte indexadas, em receitas extraordinárias, portanto não renováveis, ou voláteis (que não se realizaram, como as provenientes do pagamento de royalties do petróleo). Juntos, esses fatores formaram uma bomba-relógio, cujo ponteiro se aproxima perigosamente do ponto de explosão. É crucial desarmá-la, ao inevitável preço, vê-se agora, de medidas amargas.

Misturar nesse paiol a questão dos incentivos é um equívoco que não contribui para resolver a crise. Ao contrário, desfoca a discussão. A alegada renúncia fiscal do estado em favor de empresas é um benefício que visa a estimular a economia, via criação de empregos e aumento da produção, uma contrapartida exigida pelo poder público que se traduz positivamente em crescimento da renda e incremento do consumo em geral, devidamente tributado. Incentivos fiscais, portanto, ajudam na arrecadação. De resto, essa é uma demanda a ser enfrentada no âmbito das negociações sobre a guerra fiscal entre estados, por meio de uma ampla reforma tributária.

Da mesma forma, a equação da Previdência tem elementos comuns não só a todo o país, mas a praticamente todo o mundo, que enfrenta o dilema de ter uma população cuja expectativa de vida (felizmente) aumenta de forma quase exponencial, enquanto encolhem as fontes de financiamento que alimentam a seguridade.

O Rio está diante da inevitabilidade de ter de cortar gastos, reformar o sistema previdenciário, mexer com privilégios de corporações — enfim, de fazer, sob a sombra da bomba-relógio, a lição de casa que devia ter feito há muito tempo. A diferença é que, agora, não dá mais para estender o prazo, diante de uma questão imponderável: não há mais dinheiro para manter a folha de salários, cumprir obrigações financeiras e preservar ativos ao menos seus serviços essenciais. O remédio do pacote de contenção enviado pelo governador Pezão ao Legislativo pode ser amargo, mas sem ele o colapso do estado será inevitável, o que seria o pior dos mundos.

Judiciário e Ministério Público formam nobreza da República - KIM KATAGUIRI

FOLHA DE SP - 15/11

15 de novembro. Proclamamos a República. Ainda assim, os brasileiros são obrigados a sustentar os luxos da nobreza composta pelo Judiciário e pelo Ministério Público.

Apesar dos mais de 11 milhões de desempregados e da dificuldade para pagar o salário de servidores públicos de Estados como o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, há magistrados inativos por aí que chegam a receber mais de R$ 200 mil de remuneração líquida em um mês, valor absurdamente maior do que o teto de R$ 33,7 mil. Somado a isso, temos um ex-presidente do STF, Ricardo Lewandowski, pregando em discursos dignos de verdadeiros líderes sindicais que juízes não devem ter vergonha de pedir aumento.

O pior é que os supersalários são regra, não exceção. Levantamento recente feito pelo portal "Gazeta Online" sobre os salários do Ministério Público do Espírito Santo mostrou que 99% – isso mesmo, 99% – dos procuradores de Justiça, promotores e promotores substitutos do órgão receberam salários acima do teto entre os meses de janeiro e setembro.

Por mais estarrecedor que isso seja, juízes e membros do MP argumentam que esses pagamentos extras não são ilegais por se trataram de "indenizações" e, portanto, não incidirem sobre o teto. A questão é que a Constituição –que está acima de todas as leis–, no artigo 37, incisivo XI, é clara ao dizer que a remuneração e o subsídio de servidores públicos "incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza (...) não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal".

Esse tipo de privilégio tem de acabar, especialmente em tempos de teto de gastos. Vale lembrar que todos esses supersalários são pagos com dinheiro de impostos e quem mais paga imposto no Brasil são os mais pobres. Trata-se da institucionalização da desigualdade social.

Nesse sentido, concordo –e isso raramente acontece– com a análise feita pelo ministro Roberto Barroso em entrevista para esta Folha. Juízes exercem, sim, um papel fundamental na democracia e devem ser bem pagos. Mas esse pagamento, como ele bem disse, deve ser transparente e sem privilégios. "Menos Estado, mais República".

Concordo, também, com a comissão criada por Renan Calheiros para analisar os supersalários de servidores de todos os três Poderes. Acredito que o nobre presidente do Congresso tenha motivações republicanas? É claro que não. O senador representa o que há de pior na política brasileira, o exato oposto daquilo que o Movimento Brasil Livre defende. Ainda assim, nessa atitude específica, é inegável que ele esteja fazendo a coisa certa. Ou alguém acha que se Calheiros defendesse a Lei da Gravidade, todas as coisas começariam a flutuar?

Uma República pressupõe Poderes justos, independentes e harmônicos. Quando uma elite privilegiada é sustentada pelos mais pobres, não há justiça, mas exploração.

O Judiciário tem de entender que, devido a mais de uma década de corrupção e incompetência, estamos numa crise. Não é justo que apenas os mais pobres paguem por ela.