segunda-feira, março 10, 2014

De dose em dose - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
O tribunal mais alto do país resolve que um crime foi cometido e, passado algum tempo, decide que esse mesmo crime não é mais crime - coisa incompreensível, no entendimento comum, quando se leva em conta que o tal tribunal existe justamente para dar sentenças que não podem mais ser mudadas. Mas no Brasil não é assim que funciona, e por via dessa mágica, três estrelas do mensalão, recém-condenadas pelo Supremo tribunal Federal por crime de quadrilha, não cometeram crime de quadrilha. Nesse meio-tempo, o governo Dilma Rousseff substituiu dois ministros que acabavam de se aposentar por dois nomes exatamente a seu gosto, ficou com maioria de 6 a 5 no plenário e o que valia passou a não valer mais. Desanimado? Talvez não seja o caso; não compensa comprar por 100 um aborrecimento que não vale nem 10. No fundo, esse último show encenado no picadeiro do STF não quer dizer lá grande coisa. Problema, mesmo, é a lata de formicida Tatu que o governo parece interessado em nos servir, em doses bem calculadas, no futuro aí à frente.
Dirceu & cia. foram absolvidos do crime de quadrilha? Sim, foram - mas e daí? Continuam condenados por corrupção ativa: não é um certificado de boa conduta. Sim, o PT festeja - mas festeja o quê? Não mudou nada no que realmente tem importância: três dos maiores heróis da Era Lula estão liquidados para a vida política brasileira, pelo menos no grau de grandeza que julgavam merecer. Seu futuro morreu. Que diferença faz, então, saber se vão cumprir X ou Y meses a mais de sua pena, ou onde estão dormindo? Se fosse mantida a condenação, não iriam ficar muito mais tempo no xadrez, levando em conta que todos os criminosos brasileiros, por mais selvagens que sejam, têm direito a cumprir só um sexto da pena - mesmo gente como o casal de São Paulo que matou a própria filha de 5 anos, jogada do alto do seu prédio. De mais a mais, daqui a pouco todos eles começarão a ficar velhos, o que é castigo suficiente para qualquer ser humano. A velhice, como é bem sabido, não inspira muita pena, nem simpatia - e, uma vez que se entra nela, não é possível voltar.

O verdadeiro perigo armado contra o Brasil se chama Supremo tribunal Federal, e o perverso sistema pelo qual os seus membros são nomeados. Para simplificar: o STF deixou de ser uma corte de justiça. Hoje é um amontoado de onze cidadãos dividido em grupinhos, cabalas e intrigas, com um partido pró-governo e outro que se junta ou separa ao sabor das circunstâncias. Há gangues inimigas - onde, justamente, deveria haver esforço comum para a prestação de justiça. Suas Excelências têm, é certo, a soma daqueles pequenos talentos que servem de combustível para subir na vida, mas é só o que têm. O senso moral desapareceu na atuação dos juízes. Como pode funcionar um tribunal supremo onde o fator que determina as decisões não é a lei, mas o ódio individual entre ministros e a obediência a doutrinas políticas? A situação já estaria suficientemente ruim se ficasse assim como está. Mas pode ficar pior ainda, dependendo do sucesso que tiverem no futuro próximo as forças que têm o sonho de rebaixar o STF à condição de repartição pública, ocupada por despachantes encarregados de executar ordens do governo.

Durante toda a vigência do Ato Institucional Nº5, a ditadura militar garantiu o controle sobre o STF através das "aposentadorias compulsórias" dos ministros que não obedeciam a suas ordens. Para que o trabalho de fechar o Supremo, se ele podia ser controlado pela força armada?

- Hoje é possível obter o mesmo resultado, sem a necessidade de usar a tropa - basta, com um pouco de paciência, ir colocando nas próximas vagas ministros como Ricardo Lewandowski ou Luís Roberto BarrosoTeori Zavascki ou José Dias Toffoli. Mas os novos juizes não teriam de comprovar alto saber jurídico? Que piada. Toffoli, advogado do PT, foi nomeado ministro do STF depois de levar bomba em dois concursos para juiz de direito - provavelmente, um caso único no sistema Judiciário mundial. Os demais, com ligeiras diferenças que não alteram o produto, são nulidades. Quando se aceita, como hoje, a ideia de que não é preciso ter princípios nem valores morais na atividade de governar, tudo começa a valer - e o resultado desse vale-tudo são aberrações como a "democracia da Venezuela", que tanto encanta Lula, Dilma e o PT.

Destruir o Supremo é destruir a pátria. País sem Supremo é país sem lei, e país sem lei não é mais nada - apenas um ajuntamento de gente submetida à vontade do mais forte.

Vida normal para a ex-quadrilha - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA
O governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, foi visitar José Dirceu na prisão. Era uma visita clandestina, que acabou descoberta. Agnelo confirmou o encontro com o chefe da ex-quadrilha do mensalão (o STF determinou que o bando seja tratado doravante como coautoria, o que fica mesmo mais elegante). Agnelo explicou que participava de uma inauguração ali perto, e aproveitou para fazer uma inspeção na Papuda. Aí, esbarrou com Dirceu.
Foi, portanto, um encontro casual, como outro qualquer. Se Agnelo estivesse vagando pela Marquês de Sapu-caí, poderia ter esbarrado na Sabrina Sato. Como o role-zinho era no presídio da Papuda, esbarrou com José Dirceu. Cada macaco no seu galho. A única coisa estranha nessa história é a reação do Brasil a ela.

A oposição reclamou, disse que a visita não programada afronta o sistema penitenciário e as sanções por ele firmadas. A oposição é uma mãe. O que incomodou os adversários do PT foi o "privilégio" de Dirceu, ao receber Agnelo na cadeia. Com uma oposição dessas, dá para entender por que o PT vai para 16 anos no poder.

O governador do Distrito Federal visita clandestinamente na cadeia um criminoso, que por acaso é do seu partido, que por acaso foi condenado por corrupção não num desvio pessoal, mas no exercício da política partidária, exatamente aquilo que o liga a seu visitante. Um governador filiado ao PT foi visitar um ex-ministro também filiado ao PT, preso por roubar o contribuinte. Sobre o que eles conversaram? Agnelo foi dar um pito em José Dirceu, dizendo-lhe que nunca mais repita isso? E que, enquanto ele não se regenerar e cumprir toda a pena, não é mais seu amigo?

Seria interessante saber. Porque, se não foi isso, se não houve reprimenda, nem conflito, o que houve? Solidariedade? Não, não é possível: um governador não pode ir à cadeia apoiar um político condenado por corrupção. Seria um escândalo. Se também não foi isso, o que aconteceu no tal encontro casual? Falaram sobre Neymar e Bruna? Cauã e Grazi? Sobre o último esquete do Porta dos Fundos?

Depois, esse Brasil abobado e carnavalesco não sabe por que os companheiros representantes do povo pintam e bordam. Agnelo, o dublê de governador e cortesão de mensaleiro, deveria ser interrogado - pelo Congresso Nacional, pelo Ministério Público ou pelo raio que o parta. Deve explicações pormenorizadas sobre o seu encontro obscuro, em pleno exercício do mandato, com o parceiro condenado. Se nada explicar, autorizará a suposição de que Dirceu continua seu chefe político e que a ex-quadrilha é bem maior do que aquela julgada pelo STF.

Um indivíduo citado pelo bando de Carlinhos Cachoeira como o "01 de Brasília", que permaneceu no cargo de governador imune aos graves indícios, graças à implosão da CPI do Cachoeira e à alergia dos brasileiros a investigações longas, deveria ser no mínimo receoso. Mas essa turma já não tem receio de nada, porque depois de toda a pilhagem volta a se encher de votos, na mais perfeita lavagem de reputação proporcionada pela maravilhosa democracia brasileira. Fora um camicase, como Roberto Jefferson, ou um franco-atirador, como Joaquim Barbosa, o terreno está sempre limpo - lavou, está novo.

O Supremo diz que os mensaleiros não formaram uma quadrilha, o governador visita o chefe na cadeia, e o Brasil chupa o dedo. Tudo certo. Se os companheiros formassem uma quadrilha, não bastaria operar dentro do mesmo partido, com o mesmo despachante, com os mesmos prepostos estatais (um deles está na Itália, esperando uma visita casual do companheiro Agnelo). Não bastaria montarem juntos um mesmo esquema de sucção de dinheiro público para o caixa partidário, com o mesmo tesoureiro coordenando tudo, as mesmas salas e as mesmas secretárias. Só configuraria formação de quadrilha se todos eles usassem aquela mesma máscara dos Irmãos Metralha - e isso, o ministro Luiz Roberto Barroso deixou claro, com todo o seu lirismo, não aconteceu.

Enquanto Agnelo esclarecia que esbarrou por acaso com Dirceu no xadrez, a ex-ministra Gleisi Hoffmann esclarecia que quem salvou o Plano Real foi o PT. Viva a verdade bolivariana, que o Brasil consagrou.

Moral de amadores - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP 10/03


Quando não existe comércio, não há esperança. Afirmação estranha, eu sei, para um país atrasado como o nosso, que ainda não descobriu que quem faz "justiça social" verdadeira é o comércio.

Um amigo esquisito que eu tenho me disse certa feita que, no século 19 no Brasil, era comum se usar a expressão "comércio de ideias". A expressão me soou familiar de alguma forma.

Acho que ela é melhor do que "mundo cultural" ou "ciências humanas", porque ela descreve de forma mais precisa o que acontece quando as pessoas de fato debatem ideias.

Um dos traços do atraso ancestral do Brasil está no fato de que a elite acha que as ideias não valem dinheiro. Hoje em dia, mesmo em pânico com a crescente violência de certas ideias totalitárias no país e com o crescimento do perigoso ressentimento social, a elite continua pensando como gente atrasada: quer que o produto (as ideias) caia do céu, como se amadores pudessem construir aviões ou erguer bancos. Triste país esse que ainda vive num mundo antes da escrita. Estamos às portas de uma guerra cultural e política.

O comércio é o coração de toda civilização que se preza. Os delírios políticos dos últimos 250 anos têm sua pedra de toque na condenação sistemática do comércio. Enquanto pensarmos assim, não sairemos do buraco em que nos encontramos. Você identifica um mau filósofo quando ele se dedica a condenar o comércio. Toda ética que exclui o comércio é moral de amadores.

O pior é que na prática todos nós sabemos disso, inclusive quem trabalha no comércio de ideias verdadeiro, aquele que faz circular ideias nos livros, nas revistas, nos jornais, na mídia, mesmo nessa masmorra sem luz, paraíso dos linchamentos e das bobagens, chamada redes sociais.

No dia a dia, comercializamos terapias, aulas de ioga, esperanças transcendentais, sonhos futuros, curas, amores. Mas, ainda assim, insistimos na ideia primitiva de que um mundo sem comércio seria um mundo melhor. Quando vendemos algo, nem por isso partimos do pressuposto de que o que vendemos é "sujo" porque vendemos. Mas, como sempre acontece, condenamos no outro o mesmo interesse que temos em nós: ganharmos algo ao longo da vida.

Sei que os primitivos dirão que a ganância estraga tudo. Mas o comércio institucionaliza a ganância, fazendo com que ela seja mais do que si mesma, fazendo com que ela produza todo um mundo material no qual nosso espírito sobrevive.

Só gente semiletrada acredita que o espírito humano precisa de menos comércio do que o corpo. Na verdade, o espírito costuma ser mais caro do que o corpo, basta comparar o preço do amor com o do sexo. Sexo é sempre barato, mesmo que você pague R$ 5.000 por ele -por isso, aliás, é que seu efeito é tão efêmero se comparado ao do amor.

Na Pré-História, por exemplo, dados arqueológicos mostram como, entre 30 mil e 20 mil anos atrás, na região que vai da Israel moderna até as fronteiras ocidentais da Índia, se desenvolveu uma robusta (para a época) rede de comércio entre vários povoados, que assegurou uma redução da violência generalizada que caracterizava a Pré-História.

Quando você vai ao cinema, quando vai jantar com amigos, quando vai à praia, quando vai a uma exposição de arte, quando vai à Europa ou ao Vietnã, quando toma remédios, quando dá um presente, você está fazendo comércio.

Quando acaba o comércio, perde-se a fé no mundo. A forma mais rude dessa ideia se manifesta no uso impensado da expressão "queda do crédito", que nada mais é do que a redução do "quantum" de fé que se deposita nas relações de trabalho e de troca que sustentam uma sociedade. Homens civilizados se relacionam fazendo comércio.

Nada aqui significa um mundo perfeito, mas um mundo possível. Mesmo os semiletrados sabem, apesar de não dizerem, que é o comércio que sustenta a civilização, principalmente a liberdade das ideias. Do que viveria o espírito se não existissem grandes livrarias, físicas ou virtuais, que fazem chegar até nós Shakespeare e Machado de Assis?

Espero que um dia o Brasil saia desse pesadelo pré-histórico do ódio ao comércio.

Gafes - RUY CASTRO

FOLHA DE S. PAULO - 10/03

RIO DE JANEIRO - Gafes pululam no noticiário. O papa Francisco cometeu uma em sua última fala na janela do Palácio Episcopal, no Vaticano. Querendo dizer "caso", pronunciou "cazzo", que não soa bem numa homília. Sua Santidade logo se corrigiu, mas as redes "sociais" espalharam o lapso. Ora, o Papa pode ser infalível, mas só em questões de Estado, como em suas conversas particulares com são Pedro. Ao falar para as massas, ele tem direito a deslizes.

Muito menos santo, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, também tropeçou há pouco na própria língua, ao referir-se em discurso a uma multiplicação de pênis ("penes") quando queria dizer de pães ("panes"). Devido à situação de seu país, os venezuelanos se assustaram com a primeira hipótese --já se consideram bastante sacrificados.

Em São Paulo, há dias, três catadores de meleca roubaram o smartphone de um publicitário. Horas depois, tiraram "selfies" à vontade com o aparelho, sem saber que a vítima usava um serviço on-line que guardava as fotos tiradas de seu celular e que ele podia acessar de seu computador. Ao entrar nesse porta-arquivos, o homem encontrou as fotos dos ladrões posando idiotamente para a câmera. Baseado nelas, a polícia pode chegar a eles.

Uma gafe significativa foi a da faxineira que, há duas semanas, destruiu uma obra de arte no valor de 10 mil exposta numa galeria de Bari, no sul da Itália. A obra constava de pedaços de jornal e de papelão e de restos de biscoitos espalhados pelo chão. Sem entender a proposta da "instalação", a moça varreu tudo para o lixo. Faxineira e artista preferiram ficar anônimos.

E, finalmente, há um mês, em Bagdá, no Iraque, um instrutor de homens-bomba detonou sem querer um explosivo e matou 22 de seus alunos. Pena. Mas, como eram terroristas-suicidas, apenas foram para o céu mais cedo.

Relativismo moral - LÚCIA GUIMARÃES

O Estado de S.Paulo - 10/03

Eles voltaram. Não os russos, que estão de volta à Crimeia, anexada à força. Eu me refiro aos praticantes de um cacoete retórico característico dos anos da Guerra Fria, conhecido em inglês como whataboutism. Funciona assim: Um americano condena a prisão indiscriminada de opositores do regime de Vladimir Putin. Um russo responde, "what about" as prisões americanas lotadas de negros e latinos?

Durante a Guerra Fria, um exemplo típico de whataboutism seria defensores do Kremlin contrapondo a Lei Marcial na Polônia ao apoio de Ronald Reagan aos Contras na Nicarágua. Um dissidente perseguido ou torturado não pode ser motivo de revolta enquanto não acabar o racismo no Sul dos Estados Unidos. O leitor percebe como é fácil ser um praticante desta esgrima verbal em outras latitudes onde o clima é mais quente e a hipocrisia não menos comum.

Na semana passada, duas âncoras da Rússia Today, ou RT, uma rede de língua inglesa montada pelo Kremlin para celebrar no exterior a grandeza da Rússia e a decadência do Ocidente, foram elogiadas por sua suposta coragem de denunciar a invasão da Ucrânia. Abby Martin, jovem californiana bonita e biruta, convencida de que o 11 de Setembro foi um ataque lançado pelo próprio governo americano, interrompeu uma de suas diatribes ao vivo na RT para dizer que agressão militar não se justifica nunca e que tem independência editorial para dar sua opinião. Aplausos entusiasmados da turma do whataboutism, até que o New York Times lembrou o passado lunático da comentarista, documentado num vídeo no YouTube.

No dia seguinte, foi a vez de Liz Wahl pedir demissão no ar. Igualmente jovem e profunda como um pires, Wahl disse que seus avós eram imigrantes afugentados de Budapeste por tanques russos e que tem orgulho de ser americana. Não vejo coragem em pedir demissão da Russia Today. Vejo coragem em, para começo de conversa, não se associar à máquina de propaganda de Vladimir Putin.

A Russia Today não perde um protesto pacifista em qualquer parte, uma oportunidade de documentar a opressão e a injustiça social em Nova York ou Londres. Na capital britânica, onde a esquerda caviar com seus anéis de brasão de família no dedo mindinho é mais visível, a RT dispõe de uma pletora de indignados talking heads cuja eloquência treinada em Oxford ao menos nos diverte.

Mas, a partir do momento em que milhares de soldados russos fincaram suas botas na Crimeia, armando e encorajando bandos paramilitares que aterrorizam minorias e espancam jornalistas, a Russia Today demonstrou todo seu ardor chapa branca promovendo a invasão para "libertar o povo ucraniano" da fabricada ameaça nazi-fascista. Na Rússia, o Canal Um mentia descaradamente, a ponto inventar que centenas de milhares de ucranianos estavam cruzando a fronteira em busca de asilo, usando como prova imagens na fronteira da Polônia.

Horas depois da invasão, entrevistei um renomado historiador britânico para este jornal. Timothy Snyder, da Universidade de Yale, fez críticas a Obama e a Putin mas não deixou dúvidas, como se espera de um intelectual honesto, sobre sua condenação à invasão. No dia seguinte, ao ler o debate provocado pelas palavras do historiador na seção de comentários, fui sacudida por uma realidade que conheço mal porque não acompanho daqui. A versão atualizada da polarização ideológica do Brasil, onde nunca vivemos sob o comunismo e não nos engajamos em grande escala numa guerra há 150 anos.

À medida que os fatos na Ucrânia foram se tornando mais dramáticos, notei na mídia social brasileira as mesmas trocas de acusações com jargão ideológico bolorento que pensei ter caído em desuso no século 21.

Para muitos, condenar a invasão da Ucrânia é sinônimo de aprovar a guerra no Iraque. Condenar o ditador Putin é aprovar a invasão de privacidade perpetrada pela agência de segurança nacional americana. Não existe crítica baseada na própria moralidade e sim adesão dogmática. Que raio de equivalência descerebrada é esta?

Na formação de adolescente sob a troglodita ditadura militar, minha simpatia por ideias que fariam da minha vida um inferno, se adotadas no Brasil, era uma forma de rebeldia idiota mas compreensível no mundo polarizado pela Guerra Fria.

Se não me engano, votei na chapa trotskista do diretório acadêmico da faculdade, possivelmente porque eles eram mais bonitos e mais ousados, não porque sonhasse em viver numa ditadura do proletariado. Mas, mesmo nos meus anos verdes, já percebia o ridículo quando um colega repetia frases de uma ordem distante sob o calor escaldante do bairro da Urca.

Noto cariocas bronzeados, nascidos depois do colapso da União Soviética, regurgitando frases cheias de clichês que nenhum moscovita com menos de 50 anos haveria de dizer. Este vocabulário na boca de gente de tenra idade foi adquirido na última década, mas é removido de contexto histórico. Então, o que há de comum nesta cultura que os criou e na educação que tiveram?

Origem e destino do leitor - JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO

O Estado de S.Paulo - 10/03

Se você está lendo este artigo em um jornal impresso, você faz parte de uma minoria. Ou melhor, de uma minoria da minoria. E não é só por causa da qualidade duvidável deste texto. A leitura de jornais em papel no Brasil limita-se a 25% da população. Descontados os leitores ocasionais, que dão uma lida só um dia ou outro, sobram apenas 10% que leem quatro vezes ou mais por semana.

Não, não é uma questão educacional. Nunca houve tantos alfabetizados, nem nunca tantos brasileiros completaram o ciclo escolar, inclusive o nível superior. Um dos desafios do jornal em papel é que mesmo entre os diplomados a sua leitura é rara: 56% nunca leem, e só 14% o fazem diariamente. É uma questão de tempo. Quem lê jornal passa uma hora lendo. E no resto do dia?

Cerca de 3 horas e 40 minutos, em média, são gastas na internet. A proporção é essa, um internauta dedica 3,5 vezes mais tempo à tela do que um leitor passa folheando seu jornal. E ele já não é mais a minoria. Metade dos brasileiros de 16 anos ou mais costuma usar a internet intensamente: 36% da população usa-a quatro vezes ou mais por semana; 26%, diariamente.

Por isso, é mais provável que você esteja lendo esta numeralha (fruto de uma pesquisa do Ibope encomendada pela Presidência da República e divulgada sexta-feira) num computador, tablet ou celular. As edições online das publicações que se originaram no papel têm, em geral, mais leitores hoje na rede do que nas suas versões impressas. Muito mais. Mas há uma diferença fundamental.

Enquanto o leitor de papel passa uma hora lendo um ou dois jornais, o internauta pulveriza seus 220 minutos diários entre dezenas de sites, checando suas redes sociais prediletas, e lendo e respondendo mensagens de e-mail. Num, a leitura é concentrada e contínua. No outro, dispersa e fragmentada.

Quando se trata de informação, essa diferença tem consequências. No papel, quando a edição é bem feita, há história e contexto. Uma foto remete a uma reportagem, que é explicada por um texto analítico. Uma informação puxa a outra, formando uma narrativa. O leitor tem um roteiro entre seções e assuntos. Na internet, o internauta ricocheteia num eterno entra e sai dos sites.

Um dos motivos que acentua essa mudança radical de comportamento é que o papel da primeira página está sendo substituído progressivamente pelas redes sociais. Em vez de passar pela capa de um portal, é grande a chance de você ter chegado a este texto através de uma rede social - e voltar para lá depois de lê-lo.

Segundo a pesquisa do Ibope, o Facebook é o site mais frequentado pelos internautas brasileiros para "se informar": 31% citaram espontaneamente o nome dessa rede social como uma de suas duas principais fontes de informação online. Recebeu quase cinco vezes mais citações que o segundo colocado. Não é só aqui.

Nos EUA, o tráfego de internautas enviado pelo Facebook para páginas online de veículos de imprensa cresceu 170% em 2013.

Twitter, Facebook, Pinterest e Linkedin são a nova vitrine das notícias da internet, mas há um problema: desconfiança. Só 1 em 4 internautas brasileiros confia sempre ou na maioria das vezes nas notícias que vê nas redes sociais. É o mesmo grau de falta de credibilidade que afeta os blogs.

Por comparação, a taxa de confiabilidade das notícias publicadas pelos jornais impressos é mais do que o dobro: 53% dos seus leitores confiam sempre ou quase sempre no que leem ali. Credibilidade é, portanto, o capital remanescente dos jornais.

Como se explica, então, a liderança da rede social no mercado de informação se há tanta desconfiança quanto ao que está ali? O internauta se adapta selecionando amigos no Facebook e quem vai seguir no Twitter. O risco é as pessoas se limitarem a guetos de quem tem as mesmas opiniões que elas e afastarem os diferentes. Diminuir a pluralidade é um passo na direção do preconceito.

Análise conspiratória - FRIED­MANN ­WEND­PAP

GAZETA DO POVO - 10/03

Ao engendrar o tema de hoje, tentei debochar do carnaval e as mesmices apresentadas como novidade. A única inovação é a dilatação das musas disso e daquilo que estão cada dia mais parecidas entre si e todas se assemelhando a homens parrudos. A proporção áurea de 90-60-90 restou apenas nas estátuas gregas.

Porém, como se fosse fixação, a situação da Venezuela e da Ucrânia insistiu em tomar espaço na mente e resolvi dar vazão ao assunto.

As análises internacionais são confortáveis para o comentarista porque conotam, ao olhar desavisado, muita inteligência e, se estiverem erradas, não há ­­consequência relevante para a rotina dos leitores. Além disso, o frenesi dos acontecimentos lança no esquecimento todos os equívocos.

Ao ler a miríade de opiniões sobre as duas crises políticas, e suas repercussões econômicas, há denominador majoritário: são fomentadas pelos Estados Unidos, que desejam controlar suprimentos de petróleo na Venezuela e gasodutos na Ucrânia. Tais textos dão a sensação de déjà vu, como se estivesse lendo jornal de centro acadêmico nos anos 80, com citações de Marx e Lênin, que tenta explicar tudo a partir de uma única causa: as relações de produção. Talvez por iconoclastia e ceticismo, que me impedem de aceitar a supremacia messiânica de qualquer humano, penso que as explicações calcadas no grande satã do marxismo e quejandos são ideológicas e, portanto, sem compromisso com a realidade. São como as teses religiosas, sólidas por fé, não por ciência.

Abrupta queda de Maduro não interessa aos Estados Unidos. A débâcle econômica da Venezuela se alastraria aos países caribenhos viciados em petróleo chavista, levando milhões de hispanófonos a migrar para o Norte, à cata de emprego em Miami, Los Angeles, Nova York. Fácil imaginar os problemas na política doméstica dos EUA. Houve algo semelhante a quando a União Soviética morreu e deixou Cuba, sua parasita, comatosa.

Estima-se que em seis anos a extração de gás e petróleo do xisto tornará os Estados Unidos autossuficientes em energia. Situação oposta à da China, cada vez mais dependente de fontes externas de energia, água e alimentos. Razões para colonizar fornecedores sobram para os chineses e escasseiam para os norte-americanos. As análises combinatórias, e não conspiratórias, do cenário internacional devem ter em consideração a magnitude chinesa e seus pés de barro. Se há inferno, ele está sob nova direção!

Endógenas, as duas crises geram externalidades porque são Estados importantes no tamanho físico, demográfico e, no caso da Ucrânia, a localização como zona de amortecimento entre a Europa e a Rússia.

O orgulho nacional russo, lustrado na Olimpíada de Sochi, não se recuperou da implosão do império soviético. Acresça-se a iminência da perda do único porto de água quente na Crimeia e fica pronta a nitroglicerina resultante da perda do controle sobre a Ucrânia. Ferido, o urso é perigoso e sua vítima pode ser a Europa, que transpira frio mirando os caninos da besta.

A rigor, os norte-americanos deixaram de ser protagonistas e passaram à condição de figurantes desses eventos, encenados por outros gigantes.

Rússia volta ao protagonismo - DMITRI TRENIN

O Estado de S.Paulo - 10/03

Episódio na Ucrânia deve alterar toda a geopolítica na Europa e nas relações com os EUA


O Ocidente e a Rússia navegam em águas desconhecidas. A Crimeia declarou de fato a independência de Kiev. A Rússia interveio para assegurar efetivamente a nova entidade sem disparar um tiro até agora. As forças militares, de segurança e policial da Ucrânia na península foram neutralizadas e muitos dos seus membros declararam obediência à República Autônoma da Crimeia. Em Kiev, o novo governo fala de agressão da Rússia e ordena uma mobilização.

Por outro lado, o Ocidente reagiu suspendendo os preparativos para a cúpula do G-8 em Sochi. O presidente dos EUA, Barack Obama, falou que a Rússia pagaria um preço alto por suas ações e o secretário de Estado americano, John Kerry, expôs uma lista de sanções possíveis e outras medidas contra os russos.

Assim, o pós-Guerra Fria pode ser visto agora, numa retrospectiva, como o período inter-Guerra Fria. Os recentes eventos puseram fim ao intervalo de parceria e cooperação entre o Ocidente e a Rússia que prevaleceu nos 25 anos depois da Guerra Fria. Geopoliticamente, nesse período, verificou-se uma redução em massa do poder e da influência na Europa e Eurásia dos russos, juntamente com o surgimento de novos Estados, muitos deles desligados do histórico Império Russo.

Inversamente, os EUA tornaram-se a potência dominante na Eurásia e a União Europeia (UE), embora não fosse uma grande potência ou mesmo um ator estratégico, transformou-se num ímã econômico para seus vizinhos do leste. A Federação Russa, centro do antigo império, foi basicamente deixada de fora do novo sistema, envolvida numa relação difícil e cada vez mais complicada com americanos e europeus.

O sistema já havia se desgastado do lado oriental por quase toda a sua existência, mas foi necessária uma crise na Ucrânia para levar ao seu claro colapso. A bem sucedida revolução em Kiev, apoiada pelos ocidentais, fatalmente corroeu o delicado equilíbrio entre Rússia e Ocidente, levando a uma tormenta doméstica na Ucrânia.

Mas, talvez mais importante, ela também marcou o fim da passividade pós-soviética da Rússia. Não se equivoque: as ações de Putin na Crimeia e os poderes que recebeu no fim de semana do Parlamento russo, permitindo-lhe usar a força militar na Ucrânia, fazem que Moscou volte a ser um protagonista ativo na Europa pela primeira vez desde 1989.

Em 1991, a Rússia concordou com o desmantelamento do seu histórico Império e aceitou os limites administrativos ex-soviéticos como fronteiras internacionais, o que deixou cerca de 25 milhões de russos nos ex-países satélites. Mesmo se adicionarmos as dolorosas e sangrentas guerras chechenas, esta foi a dissolução mais pacífica de qualquer império no século 20. A guerra contra a Geórgia em 2008 foi travada pelos russos em resposta ao bombardeio pela Geórgia da Ossétia do Sul, que mataram soldados russos ali instalados.

Mas todos esses acontecimentos, como também as ramificações que causaram no tocante ao Ocidente, são medíocres comparado com o que está vindo agora. O que vai se seguir será "interessante" no sentido chinês: muitos perigos. A geopolítica da nova Europa Oriental será fundamentalmente alterada. Levará algum tempo até a Ucrânia ser reconstituída - certamente sem a Crimeia.

Toda a região do Mar Negro soviético, da Moldávia e Transdnístria até a Abkházia e Georgia, será marcadamente diferente do que aparenta hoje. A Geórgia, outrora uma região sob pressão do Kremlin, voltará a acelerar o processo para o Plano de Ação para a Adesão à Otan, ao passo que a Moldávia poderá descambar para a instabilidade à medida que a coalizão favorável à UE enfrentar uma oposição dos partidários da Rússia. Quanto à Transdnístria, ela gravitará para o sudeste da Ucrânia de língua russa. Mais ao norte, podemos prever com certeza o aumento de pressão para uma permanente, mesmo que simbólica, mobilização de tropas americanas na Polônia e nos Estados Bálticos, como também é certa a entrada da Finlândia e da Suécia na Otan.

As relações entre Rússia e Otan, entretanto, assumirão um caráter mais antagonista, mais familiar. Um impasse militar na Europa não será tão grave como foi durante a Guerra Fria, mas haverá mais certezas do que nos últimos anos quanto a quem é o adversário potencial. Não haverá necessidade, por exemplo, de se falar do Irã quando do aprimoramento dos escudos antimíssil da Otan de bases na Romênia e Polônia ou aquelas no mar. A Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) poderia, na verdade, sair do armário e se tornar uma importante abertura para um diálogo entre russos e ocidentais no campo da segurança.

Quanto a Washington, as relações da Rússia com os EUA eliminarão toda cordialidade que ainda porventura persistir. Não haverá, entretanto, retorno para o confronto olho no olho típico da Guerra Fria; ao contrário, as relações deverão tornar-se cada vez mais frias.TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Fria como um cadáver - VINICIUS MOTA

FOLHA DE S. PAULO - 10/03

SÃO PAULO - Vladimir Putin, o autocrata de Moscou, tem sido acusado nesta crise ucraniana de atiçar uma nova edição da Guerra Fria. Quem o acusa também reclama da incompetência das lideranças do "Ocidente", que poderiam ter domado o belicismo russo.

É preciso utilizar os conceitos com alguma coerência. A lógica do confronto bipolar não pode aparecer ao mesmo tempo, mas com valores opostos, dos dois lados da crítica. Se Putin a tenta reviver, leva tabefe. Já os EUA e a Europa Ocidental são condenados por não terem recorrido a ela.

A bipolaridade foi enterrada simbolicamente com o fim da União Soviética, em 1991. Vinha sendo soterrada de fato muito tempo antes, com a afluência econômica da Ásia, o que diversificou os centros de riqueza e prosperidade no planeta e aprofundou a interdependência produtiva e financeira entre as nações.

Foi nesse bonde que os fragmentos do bloco soviético embarcaram assim que o império vermelho espatifou-se. A Rússia balançou no início, mas logo achou seu lugar no tabuleiro, como destacada fornecedora de energia do continente europeu.

Os primeiros louros dessa especialização produtiva coincidiram com a passagem inicial de Putin pelo Kremlin (2000-2008), quando a economia cresceu 7% ao ano. Como ocorreu com todos os exportadores mundiais de energia, o teto do crescimento russo baixou bastante após a crise global do final da década passada.

Ainda assim, a Rússia tem hoje um PIB idêntico ao do Brasil (US$ 2,2 trilhões), mas uma população 30% menor --e caindo. As amplas reservas energéticas russas tendem a tornar-se ainda mais disponíveis para exportações, e a Europa continental é o mercado óbvio para elas.

Seria estúpido como rasgar dinheiro, dada essa sólida dependência entre economias da Europa, aplicar à crise ucraniana o raciocínio defunto da Guerra Fria.

A Ucrânia sem maniqueísmos - ROBERTO ROMANO

O Estado de S.Paulo - 10/03

Em análises recentes sobre a Ucrânia desaparece um elemento importante. Muito se comenta sobre a questão étnica que divide o país. Pouco se adianta sobre o antissemitismo ali imperante em vastas camadas da população, algo radicalizado na 2.ª Guerra. Na luta nazista contra os judeus, o pior foi realizado pelos colaboracionistas. Mesmo o dirigente genocida do 4.º Einsatzkommando germânico "confiou a si mesmo a execução de adultos e mandou que os auxiliares ucranianos atirassem contra as crianças". Segundo Ernst Biberstein, chefe do 6.º Einsatzkommando, os alemães atemorizaram-se com "a sede de sangue daquela gente" (Hilberg, Raul: The Destruction of the European Jews).

Como não resiste na história política internacional nenhuma versão sobre "mocinhos" e "bandidos", é preciso cautela, hoje, diante do papel a ser desempenhado pelos vários países na crise em foco. Os Estados Unidos jamais foram neutros ou respeitaram de fato a independência ucraniana. Na guerra fria e seguindo a razão de Estado, aproveitaram antigos auxiliares ucranianos dos nazistas para desestabilizar a União Soviética (URSS). Em 1951, cerca de 35 mil policiais e quadros do Partido Comunista foram eliminados pelas guerrilhas ligadas à Organização dos Ucranianos Nacionalistas (OUN) e por milícias como o Ukrainska Povstancha Armia (UPA), o Exército do Povo Ucraniano.

As guerrilhas da OUN eram mais fortes na Ucrânia do oeste, hoje conhecida como Galícia. A região é disputada desde longa data por russos, alemães, poloneses e pelos próprios ucranianos. Dela, boa parte ficou sob controle dos poloneses entre as guerras mundiais. A Rússia considerou-a sua após ter invadido a Polônia do Leste com base no Pacto Ribbentrop-Molotov, de 1939. Os nazistas ocuparam a área, mas os russos aumentaram as próprias fronteiras rumo à Polônia, incorporando a Galícia. Muitos ucranianos sofreram com o autoritarismo soviético, o que deu novo alento às forças que conduziram uma efetiva rebelião contra a URSS sob liderança da OUN e do UPA. Os soviéticos apresentam a OUN e o UPA como serviçais dos alemães (Styrkul, Valerii: The SS Werewolves). Para outros, ao contrário, eles foram uma "terceira força" democrática, em prol da independência nacional (Poltava, Peter: The Ukrainian Insurgent Army in Fight for Freedom).

As duas teses são inexatas. A OUN e o UPA surgem na militância anticomunista do coronel Eugen Konovalets, em 1920, quando parte da região pertencia à Polônia. Seu programa procura a independência da Ucrânia, exibindo ódio especial à Rússia e aos judeus. O setor tinha elos fortes com o serviço de inteligência do almirante alemão Wilhelm Canaris (Dallin, Alexander: German Rule in Russia). A OUN usou o terror, como em 1934, ao matar o ministro polonês general Bronislav Pieracki e outros. A Liga das Nações denunciou-a como terrorista. Os tribunais poloneses condenaram à morte os líderes Mykola Lebed e Stepan Bandera. Os dois fugiram na confusão das invasões da Polônia pela Alemanha e pela URSS. Lebed serviu na escola de polícia da Gestapo perto de Cracóvia. Bandera organizou os simpatizantes da OUN em esquadrões dirigidos pela Abwehr.

Os nazistas colocaram dinheiro na OUN para a invasão da URSS a partir de 1941. Seus militantes operaram na inteligência e criaram administrações locais, sempre assassinando judeus. A OUN queria ser o governo da Ucrânia, aliado à Alemanha. Em carta a Hitler, o líder Wolodymyr Stachiw afirma que o acordo entre a OUN e os nazistas significaria a "consolidação da nova ordem étnica na Europa do Leste (völkische Neuordnung in Osteuropa), bem como destruir a influência dos sediciosos bolchevistas judeus". Stachiw, na mesma carta, chama Hitler de "campeão do princípio étnico", pedindo-lhe apoio "para nossa luta étnica (völkischen Kampf)" (Stachiw para A. Hitler, 23/7/1941, registrada na Chancelaria do Reich sob número RK 9380A, cf. Simpson, Christopher em Blowback: the First Full Account of America's Recruitment of Nazis, livro a ser lido com urgência e do qual retiro parte das considerações aqui enunciadas).

Hitler não o atendeu, pois considerava todo eslavo "sub-homem", nada queria dividir. E mandou prender vários setores da OUN. Mesmo assim, militantes dessa organização continuaram a massacrar civis e judeus suspeitos de ajudar os russos. A OUN tem seu próprio programa antissemita e deu mostras da coisa em Lvov (1941). As sementes da OUN ainda brotam em solo ucraniano. Não basta dizer que os atentados contra os soviéticos se justificavam por serem eles invasores. Antes de tudo, eles eram russos, cujo desejo de vingança não desapareceu após o fim da URSS.

É preciso descer mais fundo. Se persiste na Ucrânia a nódoa antissemita, o mesmo ocorre na Rússia. Aliás, no instante em que os EUA financiavam a OUN para boicotar a URSS, o stalinismo praticava atrocidades contra os judeus. O "Complô dos Médicos" é um episódio nauseante (Brent, Jonathan e Naumov, Vladimir: Stalin's Last Crime, the Plot Against the Jewish Doctors). Bem disse Alexander Soljenitsyn que "os bandidos de Shakespeare seriam piores se tivessem ideologia". Recordando Merleau-Ponty, no comércio ideológico (que provou toda a virulência no Pacto Ribbentrop-Molotov) ocorre uma "comunhão negra dos santos". Quem age por ideologia se julga inocente, santificado. As vítimas narram outra história.

Hoje a Rússia invade a Crimeia a pretexto de salvar a vida de seus cidadãos e podemos ver que subsistem, sob os tanques, ódios étnicos e a genocida razão de Estado. Rússia, Alemanha, EUA (a lista é grande), nenhum deles pode afirmar neutralidade e desejo de paz na região. O antissemitismo virulento na Ucrânia retoma o renascimento racista na Europa. Fascismo, antissemitismo, guerra, temos aí a receita das hecatombes que dizimaram milhões no século 20. Pensar tais fatos sem maniqueísmos ideológicos é essencial, se desejamos realmente uma cultura de paz.

Um modelo que trava o Brasil - RAUL VELLOSO

O GLOBO - 10/03

A divulgação de mais um trimestre de dados decepcionantes sobre a evolução do PIB trouxe de volta dúvidas a respeito da real capacidade de o país crescer a taxas razoáveis de forma sustentada, sob o modelo econômico em vigor. Viu-se que o PIB subiu 2,3% ao ano em 2013, levando à média pífia de apenas 2% no período 2011-13, comparados aos 4,8% médios do auge da fase Lula.

De uns anos para cá, a taxa de investimento vem girando ao redor de 18% do PIB, em seguida ao salto de quatro pontos percentuais entre 2002 e 2008, com base em financiamento externo. Por trás do desempenho total, a indústria de transformação, depois de ter crescido a uma taxa próxima da média por algum tempo, está mais ou menos estagnada desde então. A tudo isso, as autoridades costumam reagir com a surrada desculpa do cenário externo desfavorável.

O fato é que o governo optou por um modelo de sustentação do consumo via elevação dos gastos públicos correntes e do crédito, e parece ter acreditado que, uma vez acionados os fatores de impulsão desse sistema, os investimentos se seguiriam sem maiores limitações e a economia cresceria a taxas elevadas de forma sustentada.

Um consumo interno alto implica baixa poupança e queda no investimento doméstico, levando, portanto, a uma produtividade modesta, e, no fim, a um menor crescimento do PIB e do consumo, frustrando o objetivo a que se almeja. A falta de perspectiva de crescimento sustentado do consumo acaba conduzindo à contenção dos investimentos.

Nesse contexto, a possibilidade, cada vez mais real, de os emergentes absorverem maiores volumes de poupança externa termina aliviando a restrição de poupança e permitindo maior crescimento do PIB — como de fato ocorreu entre 2003 e 2008 —, mas, a partir de certo momento, passa a penalizar certos segmentos, como vem acontecendo com a indústria de transformação desde 2010.

Para os setores de bens comercializáveis com o exterior, como a indústria, o desestímulo aos investimentos acaba se tornando mais profundo do que sugere a análise em termos agregados. O que se passa é que algum segmento terá de puxar o carro das importações e do déficit na conta-corrente externa, sem o que o ingresso de poupança de fora não se materializa.

Ou seja, é preciso haver um déficit na conta externa para a poupança de fora ser absorvida pela economia interna. E isso implica desestimular investimentos na indústria, que passa a desempenhar o papel de porta de entrada para o ingresso de poupança externa, embora esta tenda a não se dirigir ao financiamento de sua expansão.

Por outro lado, nos segmentos de produtos não comercializáveis com o exterior, basicamente serviços, qualquer crescimento de demanda estimula os investimentos, pois não há como atender a ela, se não for via expansão da produção interna. Isso se dá pela elevação dos preços desses segmentos em relação aos demais, permitindo, inclusive a absorção de aumentos salariais inerentes ao processo.

O mesmo não se pode dizer quanto ao segmento industrial, onde os preços tendem a se manter interligados aos mercados mundiais e onde o efeito China leva à conservação desses preços em níveis relativamente baixos e estáveis. Enquanto a produtividade da mão de obra puder aumentar, é possível acomodar aumentos salariais na indústria, mas a partir de certo ponto isso se mostra mais difícil.

Finalmente, mesmo contendo produtos comercializáveis com o exterior, como fonte de atração de investimentos o segmento de commodities agrícolas e minerais se junta não à indústria, mas ao setor de não comercializáveis, pois somos fortes exportadores desses produtos e os seus preços externos têm subido bastante desde 2002.

Assim, a absorção de poupança externa alivia a restrição de poupança, mas à custa de perda da importância relativa de segmentos com as características do industrial. Nesse contexto, o papel desempenhado pelos demais segmentos — serviços e commodities — passa a ser crucial, pois sua capacidade de resposta aos estímulos econômicos dará o ritmo do crescimento global da economia. Uma reação fraca faz com que a inflação suba e o governo seja obrigado a cortar a demanda agregada para trazê-la de volta à meta.

De qualquer forma, dificilmente o modelo de consumo terá vida longa como motor de crescimento. Primeiro, porque os fatores de impulsão vão se desgastando. E segundo porque, na essência, se trata de um modelo antipoupança, e, portanto, anti-investimento. Em adição, o governo, insatisfeito com subprodutos como o encolhimento do peso da indústria, termina adotando políticas compensatórias de socorro aos perdedores, de custo alto para o orçamento público e nenhuma garantia de solução sustentável, acentuando a tendência anti-investimento. Ou atrasa processos inevitáveis na área de serviços, como o de retomada das concessões privadas de transportes, por puro viés ideológico-populista. Nesse contexto se insere, ainda, o controle de preços básicos como energia elétrica, petróleo e tarifas de transporte, em que tenta combater inflação sem dor imediata.

Questão de justiça nos planos econômicos - GUSTAVO LOYOLA

VALOR ECONÔMICO - 10/03
Supremo tribunal Federal (STF) provavelmente retomará em 2014 o julgamento das demandas relativas aos planos econômicos. Na visão de alguns, os poupadores foram sistematicamente garfados nos planos, tendo-lhes sido subtraída, em benefício dos bancos depositários, parcela da remuneração a que teriam direito em seus depósitos de poupança. Fosse isso verdade, caberia agora ao STF fazer justiça e obrigar os bancos a repor a remuneração indevidamente subtraída. Porém, entendo ser falacioso o argumento de que os poupadores sofreram perdas. Não houve prejuízo para os titulares das cadernetas de poupança, nem os bancos obtiveram ganhos com as fórmulas adotadas nos planos.
Uma preocupação comum em todos os planos econômicos que se seguiram à experiência do plano Cruzado foi o de evitar que a queda abrupta da remuneração nominal dos depósitos em poupança levasse ao saque massivo de recursos e ao aumento abrupto do gasto pelas famílias. Conhecia-se o efeito deletério da elevação rápida da demanda agregada que se seguia à estabilização dos preços e, por isso, tratou-se de dar aos poupadores os incentivos corretos para a manutenção de seus depósitos.

Como consequência, nos meses posteriores aos planos, as cadernetas receberam juros reais acima dos previstos 0,5% ao mês. Essa remuneração, na maioria dos casos, foi igual ou mesmo superior à que os poupadores poderiam obter se tivessem aplicado em outros ativos financeiros disponíveis no mercado.

A título de exemplo, consideremos o acontecido no plano Verão. As cadernetas passaram a ser corrigidas pela remuneração acumulada das Letras Financeiras do Tesouro (LFTs), ou seja, pela própria taxa básica de juros da economia (taxa Selic). Segundo documento do Ministério da Fazenda, dessa metodologia resultou um ganho acima da inflação de 20,8% nos primeiros quatro meses de 1989! Observe-se que os depositantes tiveram 100% da taxa Selic naquele período. Assim, caso os tribunais acolham os argumentos dos poupadores, as remunerações das cadernetas ficariam ainda mais acima das taxas de mercado praticadas na época dos planos e implicaria ganhos não justificados.

Uma questão técnica, mas de muita relevância na discussão dos planos econômicos, diz respeito às modificações metodológicas realizadas no cálculo dos índices de preços nos momentos de introdução da maioria dos planos. Tais índices de preços são usualmente calculados comparando-se um nível médio de preços de uma cesta de bens e serviços num determinado mês com o nível médio desses preços verificado no mês anterior. Porém, nos meses de introdução dos planos (Verão e Bresser), tal cálculo foi substituído pela comparação de um vetor de preços coletado nos dias imediatamente anteriores ao plano e o nível médio de preços no mês anterior. Pode-se demonstrar aritmeticamente que esse procedimento leva ao aumento da inflação calculada no mês de sua introdução, mormente quando a inflação estava se acelerando. Em contrapartida, no mês seguinte, a inflação apurada será menor, uma compensando a outra. Toda essa questão foi profundamente abordada em recente artigo de Marcos Lisboa e José Alexandre Scheinkman.

Outro aspecto de relevo para o julgamento da controvérsia é a necessidade de manutenção do equilíbrio entre a remuneração dos depósitos de poupança e a dos financiamentos realizados com os recursos oriundos dessa fonte. Como se sabe, segundo as normas do CMN e do BC, os depósitos de poupança são obrigatoriamente aplicados em financiamentos habitacionais ou para a atividade rural (no caso das captações do Banco do Brasil), além de parcela que é direcionada para depósitos compulsórios no próprio BC. Apenas um percentual menor dos depósitos pode ser livremente aplicado. Por ocasião dos planos, as leis e normas previram que fossem utilizados os índices de correção da caderneta aos financiamentos e depósitos compulsórios realizados com recursos dessa fonte. Não houve, assim, tratamento desigual entre as fontes de recursos e as aplicações dos bancos e, por conseguinte, não é correto dizer que essas instituições ganharam com as regras de correção adotadas nos planos econômicos. Vale dizer que não há evidência de que os bancos tenham tido em seus balanços resultados acima da média, nos anos de deflagração dos planos.

Por último, não bastasse a fragilidade factual da tese de perdas de poupadores com os planos econômicos, o Judiciário deve considerar os efeitos deletérios que poderão resultar de uma decisão favorável aos poupadores. Os bancos públicos estão entre os maiores perdedores potenciais de uma decisão dessa natureza, o que exigiria do governo um esforço adicional no momento em que já existem dúvidas sobre a trajetória da política fiscal. Por causa disso, haveria o aumento substancial do risco de rebaixamento da nota de risco do Brasil, o que comprometeria a capacidade de crescimento do país nos próximos anos. Ademais, o comprometimento do capital dos bancos - dependendo de sua intensidade - poderia levar à diminuição da oferta de crédito, com consequências igualmente negativas para a atividade econômica.

Para vencer a barreira da baixa produtividade - CARLOS RODOLFO SCHNEIDER

CORREIO BRAZILIENSE - 10/03

O Ranking de Competitividade Global 2013-2014, do Fórum Econômico Mundial, aponta recuo do Brasil: caiu da 48ª para a 56ª posição em 2013. O índice, elaborado pelo Instituto de Administração de Lausanne, na Suíça, avalia as condições de competitividade dos países a partir da análise de dados públicos e da opinião de executivos sobre questões como ambiente macroeconômico, instituições públicas e desenvolvimento tecnológico. Os dados apontados no documento nos ajudam a entender por que o país cresce tão pouco e por que a nossa indústria está encolhendo.

No Brasil, as empresas não financeiras poupam pouco porque, devido à perda de competitividade da economia, as margens são baixas e porque são oprimidas por um sistema tributário irracional. O governo não poupa, ou melhor, "despoupa" perto de 3% do PIB devido ao excesso de gastos. As famílias, por sua vez, poupam pouco por questão cultural e por estarem assistidas por um sistema de proteção social, nascido na Constituição de 1988, excessivamente paternalista, cujos deficits recorrentes são grandes consumidores da já escassa poupança nacional.

Robert Atkinson, presidente da Fundação para Inovação e Tecnologia da Informação, de Washington, afirma que a baixa produtividade brasileira, em grande parte decorrente do baixo investimento, seria a principal barreira ao nosso desenvolvimento. Estudo por ele conduzido mostra que, no período de 2005 a 2011, a expansão da produtividade na economia foi responsável por 74% do crescimento dos EUA, por 84% nas nações de baixa e média renda e por apenas 28% no Brasil.

Na realidade, no que se refere ao fator trabalho, o que impulsionou o crescimento no Brasil não foi a produtividade, mas a absorção de importantes contingentes de mão de obra que hoje não estão mais disponíveis, dado o quadro de pleno emprego existente. Não há, pois, alternativa a um esforço pelo aumento da produtividade (quantidade produzida por trabalhador).

A produtividade do trabalho vem caindo no Brasil nos últimos anos (-1,4% de 2010 a 2012). No período de 2000 a 2012, cresceu apenas 1% ao ano, contra 5,1% ao ano na Índia e 10,4% na China. Pior: enquanto no Brasil, em 2011, para um crescimento zero de produtividade, os salários reais cresceram 5,6%; no México, a produtividade aumentou 1,7% e os salários 1,8%. No Chile, a produtividade avançou 2,9% e os salários, 2,5%. Em 2012, a produtividade subiu (-) 1,4% no Brasil, 0,7% no México e 3,3% no Chile, enquanto os salários aumentaram 5,4%, 1,3% e 1,8% respectivamente.

Para não comprometer a competitividade do país, aumentos salariais devem caminhar alinhados com a evolução da produtividade. E isso vale também para o salário mínimo. Segundo Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, a regra atual não segue uma base econômica, onerando tanto o setor público quanto o privado.

Isso faz do Brasil um país caro, dificulta a competitividade da indústria de transformação e compromete exportações. José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil, apontou que a nossa participação no comércio internacional vem caindo de 1,41% em 2011, para 1,33% em 2012 e 1,25% em 2013. Como efeito colateral, os setores menos produtivos da economia, como comércio, construção, serviços de baixa qualificação e agropecuária, passaram a ofertar a grande maioria das oportunidades de emprego (85% em 2011). Enquanto na indústria, 26 trabalhadores em média geram R$ 1 milhão em riquezas, o número sobe para 45 funcionários no comércio e na construção, e cresce para 96 na agropecuária.

Segundo o economista Paulo Rabello de Castro, cofundador e coordenador nacional do MBE, a produtividade total dos fatores no Brasil vem caindo devido a processo de extração de eficiência do setor privado para cobrir gastos do setor público. Para estancar esse movimento, é necessário reiniciar agenda de reformas.

Há 35 anos, Brasil e Coreia do Sul tinham um PIB per capita equivalente a US$ 5 mil em paridade de poder de compra. No Brasil, evoluiu para US$ 11 mil e, na Coreia, para US$ 30 mil. É resultado do trabalho que vem sendo feito em cada país.

Ficou claro que o Brasil não vive num mundo à parte e que a nova classe média não tem como carregar o país nas costas. A retomada do crescimento passa pela recuperação da competitividade da economia que, por sua vez, não virá sem aumento de investimentos e produtividade e sem gastos públicos mais eficientes que permitam menor carga tributária. Sem esquecer a simplificação da nossa caótica estrutura de impostos, ou favela tributária, como também vem sendo chamada.

Nó apertado - LUIS EDUARDO ASSIS

O Estado de S.Paulo -10/03

Além de promover em Davos o grande rega-bofe das finanças internacionais, o Fórum Econômico Mundial também publica anualmente o Índice de Competitividade Global. O fórum define competitividade como o conjunto de condições políticas e institucionais que determina a produtividade de um país e estabelece o nível de prosperidade que pode ser alcançado. Na edição de 2013-2014, 148 países foram analisados em 12 dimensões distintas. O Brasil está mal na foto. Perdeu oito posições em relação ao ano anterior e ficou em 56.º lugar, a mesma colocação que tinha em 2009. Estamos um pouco atrás do México (55.º) e da Costa Rica (54.º) e muito atrás do Chile (34.º) e da China (29.º). No ranking das seleções de futebol da Fifa, o país que ocupa a 56.ª posição é Israel, que não se qualifica para a Copa do Mundo há 44 anos. Esses números estão nos dizendo que a chance de o Brasil se tornar um país de primeira grandeza é a mesma de Israel ser um dia finalista da Copa.

O que arrasta o Brasil para baixo nesse ranking é sua colocação no que é chamado de "requisitos básicos" para aumento da produtividade, em que ocupamos a 79.ª posição. Na Olimpíada de Inverno realizada em Sochi, o Brasil ficou em 69.º lugar na primeira rodada de esqui alpino. Somos melhores esquiando do que promovendo um ambiente institucional favorável ao progresso.

As razões para esse impasse são de duas ordens. A primeira é a mais visível. A política econômica adotada nos últimos anos tem cometido equívocos bizarros que resultaram numa baixa taxa de investimento, o que estrangula a capacidade de expansão do produto. Tivemos um pouco de tudo. Erros conceituais, por exemplo, como a crença de que desoneração fiscal estimularia os empresários a ampliarem a capacidade produtiva. Equívocos ideológicos, como a relutância em aceitar a participação da iniciativa privada nos grandes projetos de infraestrutura. Ou erros de cálculo, como a infelicíssima ideia de manipular as contas públicas e com isso perder em credibilidade muito mais do que se poderia ganhar com números nos quais ninguém mais acredita. Sem falar na estultice de sucatear a Petrobrás e as estatais do setor elétrico com a política populista de represamento de preços. A conta do governo é alta, mas não explica tudo.

Uma segunda motivação para termos nos encalacrado remete ao pacto social que fizemos há tempos e que vem aos poucos transformando a economia brasileira numa gigantesca "câmara de transferências". Uma distinção simples poderá ilustrar o argumento. Podemos dividir os gastos públicos em duas categorias: 1) despesas que representam a prestação de serviços; e 2) transferências mediadas pelo Estado em função de direitos adquiridos de várias naturezas.

Incluído o pagamento de juros, a segunda categoria de gastos representa hoje algo perto de 19% do Produto Interno Bruto (PIB), o que equivale praticamente à totalidade da arrecadação do governo federal. Esse contrato social que engendramos, meritório na promoção de uma sociedade mais solidária, implica que jamais teremos uma carga tributária baixa. Fizemos uma opção histórica por um Estado que gasta muito e que, portanto, não pode arrecadar pouco. Somando benefícios do INSS e a previdência do setor público, o Brasil gasta hoje mais de 10% do PIB. Estamos dispostos a rever as regras de pensões e aposentadorias para reduzir os impostos?

Mais grave é constatar que a qualidade dos serviços está longe de ser satisfatória. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) foi a campo em agosto de 2013 pesquisar as prioridades do cidadão brasileiro. Foram apresentadas 16 propostas, entre as quais os entrevistados deveriam escolher as 6 mais relevantes.

Saúde. A melhoria dos serviços de saúde foi a maior demanda, apontada por 88% dos entrevistados. O Brasil é um dos poucos países do mundo que asseguram o direito universal à saúde. O artigo 196 da Constituição federal é tão taxativo que nem sequer faz a concessão de distinguir entre meios e fins (não é o tratamento médico que é dever do Estado, mas a própria saúde). Mas como prover um serviço de qualidade para 200 milhões de pessoas? Uma tentação ingênua para escapar do problema é acreditar que um choque de gestão poderia fazer esse trabalho. Melhorar a administração e combater a corrupção é sempre necessário, mas isso não basta.

Estudo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) aponta que os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com assistência ambulatorial e internação hospitalar devem se elevar 149% entre 2010 e 2030, apenas para atender às necessidades de uma população que envelhece. As despesas com internação de idosos devem aumentar 370% nesse período. Não se faz saúde de qualidade sem dinheiro. O NHS, serviço nacional de saúde britânico, tem um orçamento que é quatro vezes maior que o do SUS para atender uma população que é menos de um terço da nossa. Estamos dispostos a pagar mais impostos para ter um serviço melhor?

O fato é que a provisão de serviços públicos de qualidade não poderá ser feita sem um aumento da arrecadação, ainda que, reitere-se, seja fundamental a adoção de práticas de gestão mais eficazes e transparentes. Se não é possível aumentar a carga tributária, já excessiva, o aumento da arrecadação terá de depender da expansão da economia, o que nos leva de volta ao tema da competitividade.

Desatar este nó não é simples. O pacto social hoje vigente exige aumento dos impostos acima do crescimento do produto. Mas o aumento do PIB depende fundamentalmente da nossa capacidade de aumentar a produtividade geral da economia, o que exige, entre outros pontos, modificações no padrão de gastos público a partir da redefinição de prioridades. Essa é uma tarefa que exige tempo, habilidade e liderança política. Tudo o que hoje nos falta.

A questão federativa - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 10/03

Governadores alegam que são penalizados pelas regras da renegociação das dívidas estaduais



O fato de o ano de 2014 ser de eleições presidenciais motiva os potenciais candidatos a abrirem o baú das promessas. Nesse contexto, aqui e acolá, entre as palavras de ordem que começam a serem esboçadas, aparece com frequência a expressão “revisão do pacto federativo”. É preciso ter o máximo de cuidado com esse ponto.

O assunto, a rigor, é antigo. Na verdade, já formava parte, sem retroagir excessivamente no tempo, da pauta que os governadores tinham levado a Fernando Henrique Cardoso no começo do seu segundo mandato, em 1999 e na época envolvia, entre as principais reivindicações, a revisão do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), a recomposição dos recursos da Lei Kandir e a harmonização entre os interesses do governo federal e os governos subnacionais na reforma tributária discutida na época. Isso acabou sendo superado com o tempo: o FEF original, na prática, na parcela que representava uma perda imposta aos Estados, acabou; o tema da Lei Kandir é completamente extemporâneo, pelo fato de os recursos terem sido concebidos como uma transição entre diferentes regimes tributários, transição essa que deveria ter acabado há muito tempo, considerando que estamos falando de coisas aprovadas há mais de 15 anos; e aquela reforma tributária da época nunca vingou.

Nos últimos anos, os governadores e prefeitos têm se queixado de novos problemas. A questão é que ou os problemas não são tais ou a solução deles implica, em contrapartida, uma piora da situação da União, o que significa “vestir um santo e despir outro”. Vejamos em que consistiria essa agenda dita “federativa”.

Em primeiro lugar, queixam-se os governadores, o governo federal estaria fazendo “caridade com o chapéu alheio”, concedendo desonerações com recursos do IPI, dos quais, grosso modo, metade deve ser compartilhada com estados e municípios. Só que aqui é preciso ter uma visão mais abrangente e não restrita unicamente nem ao IPI nem a um ano em particular. Quando se soma o Imposto de Renda — também compartilhado com estados e municípios — e o IPI e se leva em conta uma série longa, constata-se que tal soma, em média, foi de 6,1% do PIB durante 1996/2000; 6,8% do PIB em 2001/2005; 7,1% do PIB em 2006/2010 e os mesmos 7,1% do PIB na média de 2011/2013. Não houve, portanto, perda de base de incidência dos impostos compartilhados.

Em segundo lugar, os governadores alegam que eles são penalizados pelas regras da renegociação das dívidas estaduais, cujas taxas de juros reais seriam muito maiores que as que vigoram no mercado. Aqui, durante um curto período, eles tiveram um ponto que de fato se apoiou na realidade, mas, primeiro, a taxa de juros real que o governo paga hoje pelos seus títulos de longo prazo é da ordem de 7 %, maior que os juros reais de 6% que ele recebe dos estados; e, segundo, qualquer concessão feita nesse campo redunda em redução do superavit primário de estados e municípios e, portanto, maior dívida pública. Não há solução indolor para esse tema, especificamente.

Em terceiro lugar, os governadores reclamam, com razão, de propostas aprovadas no Congresso que oneram o gasto dos estados, notadamente nas áreas de saúde e educação. Porém, os parlamentares que aprovaram tais medidas não o fizeram no Parlamento de Marte — e todos sabem da influência que um governador pode ter sobre a bancada do seu Estado quando ele arregaça as mangas para fazer lobby a favor ou contra algum projeto. É legítimo que os governadores reclamem por ter que pagar contas que lhes são “espetadas” pelo Congresso, mas não dá para fazer cara de paisagem quando projetos generosos são votados e depois reclamar quando seus efeitos começam a se cristalizar.

Há, é verdade, uma vasta agenda de pendências que tratam de questões que dizem respeito à Federação como um todo. Entre elas, destacam-se as regras do ICMS; a distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE); e os royalties.

Esses temas, porém, tratam da questão da distribuição de recursos entre diferentes unidades da Federação. A União, aqui, pode e deve desempenhar um papel de coordenação, mas não de doadora de recursos. A “questão federativa”, portanto, é um ponto bastante opaco da agenda de propostas, que faria bem ao país que fosse mais bem esclarecido.

Outra política econômica é possível - PAULO RUBEM SANTIAGO

CORREIO BRAZILIENSE - 10/03

O Banco Central realiza semanalmente a pesquisa Focus, ouvindo as 90 principais instituições do mercado financeiro sobre indicadores macroeconômicos, como inflação, Produto Interno Bruto (PIB), taxa de desemprego e taxa de câmbio. Ficam de fora as opiniões dos que produzem, plantam, oferecem a força de trabalho ou prestam serviços à produção e à circulação de bens - fatores reais que impactam os preços na economia.

Frente a isso, na heroica maratona pela mudança das políticas monetária e de administração da dívida pública, a auditora da Receita Federal Maria Lucia Fatorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida Pública (www.auditoriacidada.org.br), revela que a Focus é uma espécie de linha de frente do mercado. Ora, se a inflação é o aumento dos preços de bens e serviços e isso ocorre por desequilíbrios entre a oferta e a procura, por que os produtores desses insumos e os prestadores de serviços não são ouvidos?

Por que a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Confederação Nacional do Comércio (CNC), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional do Transporte (CNT) e a Confederação Nacional de Serviços (CNS) não são ouvidas? Por que as centrais sindicais dos trabalhadores, as entidades da agricultura familiar, os atacadistas e o cooperativismo não são ouvidos? Por que são esquecidos os departamentos e institutos de economia das universidades e o Conselho Federal de Economia? Por que se ouvem apenas as opiniões do mundo financeiro?

Porque a Focus é uma engrenagem que foi montada pelos que ganham com a criação de "cenários" e a elevação da taxa de juros. O Banco Central acomodou-se a isso. Dirão os leões do mercado que seria impossível ouvir tantas entidades e setores. "Fazê-lo seria um assembleísmo ineficaz". Não se trata disso. A questão posta é saber se vamos continuar perguntando às raposas se querem tomar conta do galinheiro.

Temos 15 anos de vigência do regime de metas de inflação, adotando-se um índice oficial, o IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, composto por nove itens, dos quais 60% ou mais não sofrem influência direta do aumento de demanda. Sendo assim, por que prevalece o piloto automático dos juros altos quando a inflação não é, sabidamente, apenas de demanda? Pelas razões que tantos economistas já apontaram. Há uma convenção a favor desse mecanismo e dos que ganham com a elevação dos juros aplicando seu patrimônio em papéis públicos assim remunerados. Essa engrenagem se perpetua alimentada, alardeando crises, desequilíbrios, fuga de capitais e queda de expectativas de investidores. Um autêntico terrorismo contra a economia nacional e o desenvolvimento da nação com democracia e soberania.

Hoje constatamos baixo crescimento, crise no balanço de pagamentos, inserção externa primária com baixa expressão nas trocas internacionais e elevada relação dívida bruta/PIB, entre outros. Travestida de "responsabilidade fiscal", a proposta dos mercados para a superação desses entraves é a pior de todas: mais cortes de gastos públicos (desde que não financeiros), endurecimento dos ajustes fiscais, paralisação do Estado, entrega ao setor privado da infraestrutura, desonerações.

Para a superação da dependência, é preciso combater o conservadorismo que domina a política econômica vigente, bem como enfrentar os ataques dos agentes do mercado nas investidas de aprofundamento das opções neoliberais a favor dos interesses da elite financeira nacional e internacional. Temos de reunir e colocar em marcha a intelectualidade econômica independente ao lado das forças sociais emancipadoras para construirmos novas engrenagens para a política monetária, a defesa da estabilidade e o desenvolvimento do país. O atual modelo de estabilidade, dogmático, convencional, pró-rentismo, está com os dias contados. Há 15 anos subtrai à nação a poupança fiscal e a soberania, enfraquecendo o Estado na construção dos caminhos do desenvolvimento.

Dez bilhões de prejuízo - PAULO BROSSARD

ZERO HORA - 10/03

Outro dia, houve quem indagasse quem era o ministro da Agricultura e nenhum dos presentes foi capaz de decliná-lo



As notícias são alarmantes. Ali são os excessos de chuva e aqui o excesso de calor, ambos os fenômenos resultantes de fatores da natureza, alheios e acima da vontade humana. Os efeitos funestos que se multiplicam são desiguais aqui e ali. As causas também são diferentes; de modo que o levantamento sinistro, embora importante, não é necessário, quando se trata de uma referência em um artigo. O fato certo e induvidoso é que os prejuízos do agronegócio com a seca e as chuvas, são estimados em R$ 10 bilhões, porque só ao cabo da colheita se saberá, realmente, a extensão dos danos e consequente prejuízo. Mas, para efeito de um primeiro exame do fato, bastam os números divulgados. Dez bilhões de reais é dinheiro em qualquer lugar.
Pois me contento com os dados divulgados para lembrar que é comum a referência de pessoas alheias ao setor a ele se referirem como algo ligado à rotina e ao atraso, chegando mesmo a insinuar o seu caráter antissocial, para dizer tudo em uma palavra. Em verdade, as pessoas que dogmaticamente assim se pronunciam, e não são poucas, geralmente, nunca lançaram à terra uma semente. De modo que os números agora mencionados como indicativo das perdas já ocorridas, valem para salientar aos opinantes ignaros os riscos inerentes a uma atividade intimamente ligada às surpresas da natureza.
O leitor poderá estranhar que não fale em pecuária e apenas em agricultura. É que tenho presente a lição de Assis Brasil, segundo a qual, quem diz a agricultura engloba necessariamente a pecuária e exemplificava dizer agricultura e pecuária seria o mesmo que falar em uma loja de fazendas acrescentando de lã, seda ou simples chitas.
De qualquer sorte, usando o termo genérico agricultura ou empregando o pleonasmo corrente, agricultura e pecuária, pouco importa, o certo é que a atividade é dependente imediata dos fatores naturais, e o que está acontecendo por excesso de chuva e por falta de chuva, reaviva demonstração dessa realidade. Contudo, ninguém ignora que o Brasil é exportador de alimentos e a tendência é de aumentar os índices de exportação, uma vez que não tem cessado o crescimento da população, bem como a incorporação de novas áreas deficientes em produção agrícola. Enfim, a componente rotulada de agricultura ou agronegócio importa em torno de 30% da produção global do país. Creio que isso diz tudo, suprima-se este dado e verificar-se-á o real significado dessa componente na economia nacional e na vitalidade da nação.
Diante desses dados seria de esperar não digo o desaparecimento dos maldizentes da agricultura, porque esses são inextinguíveis, mas que eles, pelo menos, diminuíssem em face do quadro hoje tão eloquente.
Aliás, se estou bem lembrado, maldizer faz lembrar o que Machado de Assis, disse acerca do boato “é uma das mais cômodas invenções humanas, porque encerra todas as vantagens da maledicência, sem os inconvenientes da responsabilidade.”
Para encerrar o assunto da perda estimada do agronegócio, o descaso do governo federal com este importante setor, vale lembrar que outro dia, houve quem indagasse quem era o ministro da Agricultura e nenhum dos presentes, todos informados em coisas políticas, foi capaz de decliná-lo. Desconfio que o mesmo ocorresse se a indagação envolvesse outros ministros. Ou estarei enganado?

Deu errado? - PAULO GUEDES

O GLOBO - 10/03
Agrande crise contemporânea seria um testemunho econômico contra as modernas democracias liberais? O ininterrupto crescimento econômico chinês seria uma evidência a favor da ditadura do partido único? As questões são examinadas em matéria especial da revista The Economist , intitulada O que deu errado com a democracia? .
A crise atual é um sintoma dos excessos dos ocidentais contra seu formidável capital institucional, de um lado, e do desesperado mergulho de 3,5 bilhões de eurasianos nos mercados globais, de outro. Financistas anglo-saxões quebraram os bancos, e a social-democracia europeia quebrou os governos, tentando escapar às exigências de adaptação à nova ordem global. A interpretação correta dos males que experimentamos é que são, na verdade, os sintomas dos abusos cometidos contra o bom funcionamento da moderna síntese ocidental - democracia, mercados e políticas públicas de bem-estar social.

Os eurasianos, ao contrário, praticam exigências da nova ordem. Sua alavanca de inclusão social é uma busca de integração competitiva aos fluxos de comércio mundial. Investem maciçamente em educação e infraestrutura, e suas práticas de livre comércio fariam enrubescer Adam Smith. A China deve mais ao capitalismo selvagem com que inundou o mundo com produtos de sua mão de obra barata do que ao capitalismo de Estado .

Pois bem, o que ocorre na América Latina é um testemunho econômico contra os experimentos de hegemonia de partido único. As democracias no cinturão do Pacífico - Chile, Peru, Colômbia e México - aprofundam reformas de modernização, mergulham suas economias na integração competitiva global e sustentam elevadas taxas de crescimento. Enquanto isso, Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina seguem práticas degenerativas, como o culto à personalidade (símbolo do atraso político), a concentração de poder em partido único, a estatização da economia e o controle da mídia. São sintomas clássicos de um obsoleto e desastroso nacional-socialismo bolivariano. A pobreza de Cuba, a violência na Venezuela, o empobrecimento da Argentina indicam que se afastar da democracia em busca do capitalismo de Estado não é o caminho para a prosperidade. Se suprimir a democracia e praticar o capitalismo de Estado fosse solução, o regime militar brasileiro estaria agora celebrando 50 anos.

Democracia e ditadura - DENIS LERRER ROSENFIELD

O Estado de S.Paulo - 10/03

O discurso da diplomacia brasileira acerca da Venezuela e dos demais países bolivarianos segue a doutrina do PT, segundo a qual estaríamos diante de uma democracia pelo simples fato de lá haver eleições. Eleições seriam, então, o único critério de definição de Estados democráticos, com evidente desprezo pelas instituições da sociedade civil. Mais concretamente, há total desconsideração pelo equilíbrio entre Poderes e pela independência dos Poderes Judiciário e Legislativo. A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral é sistematicamente pisoteada, se não aniquilada.

Nesse sentido, a "democracia" poderia prescindir das liberdades civis e políticas, devendo contentar-se com eleições e referendos, cada vez mais restritos, pois as condições de competitividade são progressivamente reduzidas. De fato, a democracia representativa nesses países "socialistas" é substituída, para retomar um conceito de J. L. Talmon, pela democracia totalitária.

A democracia representativa caracteriza-se por ser constitucional, obedecendo a princípios que fogem a qualquer deliberação popular. Consequentemente, não pode ser objeto de deliberação a igualdade de gêneros ou de raças. Uma maioria popular machista ou racista não se poderia impor numa democracia representativa, graças aos limites constitucionais, de princípios e valores, por ela assegurados.

Segundo a democracia totalitária, o poder reside na vontade popular encarnada pelo líder carismático. Não tem este, em razão da delegação popular recebida, nenhuma limitação, como se eleições o autorizassem, virtualmente, a fazer qualquer coisa. Basta um referendo para que isso ocorra. Foi o que aconteceu com o "socialismo do século 21", nas figuras de Hugo Chávez e de sua caricatura, Nicolás Maduro, que aboliram a separação de Poderes, emascularam o Judiciário e o Legislativo, fazendo do Executivo o único Poder que conta.

A economia de mercado, por sua vez, foi cerceada, quando não aniquilada, tendo como consequência o domínio do Estado, cujos efeitos mais nítidos são a inflação galopante e a falta de produtos básicos - o papel higiênico é o mais emblemático deles. Já a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral foi sendo suprimida, só sobrando, hoje, o resquício de uma sociedade livre. Milícias no melhor estilo das SA nazistas aterrorizam a população, fazendo uso da violência e do assassinato sempre e quando o líder máximo o exigir. Tudo, evidentemente, em nome da "revolução" e do "socialismo".

Não obstante, o Itamaraty e setores do PT continuam a justificar a "democracia venezuelana", como se os protestos do que ainda resta de oposição fossem o real perigo. Ora, as posições estão totalmente invertidas. A dita "cláusula democrática", bem entendida, significaria, apenas, a "cláusula democrática totalitária".

Do ponto de vista diplomático, por uma questão de pudor, não se pode acatar o argumento de que o Brasil não se ingere em assuntos de outros países, uma vez que foi bem isso que fez no Paraguai. O então presidente Fernando Lugo foi afastado do poder por um impeachment, segundo a legislação paraguaia. O governo brasileiro não reconheceu o impeachment e aproveitou a ocasião para suspender esse país do Mercosul, tornando viável, dessa maneira, a entrada da Venezuela. É evidente o uso de dois pesos e duas medidas.

Nessa perspectiva, poderíamos aplicar os mesmos critérios para o que se denomina ditadura militar brasileira, com o intuito de melhor apreciarmos a "verdade" do período, contrastada com o juízo "democrático" do atual governo a propósito do "socialismo do século 21".

Considera-se a ditadura militar como se estendendo desde o governo Castelo Branco até o final do governo Figueiredo, quando há diferenças significativas nesse longo período. O governo Castelo Branco, por exemplo, tinha inclinação liberal, enquanto o governo Geisel foi fortemente estatizante. Segundo esse critério, o governo Dilma Rousseff se encaixaria na concepção geiselista, com forte intervenção do Estado na economia, a escolha de empresas e setores privilegiados a serem apoiados e o uso da política fiscal e de subsídios para o apoio a esses grupos. Seria Geisel de esquerda, conforme essa concepção? Mais ou menos democrático? E Lula, em seu primeiro mandato, seria castelista?

Durante o período do governo Castelo Branco (1964-1967) até o Ato Institucional n.º 5, promulgado por Costa e Silva em setembro de 1968, o País desfrutava ampla liberdade. Foi esse ato extinto em 1978 por Geisel e o habeas corpus, restaurado. Penso não ser atrevido dizer que as liberdades civis eram muito mais respeitadas do que o são nos países que, atualmente, encarnam o "socialismo do século 21".

A gozação, para não dizer a sátira e a ironia, do Pasquim começou em 1969, quando o regime militar havia endurecido e a ditadura propriamente dita se estabeleceu. Isto é, a ditadura tolerou o Pasquim, enquanto os governos bolivarianos não toleram nenhuma crítica, muito menos a que se faz pela sátira que atinge os seus líderes.

A greve do ABC sob liderança de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, foi um marco no Brasil, abrindo efetivamente caminho para a liberdade de participação sindical. Ocorreu em 1974, sob o governo Geisel. A partir dela novas greves se estenderam de 1978 a 1980, já no governo Figueiredo. Imaginem algo semelhante nos países bolivarianos. Por muito menos os "socialistas" enviam as suas milícias e fazem uso de perseguições, prisões, tortura e assassinato.

A Lei da Anistia, negociada entre militares democratas, políticos do establishment e a oposição do MDB, com amplo apoio da sociedade civil, foi assinada por Figueiredo em agosto de 1979, abrindo realmente caminho para a redemocratização do País. Foram os próprios militares que tomaram a iniciativa de abandonar o poder.

Sem dúvida a "democracia" bolivariana consegue ser mais dura do que a ditadura brasileira nesses períodos!

"Carta ao Sérgio" - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 10/03

Sérgio, meu amigo.

Há três dias nos despedimos de você, em uma Recife consternada pela perda do homem público admirado em todo o país. Entre tantos de nós que fomos levar à sua família o nosso respeito, lutei para não me deixar tomar pela emoção da hora. Foi impossível não revisitar nossas caminhadas pelo Brasil e os encontros que marcaram nossa convivência.


Penso que algo estranho acontece quando nos despedimos de pessoas que nos são tão especiais. Por um lado, parece que envelhecemos subitamente, transformados em sobreviventes de outros tempos e histórias já vividas. Por outro, encontramos nessas mesmas histórias novos sentidos e o ânimo necessário para seguir em frente.

Nesses dias, com justiça, o país inteiro ouviu de seus companheiros de jornada –e mesmo de adversários tradicionais– inquestionáveis elogios às virtudes que embalaram a sua vida pública. Quase sempre, o conciliador dedicado à construção de novas convergências em favor do país foi também lembrado como o crítico feroz aos desvios, malfeitos, contradições e desarranjos da vida nacional, especialmente presentes neste nosso trecho de história.

As mais de três décadas de intensa militância política –e nem mesmo as doenças graves que o abateram– foram capazes de esmorecer uma indignação juvenil que, sei, movia-lhe, como se mantivesse intocado o líder estudantil da juventude e aquelas sempre grandiosas esperanças.

Guardo comigo uma grande admiração pela leveza e alegria com que você sempre conduziu as suas responsabilidades, afastando da política o peso do rancor e do confronto pessoal estéril. Talvez por isso, quase todas as suas relações nesse campo tenham se transformado em boas amizades. Da mesma forma, sou testemunha do seu esforço sobre-humano para não permitir que o líder tomado por compromissos se sobrepusesse ao pai dedicado, que de longe se afligia com a caminhada dos quatro filhos.

Outra imagem que ficou foi a do ativista em luta permanente e admirável pelas grandes causas do país. Do Brasil pobre, injusto e desigual, que continua existindo de forma dramática ainda mais visível no Nordeste, razão maior de sua militância política.

Sei que não o ouviremos mais recontando casos acontecidos com a gente simples do sertão pernambucano, de onde tirava exemplos e lições. Não o veremos cobrando à política nacional respeito aos brasileiros. Não o teremos mais à mesa, fazendo a defesa intransigente dos valores democráticos. Mas cuidaremos, querido amigo, com respeito e reconhecimento, para que suas ideias e seus compromissos se multipliquem na voz e na caminhada de cada um de nós pelo Brasil.

Com gratidão, Aécio.

Pobre Pezão! - RICARDO NOBLAT

O GLOBO - 10/03

"O Brasil não quer mais Dilma."
 EDUARDO CAMPOS, governador de Pernambuco 
A sete meses da eleição e com cabos eleitorais como Sérgio Cabral e Eduardo Paes, o aspirante a candidato do PMDB ao governo do Rio de Janeiro, Luiz Fernando de Souza, o Pezão, prescinde de adversários.
Cabral parece acuado pelo tráfico de drogas, que retoma o controle de áreas tidas como pacificadas. Paes atravessa seu pior verão.
Um verão devastador para a imagem dele de prefeito bem-sucedido.

ARRISCA-SE A SER amaldiçoado quem criticar o projeto da Secretaria de Segurança Pública do Rio de instalar polícias comunitárias em favelas sob o domínio do tráfico de drogas. Compreensível. Jamais o Estado ousara combater o tráfico. Até que Cabral juntou-se ao delegado José Mariano Beltrame, atual secretário de Segurança. E o Estado ousou.

AO PROJETO deu-se o nome de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). E ele foi um sucesso. Mas pode deixar de ser. E tudo porque Cabral não fez o dever de casa prescrito por Beltrame. Instalar UPPs em favelas seria o primeiro passo para desalojar dali os traficantes.
O segundo seria dotar as favelas de serviços básicos - saneamento, luz, água, e por aí vai. Cadê os serviços? 

CABRAL REELEGEU-SE surfando na própria coragem de enfrentar o tráfico. Em seguida, deu-se por satisfeito.
O tráfico intuiu que chegara a hora de contra-atacar.
E o fez. O contra-ataque está só começando. Lembra a cena dos traficantes fugindo em massa do Complexo do Alemão? Foi exibida à farta pelas emissoras de televisão. Pois bem: os traficantes estão de volta, subornando e matando policiais.

QUE DELÍCIA para os que pretendem derrotar Pezão, não é? "Vou manter e reforçar as UPPs", dirá Pezão. Ouvirá de volta: "Já ouvimos a promessa antes. E ela não foi cumprida. Faça outra". Pobre Pezão... Com um cabo eleitoral do porte de Cabral... Ou do porte de Paes...

O PREFEITO da Copa do Mundo e das Olimpíadas 2016 gosta de viver perigosamente. Não foge de confrontos.
Em certos momentos isso pode ser bom para ele. Mas também pode ser mau. No momento está sendo mau. O aumento do preço das passagens de ônibus foi o estopim das passeatas de junho do ano passado.

PAES CANCELOU o aumento. Restabeleceu-o agora. A cidade está repleta de obras. Não se discute a necessidade delas. O acúmulo de obras, porém, atrapalha o tráfego. Os táxis se recusam a frequentar pedaços importantes da cidade. Os ônibus sofrem por ser obrigados a frequentar. Fez tórrido calor? A culpa é de Paes.
Tem chovido? A culpa é dele. A cidade fede? Debite-se na conta do prefeito.

CALOR E CHUVA nada têm a ver com o prefeito. A greve dos garis teve. Quer dizer: a falta de um plano de contingência para fazer face à greve. O prefeito chamou a greve de motim. Depois concedeu o aumento pedido pelos amotinados. E aí? Aí...
Coitado de Pezão!

FH quer debater com Lula Por aí, Mãe Dináh é uma vidente conhecida pelo acerto de suas profecias. Em Brasília, Mãe Dináh é o apelido de um ex-senador nordestino que tem fama de enxergar longe. E de ser um bom analista político. Merecida fama. Esquerda e direita o procuram. Recentemente, a Mãe Dináh de Brasília recebeu um telefonema de Fernando Henrique.
Dessa vez, o ex-presidente nada lhe perguntou, apenas disse. O quê? Que pensa em desafiar Lula para um debate. Sobre o que Lula quiser. Onde Lula quiser. Mãe Dináh limitou-se a prever que Lula recusará o convite.

Mais um enfeite para as contas - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 10/03

O governo terá de fazer um esforço muito maior e muito mais sério do que tem feito se quiser melhorar suas contas e - tão importante quanto isso - conquistar a confiança dos mercados. A incorporação de dividendos de bancos e empresas federais dificilmente servirá para criar a imagem de uma política orçamentária respeitável. Não basta, além disso, reafirmar a meta fiscal anunciada em fevereiro, um superávit primário de R$ 99 bilhões, equivalente a 1,9% do Produto Interno Bruto (PIB), nem prometer um corte de R$ 44 bilhões em suas despesas. Analistas nacionais e estrangeiros esperam ações claras e bem orientadas para formar uma opinião mais favorável sobre a administração das finanças públicas nacionais.

Depois de um resultado fiscal muito ruim em janeiro, o Tesouro Nacional decidiu engordar a receita com R$ 2 bilhões de dividendos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Para isso foi autorizado, por meio de portaria publicada na quinta-feira, o resgate de títulos em poder do banco. Segundo a informação inicial, seria uma antecipação de dividendos, com efeito retroativo para fevereiro. No mesmo dia uma correção foi divulgada em Brasília. A republicação da portaria no Diário Oficial de sexta-feira completou o conserto. Não seria uma antecipação, mas um pagamento normal.

A correção faz pouca diferença. A primeira informação pode ter sido um lapso. Se foi esse o caso, terá sido, como tantos outros, um lapso revelador. O pagamento dos R$ 2 bilhões pelo BNDES ajudará o governo a reforçar o balanço de fevereiro e a cumprir, pelo menos em aparência, a promessa de um resultado fiscal suficiente para acalmar as agências de classificação de risco. Não se afastou, ainda, a possibilidade de um rebaixamento da nota de crédito soberano do Brasil.

O balanço de janeiro do governo central foi o pior para o mês em três anos. O superávit primário, dinheiro usado para o pagamento de juros da dívida pública, ficou em R$ 12,95 bilhões, metade do obtido um ano antes. As transferências a Estados e municípios foram 41,2% maiores que as de janeiro de 2013, em termos nominais. Bastou um mês para as contas federais mostrarem o truque final usado para maquiar o resultado do ano anterior. O truque, nada sofisticado, consistiu simplesmente em retardar transferências e pagamentos de dezembro para janeiro. Só o dinheiro devido a Estados e municípios totalizou R$ 6,4 bilhões. A manobra incluiu também o atraso de pagamentos de R$ 1,9 bilhão relativos à Lei Kandir - dinheiro destinado a compensar a isenção fiscal concedida a exportadores.

A imprensa havia noticiado o truque, com base em informação do site Contas Abertas, especializado em finanças públicas, bem antes da publicação do balanço de janeiro. Ao apresentar os números do mês, o secretário do Tesouro, Arno Augustin, teve de reconhecer a manobra. Não poderia, sem isso, explicar o mau resultado.

O adiamento de transferências para janeiro deste ano foi mais um esforço para maquiar os dados finais de 2013. O superávit primário de R$ 77,1 bilhões contabilizado pelo governo central no ano passado foi obtido principalmente com recursos extraordinários. A maior parte da receita proveio de bônus de concessões de infraestrutura e de áreas de petróleo, de dividendos e também de pagamentos de empresas recém-admitidas no Refis, o programa de refinanciamento de dívidas tributárias. Só o Refis e os bônus proporcionaram cerca de R$ 34 bilhões.

Dividendos são componentes normais da receita da União, insistem as autoridades da Fazenda. Pode-se discutir esse ponto, mas está fora de dúvida a importância crescente dessa contribuição para o caixa do Tesouro nos últimos três anos. Para 2014 o governo projetou R$ 24 bilhões de dividendos. No ano passado foram R$ 17,14 bilhões, provenientes principalmente do BNDES (R$ 6,99 bilhões, 40,8% do total). Os R$ 24 bilhões correspondem a quase um quarto do resultado primário programado para o setor público e a 29,7% do previsto para o governo central. O governo terá de recorrer a algo diferente, se quiser vender uma história de austeridade fiscal.