quinta-feira, junho 11, 2015

Sem trégua - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 11/06

Com inflação tão alta, não há agenda positiva que se sustente. A inflação não dá trégua este ano. Continua subindo e surpreendendo negativamente. A taxa em maio veio mais alta que o esperado, e o acumulado em 12 meses atingiu o maior valor desde dezembro de 2003. Os economistas voltaram para seus modelos de projeção e aumentaram as estimativas para o ano. Alguns estão prevendo 9% para a taxa anual de 2015.

Em apenas cinco meses, o IPCA chegou a 5,34%, acima da meta de 4,5% para o ano todo. O INPC, índice que mede o custo de vida de quem recebe até cinco salários mínimos, está em 5,99%. A energia elétrica já subiu mais de 50% este ano, mas isso não explica tudo. Os alimentos foram o item que mais subiu no mês. E esta é a época em que normalmente os alimentos começam a reduzir a pressão.

Segundo a coordenadora de índices de preços ao consumidor do IBGE, Eulina Nunes, os alimentos foram pressionados não só pelo clima, mas também pela alta do dólar. De abril para maio, esses preços, junto com as bebidas, aceleraram de 0,97% para 1,37%.

- No caso dos alimentos, além do clima, o dólar tem influenciado bastante. O pão francês tem sido pressionado pelo trigo, que é importado e cotado em dólar. O dólar também tem pressionado os custos da carne, pela exportação, e outros itens básicos do orçamento das famílias - disse.

O mercado previa uma taxa menor do que a de abril, mas ela veio maior. As previsões estavam em torno de 0,59% e ficou em 0,74%. Como no mesmo mês de 2014 a taxa também foi de 0,46%, o acumulado em 12 meses continuou subindo, de 8,17% para 8,47%. Esse é o valor mais alto desde dezembro de 2003.

A inflação dos preços administrados chegou a 14%, acumulada em 12 meses até maio, e isso em grande parte é por causa da energia. A expectativa é de que a pressão daqui para frente seja menor, mas outro problema apareceu no radar, como já falado aqui na coluna: a defasagem do preço da gasolina voltou a preocupar. Com o petróleo baixo, a Petrobras tinha passado a ter lucro com a venda da gasolina e agora a estatal voltou a ter prejuízos. O consumidor já enfrentou um aumento este ano para que o governo pudesse recompor a Cide, que havia sido zerada no primeiro mandato da presidente Dilma. Agora, pode ter que amargar nova alta para compensar o aumento do petróleo e do dólar.

Com uma taxa assim tão alta, o risco é o percentual se propagar na economia, ainda que a demanda esteja fraca. A grande preocupação do Banco Central atualmente é evitar que essa taxa em 12 meses sirva de parâmetro para outros reajustes, como nos salários e na renovação de contratos de serviços e produtos. Há uma queda de braço entre a indústria, que tenta repassar seus custos para os preços, e o varejo, que não aceita porque sabe que poderá enfrentar uma queda maior do consumo. A taxa de juros ao esfriar a economia acaba sendo um aliado de quem está tentando impedir o repasse dos custos. Isso significa, no final das contas, manter o ambiente recessivo com juros altos.

Os economistas esperavam que houvesse uma queda da inflação de serviços, que esteve alta nos últimos anos. Mas ela permanece em 8% ao ano. As despesas pessoais aumentaram 8,13% em 12 meses. Os itens ligados a educação subiram 8,44%. O grupo de saúde e cuidados pessoais aumentou 7,38%. O índice de difusão, que mede os preços que subiram, entre todos os pesquisados, ficou em 70%, ou seja, sete em cada 10 produtos ficaram mais caros.

Hoje, o Banco Central vai divulgar a ata da última reunião do Copom em que deve dar indicações sobre seus próximos movimentos. No mercado, cresceram as apostas de que os juros possam chegar a 14,75%, com altas de mais um ponto em relação ao patamar atual, de 13,75%.

Infelizmente, não há trégua em nenhum dos fronts: inflação alta, juros subindo, e atividade em queda. Na economia, o ambiente alimenta o pessimismo, que acaba reduzindo ainda mais o impulso dos empresários para investir. Na política, a inflação alta mantém baixa a popularidade do governo. O que mais tira apoio de um presidente é a carestia, principalmente quando ela afeta itens básicos, como alimentos. Não há agenda positiva que ajude o governo quando a inflação mina o orçamento doméstico. 

Mexer na Chesf atrapalha o ajuste fiscal - RAUL VELLOSO

O Estado de S.Paulo 11/06

No momento em que o governo federal lança um novo programa de concessões, preocupo-me, como nordestino ligado aos dramas da região de origem, com a preservação do parque industrial eletrointensivo do Nordeste, hoje ameaçado pela intenção das autoridades de não prorrogar os contratos de fornecimento de longo prazo com a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). Vi de perto a evolução inicial do assunto durante o governo Geisel, ao iniciar minha carreira de funcionário público. Agora, na contramão da sustentação do parque industrial, o governo parece cogitar, nos termos da malfadada medida provisória (MP) do setor elétrico, a destinação da energia respectiva, dentro do sistema de cotas, para as distribuidoras do sistema elétrico nacional, com vistas à busca da menor tarifa imaginável.

Fabricantes de matérias-primas para a produção de aço inox, cobre, cloro e soda, siderurgia, ferro-liga, essas indústrias geram renda, empregos, tributos e divisas. Consomem um montante quase desprezível de energia (1% do consumo do Brasil), mas de vital importância para a sobrevivência e o desenvolvimento da região. Têm contratos de fornecimento que há décadas dão lucro à Chesf, já que o valor de venda dessa energia supera significativamente o respectivo custo de produção, ou seja, não há que falar em subsídio nessa contratação.

A solução aventada pelo governo praticamente eliminaria o ganho da Chesf, num momento de grande aperto nas contas públicas. A Chesf, que já contribuiu com 90% do seu parque de geração para atender à MP do setor elétrico, teria agora retirado o pouco que lhe resta para atender a essa política, em vez de garantir a operação de seus consumidores cativos. Estes, por sua vez, enfrentariam uma forte subida de custos, praticamente inviabilizando seus negócios, algo difícil de detalhar em artigo.

O País encontra-se num processo de ajuste macroeconômico, com meta de um resultado primário de 1,2% do PIB, o que implica um esforço fiscal de 1,8% do PIB para 2015. Ao contrário do que possa parecer, a renovação dos contratos da Chesf poderia contribuir para a obtenção das metas fiscais. Resumidamente, como a Chesf não faz parte do setor público consolidado, seu resultado não afeta diretamente os resultados fiscais. Mas há impactos indiretos. A renovação dos contratos garante a manutenção do emprego e do produto, com todos os impactos sobre sustentação da demanda agregada, permitindo a geração de impostos e, por tabela, contribuindo para o esforço fiscal.

As empresas que estão em vias de renovar o contrato com a Chesf pagaram, só em tributos federais, excluindo Previdência, cerca de R$ 195 milhões em 2014. Também pagaram outros R$ 365 milhões aos Fiscos estaduais, por causa do recolhimento de ICMS. Se a produção se reduzir em 20%, por hipótese, a perda de arrecadação seria acima de R$ 110 milhões/ano.

Isso sem falar no impacto na folha de pagamentos. As empresas afetadas por uma eventual extinção do contrato geram cerca de 10 mil empregos diretos e por volta de 150 mil postos de trabalho na Região Nordeste. Se considerarmos salários iguais ao salário médio do setor formal dos respectivos Estados e admitirmos que sobre a massa salarial incidem 30% de tributos, gerar-se-ia uma arrecadação de quase R$ 1 bilhão. Havendo dispensa de 20% dos trabalhadores, a redução de tributos será de cerca de R$ 200 milhões.

A eventual decisão de não renovar os contratos deverá, portanto, provocar uma redução das receitas do setor público consolidado de aproximadamente R$ 365 milhões anuais em tributos diretos e indiretos.

Sem prejuízo do resultado fiscal, há de se considerar que a manutenção dos contratos pode ainda garantir expressivos investimentos futuros, da ordem de R$ 20 bilhões, como defende o Ministério de Minas e Energia, ou uma eventual política de distribuição de lucros pela geradora de energia, reforçando o resultado primário do seu principal acionista, a União. Com a palavra, a presidente Dilma.

Quanto mais complexo, melhor? - MONICA BAUMGARTEN DE BOLLE

FOLHA DE SP - 11/06
 

"Mais é menos", "A simplicidade é o auge da sofisticação", "Nada é verdadeiro, exceto o que é simples", "Simplicidade é a arte da expressão". Será?

A exaltação da simplicidade é ubíqua. Porém, as virtudes da simplicidade não são consenso entre os economistas. Há quem defenda a complexidade como força motriz do crescimento e do desenvolvimento econômico.

A ideia não é nova, mas tem passado por uma repaginação interessante. Em meados dos anos 2000, economistas da Universidade Harvard desenvolveram o "Atlas da Complexidade", extensa base de dados cobrindo mais de centena de países que exploram as relações entre a diversificação e a sofisticação da pauta de produtos de determinada economia e sua capacidade de crescimento.

A ideia é que, quanto mais variados e sofisticados forem os bens e os serviços produzidos por certo país, melhores as perspectivas de aumento da renda e do PIB ao longo do tempo. Ou seja, países que confeccionam produtos diversos intensivos em conhecimento e tecnologia –portanto, sofisticados– têm maiores chances de crescer.

A ideia –simples?– é que produtos mais sofisticados exigem maior investimento na qualificação do trabalhador e dedicação das empresas de parte de suas atividades ao desenvolvimento de novas tecnologias. Nada que teorias econômicas tradicionais sobre comércio e relações de troca não tenham dito anteriormente. Contudo, o que o "Atlas" de Ricardo Hausmann e outros faz é medir tal complexidade para classificar países e afirmar algo empírico sobre os rumos futuros do crescimento.

O mais recente Regional Economic Outlook do FMI para a América Latina traz estudo interessante sobre o "Atlas da Complexidade" e revelações sobre o relativo atraso da América Latina, sobretudo quando comparada à Ásia, região que produz bens e serviços sofisticados e cujas empresas estão mais integradas às cadeias globais de valor.

O país latino-americano mais bem colocado no "Atlas da Complexidade", cujos dados cobrem o período 1995-2013, é o México. O México que promoveu abertura significativa da economia a partir de meados dos anos 1990, com o ingresso no Nafta, e cuja indústria continua a representar cerca de 18% do PIB, proporção que pouco variou ao longo das últimas duas décadas.

Em 1995, México e Brasil estavam emparelhados na 28ª e na 29ª posição, respectivamente, entre 120 países. Ou seja, duas das maiores economias da América Latina estavam entre os 30 países de maior complexidade econômica. De lá para cá, o Brasil caiu –pasme– 28 posições em relação ao México.

Enquanto o México subiu da 28ª posição para a 23ª em 2013, o Brasil caiu para a 51ª posição do ranking. O motivo? Talvez o mais notável seja o comportamento da indústria de transformação. Em 1995, ela correspondia a uns 20% do PIB nos dois países. Em 2013, representava apenas 13% do PIB no Brasil.

Por certo, há outros setores da economia tão capazes de sofisticação quanto a indústria. Porém, a desindustrialização brasileira certamente não contribuiu para que a pauta do país se tornasse mais complexa.

Como promover a complexidade? O diagnóstico do FMI é preciso: investindo em infraestrutura e educação, abrindo a economia ao comércio e à transferência tecnológica. Tudo aquilo que não temos feito há muitos anos.

PT tentará disfarçar a crise - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 11/06

O Partido dos Trabalhadores (PT) abre hoje em Salvador seu 5.º Congresso, mergulhado em conflitos e contradições que são o resultado dos 12 anos em que, a partir de avanços sociais importantes ameaçados agora de se perderem, fingiu reinventar o Brasil, na verdade dedicando-se prioritariamente ao desfrute do poder e ao projeto de nele se perpetuar. Até sábado, haverá muita discussão na tribuna e nos bastidores do encontro, mas, ao final, prevalecerá a vontade do mandachuva Lula, com a aprovação de um documento com o sugestivo título de Carta de Salvador. Essa proclamação deverá sinalizar discretamente uma guinada à esquerda, usando as palavras mais para salvar as aparências – como a de que todo o partido apoia o governo – e tentar manter o PT vivo, do que para apontar caminhos para salvar o País do buraco em que o afundou sob o desastrado comando de Dilma Rousseff. Será mais uma peça de retórica.

Na verdade, embora os petistas não se permitam colocar a questão nesses termos, o grande tema com que este 5.º Congresso terá que se haver é o exaurimento de um projeto de poder fundado no delírio populista de político profissional cujo carisma – agora decadente – só não era maior do que o oportunismo com que alavancou sua ascensão política e social. Lula jamais foi um político de esquerda. Sua “metamorfose ambulante”, como ele próprio definiu sua trajetória de sindicalista “autêntico” a cacique de partido, revela um político sagaz, pragmático, sempre pronto a mudar de atitude e de opinião ao sabor das conveniências.

Quando se projetou nacionalmente como líder dos metalúrgicos do ABC paulista, Lula encantou os intelectuais e acadêmicos de esquerda pelo radicalismo com que repudiava a política e os políticos, proclamando lutar exclusivamente pelos direitos trabalhistas dos operários fabris que representava – trabalhadores que, diga-se de passagem, integravam a elite da massa operária no País. Lula se tornou político, mas seu esquema mental permaneceu o mesmo, apenas trocando a ideia de “operários vs. patrões” pela de “povo vs. elite”, ou “nós vs. eles”. Como todo ilusionismo, o esquema lulopetista foi-se tornando, pela repetição, um truque barato.

Agora, no desespero de ver sua nau fazendo água, os petistas preparam-se novamente – porque não sabem fazer diferente – para empurrar o problema com a barriga com uma proclamação tão conciliadora quanto possível, na esperança de que venham dias melhores. Mas o “centralismo democrático” que impera no comando do partido não parece suficiente para impedir que lideranças mais radicais voltem a aflorar com propostas esquerdizantes – afinal, para todos os efeitos, o PT é um partido “de esquerda”. Além da ideia de uma “nova política de alianças” que conta com as simpatias também de Lula, mas é mais difícil de fazer do que de falar, não poderia faltar no elenco de temas capazes de incendiar as discussões no congresso o da “democratização dos meios de comunicação”.

Desde sempre o PT considera os grandes veículos de comunicação – a quintessência das “elites” – os principais culpados por tudo o que não dá certo para ele. A maior parte das lideranças petistas mais radicais não chega a propor abertamente a censura à Imprensa, mas essa intenção transparece claramente numa versão preliminar da Carta de Salvador que trata da questão dos “instrumentos de poder” e será discutida no encontro na capital baiana: “Em contraposição a outras nações latino-americanas sob governos progressistas, o PT e suas administrações deixaram de alterar instituições e instrumentos de poder da velha oligarquia”.

Quer dizer: ao contrário dos “governos progressistas” dos quais os petistas morrem de inveja – Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina –, os governos do PT cometeram o erro imperdoável de não impor restrições de conteúdo – eufemismo para censura – ou de natureza econômica para os veículos de comunicação independentes. Os petistas acham que, além de “alterar instituições e instrumentos de poder”, é preciso que o partido invista em veículos de comunicação de massa próprios, como jornais de circulação gratuita, e em uma TV via internet. O capital necessário se arranja – é o que deve imaginar a companheirada.

Dilma, Mercosul e Europa - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 11/06

A presidente Dilma Rousseff propôs à União Europeia, a segunda maior potência do mundo rico, um esforço para concluir neste ano um acordo de livre-comércio com o Mercosul. A conclusão das negociações é, mais do que nunca, uma necessidade urgente. Em todo o mundo multiplicaram-se acordos bilaterais, regionais e inter-regionais nos últimos dez anos. Mas o bloco sul-americano ficou à parte, fora dos grandes arranjos e limitado a poucos entendimentos com economias pequenas e menos desenvolvidas que a brasileira. O governo brasileiro, fiel à diplomacia terceiro-mundista implantada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, nunca se mostrou, até recentemente, preocupado com as novas configurações do comércio global. Apesar do risco de marginalização do País e de seus sócios de bloco, as autoridades deram prioridade, até há pouco, à estratégia Sul-Sul, claramente menosprezada pelos governantes de algumas das maiores potências emergentes, como China e Rússia.

A negociação com a União Europeia, iniciada em 1999, nunca saiu da agenda, embora várias vezes tenha sido interrompida e esteja de novo emperrada. Agora, a presidente propõe entregar até julho as ofertas do Mercosul e pede às autoridades da União Europeia uma rápida resposta. Mas a manifestação do outro lado talvez só ocorra depois das férias do verão europeu, em julho e agosto, ponderou a ministra da Agricultura, Katia Abreu. Essa possível demora, no entanto, de nenhum modo é um fator preocupante, se houver, de fato, condições para um entendimento.

O governo brasileiro tem de se preocupar, antes de tudo, com a disposição argentina de compor um conjunto de ofertas à altura de uma negociação ambiciosa. O protecionismo argentino, já considerável antes da crise iniciada em 2008, intensificou-se a partir daí, com grande prejuízo, em primeiro lugar, para o Brasil. Será uma surpresa se o governo da presidente Cristina Kirchner se dispuser seriamente a um esforço para concluir o acordo. “Se eles quiserem ficar para trás, nós estamos prontos”, disse a ministra, referindo-se aos argentinos. Mas nada é tão simples. Os negociadores europeus têm mandato para negociar com o Mercosul, isto é, com o bloco, e mesmo a hipótese de um acordo com prazos diferenciados para os países-membros pode envolver complicações. Além disso, as normas de uma união aduaneira, como é o Mercosul, impedem os sócios de negociar isoladamente acordos de livre-comércio.

Os europeus, segundo disseram fontes de Bruxelas ao Estado, estariam dispostos a discutir com o Brasil, separadamente, formas de intensificação do comércio bilateral. Não poderia ser, naturalmente, um acordo de livre-comércio, mas os dois lados poderiam buscar fórmulas de ampliação das trocas. De toda forma, será uma solução limitada, assim como o acordo de complementação entre Brasil e México.

O casamento com o Mercosul é indissolúvel, mas sempre se pode discutir a relação, disse há poucos dias o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Armando Monteiro Neto. No mesmo pronunciamento, no entanto, ele foi um pouco além dessa linguagem macia. Não se deveria aceitar, segundo ele, o Mercosul como um entrave à inserção global do Brasil.

Os ministros do Desenvolvimento e da Agricultura têm destoado da partitura terceiro-mundista (ou Sul-Sul) seguida a partir de 2003. Mesmo a presidente Dilma Rousseff parece, de vez em quando, disposta a mudar a pauta e a rever a política de comércio. Sua real inclinação poderá ficar mais clara em sua visita aos Estados Unidos.

Um primeiro passo para a mudança – se ela estiver, mesmo, disposta a isso – consistirá em pressionar seriamente o governo argentino para a apresentação das ofertas à União Europeia. Mas também será preciso mudar a chave da política interna, romper com o protecionismo e abrir a temporada de busca da produtividade. Parte do empresariado sem dúvida protestará. Mas a busca da competitividade é o complemento natural das políticas de ajuste e de investimento recém-inauguradas – se forem para valer.

Sem nexo com a realidade - EDITORIAL ZERO HORA

ZERO HORA - 11/06

É inaceitável a proposta da chapa majoritária do PT para que retorne a famigerada CPMF, o imposto sobre movimentação financeira que já atormentou a vida dos brasileiros sob o pretexto de financiar a saúde pública. A ideia vem sendo propagada dentro do próprio governo e ganhou o aval de lideranças petistas empenhadas em manter posições hegemônicas no congresso nacional do partido.

É uma proposta sem nexo com a realidade, quando a transferência de renda para os governos passou do razoável e mesmo assim deve ser ampliada, com as taxações resultantes, por exemplo, das novas concessões de serviços para a iniciativa privada, especialmente nas rodovias. É também um deboche com a sociedade, num momento em que a elite administrativa não para de criar penduricalhos para elevar seus vencimentos, em contraste com a crise financeira e o aumento do desemprego.


Sugerir a volta da CPMF é conspirar contra a racionalidade buscada pelo Executivo no ajuste fiscal. O imposto caiu em 2007 por não cumprir com o que prometia, e a saúde ficou pior do que estava. Os mesmos que tentam ressuscitá-lo contribuíram para que fosse desmoralizado. O que a saúde precisa é de qualificação de gestão, para que elimine desperdícios, ineficiência e corrupção.


Em meio ao esforço para acertar suas contas, está na hora de o poder público abandonar improvisações e adotar modelos como o do Orçamento Base Zero (OBZ), pelo qual a previsão orçamentária para o ano seguinte não se baseia preguiçosamente no gasto do ano anterior, acrescentado da inflação ou de algum outro tipo de reajuste, mas sim na previsão do que realmente o órgão público ou a instituição precisam para operar com eficiência.

Não à censura - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 11/06

Ontem foi um dia histórico para a democracia brasileira, menos pela liberação das biografias não autorizadas, nos colocando no rol dos países desenvolvidos nessa questão cultural fundamental que é a liberdade acadêmica, de ensinar e pesquisar, e mais pela prevalência, no Supremo Tribunal Federal ( STF), do entendimento de que qualquer tipo de censura é terminantemente proibido pela Constituição.

A liberdade de expressão, que estava em xeque, está protegida pela decisão do Supremo, afastando o perigo de que os mesmos artigos 20 e 21 do Código Civil, interpretados como fundamentos para proibir as biografias, também pudessem servir para proibir matérias jornalísticas que supostamente invadam a privacidade de alguém, como já escrevi aqui.

Os artigos em momento algum citam a palavra "biografia". Eles protegem a imagem e a intimidade contra "usos comerciais". A edição de livros estava sendo entendida como um uso comercial, e não há razão para que o jornalismo não o fosse.

A ministra relatora, Cármen Lúcia, baseou seu voto vitorioso no argumento de que a Constituição contém preceitos que garantem a liberdade de expressão, de pensamento, de criação artística e científica, além de proibir a censura. "Censura é forma de cala- boca. Pior, ( forma de) cala Constituição. (...) O que não me parece constitucionalmente admissível é o esquartejamento da liberdade de todos em detrimento da liberdade de um".

Cármen Lúcia afirmou em seu voto que, a pretexto de se manter a intimidade de alguém, não é possível abolir- se o direito à liberdade do outro de se expressar e criar obras literárias, especialmente obras biográficas. "Não é proibindo, recolhendo obra, impedindo-se a divulgação, calando-se o outro e amordaçando-se a História que se cumpre a Constituição".

O advogado da Associação Nacional dos Editores de Livros ( Anel), Gustavo Binenbojm, defendeu o fim da necessidade de autorização prévia, afirmando que o acesso a informações é um direito da sociedade, não cabendo ao personagem o monopólio dessas informações. "Contar ou conhecer a História não é direito do protagonista, é direito da sociedade".

A liberdade de expressão foi a base dos votos dos demais ministros, e Luís Roberto Barroso chegou a afirmar que a liberdade de expressão deve ter tratamento preferencial, por ter sido um preceito já violado em outros momentos da História brasileira. "Porque o passado condena", disse ele, referindo- se aos períodos ditatoriais em que a censura foi implantada no país.

Para Barroso, sem a liberdade de expressão "não existe plenitude dos demais direitos". Rosa Weber foi direto ao ponto: "A autorização prévia constitui uma forma de censura prévia, que é incompatível com nosso Estado democrático de Direito".

Luiz Fux afirmou que a redação do Código Civil errou ao permitir interpretações que levam à restrição da liberdade de expressão. "Não há ponderação possível entre a regra do Código Civil e a constitucional. É necessária proteção intensa à liberdade de expressão".

A preocupação com a invasão ilícita da privacidade de alguém apareceu em vários votos, e o ministro Gilmar Mendes conseguiu alterar o voto da relatora, alegando que ela apontava apenas a reparação econômica como forma de se combater qualquer transgressão ao direito à privacidade, quando, no seu modo de ver, pode haver posteriormente à publicação medidas como retenção de exemplares, entre outras.

Também Dias Toffoli bateu na mesma tecla ressaltando a possibilidade de intervenção judicial em relação "aos abusos, às inverdades manifestas, aos prejuízos que ocorram a uma dada pessoa". Mas, como ressalvou o ministro Luís Roberto Barroso, somente em casos de ilegalidade na obtenção de informação, ou no caso de mentira dolosa ou deliberada, pode- se buscar posteriormente considerar ilegítima alguma publicação.

O mesmo drama - ADRIANO PIRES

O GLOBO - 11/06

Petrobras continua sem política de preços e acende velas para o preço do petróleo não subir e o real não se desvalorizar frente ao dólar


A Petrobras continua na berlinda. Divulgação do Balanço 2014 com perdas superiores a R$ 40 bilhões, sendo R$ 6,2 bilhões com corrupção; ações judiciais contra a empresa nos Estados Unidos; novidades que não param sobre a Lava-Jato; empréstimos chineses sem transparência de como serão pagos; a continuidade da falta de uma política de preços dos combustíveis; o plano de desinvestimentos, com a preocupação do governo de não ser acusado de privatizante; o bônus de cem anos, oferecendo um retorno de 8,45% ao ano, e um preço do bônus 81% do valor de face, o que equivale a uma empresa com o pior grau de investimento possível. Tudo isso, num contexto onde a estatal tem uma dívida por volta dos R$ 400 bilhões, a maior entre as corporações mundiais.

Para reduzir a dívida, a empresa tem de priorizar o caixa e um plano robusto de desinvestimentos. É isso que está ocorrendo? A atual gestão da Petrobras vai ter mandato para priorizar a racionalidade econômica, ao invés de decisões baseadas na ideologia e política partidária que predominou nos últimos anos e levou a empresa a essa situação caótica? Pelo que estamos vendo, não. A tendência é mais endividamento.

A Petrobras precisa vender gasolina e diesel com um prêmio, ou seja, acima do mercado internacional. Afinal, no primeiro mandato da presidente Dilma, a estatal perdeu algo em torno de R$ 60 bilhões vendendo gasolina e diesel abaixo dos preços internacionais. Para recuperar essas perdas, o governo deveria ter dado um tarifaço semelhante ao que ocorreu no setor elétrico. Mais dois problemas impedem esse tarifaço. O primeiro é o impacto inflacionário e a perda de popularidade do governo. O segundo é como explicar para a sociedade aumentos na gasolina e no diesel no momento em o preço do barril do petróleo caiu pela metade. E o que tem sido feito? Nada.

A Petrobras continua sem política de preços e acende velas para o preço do petróleo não subir e o real não se desvalorizar frente ao dólar. O problema é que nos últimos meses o real se desvalorizou e o preço do barril subiu. Com isso, o premio desapareceu e a gasolina já tem seu preço inferior ao do mercado internacional. O que faz a estatal? Aumenta o gás natural, cujo preço despenca no mercado internacional, e não a gasolina, incorrendo no erro dos últimos anos de beneficiar o consumidor final, ao invés da indústria, que promove crescimento e gera empregos. 


E o plano de desinvestimentos? O que vem sendo divulgado não é nada bom. A empresa está perdendo a oportunidade de redirecionar seus investimentos para atividades de maior lucratividade. O exemplo é o modelo de venda da participação da Gaspetro nas concessionárias de distribuição de gás natural. A estatal estaria à procura de um sócio minoritário. Ou seja, vender 49%. Esse desinvestimento mantém a Petrobras num negócio regulado e de margem baixa, não maximiza a receita da venda desses ativos e não atrai investidores de reputação que não querem correr o risco de ser sócio minoritário da estatal neste momento. Isso sem falar no risco de ter a estatal como único fornecedor do gás.

Conclusão, a empresa continua refém do seu acionista majoritário. Não consegue aumentar os preços da gasolina e do diesel, imprescindível para recuperar o caixa. Adota um modelo de desinvestimento, cujo principal objetivo é o governo não ser acusado de privatizar a Petrobras. Consequentemente, resta aumentar ainda mais a dívida para resolver o problema da liquidez em 2015 e 2016. Mais do mesmo. Até quando?

Democratizar a democracia - JOSÉ SERRA

O Estado de S. Paulo - 11/06

O andamento das votações sobre reforma política na Câmara dos Deputados mostra quão difícil é formar maiorias para promover mudanças no sistema eleitoral que fortaleçam a representatividade da nossa democracia. Não faltam liberdades no Brasil, elas são amplas, gerais e quase irrestritas, mas carecemos de instituições políticas que sejam também eficazes.

As votações não foram ainda concluídas e, apesar do ceticismo sobre o resultado final, existe, sim, a possibilidade de obter um grande avanço em matéria de processo eleitoral: a implantação do voto distrital nos municípios com mais de 200 mil eleitores, conforme projeto de lei de minha autoria já aprovado pelo Senado. Chegando à Câmara, esse projeto incorporou proposta semelhante do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP).

Na eleição, esses municípios seriam divididos em distritos e cada um deles elegeria um vereador. Os partidos poderiam apresentar um único candidato por distrito. Em São Paulo ou no Rio, por exemplo, os eleitores escolheriam um entre dez candidatos, não entre mil e tantos, como é hoje. Não é por menos que, dado o atual sistema, passados dois anos da eleição 70% das pessoas não se lembram mais do seu voto. O sistema distrital fortalece a representatividade, atributo escasso na política brasileira, o que é evidente na insatisfação das ruas que irrompeu há precisamente dois anos.

A outra virtude do sistema distrital é óbvia: ele permitiria forte redução das despesas de campanha. Hoje um candidato a vereador no Rio de Janeiro disputa a preferência de quase 5 milhões de eleitores. No novo sistema ele buscaria seus votos num distrito de 95 mil eleitores, rua por rua, quase casa por casa. Ou por outra, o modelo reduz o peso do poder econômico na eleição.

Há bons fatores que favorecem ou recomendam a aprovação desse novo sistema pela Câmara. Primeiro, trata-se de um projeto de lei, que é aprovado numa só votação, por maioria simples, ao contrário das emendas constitucionais, que requerem dois turnos no Senado e na Câmara, com um mínimo de 60% dos votos. Mais ainda, esse projeto já percorreu metade do caminho, pois vem do Senado. Em segundo lugar, ele não altera o sistema de escolha de deputados estaduais e federais, que, tudo indica, continuará a ser proporcional.

Os céticos dirão que, apesar de o projeto contemplar o distrital apenas nos municípios grandes, os deputados tenderão a rejeitá-lo por temerem que o novo sistema dê certo e contamine as regras das eleições nos outros níveis. Será?

Se o projeto de lei do voto distrital municipal for aprovado, valerá para 2016. A avaliação desse experimento – sim, um experimento democrático – não ficará consolidada até a eleição municipal seguinte, em 2020. Mas digamos que dê certo e se crie a demanda por mudança. O efeito recairia sobre as eleições para deputados estaduais e federais de 2022, daqui a sete anos, um prazo longo.

Mais ainda: minha fórmula do distrital simples é inaplicável a eleições simultâneas, de deputados estaduais e federais, até pela diferença de número de parlamentares entre esses dois níveis. O mais provável, então, é que essa contaminação benigna estimule a criação de fórmulas eleitorais diferentes, que sirvam ao propósito de aperfeiçoar a representação.

Outro fator favorável é a necessidade de o Congresso apresentar à opinião pública mudanças perceptíveis no jeito de a democracia brasileira funcionar. Não será o debate sobre o financiamento de campanhas a fazê-lo. Diga-se, a bem da verdade, que os deputados só votaram essa emenda porque o STF – indevidamente, a meu ver – está para proibir o financiamento por empresas privadas, decisão que, apesar da boa intenção dos ministros, só robusteceria o caixa 2 das campanhas. Pode até parecer um tanto descabido definir na Constituição a possibilidade do financiamento privado, já que se trata de tema próprio da legislação ordinária. Mas que opção resta ao Congresso quando um tribunal constitucional decide ocupar-se de tal questão? Assim, os deputados agiram de forma preventiva e correta.

Não há dúvida de que a mudança do sistema eleitoral será uma importante novidade para os eleitores dos 87 municípios com mais de 200 mil votantes, que perfazem perto de 40% da população brasileira. Novidade produzida pelo Congresso.

Por fim, é preciso reconhecer que há objeções ao voto distrital que nada têm que ver com a reeleição de deputados. A que mais ouço assegura que ele suprimiria as representações ideológicas. Assim, um candidato de opinião, que não tem reduto geográfico e obtém votações bem espalhadas, não teria chance de eleger-se num só distrito. Trata-se de um argumento antigo e equivocado.

Quem disse que um distrito não pode eleger alguém que, além de bom conhecedor dos problemas locais, tenha visão de conjunto dos problemas da cidade e do País? Basta olhar a experiência internacional: o primeiro-ministro inglês sempre foi e é um deputado eleito num distrito. Alguém acha que é provinciano? De mais a mais, quem disse que as Câmaras Municipais de hoje, eleitas pelo sistema tradicional, estão repletas de vereadores ideológicos?

Outro tipo de objeção parece à primeira vista pertinente: no sistema distrital, o prefeito pode cuidar de fazer coisas em cada distrito que favoreçam seu candidato local e, pois, formar ampla maioria para seu partido. Fosse assim, bastaria que os governadores transformassem os municípios em distritos informais e a reeleição de seus respectivos partidos estaria para sempre garantida. O temor é infundado.

Muito se fala em diminuir o peso do poder econômico numa eleição. O caminho contraproducente mais curto é impor proibições que logo serão burladas. A escolha que me parece consistente e coerente é criar uma estrutura mais barata.

Na reforma em curso na Câmara, os deputados tomaram uma decisão importante e deixaram claro que não aceitam que outro Poder se arvore em legislar. Que deem, agora, o passo seguinte e tornem os eleitores ainda mais responsáveis por suas escolhas e senhores do seu destino. É ousado. E é seguro. Vai dar certo!

No que se refere a Judas, Cristo e pedaladas - EUGÊNIO BUCCI

O Estado de S. Paulo - 11/06

A semana começou em clima de pós-Quaresma, com a presidente da República afirmando que não é justo tratar o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, como Judas. Foi numa entrevista exclusiva a Tânia Monteiro – publicada na edição de segunda-feira do Estado – que Dilma Rousseff lançou a público sua surpreendente analogia: “Eu acho injustas (as críticas a Levy) porque não é responsabilidade exclusiva dele. Não se pode fazer isso, criar um Judas. Isso é mais fácil. É bem típico e uma forma errada de resolver o problema”.

Evidentemente, a declaração foi politicamente incorreta. Parece que a intenção de Dilma era recriminar as críticas dirigidas ao ministro da Fazenda. Entretanto, ao rememorar o antigo ritual da “malhação do Judas”, ela chamou para dentro da crise brasileira um mal-estar que andava esquecido. Esse mal-estar atravessou séculos e séculos gerando dor, obscurantismo e preconceito por toda parte. À língua portuguesa legou o infamante verbo “judiar”.

Uma das características marcantes dos improvisos de Dilma Rousseff tem sido a instabilidade semântica. Em suas frases espontâneas, os sentidos das palavras oscilam de um lado para outro, sem se fixar num fio lógico mais definido. São frases ambivalentes além da conta. Tomemos por base o núcleo da declaração em pauta: “Não se pode fazer isso, criar um Judas”. Podemos depreender daí, isso se tivermos boa vontade, que a presidente desaprova qualquer Judas, uma vez que “criar um Judas” seria “bem típico e uma forma errada de resolver o problema”. Sem dúvida, seria melhor se o sentido fosse esse.

Acontece que podemos entender também, das mesmíssimas palavras, que não há restrições da presidente “no que se refere” (expressão que lhe é cara) ao ritual do Judas. O único problema estaria no erro de pessoa. Malhar o Judas tudo bem, mas Levy é o Judas errado. No que se refere a isso, ficou chato.

Tão chato que o mais que prudente vice-presidente procurou atenuar o desacerto linguístico da titular. Lançando mão da descontração de que é capaz, Michel Temer declarou à imprensa que o ministro é “muito menos Judas e muito mais Cristo”, formulação que, por sua vez, abriu outro espinheiro: se existe alguém que vem sendo ruidosamente crucificado pelo partido da própria presidente da República, esse alguém é Joaquim Levy. Rapidamente, o que era chato ficou pior.

Como se se desse conta, no instante mesmo da fala, de que um fio de apostasia não premeditada se insinuava na crista de seu discurso, Temer sapecou uma saída protocolarmente brincalhona: “Ele tem de ser tratado como Cristo, que sofreu muito, foi crucificado, mas teve uma vitória extraordinária na medida em que deixou um exemplo magnífico, um exemplo extraordinário para todo mundo”.

Amém. No corolário de tão elevada suma teológica no que se refere ao padecimento e à ressurreição de Jesus Cristo, o dogma central do catolicismo vira uma “vitória extraordinária”. Temos, então, que o ministro da Fazenda, que segundo Temer não é Judas, não é sequer Jesus Cristo, uma vez que Cristo, pelo menos até o calvário, sofreu e sangrou como um homem de carne e osso, ao passo que Joaquim Levy já ultrapassou essa barreira: não há dúvidas de que ele se vai consagrar com uma “vitória” tão “extraordinária” quanto a do nazareno. Conclusão: de acordo com Michel Temer, Joaquim é nada menos do que Deus, a tal ponto de nem precisar morrer para ressuscitar de sua crucificação injusta e errada.

Vivemos dias de involuntárias piadas oficiais. As falas do poder, sempre modorrentas, andam se revelando engraçadas. São falas falhas, que saem do script e descambam para o absurdo, vocalizando tudo aquilo que seus enunciadores gostariam de ocultar. Por exemplo: que Dilma quer encontrar o Judas certo e, aí, bater nele até cansar. Ou que Temer espera de Levy nada menos que um milagre – quem sabe, a ressurreição do PIB. O poder que aí está (ou não está, posto que por vezes se ausenta em lapsos e ou apagões) lida mal com as necessárias ambiguidades dos signos de que lança mão. Lida mal com os seus modos de se comunicar e com o risco de transmitir a mensagem oposta àquela que tenta transmitir.

No que se refere a isso, são especialmente sintomáticas as fotografias sucessivas, reiteradas e repetidas da presidente dando pedaladas em cima de uma bike. A imagem fala – e alguém deveria saber disso no Palácio do Planalto. A imagem fala com palavras e como as palavras – e alguém deveria saber disso no Palácio do Planalto. A imagem que se repete fala repetidamente com palavras – e alguém deveria saber disso no Palácio do Planalto.

Olhemos as tais fotografias. Até outro dia o governo federal vinha sendo acusado de ter praticado irregularmente uma manobra orçamentária que levava o apelido de “pedalada fiscal”. O assunto foi desgastante, a oposição bateu, mas acabou passando. Tudo passa, tudo sempre passará – a não ser quando alguém invoca o encosto de volta. As fotos de Dilma pedalando invocam o encosto. Não poderiam ser mais irônicas, involuntariamente irônicas.

Os governistas acreditam que a chefe de Estado em cima do selim, mãos firmes no guidão, brilha numa aura de saúde e vigor. Acreditam que as pedaladas presidenciais vão fortalecer a popularidade das medidas de Joaquim Levy. No que se refere aos oposicionistas, estes creem que a estratégia oculta da presidente é fazer propaganda das ciclovias da Prefeitura de São Paulo, que podem virar um ciclopalanque nas eleições municipais do ano que vem. Uns e outros se equivocam, é claro. Só o que está certo é o sentido que escapa, que vaza, que desliza.

As fotografias falam, e falam com palavras. As fotografias de Dilma na bicicleta fazem falar o ato mais incômodo: que Dilma pedala de fato. Daí para um apelido constrangedor é questão de uma volta no pedal.

Os signos não são obedientes. Quando maltratados, então, costumam ser insurgentes. E no que se refere a Judas, ele que nos perdoe.

Não basta uma nota fiscal - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 11/06

Há uma questão ética com as palestras de Lula: ele não é só o ex-presidente, mas o líder de um partido que permanece no governo

Dia desses, perguntaram ao ex-presidente Lula quanto ele cobrava por palestra. Ao seu estilo, meio de brincadeira, meio bravo, ele disse que era fácil saber: bastava contratá-lo. Contato com a LILS Palestras Eventos e Publicidade.

Pois agora é oficial: por conferência no exterior, Lula cobra R$ 375 mil. Pelo menos foi o que recebeu da Camargo Corrêa.

A informação saiu primeiro em um relatório da Polícia Federal, no âmbito das investigações da Lava-Jato. E foi confirmada pela assessoria do ex-presidente: a empresa LILS recebeu R$ 1,5 milhão da Camargo Corrêa — em três parcelas, de 2011 a 2013 — a título de patrocínio de quatro conferências no exterior.

Considerando-se o mercado internacional de ex-chefes de Estado, pode-se dizer que está muito bem pago. É verdade que Bill Clinton já recebeu até US$ 700 mil por palestra, mas foram casos claramente excepcionais. No mais das vezes, o ex-presidente americano cobra US$ 100 mil — ou cerca de R$ 310 mil ao câmbio de hoje, até menos do que Lula faturou naqueles quatro eventos.

Isso, antes de mais nada, mostra que Lula de fato se tornou uma estrela internacional de primeira grandeza. Seu governo, especialmente no primeiro mandato e início do segundo, teve uma feliz combinação: política econômica ortodoxa, reduzindo inflação e dívida pública, amplos programas sociais e um boom da economia mundial puxado pelos altos preços das comodities. Boa macroeconomia e distribuição de renda — eis a marca que Lula construiu. E que se mostrou um capital valioso no circuito global de palestras. É uma das vantagens do capitalismo, transformar prestígio, experiência política, conhecimento em dinheiro vivo.

No mercado, ganhar dinheiro não é feio. Além disso, ressalte-se, Lula não é investigado na Lava-Jato. Os pagamentos apareceram na investigação sobre a empreiteira, esta sim envolvida na operação.

Portanto, tudo certo com o ex-presidente?

Mais ou menos. Sendo rigoroso, como se deve ser com um líder político dessa envergadura, há perguntas a fazer.

De certo modo, as mesmas que a imprensa americana tem feito a Bill Clinton. Ocorre que ele não é apenas ex-presidente, mas marido de Hillary, que ocupou o cargo de secretária de Estado no governo Obama, e é candidatíssima a presidente dos EUA.

Assim, quem contrata Bill podia e pode estar querendo mais do que ouvir uma boa conversa. Especialmente se o contratante for um governo ou uma empresa com interesses dependentes de ações da Casa Branca. Qual a resposta para isso? Clinton, o marido, respondeu com transparência. Ampla demonstração sobre as palestras — como, quando, onde, para quem — e prometeu não mais trabalhar para quem pudesse ter interesse na campanha de Hillary.

A mesma questão ética e política se aplica a Lula. Não é apenas o ex-presidente, mas o líder de um partido que permanece no governo, sobre o qual ele exerce notória influência. Além disso, o contratante conhecido neste caso, a Camargo Corrêa, tem notórios interesses neste governo e na sua política. E fez doações ao PT e ao Instituto Lula.

É por isso que não bastam os contratos e as notas fiscais dadas pela empresa LILS contra os pagamentos da empreiteira. Ok, foram pagamentos formais e legais, mas: para quem foram as palestras? Onde? Quem mais patrocinou? Governos? Empresas? Quais? Em quais circunstâncias?

E ainda: teria havido também serviços de representação — que muitos chamam de lobby — para a Camargo Corrêa em outros países?

A empresa de José Dirceu, por exemplo, afirma ter feito esse tipo de trabalho para a mesma Camargo Corrêa e outras empreiteiras.

Já houve tempo em que a Justiça brasileira entendia que um documento formal explicava e justificava tudo. Tanto era assim que boa parte das propinas pagas na Lava-Jato foi nessa forma, mediante notas fiscais e contratos de prestação de serviços. O pessoal tomava cuidados legais.

Mas, depois do mensalão e, entre outras coisas, da teoria do domínio do fato, é preciso mais do que uma nota fiscal, mesmo eletrônica.

PAGANDO DOIS PECADOS

Não há dúvida: o ajuste fiscal é o aspecto mais doloroso de uma política econômica ortodoxa, ou de direita, se quiserem.

Também não há dúvida: o forte aumento de impostos é o aspecto mais doloroso de uma política de esquerda baseada no gasto público, conhecida como “taxar e gastar”.

Pois acontece que estamos sofrendo as duas dores. O enorme desastre feito nos últimos anos exige um ajuste fiscal conservador. Para “compensar” esse passo à direita, o PT quer compensar com um giro à esquerda, na forma de um monte de novos impostos, a começar pela CPMF.

É o que dá não termos partidos com programas. O eleito quer acertar com todos os lados e acaba atrapalhando todo o país.