sábado, janeiro 09, 2010

MÍRIAM LEITÃO

País perdido

O GLOBO - 09/01/10


Em pouco mais de 24 horas, na Argentina: a presidente Cristina Kirchner demitiu o presidente do Banco Central por decreto. Ele entrou na Justiça e voltou ao cargo. A oposição obteve medida cautelar contra o uso das reservas cambiais. A presidente criticou a Justiça. O governo acusou o vice-presidente de conspiração. O vice-presidente anunciou que vai mobilizar o Congresso contra o ato da presidente.

O que está por trás de toda essa confusão é a espantosa deterioração fiscal do país. O economista José Luis Espert, da consultoria Espert & Associados, conta que, de 2004 a 2009, os gastos públicos aumentaram dez pontos percentuais do PIB, saindo de 25% para 35%, e o país saiu de um superávit de 4% do PIB para um déficit estimado de 5% este ano.

O governo alegou que quer usar as reservas para pagar dívida externa. Ninguém acreditou. Para isso, há recursos previstos no Orçamento de 2010. O objetivo é indiretamente usar as reservas para ampliar ainda mais a expansão fiscal, explica o economista João Pedro Ribeiro, da Tendências: — A dívida externa seria paga pelo Banco Central, e os recursos do orçamento que deixariam de ser usados no pagamento de dívida seriam gastos como o governo quisesse.

O g o v e r n o K i rc h n e r amarga os efeitos de uma penosa derrota política no ano passado. Numa manobra para evitar um fracasso nas eleições parlamentares, a eleição foi antecipada de outubro para junho. A ideia era que a situação econômica iria se deteriorar ao longo do ano, então era melhor antecipar a eleição para garantir que o governo ficasse com a maior bancada.

A manipulação das normas eleitorais não funcionou, a derrota foi acachapante.

O kirchnerismo conseguiu 30% dos votos. O próprio ex-presidente concorreu pela Província de Buenos Aires e foi derrotado por um novato na política, Francisco de Navaez.

O governo ficou em quarto lugar em Buenos Aires e em Córdoba; terceiro, em Santa Fé; e segundo, em Mendonza e Entre Rios. Perdeu até na desabitada província que Kirchner governou como rei por vários mandatos: Santa Cruz.

O cientista político Rosendo Fraga, em seu relatório de fim de ano, avalia que diante da derrota o casal Kirchner montou uma estratégia para a recuperação da força política. “Rapidamente reagrupou forças e abriu um conflito com os meios de comunicação, enviando ao Congresso a nova Lei de Meios. Em seguida, reabriu o conflito com o campo, ao vetar a resolução que suspendia a cobrança das retenciones (impostos sobre exportação de grãos) para áreas atingidas por enchentes.

Formalizou o conflito com o setor industrial e abriu nova briga com a Igreja.” Esse é o estilo do ex-presidente: governar pelo confronto. A estratégia não funcionou. A presidente Cristina Kirchner, que em dezembro de 2007 tinha 58% de popularidade, chegou a setembro do ano passado com 23%.

Para piorar a situação política, o Congresso eleito há sete meses ainda não começou as sessões. A antiga legislatura ficou até o fim de 2009, e só agora neste começo de ano se instalará o novo Congresso, em que o governo perdeu a maioria.

Aproveitando-se dessa distorção criada pela manobra de antecipação das eleições, o governo mandou ao Congresso, onde ainda tinha maioria, a lei contra a imprensa, e conseguiu sua aprovação. Em seguida, conseguiu a renovação de um decreto que dá ao executivo superpoderes. Agora, aproveita-se do recesso parlamentar e ataca o princípio constitucional da independência do Banco Central.

Pela Constituição, o chefe do Executivo não pode demitir o presidente do Banco Central, só o Congresso poderia fazê-lo, mas está em recesso.

Foi por isso que o vicepresidente, Julio Cobos, inimigo declarado da presidente, convocou para segundafeira uma reunião de líderes de bancada para articular a instalação de uma comissão bicameral que vai analisar o decreto da presidente.

Na Argentina, o vicepresidente da República é presidente do Senado, isso deu a Cobos uma possibilidade de agir, que ele vai usar.

A Argentina entrou em velocidade relâmpago numa crise institucional de grandes proporções. Não que isso seja novidade no governo Kirchner. Eles buscam crises a cada momento que estão em desvantagem política. Foi assim que eles abriram o conflito com o campo, quando determinaram a pesada taxação sobre a exportação de grãos.

Além de distúrbios de rua em Buenos Aires, eles colheram um previsível resultado econômico.

— Quando as retenciones foram anunciadas, a safra de 2008 já havia sido plantada, e o país quase não sentiu o efeito no ano passado.

Mas em 2010 vai sentir.

O país deve importar trigo e carne este ano — conta Roberto Troster, economista da Câmara de Comércio Brasil-Argentina.

O país cresceu 6,8% em 2008 e o número final do PIB de 2009 deve ser uma queda de 2,7%, isso agravou a situação fiscal e elevou o desemprego.

Com a crise, o risco-país subiu 25 pontos, chegando a 681 pontos, e ontem, pelo segundo dia, o Banco Central teve que atuar para evitar a disparada do dólar. Da inflação ninguém tem certeza porque a intervenção do governo no Indec quebrou a confiança no índice oficial. As previsões são de que a taxa deve ficar entre 15% e 25%.

Toda essa crise institucional parece coisa velha. O peronismo é movimento político da primeira metade do século passado. O governo briga com os credores, adota confisco nas exportações de grãos e manipula índices de inflação, como nos anos 1980. A Argentina perdeu o trem para o século XXI e continua brigando na estação.

oglobo.com.br/miriamleitao • e-mail: miriamleitao@oglobo.com.br

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