quarta-feira, janeiro 06, 2016

O ano da marmota - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Folha de SP - 06/01

Comemoramos o Ano Novo com direito a queima de fogos e até um artigo especial da presidente da República, em que ela mais uma vez busca se eximir da culpa pelo seu lamentável desempenho, deixando, é claro, de admitir sua responsabilidade pelos inúmeros erros de política, bem como a arrogância com que desconsiderou qualquer crítica aos disparates do seu primeiro mandato.

No entanto, sinto informar que, tal como no filme "Feitiço do Tempo" ("Groundhog Day", no original em inglês), estamos ainda presos em 2015, de onde só sairemos se, da mesma forma que o protagonista, reconhecermos nossos erros e conseguirmos corrigi-los.

A verdade é que muito se falou e pouco se fez a esse respeito. Do ponto de vista do ajuste fiscal, por exemplo, embora os gastos primários do governo federal, medidos a preços de novembro de 2015, tenham caído de janeiro a novembro (algo como R$ 27 bilhões, cortesia da inflação elevada), tanto a causa como a distribuição da queda não são bons presságios para o futuro.

Com efeito, os gastos de capital caíram R$ 32 bilhões; já os gastos correntes subiram R$ 5 bilhões. Destes, os gastos previdenciários aumentaram R$ 7 bilhões, impulsionados pela elevação do salário mínimo pouco inferior a 9% em 2015.

Isso sugere haver pouco espaço para cortes adicionais do investimento, enquanto os gastos correntes deverão seguir sua trajetória ascendente, em particular se, como esperado, a inflação deste ano for menor que a de 2015, enquanto o novo reajuste do salário mínimo já foi fixado em quase 12%.

Posto de outra forma, o ajuste fiscal propriamente dito, isto é, a correção da persistente tendência de aumento do gasto público, ainda está para acontecer.

Nesse sentido, a falta de convicção da presidente, estampada no seu artigo, é muito mais inquietante do que as tendências "desenvolvimentistas" do novo ministro da Fazenda, ainda que estas sejam bastante reais. Da mesma forma são preocupantes as pressões do seu partido para a retomada da experiência heterodoxa do primeiro mandato, defendida por economistas que ainda tentam nos convencer de que a nova matriz jamais existiu (a última desculpa é que se tratou de uma "tentativa de prolongar o ciclo de consumo e só").

Isto dito, se não houve progresso no campo fiscal, a situação consegue ser ainda pior no âmbito das reformas microeconômicas. Como bem notado por Marcos Lisboa e Zeina Latif em artigo recente, o país acumulou enormes distorções nos últimos anos, revertendo o progresso de décadas anteriores. Nada foi feito para corrigir essas distorções, boa parte das quais, diga-se de passagem, foi criada precisamente no período em que Nelson Barbosa desempenhava papel central na equipe econômica.

Olhando à frente, não é preciso muito para nos persuadir de que são reduzidas as chances de avanço em qualquer uma das áreas acima. Para começar, não existe no governo, depois da saída de Joaquim Levy, quem as defenda à vera.

Mais importante, porém, qualquer um que tenha lido a entrevista do ministro da Casa Civil deve ter notado que não há nenhuma outra prioridade por parte da atual administração que não seja evitar o impedimento da presidente.

Nesse contexto, ninguém deverá se surpreender caso acordemos em 2017 com a exata sensação de estarmos ainda em 2015.

Comércio de pobre - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de SP - 06/01

Houve um zum-zum de ligeira animação com o resultado do comércio exterior no final do ano. De interessante, parece que as exportações vão parando de cair, o que pode atenuar a recessão. De fundamental, ainda é preciso ressaltar que em 2015 houve um colapso raro, enorme e histórico das compras do Brasil no exterior.

Gastamos muito menos lá fora porque o real perdeu poder de compra: houve uma brutal desvalorização da moeda. Ficamos mais pobres e, grosso modo, perdemos crédito, nos vários sentidos da palavra.

As importações caíram 25% em relação a 2014. Coisa assim fora vista apenas em 2009, quando o mundo parou e nós por um instante congelamos de medo diante da Grande Recessão. Como se lembra, saímos rápido dessa. Não é o caso agora.

Antes da Grande Recessão, houvera os colapsos até um pouco menores provocados por desvalorizações da moeda em 2002 (eleição de Lula), 1999 (crise do real de FHC) e 1984 (megadesvalorização da crise do fim da ditadura). Além disso, baque tão ruim fora visto apenas em 1965, crise do golpe militar.

Em tempos de crise bruta, importar menos, comprar mais produto nacional e vender mais no exterior é um ajuste forçado, o qual, no entanto, pode ajudar a tirar o país do buraco ou atenuar recessões. Substituem-se importações (por produto nacional), como se diz. Nesta temporada no inferno, porém, ainda mal dá para notar a substituição.

Em relação ao tamanho da economia (como proporção do PIB em dólares) o valor das importações está quase na mesma de 2014. Caíram as importações, mas também caiu o PIB em dólar, de US$ 2,42 trilhões em novembro de 2014 para US$ 1,84 trilhão em novembro passado, estimativa mais recente do Banco Central.

As importações, como se disse acima, caíram 25%, US$ 57,7 bilhões. Quase um terço da queda veio do valor menor das importações de combustíveis, baixa quase toda devida ao colapso dos preços internacionais de petróleo e derivados.

O valor da importação de bens duráveis (eletrônicos, carros, por exemplo) está caindo, mas, como fatia do PIB, ainda está acima do nível de 2007, último período de crescimento melhor e regular da indústria. Atenção: isso não quer dizer que deveríamos importar menos desses bens. Melhor seria importar mais (e também exportar mais, para pagar a conta: aumentar o comércio em geral). No caso, 2007 serve apenas de ponto de referência, um modo de medir se estamos ou não substituindo importações de modo relevante para sair um pouco do atoleiro.

No mais, a importação de bens de capital (máquinas, equipamentos) continua a diminuir, baixa de 21% em um ano, mau sinal para o investimento. A importação de bens de capital anda quase sempre de mãos dadas com o investimento na expansão dos negócios.

A exportação parou de cair. Costuma acontecer que, mesmo com o barateamento do produto nacional (com a desvalorização do real), as exportações a princípio caiam. Parece que a maré baixa passou, embora a situação precária do comércio mundial não permita animações maiores, por ora.

Enfim, ainda é dúvida como vai reagir uma indústria desatualizada, em parte mal-acostumada por proteções indevidas, desconectada do mundo e prejudicada por regras e infraestrutura indecentes.

As coisas mudam - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 06/01


Em 1972, fui a uma conferência de antropologia no Cairo. No decorrer desse encontro de “sábios”, muita gente que eu conhecia exclusivamente de livro e idealizava como gênio tornou-se desgraçadamente humana. Eu os havia estudado, mas nas margens do faraônico Nilo – eles se transformaram em concorrentes, tangenciando uma familiar burrice.

Exceto a curiosidade de conhecer o professor Sol Tax (1921-1995), um dos modernizadores da antropologia americana e organizador do encontro, eu sabia que o alvo da reunião – produzir livros sobre todas as sociedades tribais do mundo – era muito ambicioso e muito americano. Mas, por trás disso, havia o Egito, o Cairo do cinema, as tais danças do ventre e a minha juventude.

No hotel Shepheard, vi um sujeito baixinho, energético e extremamente simpático que me recebeu dizendo: “Você deve ser o nosso homem do Brazil...” (com “z” mesmo). Sol era o dono da bola. Ao seu lado, estava o arqueólogo argentino Rex Pederneiras e um colega egípcio, Hassam Said. Registrei-me e quando soube do interesse de Rex nas danças do ventre, saímos com a desculpa de “conhecer a vida no Cairo”.

Said nos levou a um salão no qual bailarinas maravilhosas, saídas do Jardim das Delícias praticavam a nobre arte da dança do ventre. Apreciei o espetáculo assistido por um El Said intoxicado de orientalismo, tomei um uísque e vi como Rex, instigado pelo nosso companheiro egípcio, bebericava umas seis ou sete taças chá de menta. No dia seguinte, eu tinha ressaca, eles diarreia.

Comentei com Sol Tax, e dele recebi um conselho bíblico ou, quem sabe, talmúdico, inesquecível: em terras pouco conhecidas, coma muito pão!

Em 1977, fiz uma palestra em Chicago e visitei Sol Tax. Fui recebido com muito carinho e alegria. Informado das dificuldades da ditadura militar, o mestre me questionou sobre o Brasil. Externei pessimismo e preocupação. Ouvi o seguinte: “Eu vivi o macarthismo. Também passei por uma Alemanha alucinada pelo Holocausto e uma Europa em guerra. Tenha paciência: as coisas mudam, Roberto”.

*
Em 1849, o grande Richard Wagner que, para o não menos grandioso Claude Lévi-Strauss, teria sido o verdadeiro inventor da análise estrutural dos mitos, decretou a que a Nona Sinfonia, de Beethoven, havia exaurido essa forma musical. Mal sabia ele que, depois disso, Brahms escreveria quatro sinfonias; Tchaikovski, seis; Dvorak, nove; Mahler, dez; Havergal Brian, 32 e Alan Hovhaness – para pararmos uma longa lista roubada de um belo ensaio de Alen Ross, lido na New Yorker –, 67!

As sinfonias continuam. Perderam seu viés teatral, são ouvidas em CD. Mas, como os mitos, elas dialogam entre si.

Do mesmo modo, o populismo-sebastianista, que garante riqueza e bem-estar para todos sem que ninguém perca coisa alguma, retorna e hoje está em cheque e choque. Como distribuir eleitoralmente sem destrambelhar a economia? Como fazê-lo pensando no Brasil e não no poder? Como substituir a formula “cuidar aos pobres”, para, por meio de escolas, saneamento, moradia e, sobretudo, igualdade cívica, mudar a vida dos menos favorecidos? O lulopetismo prometeu progresso, mas o resultado foi regresso – recessão e inflação. Isso para não falar na mendacidade como moda a qual, como as antigas sinfonias, ganharam em vigor e virtuosismo imaginativo.

*

O Brasil em crise e os nossos zilionários calados. Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado. Escrevi algumas vezes que a tradição brasileira de “políticas públicas” inspirava-se na “caridade”. Numa virtude teologal que, ao lado da fé e da esperança, fazem parte de um quadro religioso. O resultado é uma sociedade na qual cada qual todos sabem o seu lugar e tanto os ricos quanto os ideologicamente iluminados continuam falando dos pobres, mas garantindo suas famílias.

A caridade tem sido implacavelmente canibalizada pela política do ‘dar para receber’. Nosso surto petrolífero não resultou na filantropia de uma Fundação Rockefeller ou Ford, mas numa ponte amigável entre políticos e operadores organizados em locupletarem-se, debaixo da velha fachada de remediar uma desigualdade que os programas do governo perpetuam.

Vejam o contraste. Mesmo nesta era estadunidense de pikketys, de capitalismo narcisista e de aumento vergonhoso de desigualdade, a filantropia segue firme com os Bill Gates e os Mark Zuckerberg abrindo mão de parte do seu dinheiro. Aqui os ricos viram pobres e culpam o Estado... ou a polícia. Lá, eles assumem o seu lugar e, para a surpresa dos que imaginam que os capitalistas não conhecem o seu próprio sistema, discutem o lado negativo do capitalismo. Lá, o federalismo e a ética individualista do mercado e da competição revelam os defeitos do todo. E, como são os indivíduos que fazem a sociedade, os milionários tentam corrigi-la com a filantropia. Aqui, como partimos do centro e do todo, esquecemos do papel (e da responsabilidade) das partes. E, como quem “cuida” do sistema é o “governo” e não cada um de nós, esquecemos como os muito ricos podem contribuir para essa crise cuja causa jaz exatamente no controle indiscutível do sistema por uma elite que cabe num dedal.

Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado

Uma aula da fantasia oligárquica - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP - 06/01

Num ridículo episódio de caipirice cosmopolita, ao passear no teleférico do morro do Alemão, Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, disse que estava se sentido "numa estação de esqui" dos Alpes. A doutora achou que viajara ao futuro, mas estivera a bordo das maquinações do passado e das empulhações do presente. Em breve o teleférico será operado pela empresa de Tiago Cedraz, filho do presidente do Tribunal de Contas da União, o veterinário e ex-deputado Aroldo Cedraz.

A obra custou R$ 253 milhões e foi inaugurada duas vezes (em 2010 e 2011) sem que o serviço estivesse em plena operação. Funcionando, ele reduz para 19 minutos uma caminhada que pode durar até duas horas. Quando madame Lagarde esteve nos Alpes cariocas, o governo do Rio já começara a atrasar os repasses para a manutenção do serviço e a concessionária se desinteressara pela renovação do contrato, dispensando alguns funcionários. O colapso financeiro do Rio já havia começado.

No mundo da fantasia, dera tudo certo no andar de cima. As empreiteiras Odebrecht, OAS e Delta orgulhavam-se da obra. A Delta foi apanhada nas traficâncias do bicheiro Carlinhos Cachoeira e foi declarada inidônea pela Controladoria-Geral da União. A OAS, apanhada na Lava Jato, está em recuperação judicial. A empresa Supervia, filhote da Odebrecht, ficou com a exploração do serviço.

À época, Lula, Dilma, Sérgio Cabral e Pezão saciaram-se na publicidade. Sobrou um teleférico para ser operado. Essa, a parte que exige trabalho e não rende propaganda, tomou outro curso, o dos serviços públicos para o andar de baixo. Às vezes o teleférico funcionava num horário proibitivo para quem precisava pegar no batente de manhã cedo.

A Supervia desistiu da operação e devolveu a maravilha à Viúva. O repórter Ítalo Nogueira revelou que o governo do Rio concluiu a licitação para escolher a nova operadora do teleférico do Alemão. Venceu-a uma empresa do advogado Tiago Cedraz, criada em abril passado. Sem licitação, a prefeitura do Rio já entregara a Cedraz a operação de outro teleférico, menor, no morro da Providência.

Ricardo Pessoa, um dos empreiteiros presos pela Lava Jato, contou ao Ministério Público que deu R$ 1 milhão a Tiago para ajudar na liberação de um contrato de R$ 2 bilhões para obras da usina nuclear de Angra 3. Pessoa pagava também R$ 50 mil mensais ao escritório do advogado para cuidar de seus pleitos. Ele confirma ter trabalhado para a UTC, mas nega ter tocado em propinas.

Tiago Cedraz tem 33 anos e diplomou-se em 2006. Entre 2009 e 2013, formou um patrimônio imobiliário avaliado em R$ 13 milhões, mais um jatinho Cessna de dez lugares. Teve um conversível vermelho, mas seu pai fez com que o devolvesse.
Vive em Brasília e seu escritório acompanha 35 mil processos. Em 182 atuou no Tribunal de Contas. Em julho, a Polícia Federal visitou-o, cumprindo um mandado de busca e apreensão. Cedraz informa que criou a empresa Providência Teleféricos "quando surgiu a oportunidade de participar das concorrências".

Quando madame Lagarde for esquiar nos Alpes, poderá perguntar se há por lá algum teleférico que tenha passado por tantas peripécias, com personagens tão pitorescos.

A face verdadeira - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 06/01

Quando a vitória esmagadora da oposição foi oficializada na Venezuela, e o governo Maduro reagiu surpreendentemente bem, admitindo a derrota, não faltaram bolivarianos de todos os quilates se regozijando nas redes sociais, numa tentativa de obter algum resultado positivo da derrota acachapante que prenuncia o fim do regime chavista.
“Não era uma ditadura?”, perguntavam, triunfantes, a exibir insuspeitadas inclinações democráticas do governo Maduro. A verdadeira face do autoritarismo chavista, no entanto, não demorou a se revelar com as manobras golpistas para tentar neutralizar a maioria qualificada oposicionista (112 dos 167 representantes na Assembléia Nacional).
A tentativa do que está sendo chamado de “golpe de Estado judicial” se revela na ação direta para impugnar a eleição de deputados da oposição, retirando-lhe a maioria qualificada que permite várias alterações constitucionais, e a convocação de um tal de “Congresso da Pátria” para fazer frente ao Congresso Nacional.
Ontem, no primeiro dia de funcionamento do novo Congresso oposicionista, pelo menos quatro deputados não puderam tomar posse por decisão do Tribunal Supremo de Justiça, três eleitos pela Mesa de Unidade Democrática (MUD) e um pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).
O Congresso de maioria oposicionista começou também a discutir anistia aos presos políticos, entre eles o líder do partido Voluntad Popular, Leopoldo López, condenado a 14 anos de prisão por incitar protestos contra o governo, que divulgou uma carta pedindo uma mudança rápida e profunda no país. “Se Maduro e os outros membros da elite corrupta e antidemocrática que sequestram o Estado torpedearem a mudança, terão de ser removidos”, disse López.
A situação anômala na Venezuela está tão absurda que organismos internacionais como Mercosul, a OEA e as União Européia foram acionados para defender a democracia. E o governo brasileiro, que se mantinha silencioso até então, tendo no máximo emitido um comunicado brando pedindo que o respeito às urnas fosse obedecido “antes, durante e depois das eleições”, ontem soltou uma nota oficial com palavras duras de advertência ao aliado:
"O governo brasileiro confia que será plenamente respeitada a vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas", diz a nota, observando que os resultados oficiais "foram divulgados e validados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela e prontamente reconhecidos, na ocasião, por todas as forças políticas do país".
A situação da Venezuela no Mercosul, por sinal, ficará bastante afetada pois o novo governo argentino de Macri está disposto a cobrar que os arroubos antidemocráticos do governo chavista sejam contidos, o que deveria ter sido feito desde o início, barrando a entrada da Venezuela no grupo por afrontas à cláusula democrática.
Ao invés disso, o governo brasileiro trabalhou para incluir a Venezuela e punir o Paraguai, acusado de ter dado um golpe no antigo presidente Lugo, retirado do poder por um processo de impeachment previsto na Constituição.
No entanto, a evidência de que a Venezuela sempre foi qualquer coisa menos um governo democrático ficou clara ontem na disposição de afrontar a nova maioria, quando deputados chavistas, liderados pelo ex-presidente da Casa, Diosdado Cabello, abandonaram a sessão inaugural, acusando os oposicionistas majoritários de descumprimento do regimento interno.
Mas um fato simbólico dominou as atenções, apesar do tumulto que milícias chavistas fizeram na entrada do Congresso: imensos retratos de Hugo Chavez foram retirados do plenário, numa demonstração de que já não há mais espaço para exibicionismos autoritários naquele recinto.

Um novo tom - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 06/01

Já havia passado muito da hora certa, quando o Itamaraty fez ontem, pela primeira vez, uma crítica ao governo dos chavistas. Pelo menos, fez. É alguma mudança, tardia, mas bem-vinda. O governo de Nicolás Maduro fez ameaças, mudou leis, trocou juízes da corte suprema, inventou um congresso paralelo e tirou poderes da Assembleia Nacional eleita de forma democrática.

Um dia antes da posse dos novos deputados, o governo revogou o poder do legislativo de aprovar os nomes dos dirigentes do Banco Central. Pela nova lei, o chefe do executivo pode nomear e demitir os dirigentes do BC sem passar pelo legislativo. Ontem, no entanto, as coisas começaram a mudar. Na posse dos deputados, o novo presidente do Congresso, Henry Ramos Allup, disse que não haverá mais leis habilitantes, ou seja, a delegação de superpoderes ao presidente que se tornou comum na era chavista.

É uma ponta de esperança. O problema, no entanto, é que a Venezuela poderá viver em 2016 o que os analistas definem como o pior ano da sua história econômica. O ano passado já foi duro: a inflação teria fechado em 270%. Só em dezembro, foi 16%. Isso foi publicado pelo jornal El Nacional, depois de ouvir uma fonte não identificada do Banco Central. O BC venezuelano é o responsável por estatísticas econômicas do país. Mas no ano passado não as divulgou por ordens do presidente Maduro. Agora, no novo decreto que muda a forma de indicação para a direção do órgão, fica estabelecido que o BC não pode mais pesquisar esse tipo de informação, sob risco de “ameaçar a soberania” nacional.

Outra mudança na lei: o BC era proibido de emprestar a entes públicos. Agora, ele pode fazer isso, caso o governo considere que há ameaças à segurança pública ou ao interesse público.

Essas e outras aberrações dos últimos dias foram adotadas para minar o resultado eleitoral e para ameaçar os eleitos. Três dos oposicionistas tiveram suas vitórias suspensas por determinação da Justiça, a pedido dos chavistas, num ato totalmente duvidoso.

Na nota divulgada ontem pelo Itamaraty, o governo brasileiro falou em “vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas”. Disse que confia que serão preservadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional Venezuelana. Terminou num recado que pode ser entendido tanto como aviso ao governo venezuelano como em defesa própria diante do processo de impeachment: “Não há lugar na América do Sul para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito”. Esses valores não estão ameaçados aqui. Na Venezuela da era chavista, contudo, sempre estiveram sob risco.

Os analistas e departamentos econômicos dos bancos estão prevendo nova queda de pelo menos 4% no consumo em 2016 e inflação se aproximando novamente de 200%. O desabastecimento, segundo definição da imprensa local, está em níveis de crise humanitária. Esse colapso econômico é parte da tragédia venezuelana, mas não toda ela. O governo chavista há 16 anos no poder desestruturou as instituições e dividiu o país. O trabalho de reconstrução será muito lento, e o passo dado ontem foi tímido.
Nicolás Maduro permanece modificando leis e procedimentos para tentar se manter no poder a qualquer custo. A situação tende a se agravar, e o governo brasileiro terá oportunidade de mostrar se a nota de ontem é apenas um enviesado recado para o público interno ou se é uma nova atitude da diplomacia brasileira diante dos flagrantes atentados à democracia que estão sendo praticados pelo governo Maduro.

No último encontro de cúpula do Mercosul, a presidente Dilma Rousseff elogiou a democracia da Argentina e da Venezuela, para constrangimento de Maurício Macri, que já havia feito várias críticas ao governo de Caracas. Na Argentina, os peronistas perderam a presidência e se organizam para ser oposição, como é normal. Após a derrota, tudo o que Cristina Kirchner fez foi a pirraça de não participar do ato de entrega dos símbolos do poder. Feio, mas sem maiores efeitos práticos. Em Caracas, Maduro desde a eleição tem tomado decisões discricionárias para tirar o efeito da vitória da oposição. O Brasil era um dos poucos países que aceitavam todos os absurdos de Maduro. A nota de ontem pode mudar isso. Vamos ver.

Endividar-se não resolve crise fiscal dos estados - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 06/01

Governadores e prefeitos se animam com a possibilidade de contrair mais empréstimos, mas, se não fizerem reformas, cedo ou tarde estarão na mesma situação



O grupo de dez governantes estaduais que bateram à porta do governo atrás de socorro deixou Brasília animado com a entrada em vigor da troca do indexador de suas dívidas, e de prefeituras de grande porte, como São Paulo e Rio. Conforme lei aprovada no Congresso, a mudança de indexador — sai o IGP-DI mais juros de 6% a 9%, e entram 4% de juros e IPCA ou Selic, o que estiver mais baixo — começa a valer em 31 de janeiro e retroage a antes de 1º de janeiro de 2013. Um baita subsídio e enorme transferência de renda dos contribuintes a estados e alguns municípios.

A mudança de indexadores e juros mais altos por outros mais baixos fazia sentido, porque a grande renegociação de dívidas da Federação foi patrocinada em 1998/99, na era FH, como etapa essencial da estabilização da economia, numa outra conjuntura.

À época, as dívidas foram federalizadas, e governadores e prefeitos negociaram as condições do ressarcimento ao Tesouro — quem oferecesse ativos à privatização pagaria taxas mais baixas —, e se comprometeram a não mais se endividar. Uma regra de ouro quebrada agora.

Na prática, a retroatividade representou nova renegociação de dívida, contra o espírito da própria Lei de Responsabilidade Fiscal — de que o PT nunca gostou mesmo. E por isso Dilma está às voltas com um pedido de impeachment.

O total das dívidas é de R$ 766,6 bilhões. Com a aplicação retroativa de índices mais baixos, abre-se espaço para estados e os municípios contraírem mais dívidas. Sepulta-se agora a ideia que se tinha em 1998/99 — ingênua, se vê — de que aquela deveria ser a última renegociação de dívidas públicas, porque a economia entraria num ciclo duradouro de estabilidade, e a responsabilidade fiscal se enraizaria na gestão pública.

Isso não aconteceu. A própria aplicação de uma correção mais baixa antes de janeiro de 2013 —“no Brasil, até o passado é incerto...” — já é uma renegociação. E, a depender da sucessão de Dilma, pode-se apostar, com alguma margem de certeza, que, no futuro, estados e municípios pedirão novamente socorro. É preciso apenas persistir o descaso com a responsabilidade fiscal.

As autoridades regionais só aguardam autorização do Executivo para procurar os bancos. Esperam, assim, não ter de fazer muitos cortes. Mas é preciso saber a que taxas os banqueiros emprestarão a estados de um país cuja nota de risco de crédito foi rebaixada.

Outra questão é que, a julgar pelas expectativas, a recessão entrará por 2017. Vale dizer, a receita tributária tão cedo não será copiosa como no passado, e isso aconselha cuidado com o caixa de estados e municípios.

As autoridades regionais deveriam se dedicar a fazer fundas reformas administrativas, cujos benefícios podem ser estruturais, duradouros. O Rio de Janeiro, por exemplo, anuncia algo nesta direção. Mas elevará impostos e levantará dinheiro em banco. Recomeça tudo de novo.