terça-feira, fevereiro 23, 2016

Na memória do telefone - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 23/02

Preso, o empreiteiro Marcelo Odebrecht não fala, mas suas anotações orientam a investigação que, agora, passou a ter a colaboração direta do governo dos Estados Unidos


A prisão de “Vaca” o deixou inquieto. Àquela altura de abril de 2015, porém, mais preocupante era a situação de “RA”, um de seus principais assessores. Sempre dissera ao próprio e às famílias — inclusive à sua — que se algum dia pegassem alguém dele, iria “lá” para proteger. Assim fez no outono. Achou que “RA” seria preso, levou-o para casa. Aumentava o perigo, agora precisava pensar num Plano B.

Na madrugada de uma quinta-feira da primavera passada, pegou seu iPhone preto de bordas cinzas, abriu a pasta “Calendário” e começou — era um homem que anotava:

“Delação/fallback (RA)” — escreveu. O registro “fallback” era para não esquecer: alternativa extrema em cenário de prisão de “RA”, esgotados todos os recursos para livrá-lo.

Acrescentou: “— Livrar todos e soh eu.” Ou seja, nessa hipótese, “RA” aceitaria o acordo de delação, mas em bastes restritas: livraria todos, deixando-o exposto, sozinho, diante do juiz, procuradores e policiais federais.

Mostraria o plano a “RA”, e, com ele, passaria a todos a mensagem devida: no limite, era com ele — e, como até as crianças em casa sabiam, não entregava ninguém. Continuou desenhando um roteiro sobre o que “RA” diria num acordo. Por exemplo, sobre “Vaca”:

“— Era amigo e orientado por eles pagou-se Feira de cta que eles mandaram. ODB pagava campanha a priori, mas eh certo que aceitava indicações a título de bom relacionamento.”

A organização (“ODB”) adotara a prática de adiantar financiamentos de campanha, mas só das principais. Aceitava sugestões, eventuais.

Seguiu, pensando na voz de “RA” em depoimento: “Campanha incluindo caixa 2 se houver era soh com MO, que não aceitava vinculacao.”

Outra vez, ele posto no alvo. E se, nessa altura, o inquiridor argumentasse sobre “PRC”, o diretor da estatal, primeiro preso e delator premiado do caso? Então, “RA” poderia retrucar: “PRC soh se foi rebate de cx2”.

Agora anotava em espasmos: “Nosso risco eh a prisão” ... “Acordo Leniência CGU?” — sim, era preciso cogitar. E ver com advogados: “Risco Swiss? E EUA?” Porém, ainda mais urgente, era a conversa com o mineiro, governador, com quem previa logo se encontrar. Registrou:

“FP: — Ela cai eu caio; — Dar a dimensao”.

Essas notas na memória de um telefone celular são de Marcelo Odebrecht (“MO”), ex-presidente da empreiteira homônima, e orientam a investigação judicial. Ele está preso há oito meses. “Vaca” é João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, preso em 15 de abril do ano passado. “RA” e “MF” são Rogério Araújo e Marcio Faria, ex-assessores de Marcelo na Odebrecht e seus companheiros de cela por quatro meses — foram soltos em outubro. “FP” é Fernando Pimentel, governador de Minas Gerais, segundo a polícia. “Ela” não teve a identidade sugerida no inquérito.

Os riscos sobre as contas na Suíça, temidos por ele, se tornaram fatos nas cortes de Curitiba, Brasília e Berna.

Ontem surgiu uma novidade: o Ministério Público Federal anunciou a ativa cooperação judiciária do Departamento de Justiça dos Estados Unidos na investigação sobre lavagem de dinheiro em que a Odebrecht é personagem central, com transferências a partir de bancos em Nova York. Na prática, significa a abertura de processo contra a empresa nos EUA, onde a Petrobras já se defende em tribunais.


Crime repetido - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 23/02

A desconfiança de que o PT mantinha contas secretas no exterior, de onde retirava dinheiro para financiar suas campanhas eleitorais, inclusive as do ex- presidente Lula e da presidente Dilma, sempre esteve presente na crônica política.

Desde que o marqueteiro Duda Mendonça, em 2005, confessou que fora pago em uma conta não declarada no Caribe aberta a mando o lobista Marcos Valério, até hoje, de acordo com as investigações da Lava-Jato, esse procedimento continuou sendo usado para pagar o marqueteiro João Santana.

Isso significa que o PT atua na ilegalidade pelo menos desde a primeira eleição de Lula, em 2002, e os métodos de lavagem de dinheiro foram sendo aperfeiçoados para tentar esconder as contas secretas.

A teia de contas e bancos pelo mundo montada pela Odebrecht e, segundo as investigações, controlada pessoalmente por Marcelo Odebrecht, serviu para lavar dinheiro desviado da Petrobras para o PT, e pagou os serviços do marqueteiro do momento, assim como Marcos Valério pagou Duda Mendonça no mensalão.

A repetição de métodos criminosos já devidamente comprovados impede que a questão seja tratada pelo Tribunal Superior Eleitoral como banal, pois vários políticos já perderam seus mandatos, de prefeito e governador, devido a abusos do poder econômico muito menos evidentes e sofisticados do que o que agora está sendo desvendado sobre as campanhas da presidente Dilma Rousseff em 2010 e em 2014.

Mesmo que tentem analisar de maneira burocrática a situação posta, interpretando a lei ao pé da letra e sem contextualizar o que representa esse imenso esquema criminoso que está sendo revelado nos detalhes pela Lava-Jato, será um ônus enorme para ministros do TSE fingir que não se depararam com um escândalo sem precedentes na história política brasileira.

Em 2005, tudo era novidade para o mundo político, tanto que provocou choro e ranger de dentes entre os petistas mais sensíveis às questões éticas, que àquela altura já não eram obstáculo à ascensão meteórica do PT ao comando central do país.

Muito antes disso, a ação criminosa de que foram vítimas prefeitos petistas - Toninho, de Campinas, e Celso Daniel, de Santo André - já demonstrava que o caminho do poder petista não seria barrado por pudores de nenhuma espécie.

A consequência da descoberta de grossa corrupção na campanha eleitoral de Lula em 2002 só não teve maior repercussão por um erro estratégico do PSDB, que considerou o então presidente como carta fora do baralho na sucessão presidencial de 2006 e decidiu deixá-lo "sangrar" até o final de seu primeiro mandato.

A recuperação da economia produziu um efeito contrário e ajudou Lula a recuperar o fôlego que parecia ter perdido no início do escândalo. Adaptando-se à situação como o camaleão político que sempre foi, Lula saiu de uma posição de humildade, dizendo-se traído e pedindo desculpas na televisão, para negar até mesmo que tenha existido o mensalão.

Desta vez, não apenas a repetição, mas o aprofundamento do esquema criminoso demonstram que não se deve ter complacência com um partido político que usa de todos os artifícios criminosos possíveis para obter vantagem sobre seus adversários, desde a calúnia e a infâmia, até mesmo desviar dinheiro público para a manutenção de suas atividades político- eleitorais.

O juiz Sérgio Moro já enviou ao TSE os documentos da primeira condenação do ex- tesoureiro do PT João Vaccari, em que está provado o uso do dinheiro desviado da Petrobras para campanhas do PT. A continuidade dessa sistemática utilização de dinheiro público para o caixa de suas campanhas, seja pelo uso de caixa dois, seja pela lavagem através de doações "legais" registradas no TSE, está confirmada em várias delações que confirmam que a campanha presidencial de 2014 também foi irrigada com dinheiro desviado da Petrobras.

Se em 2005 Duda Mendonça acabou sendo absolvido pelo STF, que não viu dolo na sua ação, e safou- se pagando uma multa à Receita Federal, hoje a situação é diferente: a intenção de fraudar as leis está configurada, segundo a PF e os procuradores da Lava- Jato.

Agora, fecha-se o círculo com o esquema da Odebrecht para o marqueteiro João Santana, que pode também ter ajudado o PT em outra circunstância, igualmente criminosa: a Polícia Federal apura a suspeita de que empresas dele trouxeram de Angola para o Brasil cerca de US$ 16 milhões, em 2012, numa operação de lavagem de dinheiro para beneficiar o PT.

Não há como negar as evidências, e o mundo político já joga com a alternativa de o PMDB, diante da realidade, decidir- se pelo impeachment da presidente Dilma para evitar a cassação da chapa pelo TSE.