domingo, julho 10, 2016

Temer, otimismo e impostos - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 10/07

Poupa atenção se prestou à previsão que o governo fez a respeito de equilibrar suas contas em 2019. Mas está lá: deficit primário zero em 2019.

Parece tão longe. O primeiro ano de um outro governo de que não temos ideia o que será. Um ano depois da próxima Copa. Tanta coisa pode acontecer até 2019.

Pelo menos o governo de Michel Temer parece esperar que muito aconteça. A fim de zerar o deficit, deve contar com um crescimento forte da economia, que provocaria um aumento ainda maior da receita de impostos. Ou então espera que possa passar um grande aumento de impostos em 2018. Em ano de eleição?

Trata-se aqui do deficit primário: receita menos despesa, desconsiderados gastos com juros. Ainda assim. O deficit deste ano deve chegar a 2,7% do PIB (R$ 170 bilhões). Em 2017, se as coisas forem bem, desce a 2,1% do PIB (R$ 139 bilhões), segundo a meta definida na quinta-feira (7).

Em uma projeção discreta do Ministério do Planejamento, aparecia na sexta-feira (8) um deficit de 1,1% em 2018 e de nada em 2019.

Porém, contas feitas a partir das estimativas mais otimistas de crescimento do PIB e que chutem um aumento da receita de impostos no mesmo ritmo da economia indicam deficit primário zero apenas em 2021. Isso supondo que o teto de despesas esteja em vigor.

Para satisfazer à projeção de deficit zero do governo, a receita teria de crescer quase 5 pontos percentuais além do PIB em 2018 e outros 2,4 pontos além do PIB em 2019. Quer dizer, desde que o crescimento médio do PIB seja então de muito bons 3,5% ao ano.

Não é impossível, mas é muito otimista. Para tanto, a arrecadação do governo teria de voltar em 2019 ao que era em abril de 2014, quando começou a recessão (a receita líquida era então de 18,8% do PIB. Ao final de 2017, na projeção do governo, deve cair a 17,4% do PIB, na melhor das hipóteses).

Previsões para o PIB começam a ficar ruins, falhas, depois de uns seis meses, que dirá depois de dois anos. Qual o sentido dessa especulação, então? Entender a especulação do governo, que não foi explicitada.

Acredita-se numa recuperação "natural" da receita, a volta para o passado, ao imediato pré-recessão? Ou projetam-se um aumento grande de impostos e o fim das desonerações de impostos para empresas? Em 2017? 2018?

O debate não se limita às lonjuras de 2018 ou 2019. Ao apresentar a meta de 2017, o governo disse que ainda precisa arrumar R$ 55,4 bilhões para fechar a conta. Disse que metade disso viria de um aumento de arrecadação devido à recuperação econômica.

Para começar, é uma ressalva esquisita: por que essa receita extra devida à volta de algum crescimento econômico não está na estimativa básica de arrecadação? Para continuar: o governo terá de vender as calças para conseguir a outra metade da receita que falta, dinheiro que viria de privatizações etc.

Como último recurso, se não vier aumento "natural" de arrecadação ou bastante dinheiro de privatizações, aumentam-se impostos.

FÉRIAS
O colunista espera estar de volta daqui a um mês dando boas notícias. Seria muito bom ser obrigado a desdizer pessimismos. Até.


Guerra civil, nossa e deles - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 10/07

Duas autoridades norte-americanas, sendo uma delas o presidente Barack Obama, chegaram perto de definir como uma guerra civil larvar a situação no país, depois de mais dois episódios em que negros são mortos por policiais brancos e, em seguida, cinco policiais são assassinados por um franco-atirador.

Obama disse que os incidentes não são fatos isolados, mas "resultado da falta de confiança entre as forças da ordem e numerosas comunidades".

Coincide David Brown, o chefe da Polícia de Dallas, a cidade em que os policiais foram mortos: "Tudo o que sei é que é preciso acabar com essa divisão entre nossa polícia e nossos cidadãos".

Do outro lado da trincheira, desabafa o músico e compositor Zach Freshley para o sítio "Medium": "Não sei mais o que fazer. Não sei o que fazer em um mundo em que a maior ameaça a mim são pessoas que supostamente devem me proteger".

Os números dessa guerra civil disfarçada falam alto: a chance de um negro ser morto pela polícia é três vezes maior do que a de um branco.

Há um dado adicional a reforçar o ambiente bélico: apenas 13% das vítimas negras não estavam armadas. Claro que o fato de portar uma arma não torna ninguém culpado de um crime, ainda mais nos Estados Unidos, em que há tantas armas quanto cidadãos.

Mas o conhecimento desse fato predispõe o policial a atacar antes, no pressuposto de que pode vir a ser alvejado. Ou, posto de outra forma, os dois lados estão prontos para um combate, mas um deles –o dos negros– entra com o maior número de vítimas.

Horrorizado com essa guerra?

É para ficar mesmo, mas não pense que se trata de um fenômeno apenas norte-americano.

A Human Rights Watch, respeitável ONG de acompanhamento dos direitos humanos, acaba de divulgar seu relatório sobre a violência policial no Rio de Janeiro.

Só em 2015, a polícia do Rio matou 645 pessoas, das quais três quartas partes eram negras.

É o número mais alto desde 2010, quando, segundo o relatório, começou uma tendência de diminuição desse tipo de crimes –agora aparentemente interrompida.

É claro que também morrem policiais, talvez mais do que nos Estados Unidos. Porém, conforme o trabalho da HRW, para cada agente morto em serviço no Rio de Janeiro, a polícia matou 24,8 pessoas, mais do que o dobro do índice da África do Sul [outro país violento e em que o componente racial é importante] e, atenção, três vezes mais do que nos Estados Unidos.

Se há uma guerra civil disfarçada nos Estados Unidos, no Brasil, então, é pior, a julgar pelos números da Human Rights Watch.

É até desnecessário dizer que o cenário por ela descrito não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, como é óbvio.

Parece evidente que o componente racial dessa guerra é um triste legado de anos e anos de escravidão, no Brasil como nos EUA, e de apartheid, no caso da África do Sul.

É necessária uma revolução cultural para cravar de fato na agenda, lá como aqui, que "vidas negras importam" –e a de policiais também.



Uma nuvem sobre a retomada do crescimento - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

O Estado de S.Paulo - 10/07

Com a mudança na Presidência da República (temporária até agosto, definitiva a partir daí), o cenário econômico começou a ter horizontes. A queda livre da economia está sendo estancada. Ainda teremos um resultado negativo neste segundo trimestre do ano, fruto da inércia de uma tendência que vem desde o ano passado, mas os índices de expectativas já viraram para positivos, na margem, e o mesmo começa a ocorrer em alguns segmentos do lado real.

Tudo está pronto para uma retomada mais consistente. Entretanto, três questões estão começando a turvar um pouco minha percepção de futuro: falta melhor comunicação ao Executivo; a dureza da política monetária anunciada está descalibrada do conjunto da situação econômica; e estamos, mais uma vez, correndo o risco de uma excessiva e indesejada valorização do real. Discuto, então, cada um desses pontos.

A herança recebida por Michel Temer é um horror em todas as frentes, como se sabe. Entretanto, nada se compara ao estado das contas públicas, na qual um gigantesco déficit fiscal primário está empurrando para cima a dívida pública, de forma insustentável. Nessa situação, a melhora das contas tem de ser gradual, inclusive, porque não é verdade que o déficit do próximo ano seja “do governo Temer”. Muitas elevações de despesas já foram contratadas antes da sua posse, além daquelas obrigatórias. Ademais, é preciso reconhecer que um governo interino não tem a força de um efetivo, coisa que um Congresso de profissionais de muitas habilidades sabe se aproveitar bastante bem. Só no fim de agosto isso será alterado, a normalidade será restabelecida e o governo passará a ter muito mais força para desenvolver seu programa.

Olhando tudo isso, o déficit anunciado de R$ 139 bilhões parece muito decente, embora incomode certos puristas e tecnocratas. Devemos nos lembrar que a meta anunciada só ocorrerá se penosas reformas constitucionais e outras leis forem aprovadas. Finalmente, se o sucesso do Plano Real ensinou alguma coisa, é que o fundamental é dispor de um projeto e um rumo, perseguido de forma diligente por vários anos. Aqui não existe bala de prata matadora.

Comunicação. O que acredito que possa ser criticado é a comunicação do Executivo, onde depois de um início de governo particularmente atrapalhado, seguiu-se um silêncio generalizado. Parece-me fundamental expor exemplos de descalabros na concessão de prebendas e benefícios (que podem ser corrigidos), na transferência de recursos para organizações amigas em grandes volumes, no aumento do efetivo de pessoal gratificado e de certas organizações ampliadas para dar base ao projeto de poder que se encerrou. Tudo isso para mostrar que gastos relevantes podem, sim, ser reduzidos e que o governo pode ficar mais leve.

O segundo ponto a considerar é a política monetária. É certo que a inflação tem de convergir para a meta de 4,5%, e que esta terá de ser reduzida mais adiante. Como sempre, a grande questão é a velocidade da convergência.

O Banco Central decidiu de forma muito clara que a inflação terá de ser de 4,5% em dezembro do ano que vem, ao contrário de admitir que se poderia obter tal resultado ao longo de 2018. A dureza da recessão, a certeza que a nova equipe econômica vai mesmo atacar a questão fiscal e a credibilidade da atual equipe do Banco Central (BC) seguramente possibilitariam que os mercados aceitassem uma meta mais flexível, aliviando a política monetária e permitindo uma trajetória mais agressiva de redução de juros.

O caminho “falcão” provavelmente levará a que se comece a reduzir a Selic apenas em outubro (mesmo com um IPCA cada vez mais confortável), levando a uma queda de algo como cem pontos neste ano. O problema é que a taxa real de juros vai demorar muito para cair, desestimulando a retomada econômica.

Entretanto, isso não é o que mais me incomoda. A questão da liquidez da maior parte das empresas, nem sequer mencionada nas análises atuais, vai piorar ainda mais e o crédito seguirá muito contraído. Poderemos ter no segundo semestre uma nova leva de recuperações judiciais e falências. Ora, toda empresa que vai para recuperação judicial desemprega boa parte dos seus funcionários, com as consequências usuais sobre a atividade.

Tenho receio de que estejamos cometendo um erro.

Finalmente, consideremos o câmbio. O ajuste externo está avançando aceleradamente e caminhamos para um grande saldo comercial e zero de déficit em transações correntes. Ao contrário da Argentina, não falta dólar no Brasil.

Nessas condições, a atratividade do juro real brasileiro é enorme, especialmente agora, na situação pós-referendo no Reino Unido. Após a surpresa, é seguro que todos na Europa vão perder e que, em consequência, os bancos centrais seguirão ampliando a liquidez e mantendo os juros cada vez mais baixos.

Nesse quadro, a atração dos papéis brasileiros será fatal e a entrada de dólares significativa. A única cautela fica por conta da situação interna. Entretanto, a cada boa notícia (como a queda de Eduardo Cunha) a pressão de valorização do real será enorme, apesar das operações de swap do BC.

A próxima excelente notícia para o País será o afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff. Nessa ocasião, é muito provável que a cotação da moeda brasileira se aproxime de R$ 3 por dólar. Mais uma vez, o esforço exportador será prejudicado.

*ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Renegociação com os Estados – SAMUEL PESSOA

Folha de S. Paulo - 10/07

A área econômica do governo acaba de enviar ao Congresso Nacional o texto do projeto de lei complementar (PLC) que estabelece os termos nos quais se dará a renegociação das dívidas dos governos estaduais com a União.

Desde a renegociação no governo Fernando Henrique Cardoso, os Estados comprometem parte de sua receita corrente líquida, até o limite de 13%, com pagamentos do serviço e da amortização da dívida com o Tesouro Nacional.

A penúria dos Tesouros estaduais em razão da crise econômica, associada à verdadeira farra fiscal que ocorreu no setor público brasileiro no primeiro mandato de Dilma, criou situações-limite em que os Estados não conseguem pagar a folha salarial.

Os Estados, diferentemente da União, não conseguem tomar emprestado para pagar suas contas em período de forte queda de receita.

A renegociação permite que os Estados nada paguem, até dezembro de 2016, de suas parcelas devidas (com um teto que atinge São Paulo). A partir de janeiro de 2017, e até junho de 2018, passam a pagar parcelas crescentes de suas obrigações com o Tesouro, iniciando com 5,3% em janeiro de 2017 e indo até 94,7% em junho de 2018.

A parcela não paga será incorporada à dívida e paga no futuro. Os Estados terão 20 anos a mais para pagar seus débitos com a União, e, a partir da renegociação, os juros que incidirão sobre o saldo devedor serão de inflação mais 4% ao ano ou Selic, o que for menor.

Como contrapartida, os Estados, por 24 meses, "não poderão conceder vantagens, aumento ou adequação de remuneração" e terão de "limitar o crescimento das despesas primárias correntes".

Adicionalmente o PLC tapa diversos buracos que foram sendo feitos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) nos últimos anos.

O principal buraco eliminado é precisar o conceito de gasto com pessoal. Os Estados não podem gastar mais do que 60% de receita corrente líquida com pessoal. Ao longo dos anos, os governadores encontraram várias maneiras de contornar esse dispositivo. Passaram a desconsiderar como gasto com pessoal a conta dos aposentados e pensionistas, o IR e as despesas com indenizações e auxílios.

Adicionalmente, houve casos em que parte da despesa com pessoal era pedalada para o ano seguinte e paga na rubrica "despesas de exercícios anteriores", saindo da rubrica "gasto com pessoal". A criatividade dos secretários da Fazenda, com o beneplácito dos Tribunais de Contas estaduais, foi impressionante.

Além de tapar esses e outros buracos da LRF, o PLC padroniza a confecção e a divulgação das informações contábeis dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, o que melhorará muito o controle social sobre as contas públicas.

O PLC é importante instrumento de aprimoramento de nossas instituições fiscais.

Evidentemente, o PLC não esgota a agenda fiscal dos Estados. É necessário criar instrumentos para que os Estados em momento de crise possam reduzir gastos com salários. Por exemplo, constitucionalizar o dispositivo que permite aos governos reduzir salários em troca de redução de jornada.

Adicionalmente, é preciso rever o instituto das aposentadorias especiais com 25 anos de trabalho de diversas carreiras do serviço público estadual. Uma pessoa que inicie na carreira aos 20 anos se aposenta com 45! Não há Tesouro que aguente.


Um novo jeito - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 10/07

O ministro Henrique Meirelles deixou claro nas suas conversas dentro do governo sobre a meta fiscal que este ano a atual equipe pegou o bonde andando, mas em 2017 será considerado responsável pelo que acontecer. Por isso, “sob nenhuma hipótese” a meta fiscal poderia ser um déficit maior que o de 2016. Desta forma ele rechaçou as propostas mais expansionistas. Mesmo assim, R$ 139 bilhões é um déficit enorme.

É muito difícil fazer uma reversão de um resultado tão negativo sem aumento de carga tributária. Mas não foi incluído aumento de imposto. A hipótese de elevação da Cide, apesar de ser considerada um “imposto verde”, também foi deixada de lado pelo impacto inflacionário que poderia representar.

Para fazer seus cálculos o governo partiu de projeções de arrecadação muito mais pessimistas do que as feitas pelo mercado. Normalmente era o oposto. Vários bancos e consultorias previram uma receita maior, porque apostam em crescimento do PIB de até 2% para 2017, e porque acreditam que novos impostos serão criados. O governo projetou uma alta de 1,2% na economia e não está contando com novos tributos. A receita extra virá apenas das privatizações e concessões. Ao todo, R$ 55 bilhões. O secretário de Acompanhamento Econômico, Mansueto Almeida, explica que agora não se pode simplesmente criar um número de receitas extraordinárias, porque o TCU exige que cada projeção de ganho com privatização ou concessão seja acompanhada de uma nota técnica que justifique como se chegou a esse número.

A Casa Civil está envolvida em vários projetos de redução de gastos por aumento de eficiência e para isso está tendo a consultoria, sem qualquer custo, da McKinsey para o cruzamento de bancos de dados que evitem a sobreposição de benefícios. Outra consultoria está sendo dada por técnicos do Banco Mundial, BID, Cepal e OCDE, no que se chama “expenditure review”. Essa revisão das despesas, para se testar sua eficiência e detectar desperdícios, vai se concentrar nos dois grandes orçamentos: saúde e educação. Além disso, serão revistas todas as políticas setoriais. Há diversos regimes especiais para setores que foram dados há muito tempo e ninguém analisou a eficácia desse gasto.

O Brasil é assim. Um gasto é criado e vai ficando. Cresce de forma vegetativa, é usufruído por um grupo de interesse. Ninguém fala nada e vai ficando, empilhando-se nesse estado perdulário. Por isso será importante conferir essas políticas setoriais. A revisão do auxílio-doença pode economizar R$ 6 bilhões, calculam técnicos do governo. Trabalhadores adoecem, claro, mas há quem se dependure no benefício. Há outras mudanças que podem render recursos ao governo, mas o mais importante dessa revisão dos gastos é que não será como de outras vezes.

— Não entrou no Orçamento nenhum centavo dessa receita que pode ser conseguida com melhoria de programas e eficiência no gasto. Se esse dinheiro vier será ótimo, mas não estamos contando com ele — diz Mansueto.

O governo vai preparar o Orçamento de 2017 como se já estivesse aprovado o limite para as despesas. O aumento de gastos será principalmente pelo custo da previdência, mas as outras despesas serão corrigidas apenas pela inflação. Antes, o governo mandava uma proposta com uma estimativa de receita e o gasto decorrente. O Congresso recalculava a receita para cima e criava novos gastos. Agora não poderão mais fazer isso, porque a despesa estará fixada dentro do limite. O país poderá então, discutir Orçamento e escolher um gasto em vez de outro.

Outra mudança a ser conferida é que o governo vai criar duas estatais. Não se assuste, leitor. Elas serão criadas apenas para tornarem possível a privatização. A Lotex ficará com uma parte da loteria, a que cuida da raspadinha, e será vendida assim que for desmembrada. Pode acontecer a mesma coisa com a parte de seguros da Caixa.

O país terá que enfrentar sua verdade fiscal nos próximos anos. A receita líquida do governo central era de 18,7% do PIB em 2013. Caiu em todos os anos, e em 2017 deve ser de 16,6%. A administração anterior fez vários truques, como pedir dividendos antecipados a bancos públicos. Agora, e daqui em diante, o país terá que parar de inventar dinheiro. A era dos truques acabou.


Análise: Projetos são tentativa de instituir controle ideológico repressivo - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

ESTADÃO - 10/07

Os vários projetos e propostas de cunho religioso ou político-ideológico que vêm sendo apresentados no sentido de interferir nos rumos da educação pública de crianças e adolescentes violam a Constituição brasileira e nossa tradição de Estado laico e democrático. Já antes da Constituição de 1891, o novo Estado republicano promoveu a separação entre Estado e Igreja, rompendo com a tradição de uma Igreja Católica oficial, com bispos e padres funcionários públicos, e, portanto, com a tradição de uma religião do Estado.

Por extensão, a inovação republicana estabeleceu as bases da própria educação nacional e do projeto de nação que deveria orientar a formação das novas gerações de brasileiros. Uma educação aberta para a pluralidade de ideias e de convicções e até mesmo, como consequência, a liberdade de convicção religiosa e política das famílias quanto à formação dos filhos.

A família foi devidamente protegida como instituição de formação complementar dos imaturos, sobretudo considerando que a escola pública, entre nós, não é um internato de natureza conventual. No Brasil, as crianças e adolescentes não são sequestrados pelo Estado para confinamento na escola pública e, portanto, não há mutilação da educação de família.

As tentativas atuais de tornar obrigatório o ensino de doutrinas de fundo religioso, como a do criacionismo, ou as de tornarem a escola pública uma instituição tutelada pela família, ou mesmo as violações representadas pela transformação das salas de aula em escolas ideológicas e partidárias, representam uma ruptura de princípios e valores que foram convencionados na origem do nosso regime republicano e consagrados em mais de um século de tradição.

Essas iniciativas representam uma agressão ao bem comum e tentativa de grupos sociais restritos de instituírem mecanismos repressivos de controle ideológico ou religioso sobre a formação das novas gerações de todos os brasileiros. Tão ilegais são que os projetos deveriam ser barrados já na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O que está em jogo nessas propostas é a imposição de concepção totalitária de educação em conflito aberto com os princípios da democracia e da liberdade de consciência.

* É SOCIÓLOGO E PROFESSOR EMÉRITO DA USP

Estouro da boiada - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 10/07

A Câmara dos Deputados chegou à redemocratização com o inatacável Ulysses Guimarães na presidência, mas acendeu o sinal amarelo com a eleição do indescritível Severino Cavalcanti e o sinal vermelho com o duplamente réu Eduardo Cunha e, agora, não apenas convive com o inacreditável Waldir Maranhão como está entre duas opções: ou um estouro da boiada e mais um presidente problema, ou uma união das forças políticas em torno de um nome palatável pela opinião pública.

Os maiores partidos, PMDB, PSDB e PT, simplesmente não apresentaram candidatos, para não piorar a implosão da Câmara e para esperar 2017. Mas, além deles, nenhum outro partido fechou firmemente em torno de um nome que preencha requisitos básicos, como o respeito da grande maioria e uma ficha razoavelmente limpa. Está difícil!

Eleições para as presidências da Câmara e do Senado deveriam ser como quaisquer outras, quando sempre despontam nomes naturais, com liderança, legitimidade e ampla simpatia entre seus pares, como o de Ulysses, que era inquestionável. Mas os Ulysses andam em falta, e Severino Cavalcanti, de triste memória, acabou chegando lá exatamente por eliminação: não havia soluções naturais, nem consenso em torno nomes. “Se não tem tu, vai de tu mesmo.” Depois, aguenta.

Hoje, a situação é ainda mais complexa: a sucessão de Eduardo Cunha gira em torno do próprio Eduardo Cunha. Com uma multidão de candidatos avulsos no primeiro turno, o segundo será entre o candidato dele e aquele que galvanizar o anti-Cunha, criando um interessante movimento: Planalto e líderes anti-impeachment, PT e PSDB, todos teriam de tapar o nariz e se unir em torno de um mesmo candidato contra o “inimigo comum”. Até ontem, o nome mais forte era Rodrigo Maia (DEM), mas isso sempre pode mudar.

Assim, a maior força do deputado Rogério Rosso (PSD-DF) é Cunha (no primeiro turno) e a maior fraqueza de Rosso também é Cunha (no segundo). Os demais não são candidatos ainda a presidente, mas candidatos a antídoto contra Cunha e Rosso, sem que nenhum deles consiga convencer nem ter apoio consensual nos seus próprios partidos. O PSB, o PP, o DEM, todos têm mais de um postulante, o que pode chegar a uma lista de 14 nomes. Quando há tantos, é porque não há nenhum. Logo, o estouro da boiada é no deserto.

O Planalto emite sinais contraditórios. Michel Temer se encontra com Cunha no escurinho do Jaburu num domingo à noite, mas nega. É suspeito de tramar um acordão com Cunha para adiar sua cassação e garantir-lhe ingerência na escolha do sucessor, mas nega. Jura que o Executivo não vai se meter numa decisão da Câmara, mas sua entourage não faz outra coisa, claro. Um adversário na presidência da Câmara?!

Enquanto isso, o Centrão bate cabeça, a base aliada ao Planalto está pulverizada em várias candidaturas e a “nova oposição” (PT e seus seguidores), que andava muito silenciosa, monta uma armadilha para Temer. Ou todos fecham com Rodrigo Maia, ou vem aí o ex-ministro da Saúde do final de Dilma, Marcelo de Castro, como forma de encurralar o presidente interino. Ou apoiar Castro, que votou contra o impeachment, mas é do PMDB, ou optar pelo Rosso ou um candidato qualquer de Cunha, confirmando a tese indigesta de um “acordão” entre Temer e Cunha.

Tudo está confuso, incerto e expondo as entranhas da Câmara: partidos rachados; um presidente que jamais deveria chegar aonde chegou e corre o risco de sair dali direto para a prisão; um substituto não só incapaz em vários sentidos como capaz de tentar um golpe para anular o impeachment aprovado em plenário; a inexistência de dois ou três líderes que emergissem como soluções naturais; logo, uma preocupante rejeição da opinião pública.

E a Lava Jato nem começou ainda a julgar, condenar e prender os políticos. Imaginem quando começar...

Amargo regresso - DORA KRAMER

O Estado de S. Paulo - 10/07

A perspectiva de uma campanha eleitoral sem doações de empresas a serem registradas na contabilidade oficial instalou o pânico nos partidos. Ao contrário do que seria natural, não produziu neles solução alternativa.

O veto ao financiamento de pessoas jurídicas está em vigor há mais de um ano, por decisão do Supremo Tribunal Federal, corroborada por votação do Congresso. Votação esta pautada pelo constrangimento de ir contra a decisão do STF. Tempo suficiente para que suas excelências estivessem ao menos discutindo o que fazer: mobilizar eleitores, preparar campanhas de arrecadação, mostrarem-se dignos de financiamento espontâneo.

Nenhuma dessas ou outras providências criativas se observam nos partidos. O que se vê é apenas a expectativa de que mais à frente haja condições para mudar a regra de maneira a voltar à situação anterior.

Os sinais são sutis. Na semana passada alguns líderes partidários se reuniram com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para tratar de questões atinentes às investigações em curso. Janot queria apoio contra legislações restritivas à ação do Ministério Público. As excelências também. Para efeito oficial. No paralelo, porém, aproveitaram para sondar o procurador sobre a hipótese de revogar o veto às doações de pessoas jurídicas.

A consulta, obviamente, não prosperou. Mas fica a dica: passadas as eleições municipais de outubro próximo, haverá propostas para a retomada das doações de empresas. Sob o argumento de que o veto às empresas “não deu certo”. A suas excelências o que vale é o retorno ao que a antiga musa cantava e não a correção dos termos da canção.

Tanto faz. Por enquanto são três os candidatos à eleição da presidência da Câmara na próxima quinta-feira: Rogério Rosso (PSD), Rodrigo Maia (DEM) e Fernando Giacobo (PL). Oficialmente nenhum deles conta com o apoio do Palácio do Planalto, cujo sonho de consumo talvez fosse ter um correligionário do PMDB no posto.

Extra oficialmente, Rosso é tido como o “menos pior”. Giacobo, ligadíssimo ao notório Valdemar da Costa Neto, é visto como o “rei da chantagem” e Maia qualificado como gerador de atritos, dada sua dificuldade de transitar de forma amena entre os colegas. Neste cenário da falta de um candidato ideal, para o governo tanto faz quem cumprirá mandato tampão até fevereiro de 2017.

Nessa visão, entrar numa briga agora seria tarefa além de inglória, inutilmente arriscada. Estão frescas na memória as nefastas consequências de guerras perdidas por governos anteriores. Para Fernando Henrique, a eleição de Aécio Neves custou o rompimento da aliança com o então (hoje DEM) poderoso PFL. Ao PT, sucessivas imposições de candidatos produziram inimigos na Casa e, por último, rendeu a eleição do mais venenoso deles, Eduardo Cunha.

Diante da evidência de que não há solução ideal, o Planalto prefere guardar prudente distância de qualquer solução que venha a decorrer a disputa em plenário. Quanto à ideia de que o renunciado Cunha venha a influir na escolha do novo presidente, a resposta é a seguinte: não conseguiu preservar o próprio mandato, muito menos poderá assegurar o do próximo.

Sete chaves. Aprovado o impeachment de Dilma Rousseff, sobre o qual os atuais governistas não têm a menor dúvida, Planalto e adjacências sofrerão mudança radical. Transformação esta já desenhada, mas mantida sob o mais absoluto sigilo.


Riscos do gradualismo – EDITORIAL FOLHA DE SP

Folha de SP - 10/07

O governo Michel Temer (PMDB) afinal delineou um programa econômico que alcança o ano de 2019, quando terá início o mandato de um novo presidente eleito.

Trata-se de uma estratégia gradualista de reequilíbrio das finanças públicas, que por ora adia a tomada de decisões mais duras —o presidente interino previu medidas impopulares "a partir de certo momento" e depende de reformas constitucionais ambiciosas.

A diretriz central do plano é a tolerância com deficits elevados nas contas do governos ao longo do mandato atual, o que manterá sua dívida em escalada até, no mínimo, o final da década.

Em compensação, será imposto um congelamento inédito dos gastos federais em termos reais —dito de outra maneira, os desembolsos, salvo poucas exceções, não poderão crescer acima da inflação.

Ao longo do tempo, com a esperada recuperação do emprego, do consumo e dos investimentos, a arrecadação tributária voltaria a se expandir, reequilibrando o caixa do Tesouro Nacional.

A concretização do teto para as despesas envolverá batalha dura no Congresso, onde será necessário suspender os dispositivos da Constituição que atrelam os gastos em saúde e educação a percentuais mínimos da receita.

Há pela frente ainda uma reforma das regras previdenciárias cujo texto nem sequer está esboçado, embora saiba-se da inevitabilidade de restringir benefícios e elevar a idade de aposentadoria.

A viabilidade política de tal agenda cobra, decerto, seu preço, e o governo o paga com antecedência e sem regateio. Foram dados reajustes aos salários dos servidores da União e ao Bolsa Família, mais uma nova rodada de socorro financeiro aos governadores.

A má repercussão de tanta permissividade forçou maior continência no anúncio das metas a serem perseguidas de imediato. Prometeu-se evoluir de um deficit primário (o saldo entre receitas e despesas, excluindo juros da dívida) de R$ 170,5 bilhões neste ano para um de R$ 139 bilhões em 2017.

Não são triviais, porém, as dúvidas que cercam o compromisso divulgado. Dadas as estimativas para os dispêndios, tal resultado dependerá de arrecadação adicional na casa dos R$ 55 bilhões, cuja origem, apesar de menções à privatização, permanece obscura.

Nas projeções para os anos seguintes, demonstra-se um otimismo de base inverossímil. Prevê-se a redução do deficit quase pela metade em 2018, e a zero em 2019. Não se detalharam as premissas que sustentam melhora tão célere.

É fato que o sucesso do programa pode ser acelerado caso o governo recorra a aumentos de impostos —uma possibilidade sugerida com frequência nas declarações das autoridades, que nunca chegam a desvelar a natureza e o alcance das opções cogitadas.

Um incremento mais agressivo da receita encurtaria a sequência de rombos orçamentários e saltos da dívida pública. Com a ajuda de uma melhora geral de humores a ser proporcionada pelo avanço das reformas, a medida poderia contribuir para uma queda mais rápida das taxas de juros.

Esta Folha entende que elevações da carga tributária —já excessiva no Brasil— podem ser defensáveis no atual contexto de descalabro das finanças governamentais. Devem, entretanto, ter caráter emergencial e, tanto quanto possível, transitório.

Mais virtuoso será empreender uma ofensiva persistente de venda de ativos do Estado e concessões de serviços públicos à iniciativa privada, que além de dinheiro para os cofres do Tesouro também levaria maior eficiência à economia.

Iniciativas para ampliar a qualidade dos gastos, adiadas anos a fio pela complacência burocrática e corporativa, agora se impõem pela míngua de verbas. Abundam programas a serem aprimorados ou revistos, como já se ensaia fazer com o obsoleto abono salarial.

Não faltam bons argumentos para a opção pelo gradualismo. Na arena política, Temer age premido pelo calendário desfavorável —além do andamento do processo de impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff (PT), as eleições de outubro sabotam as chances de propostas amargas prosperarem no Congresso.

Do lado econômico, a profunda recessão, a despeito dos sinais de acomodação, ainda torna contraproducentes terapias de arrocho fiscal: cortes radicais de obras públicas ou revisões de benefícios tributários, por exemplo, acabariam por deprimir ainda mais os investimentos e a arrecadação.

A escolha fundamental do governo, portanto, está correta. Os planos complementares, porém, ainda são desconhecidos ou nem cogitados. A discussão deixará de fazer sentido e a economia pode desandar em tumulto renovado se o Congresso não aprovar as reformas, ou caso as esperanças de empresários e investidores terminem vencidas pelo cansaço.


O entulho começa a ser removido - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 10/07

Mergulhado numa paralisante crise política, econômica, social e moral, cuja persistência pode significar um enorme retrocesso no trabalho de construção de uma sociedade livre, próspera e justa, o Brasil se prepara para remover o entulho do passado recente que tem obstruído o processo político e prejudicado a retomada do crescimento econômico em benefício da justiça social. Esse entulho tem nome duplo: Dilma Rousseff e Eduardo Cunha. O definitivo afastamento de ambos da vida pública, mediante a cassação de seus mandatos, terá ainda o efeito simbólico de uma vitória dos brasileiros sobre a corrupção disseminada por ambos, cada uma a seu modo: Dilma na condição de chefe de um governo comprometido com o objetivo duplo de beneficiar com o desvio de recursos públicos um projeto partidário de poder e também enriquecer seus principais líderes e aliados; Eduardo Cunha, no comando da Câmara dos Deputados, responsável pela cooptação de companheiros de mandato para acumular poder e, assim, beneficiar-se de recursos públicos. Uma e outro, inimigos figadais, ironicamente se unirão em breve no mesmo destino: o exílio político. Já é um avanço e tanto.

A cassação dos mandatos de Dilma Rousseff e Eduardo Cunha torna-se praticamente inevitável em grande medida pelo fato de os dois já terem sido julgados e condenados pela opinião pública, como comprovam, para além de qualquer dúvida, todas as pesquisas de opinião. Ambos são repudiados pela grande maioria dos brasileiros.

Em comum Dilma e Cunha têm a desfaçatez com que subestimam o discernimento dos brasileiros, aos quais agridem com a cínica negação de suas responsabilidades pelos crimes que lhes são atribuídos. É verdade que contra a presidente afastada não pesa suspeita de ter-se locupletado com a corrupção. O fundamento do pedido de seu impeachment são crimes de responsabilidade no exercício do mandato presidencial. Mas como acreditar que seja “uma mulher honesta” quem passou mais de seis anos na chefia de um governo que surge como o mais corrupto de que se tem notícia na História do Brasil?

Eduardo Cunha, por sua vez, convive com claras evidências de corrupção desde seus primeiros passos na vida pública. Nem mesmo o grande serviço que prestou ao País com a decisão de aceitar, como presidente da Câmara, o início da discussão do processo de impeachment de Dilma decorreu de um sentimento de grandeza ou da percepção da gravidade do momento. Foi motivado pelo fato de não ter logrado um acordo com o Planalto para evitar o processo de cassação de seu próprio mandato, que sempre colocou a serviço de seus escusos interesses pessoais.

Tão grave e prejudicial ao País quanto os crimes pelos quais Dilma e Cunha respondem é o fato de a permanência de ambos na cena política estar obstruindo o processo do urgente retorno à normalidade institucional, condição para que o governo interino possa apresentar e colocar em execução as providências e ações reestruturantes – as mais importantes das quais dependem de aprovação pelo Congresso – necessárias ao saneamento das finanças públicas e à retomada do crescimento da economia. Por exemplo, enquanto o impeachment não for finalmente julgado pelo Senado, o governo interino corre o risco de permanecer refém dos interesses políticos que podem influir na obtenção da maioria qualificada de votos necessários à aprovação da medida que transformará Michel Temer de substituto em sucessor de Dilma Rousseff.

A interinidade é um óbvio obstáculo ao pleno desenvolvimento das ações do governo. A principal evidência disso é a obstinada tentativa da oposição lulopetista de prorrogá-la ao máximo para desgastar a equipe e o comando de Temer. Lula e Dilma, principalmente ela, esforçam-se para manter a impressão de que continuam lutando contra o “golpe”, mas sabem que a guerra está perdida e não abrem mão do boicote revanchista ao governo provisório.

Cansado e impaciente com a crise política que há pelo menos um ano e meio paralisa o governo, o País almeja livrar-se de todo o entulho que o impede de deixar o passado para trás e olhar para o futuro com alguma esperança. Dilma e Cunha fazem parte desse passado.

Afinal, quem se salva? - FLÁVIO TAVARES

O ESTADO DE S. PAULO - 10/07

Somos o país do presente excêntrico, em que o absurdo coabita com a normalidade

A política surgiu como disputa de ideias em torno da melhor forma de poder. Pela História afora, porém, governar foi sempre uma guerra pelo poder, com o crime no papel principal. Ou como ingrediente único - Shakespeare já nos mostrou o que se escondia sob os lençóis de reis e rainhas. Na era moderna, a democracia representativa surgiu para que o debate e o diálogo político substituíssem o crime. 

Mas o crime tem imensa capacidade de modificar a aparência e - tal qual molusco - se readaptar a qualquer habitat sem deixar de ser o que é. Assim, estamos nós a ver o crime passar como se fosse "a banda" do Chico Buarque. E, com variantes e variações, desde Pedro Álvares Cabral... 

Na pobreza atual da política, tudo é fácil. A truculência policial talvez seja o crime maior, pois gera a visão de vingança "contra o Estado", que devia proteger os cidadãos. Mas há um crime mais profundo, disfarçado e quase imperceptível: a recusa dos políticos em debater e dialogar. Ou em pesquisar junto à sociedade inteira. 

Em vez de soluções, a politicalha busca votos e se exibe num faz de conta, repetindo lugares-comuns. Os políticos atuam como depositários da verdade. São mansos na fala e, na mansidão, alguns até ocultam a mão que busca a carteira e a bolsa alheias. 

Outros são hábeis e o que são nem transparece ou se esconde como o metrô subterrâneo. Há ainda os inábeis e antipáticos donos da verdade, como o PT, que criou o rastro de desconfiança responsável pelo apoio popular ao impeachment de Dilma. 

Daí surge a visão de que tudo agora "vai mudar" e "a corrupção terá fim".
Se Dilma sair em definitivo, o governo de "salvação nacional" de Temer nos levará à porta do paraíso! 

Mas talvez seja difícil entrar no éden: o novo Ministério está cheio daqueles velhos diabos do PMDB e dos partidos da base alugada que foram ministros de Lula da Silva ou de Dilma. Alguns (como o chefe da Casa Civil e "homem forte" do governo Temer), processados em juízo; outros, citados nas propinas da Lava Jato, da qual o próprio presidente interino se saiu airoso: explicou que os R$ 5 milhões recebidos de empreiteiras da Petrobrás foram doações eleitorais... 

A cada dia, um novo escândalo faz esquecer o anterior. Já ninguém se recorda das conversas gravadas entre figurões do PMDB com as tramoias para "parar a sangria" da Lava Jato e impedir que "pegue todo mundo", até Aécio Neves e o PSDB. Ao esquecer, não vemos que o exercício da política virou conspiração com centenas de cúmplices - de grandes empresá- rios a ministros, parlamentares e simples vereadores.

Um protege o outro, os adversários se unem e se solidarizam para apagar os rastros do crime. Tantos são os cúmplices que é difícil identificar o chefão. 

O ato de governar pode não ter aparência de crime, mas há muito, entre nós, é um consórcio de interesses difusos para outros usos. As "machadadas" do ex-presidente da Transpetro escancararam o assalto na área federal, mas na estadual (e municipal) é igual - muda quase só o CPF dos beneficiários. 

Nos governos Lula e Dilma o PT, o PMDB e a base alugada repartiam o que caía na rede e, em casos extremos, simulavam administrar alguma coisa. Com Temer, idem ibidem. Tudo igualzinho, ainda que Henrique Meirelles tente dar outra impressão num governo com gente envolvida na Lava Jato e do qual Eduardo Cunha é um dos oráculos. 

Agora o PT está de fora, mas não nos preocupemos. Com o velho estilo, lá continuam o PP e os alugados de sempre, além de gente do PSDB e do DEM que posava de donzela. O comunista PCdoB pede dinheiro a capitalistas e o "socialismo" do PSB monta empresa fantasma que movimenta R$ 600 milhões. 

E todos sob a regência do PMDB, como revelou Sérgio Machado, com a autoridade de ex-senador do PSDB, candidato ao governo do Ceará pelo PMDB e, por indicação dos chefões deste partido, levado por Lula (e Dilma) à direção da bilionária Transpetro. Dos alugáveis, só o PDT não aparece: será que lhe bastaram as falcatruas de R$ 500 milhões no Ministério do Trabalho, sob investigação da Polícia Federal? 

Em tempos de bonança todos se deleitam, imunes a protestos, panelaços ou buzinaços, e até seus palhaços parecem de aço. A penúria faz o PT arcar com a culpa sozinho, como se fosse o único consorciado, dono absoluto daquilo que o PMDB maneja tão habilmente, há anos, que está presente apenas nos momentos sem penas. O PP, "partido paulo-malufista", com a tradição engenhosa de seu guia, fez Paulo Roberto Costa levar à Petrobrás a alta tecnologia do assalto. 

Isso tudo mostra que Brasil não é só "o país do futuro", como disse Stefan Zweig, repetindo Clemenceau. Somos também o país do presente excêntrico, em que o absurdo surge aos borbotões e coabita com a normalidade. A convivência às vezes é tão próxima e tão íntima que parece, até, tratar-se de inseparáveis irmãos siameses. 

Os parâmetros e pontos de referência somem como se nunca tivessem existido. Nossos modelos de vida desapareceram da política, escasseiam no empresariado, são desprezados na ciência, nas artes e nas universidades. As novas igrejas (interessadas no materialismo dos cifrões) já não são refúgio do espírito. Não há modelos sequer no futebol, em que já fomos exemplo para o mundo.

A população inteira anseia por modelos confiáveis, não como messias, mas como honesta referência a que apegar-se na trepidante (e trêmula) sociedade de consumo, que a cada dia nos impinge uma quinquilharia nova como algo eterno. Mas nos deparamos só com está- tuas de areia, que o vento destrói. Ou joias de falso ouro, que enferrujam com o suor. 

Nenhuma análise ou interpretação, por mais profunda e sábia que seja, suplanta a descrição sumária dos absurdos de cada dia. Não repetirei o que jornais, TV e rádio contam sobre o conluio corrupto entre políticos e empresários oportunistas. 

Os fatos falam por si e a avalanche de escândalos leva a indagar: quem se salva?


*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005

O desajuste político das contas públicas - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 10/07

Pode-se medir o sucesso de várias formas, algumas espantosas, principalmente quando se trata de políticas públicas no Brasil. O governo poderá fazer uma festa se fechar 2016 com um déficit primário de R$ 170,5 bilhões. Poderá abrir champanhe se reduzir o buraco no próximo ano para R$ 139 bilhões, valor correspondente, segundo a estimativa oficial, a 2,05% do produto interno bruto (PIB). Somando os juros, porém, a conta mostrará um rombo total muito maior. Esse resultado, conhecido como déficit nominal, tem estado na vizinhança de 10% do PIB, uma monstruosidade, pelos padrões internacionais. O déficit nominal americano ficou em 3,7% no ano passado e deve oscilar por um bom tempo nas vizinhanças desse número. A média geral dos países da eurozona tem estado na faixa de 2% a 3%. A média latino-americana bateu em 7,3% no ano passado – com a maior parte dos países muito abaixo disso – e tende a cair.

É preciso ir além da economia para entender por que as contas públicas brasileiras vão tão mal e como se combina uma recessão prolongada e severa com inflação tão alta – 6,41% há dois anos, 10,67% em 2015 e, se as projeções estiverem certas, algo em torno de 7% em 2016. O número estimado pelo governo para o próximo ano, 4,8%, ainda é pior que o da maior parte do mundo e aparentemente incompatível com um crescimento econômico de apenas 1,2%, também usado como referência para a definição da meta fiscal.

O objetivo fixado para 2017, um déficit primário de até R$ 139 bilhões para o governo central, pode parecer um tanto frouxo, à primeira vista. Para definir essa meta, no entanto, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, teve de vencer a oposição de colegas de governo e aliados políticos. Havia quem defendesse a repetição dos R$ 170,5 bilhões como limite do déficit primário. Outros, mais moderados, propunham valores na faixa de R$ 150 bilhões a R$ 160 bilhões. A primeira resistência a um ajuste mais ou menos sério, portanto, está dentro do Executivo, apesar das promessas do presidente interino. Mas ele, de toda forma, acabou bancando a proposta menos leniente.

Pelos dados conhecidos, o objetivo afinal escolhido é basicamente realista. O governo da presidente Dilma Rousseff costumava apresentar metas mais ambiciosas, no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), para ajustá-las depois à evolução desfavorável de suas contas. O governo provisório do presidente Michel Temer decidiu seguir o caminho contrário: explicitar o problema, no início, e evitar a correção da meta durante o exercício.

Na hipótese mais otimista, o governo alcançará um déficit menor que R$ 139 bilhões se as condições da economia ajudarem e, principalmente, se estiver disposto a aperfeiçoar a gestão. Se continuar no poder, o presidente Michel Temer ainda terá de comprovar a disposição de seguir uma política severa. O mercado aposta nesse compromisso, embora ele tenha confirmado bondades prometidas pela presidente afastada, inflando a folha de salários, e tenha concedido algumas de sua iniciativa, como um reajuste maior do Bolsa Família.

Mas o desafio real supera de longe a tarefa de reforçar as contas nos próximos dois anos e meio. O governo já avançou em pelo menos uma frente, ao propor um limite para a expansão do gasto público. Um teto correspondente à inflação impedirá o aumento real da despesa, mas será insuficiente para racionalizar o sistema orçamentário. Será preciso ir além, negociar a reforma da Previdência e desmontar, por exemplo, a vinculação da receita a certas classes de despesas.

O Brasil gasta em educação tanto quanto a Coreia do Sul, pouco mais de 3% do PIB, mas com resultados muito inferiores. Numa lista de 139 países, a Coreia aparece em 66.º lugar quando se trata da qualidade do sistema educacional. O Brasil, em 133.º, bem perto, portanto, do fim da fila. O levantamento foi publicado há poucos dias pelo Fórum Econômico Mundial. Outras fontes de comparação, como o programa internacional de avaliação de estudantes da OCDE, também têm mostrado o Brasil em posições muito ruins.

Dá-se muita importância, no País, ao volume de gasto orçamentário, e quase nenhuma a questões como prioridade, eficiência e qualidade dos projetos e programas. Vinculações de verbas apenas engessam o Orçamento, dificultam o uso racional de recursos e ainda facilitam o desperdício e a corrupção. Se o gasto é obrigatório, para que cuidar da qualidade e de resultados? A resposta é evidente nos dados brasileiros de educação e de saúde.

Desengessar o Orçamento, uma tarefa politicamente complicada, é muito importante, mas também é apenas parte da solução. Segundo a doutrina mais popular entre os políticos, a função principal do governo é gastar e distribuir comodidades – sem referência necessária a itens como interesse coletivo, equidade, estratégia nacional, objetivos de longo prazo e, é claro, limitação de recursos. Conceitos como competência, produtividade, impessoalidade e responsabilidade foram banidos da gestão pública nos últimos 13 anos. Nunca foram dominantes, desde quando Gregório de Matos desancava em seus versos o governo da Bahia, mas já foram imensamente mais importantes do que na gestão petista.

Se conseguir ajeitar as contas públicas e mobilizar capitais privados, o governo poderá reativar os investimentos vinculados a programas públicos. Mas voltar a investir também será insuficiente se os projetos continuarem ruins, os custos forem mal calculados, o acompanhamento for falho e as obras forem demoradas e de baixa qualidade. Muito mais que dinheiro, gestão é o grande fator escasso para a formulação e a execução dos programas. Gestão, num país como o Brasil, é essencialmente um problema político. Governos de outros países podem precisar de missões do Fundo Monetário Internacional para aprender a fazer e a executar orçamentos. O problema do Brasil está além da competência de missões técnicas.

O preço da sacralização do Judiciário - ELIO GASPARI

Folha de SP - 10/07

Aconteceram três episódios que prenunciam encrencas que serão testes para o Judiciário nacional. Em fevereiro, contra o voto de Celso de Mello e de três outros ministros, o Supremo Tribunal Federal decidiu que uma pessoa condenada na segunda instância deverá esperar o julgamento de um novo recurso na cadeia. Mello chamou a decisão de "inversão totalitária". Na semana passada, numa inversão minoritária, o ministro mandou soltar um empresário que, em 2009, matara o sócio. Condenado a 16 anos na primeira instância, ficou com 14 anos na segunda e foi preso. Mello soltou-o. Ele não julgou o caso, mas o direito de um assassino de esperar em liberdade o julgamento de seu último recurso. O Supremo deverá decidir se a decisão de fevereiro foi constitucional. Todos os grandes clientes e escritórios de advocacia que defendem a turma da Lava Jato torcem para ocorrer uma inversão plutocrática. Como 7x4 pode virar uma outra coisa, não se sabe, mas pode-se sonhar com uma reversão do doloroso 7x1 do Mineirão.


Noutro episódio, o ministro Dias Toffoli mandou soltar o comissário Paulo Bernardo, que havia sido preso uma semana antes. Sua decisão foi cumprida pelo juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo. Tendo sido obrigado a libertar o comissário petista, o magistrado soltou outros seis acusados de morder as contas de créditos de servidores públicos. Se é para soltar, soltemos todos.


O terceiro caso, grotesco, aconteceu no Tribunal Regional Federal da 2ª Região. O juiz Marcelo Bretas mandou prender o notório contraventor Carlinhos Cachoeira e o notável empreiteiro Fernando Cavendish, da Delta. Prontamente, o desembargador Ivan Athié, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, atendeu aos advogados de Cachoeira e converteu as prisões preventivas em domiciliares.


Os repórteres Chico Otávio e Juliana Castro lembraram ao público que o desembargador já fora réu num processo que lhe custara o afastamento do tribunal por vários anos. Defendido por Técio Lins e Silva (hoje advogando para Cavendish), foi desonerado. Em 2014, Athié desbloqueara os bens do empreiteiro acusado de superfaturamentos em obras do governo do Estado do Rio. A amizade de Cavendish com o governador Sérgio Cabral era motivo de orgulho para ambos e Athié registrou que ser amigo de poderosos não poderia criminalizar um cidadão. O desembargador que rapidamente adocicou as preventivas foi novamente ligeiro: declarou-se impedido e entrou em férias. Suas decisões foram revertidas e a dupla foi para Bangu, até que o ministro Nefi Cordeiro, do STJ, retomou a linha de Athié e mandou soltá-los. Breve novos capítulos.


EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e acha que Michel Temer teve um comportamento heroico ao sugerir a Eduardo Cunha que renunciasse à presidência da Câmara.

O que o idiota não entende é por que Temer não sugeriu a Cunha que renunciasse ao mandato.


LAVA JATO

Se depender do juiz Sergio Moro, a central da Lava Jato de Curitiba fechará seus escritórios até fim do ano.
Se não der, dura até março, quando a operação completará três anos.
Isso não significará o fim do pesadelo de muita gente. Os processos envolvendo outras malfeitorias serão redistribuídos para outros juízos.

ITAÚ CULTURAL

O dia em que o banco Itaú avisou ao Ministério da Fazenda que havia um conselheiro do Carf tentando achacá-lo com uma mordida de R$ 1,5 milhão deveria entrar para a história do empresariado nacional. Se outros empresários tivessem feito a mesma coisa, a carceragem de Curitiba estaria vazia.
Em tempo, o conselheiro-mordedor foi indicado pela Confederação Nacional da Indústria.


TEMER PEDALANDO

O governo de Michel Temer tem uma maneira própria de pedalar. Em menos de dois meses, abriu um novo horizonte para empresários que amarraram seus negócios às delícias da privataria.

As concessionárias de seis grandes aeroportos privatizados não querem pagar os aluguéis devidos à Viúva. Coisa de R$ 2,3 bilhões. Elas argumentam que não devem pagar porque sua sócia estatal, a Infraero, não vai honrar sua parte. A clientela, contudo, nunca deixou de pagar suas taxas.

Está numa gaveta do Planalto o texto da Medida Provisória que mima as concessionárias de rodovias estendendo-lhes o prazo das concessões que, em geral, caducam daqui a cinco anos. A prorrogação é o sonho de todos os concessionários. As empresas deveriam ter feito investimentos e melhorias nas estradas. Grosseiramente, 60% do que foi contratado continuam no papel.

O mimo mais bonito poderá ser dado às operadoras de telefonia. Quando o tucanato fez sua privataria, os arrematadores das teles tomaram posse dos imóveis e das redes de infraestrutura que pertenciam à Viúva, obrigando-se a devolvê-los. Temer quer dar esse patrimônio de presente às empresas. A Anatel o avalia em R$ 17 bilhões, e o Tribunal de Contas da União, com possível exagero, estima em R$ 105 bilhões.

A nova Lei das Estatais aprovada na Câmara permite que empresas da Viúva contratem obras e serviços de engenharia a partir apenas de um “anteprojeto de engenharia”. Essa ideia surgiu no ano de 1998 na Petrobras e se destinava a tornar mais ágeis as licitações e as obras. Produziu a Lava-Jato.

LEWANDOWSKI NA GARUPA DA GIRAFA

Corre no Supremo Tribunal Federal uma articulação meio girafa. Em setembro, o ministro Ricardo Lewandowski deixa a presidência da Corte e será substituído pela ministra Cármen Lúcia. Com isso, abre-se uma vaga na segunda turma, a que cuida da Lava Jato.

Pelo regimento, a cadeira deverá ser ocupada por Lewandowski. A ideia-girafa é patrocinar uma permuta antes de setembro. A ministra Cármen Lúcia trocaria de cadeira com um colega que está em outra turma. Driblado, Lewandowski seria mantido longe da Lava Jato.

Uma pirueta desse tipo vai bem num diretório estudantil. Qual ministro continuaria no tribunal depois de ser submetido a semelhante constrangimento?
Lewandowski quer que a Polícia Federal investigue quem criou o boneco inflável "Petralovski" que desfilou na avenida Paulista. Ele representaria "intolerável atentado à honra" do doutor e, "em consequência, à própria dignidade da Justiça brasileira". A ver, mas, se os seus eminentes colegas inflarem o drible da permuta, serão aplaudidos pela turma que fez o boneco.


Golpe só na fantasia - SÉRGIO BESSERMAN VIANNA

O GLOBO - 10/07

Presidente tem de ser um líder e fazer política com maestria


Um presidente não é impedido porque cometeu estelionato eleitoral. Isso é das regras do jogo, é legal e legítimo. “Hate the game, not the players”, dizem os americanos.

Um presidente não é impedido porque, em decorrência do item 1 acima, sua popularidade vai para a lona, e o eleitorado se sente traído. É do jogo, basta manter sustentação parlamentar.

Um presidente não é impedido porque, além dos itens 1 e 2 acima, todo o sistema de representação política está em crise, no Brasil e no mundo. Está no jogo, basta ter casca grossa.

Um presidente não é impedido porque, além dos itens 1, 2 e 3 acima, operações do sistema judiciário expõem com toda a clareza a corrupção institucionalizada do Executivo e a podridão generalizada no sistema político-eleitoral. Mas começa a balançar. Se a população for às ruas, o mandato presidencial passa a carecer de legitimidade.

Um presidente não é impedido mesmo que aos itens 1, 2, 3 e 4 acima se acrescente a maior crise econômica do país desde as últimas oito décadas e meia. Mas tem de ser um líder e fazer política com maestria, porque o mandato está como um violinista no telhado em matéria de suporte e legitimidade.

Se, contudo, fica evidenciado e claro para a população que parte relevante dos sofrimentos causados pela crise é decorrente de erros gravíssimos e perfeitamente evitáveis de política econômica e que esses erros se devem a posições ideológicas, manipulação para ganhar eleições e, ainda por cima, estão imbricados com episódios chocantes de corrupção, esse presidente será impedido em qualquer país do mundo com sociedades abertas.

Mestre Elio Gaspari escreveu um artigo nessas páginas do GLOBO sob o título “Há golpe”. Reconhece, contudo, que não há golpe institucional, não há ruptura na ordem democrática. Mas haveria golpe no sentido do dicionário Houaiss: “Ato pelo qual a pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos, estratagema, ardil, trama”.

A tentativa de salvar o título do artigo é só muito parcialmente bem-sucedida. Práticas ardilosas, estratagemas, tramas e até proveitos indevidos são parte da política. Nesse sentido, toda a política contém elementos golpistas.

A perícia feita pelos técnicos do Senado, contudo, é como a estaca de madeira no coração do vampiro. Já era quase consenso que as pedaladas transformaram-se, de equalizações de débitos e créditos racionais entre agentes e praticadas em vários governos, em forma de mascarar e retirar transparência da política fiscal em montantes absurdamente exorbitantes.

A perícia confirmou-as como empréstimos de bancos públicos à União, o que é ilegal. Pouco importa se a presidente Dilma colocou as digitais no processo. Deve ser impedida por crime de responsabilidade porque, se não o comandou, o coonestou conscientemente. Caso alegue que nada sabia, a situação é mais grave, deve ser impedida por crime de profunda irresponsabilidade.

Sérgio Besserman Vianna é economista

Vinte e cinco anos e muito por fazer - JOSÉ SERRA

O GLOBO - 10/07

O Mercosul faz 25 anos, em meio a bons resultados agregados, ao lado de críticas e ceticismo em relação ao período recente. Tem pela frente o grande desafio da renovação e da adaptação a um cenário internacional cada vez mais competitivo e instável.

A crise que atingiu a região nos últimos anos não diminui a importância do projeto de integração. Ao contrário, torna urgente recuperar o dinamismo perdido, com vistas ao nosso desenvolvimento e projeção externa.

É no contexto desses desafios que abordamos a questão da transmissão da presidência pro tempore do Mercosul para a Venezuela. A presidência do bloco, atualmente a cargo do Uruguai, é exercida semestralmente, em base alfabética. Ocorre que as circunstâncias políticas na Venezuela, bem como o estágio em que se encontra o cumprimento por esse país das obrigações que assumiu ao aderir ao Mercosul, impõem considerações e cuidados que levaram o Brasil a sugerir a postergação da próxima transmissão, que seria em julho, até o próximo mês de agosto.

Todos nós acompanhamos com preocupação os desdobramentos da crise política, econômica e humanitária na Venezuela. O debate sobre o funcionamento de sua democracia reflete uma realidade de polarização e acirramento retórico, que se tem mostrado de difícil superação. O conflito entre Executivo e Congresso paralisa o país, e a ação do Judiciário é objeto de sério questionamento. Rumores de que setores ligados ao governo querem o fechamento da Assembleia Nacional dão a medida da turbulência. Há denúncias de prisões arbitrárias, crescente violência nas ruas e uma gravíssima crise de desabastecimento de alimentos e remédios, que vem afetando drasticamente a população, sobretudo a mais pobre.

O Brasil aposta no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas para o encaminhamento da crise. Mas é forçoso reconhecer que, no momento, o cenário é de grande instabilidade, e falta vontade política para levar adiante a construção de pontes pelo lado do governo.

Ao Mercosul e a seu funcionamento institucional, incluindo o exercício da presidência pro tempore, interessa também o efeito das indefinições e pendências no processo de incorporação de normas pela Venezuela.

A entrada do país nesse bloco, em julho de 2012, deu-se em circunstâncias exóticas que, agora, quatro anos depois, cobram a sua fatura. O artifício foi o seguinte: o ingresso de um novo membro exigia, como exige, consenso; como o Paraguai se opunha à entrada da Venezuela, alegando, com razão, falta de cumprimento de requisitos prévios, os demais governos-membros o suspenderam do bloco, sob pretexto de que a demissão do então chefe de governo paraguaio, Fernando Lugo, embora seguindo normas constitucionais, fora antidemocrática. Desse modo, sem a necessidade de apoio do Paraguai, os outros sócios aprovaram, precipitadamente e com base em critérios político-ideológicos, o protocolo que viria a reger a adesão da Venezuela ao Mercosul.

Esse protocolo, ao contrário do que seria correto, autorizou a entrada imediata da Venezuela, deixando apenas para depois, com um prazo de quatro anos, a obrigação do país de incorporar o acervo legal do Mercosul. Esse prazo vence no próximo dia 12 de agosto. Trata-se de um conjunto de mais de 1.100 normas, além de cerca de 50 tratados internacionais, negociados no âmbito do bloco. São regras que definem a identidade, a forma, o funcionamento do Mercosul. Não é um tema menor. Antes, é o que confere ao bloco conteúdo e identidade.

Até o momento, a Venezuela incorporou pouco mais da metade dessas normas. Ou seja, falta ainda um expressivo conjunto de preceitos técnicos e tratados a serem incorporados, incluindo aí documentos essenciais, como o “Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no Mercosul (2005)”, o “Acordo de Residência do Mercosul (2002)” e o “Acordo de Complementação Econômica nº 18, no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi)”. Esse último, no qual estão refletidas as principais disciplinas comerciais do bloco, constitui a espinha dorsal do Mercosul comercial.

A não incorporação dessas normas faz da Venezuela um sócio incompleto, inadimplente em relação a deveres que são fundamentais, como regras de origem, que definem se um produto pode ingressar nos demais parceiros sem pagar imposto de importação, cooperação judicial e regulamentos técnicos sobre meio ambiente, alimentos, direitos do consumidor e requisitos fitossanitários, entre outros.

No momento em que os países da região, e o Mercosul com eles, voltam a conferir o devido valor à previsibilidade e à segurança jurídica, a expectativa de que a Venezuela cumpra com as obrigações assumidas é exigência lógica e requisito incontornável. Ao propor a postergação da transferência da presidência, o Brasil age com prudência, abrindo espaço e tempo para avaliar com serenidade o melhor caminho a seguir.

O Mercosul não se pode deixar paralisar. Ao lado dos demais sócios, estamos determinados a modernizar o bloco, a derrubar os entraves que ainda impedem o total livre fluxo de comércio dentro do próprio bloco, a negociar matérias pendentes como investimentos e compras governamentais, a concluir novos acordos com parceiros extrarregionais e integrar-nos de maneira cada vez mais competitiva e proveitosa com o resto do mundo.

A Venezuela é um parceiro importante nesse processo. As potencialidades do país são imensas. Mas as bases para o nosso desenvolvimento conjunto precisam ser lastreadas em instituições respeitadas, comportamento previsível e regras claras. O futuro do Mercosul depende disso.

José Serra é ministro das Relações Exteriores

Resistência dos governadores pode levar estados à falência - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 10/07

Previsto para ser votado no Congresso na última quarta-feira, o projeto de lei que formaliza a renegociação das dívidas dos estados com a União foi adiado para esta semana. Segundo o relator do projeto, o deputado Esperidião Amin (PP-SC), as contrapartidas exigidas pelo governo federal enfrentam resistências dos governadores e suas bancadas na Câmara.

O principal ponto de atrito é a inclusão dos estados na Proposta de Emenda à Constituição, que limita o aumento de gastos públicos à inflação do ano anterior.

Os representantes dos estados argumentam que a medida significa uma ingerência indevida, ferindo a autonomia dos gestores estaduais. Para o governo federal, porém, sem que se estabeleça um limite de gastos, o problema se repetirá, obrigando uma nova negociação no futuro, num ciclo vicioso, cujo preço final é pago pela população. Esta preocupação procede.

Na verdade, o impasse mostra que, passado o susto de uma insolvência catastrófica, os governadores insistem em antigos erros políticos, com aumento exponencial de gastos em atentado ao equilíbrio fiscal do país.

O acerto entre 27 governadores, o presidente interino, Michel Temer, e a equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, com o aval do STF, é um passo concreto para pôr fim a uma crise que se acumulava há três anos e caminhava para um desfecho desastroso. Formalizado num substitutivo à Lei Complementar 257/2016, o acordo prorroga por 20 anos o prazo de pagamento das dívidas dos estados com a União, suspende o pagamento das parcelas do débito até dezembro de 2016, de modo que o valor integral da parcela só voltará a ser pago em julho de 2018.

Este alívio representou um impacto, apenas em 2016, de R$ 20 bilhões para o Tesouro Nacional. Considerando-se todo o período, até 2018, o adiamento e o escalonamento das dívidas estaduais terão um peso de R$ 50 bilhões. O governo federal também disponibilizou o BNDES para assessorar estados na privatização de ativos, com o objetivo de recuperar suas receitas.

As estatísticas oficiais mostram que o desequilíbrio fiscal continua evidente. Segundo o Tesouro, no primeiro trimestre do ano, os governos estaduais obtiveram em receitas R$ 191,806 bilhões, considerando-se impostos, contribuições sociais e transferências. Trata-se de uma alta nominal de 5,5% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, as despesas somaram R$ 309,359 bilhões, uma alta de 13,9%. Ou seja, as despesas cresceram num ritmo muito superior ao das receitas, reforçando o quadro de insolvência dos cofres estaduais.

Os estados mais endividados são: Rio Grande do Sul (227%); Minas Gerais (198,6%); Rio de Janeiro (197,7%); Alagoas (169,6%) e São Paulo (167,8%). A dívida total gira em torno de R$ 430 bilhões. No caso do Rio, o governador em exercício, Francisco Dornelles, decretou “estado de calamidade pública”, para ter acesso a recursos federais com urgência. O estado contava nos últimos anos com uma arrecadação de R$ 10 bilhões de royalties do petróleo, cerca de 15% da receita estadual. Com a queda vertiginosa dos preços da commodity, esses recursos desapareceram. O Rio também lidera os gastos com pessoal, cujas despesas cresceram 70% entre 2008 e 2015, seguido por Santa Catarina, Roraima, Tocantins, Piauí e Pará.

Sem margem para aumentar tributos, os governadores não têm alternativa. Precisam avocar o custo político do ajuste fiscal, enfrentar os interesses corporativos predominantes nas folhas salariais e privatizar de maneira criteriosa empresas públicas que hoje servem mais às máquinas eleitorais partidárias do que à sociedade.

Recusar esse desafio implica assumir, conscientemente, a responsabilidade política e jurídica pela futura falência do estado.