segunda-feira, janeiro 07, 2013

Virtudes virtuais - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 07/01


Em janeiro de 1956, Profiles in Courage (Perfis em Coragem) disparou nas listas de livros mais vendidos nos Estados Unidos, onde ficaria até 1964, um ano depois de John Kennedy, o único autor com crédito na capa, ser assassinado em Dallas. O livro, lançado quando Kennedy era senador pelo Estado de Massachusetts, reúne perfis de oito senadores americanos que demonstraram coragem e independência no exercício do mandato, começando por John Quincy Adams, na primeira década do século 19.

No prefácio, o futuro presidente explica sua preocupação com a coragem política diante da pressão de eleitores, partidos e grupos de interesse. Mas ele não explica que não teve a coragem de escrever Profiles in Courage sozinho. Longos trechos do livro foram escritos pelo então assessor e redator de discursos de Kennedy, Ted Sorensen, que, antes de morrer, admitiu ter escrito a primeira versão da maioria dos capítulos e fez em segredo um polpudo acordo de direitos autorais com o chefe. O livro não foi indicado para o Pulitzer de 1957, mas ganhou o prêmio assim mesmo porque o pai de John, Joseph Kennedy, torceu o braço de um membro do comitê eleitor, que, por sua vez, convenceu os outros membros a votarem a favor.

Na semana passada, as palavras covardia e coragem foram citadas várias vezes na mídia americana, aplicada a diferentes personagens e situações.

John Boehner, o líder republicano da Câmara, saiu se gabando da seguinte valentia: aproximou-se do líder democrata no Senado, Harry Reid, a poucos passos do Salão Oval da Casa Branca, disse e repetiu: "Go f*#@* yourself" (Vá se f*@#r). Wow. João Valentão Boehner, que cresceu varrendo o botequim do pai em Ohio, não leva desaforo para casa. Não importa que Reid, um mórmon meio magrelo, se sentiria religiosamente impedido a retrucar. No meio da embaraçosa negociação para evitar o abismo fiscal, Reid havia acusado Boehner de ter instalado uma pequena ditadura na Câmara, cortejando a minoria republicana radical.

Mas, curiosamente, João Valentão não teve coragem de aplicar o mesmo epíteto obsceno a Chris Christie. O governador de Nova Jersey pesa 160 quilos e é o atual macho alfa do Partido Republicano. Ao saber que Boehner cancelou, em cima do ano-novo, a votação do pacote de ajuda às vítimas do furacão Sandy, amedrontado com a repercussão de uma nova despesa de US$ 60 bilhões, em meio ao debate sobre o déficit, Christie não precisou recorrer a nenhum palavrão: Acusou John Boehner de se curvar a intrigas palacianas, de prolongar inutilmente o sofrimento de milhares de vítimas do furacão e reduziu o deputado de Ohio em público a um castrato de coral da Renascença.

E como anda a coragem presidencial? Vejamos: a primeira providência de Barack Obama para tratar do trauma nacional com o massacre de crianças em Newtown, Connecticut, foi delegar a responsabilidade de procurar uma solução para o problema das armas de fogo ao vice-presidente Joe Biden. Depois de proclamar que sua vitória nas urnas era sinal de que os americanos aprovam a alta de impostos para os afluentes, gente que ganha mais de US$ 250 mil por ano, Obama não precisou de muito convencimento para dizer sim quando os republicanos decretaram que o teto devia ser US$ 450 mil.

Sabem quem foi acusada de covarde? Hillary Clinton. Comentaristas de direita disseram que Hillary estava escondida debaixo da cama porque não queria depor na comissão que investiga o ataque ao consulado americano em Benghazi, em setembro. Depois de ter contraído um vírus em viagem oficial, Hillary ficou desidratada, desmaiou e bateu a cabeça. Um check-up determinou que ela tinha um raro coágulo no cérebro e a secretária de Estado comemorou o ano-novo numa cama de hospital.

Sabem quem foi apontada como corajosa? A comediante Kathy Griffin, que simulou um ato sexual com o âncora Anderson Cooper, durante a transmissão ao vivo da festa do ano-novo em Times Square.

A coragem mais em evidência hoje na vida pública americana vem acolchoada por US$ 25 bilhões. O prefeito Michael Bloomberg, que comprou a terceira eleição pressionando a cidade a mudar a lei de limite de mandatos, fala o que quer. Não pode eleger-se presidente, não pode reeleger-se prefeito em 2013 e dá um bocejo quando lhe acenam com cargos honorários. Pretende gastar sua fortuna no final da vida promovendo causas, diga-se de passagem, virtuosas, como obesidade, meio ambiente e controle de armas de fogo. Nos dias que se seguiram ao massacre de Newtown, ele foi a única figura nacional eleita a tratar a tragédia como uma falha moral criminosa da vida americana.

A coragem, na Grécia antiga, era uma das quatro virtudes platônicas, ao lado da justiça, da temperança e da prudência. Num ano em que um sinal de coragem e independência foi encomendar centenas de balas para armas automáticas on-line, é justo, prudente e temperado indagar se a coragem está migrando para o mundo virtual?

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