terça-feira, agosto 04, 2009

ARNALDO JABOR

O mundo dos desejos programados

O GLOBO - 04/08/09

"Tudo bem. Pode ser que eu seja um terrorista, mas eu me sinto um benfeitor da humanidade. Não, não...eu não sou benfeitor de porra nenhuma, sou apenas um defeito que sobrou - hoje, neste ano da graça de 2089.

Estou dentro do Pavilhão dos Homens Bons -que eu observo aqui do meu canto. De vez em quando, eles entoam um choro meloso, evocando paz e harmonia, mas que soa como um uivo doce, um cantochão que lembra as sirenes que circulavam em Nova York, no século 21. Eles são brancos como lagartas, olhos tristes, uma santidade gelada na boca. Eu também sou um "homem bom", um "HB", mas comecei a mudar quando vi com mais clareza o que ninguém vê.

Tudo começou no século 21, com o primeiro homem clonado. Sob os protestos, os cientistas diziam: "E´ para o bem da ciência, o bem da medicina!" Papo furado, pois o que estava por baixo mesmo era a grana, o intento de igualar todo mundo num só consumidor ideal.

No século 21, a única resistência a ciência sem limites foi de Osama Bin Laden, o Maomé II , o precursor que tentou interromper essa marcha para um futuro de apavorante progresso. O Ocidente balançou com a queda das torres gêmeas em 2001, mas a fome do capital reorganizou tudo, os membros mutilados cresceram de volta, uma chuva de "hambúrgueres" pacificou o Islã e se reconstruiu a utopia mercantil. Dali para frente, a ciência redobrou seus esforços e cada gene foi decifrado, cada forma de morte foi catalogada e saneada. Começamos a viver muitos anos, (eu estou com 107, mas com corpinho de 60), o que gerou problemas previdenciários, resolvidos depois por extermínios periódicos.

Mas, o grande mercado da Ciência não se deteve. Não bastava a perfeição dos corpos "clonados".

Era inconcebível que, com tanto progresso, o Ocidente ficasse ainda à mercê de neuroses, de angustias improdutivas que em nada contribuíam para o bom funcionamento do mercado do entretenimento e prazer das massas.

Ai surgiu a grande idéia: começaram a programar geneticamente os desejos.

Nas combinações da "dupla hélice" do DNA, pulsões e instintos foram identificados e reprogramados: genes da paixão, genes do tesão, ciúme, inveja, todas as partículas elementares da mente. Os imprevistos do corpo e da alma passaram a ser controlados para o bom funcionamento social.

Em vez do jogo de "tentativa e erro" para adivinhar o gosto do público, veio a idéia genial: inverter tudo, catalogar os desejos de consumo e felicidade, de modo a livrar o mercado dos irritantes sobressaltos da liberdade.

Era mais prático para a industria e comercio mudar o freguês em vez do produto.

Foi nesta época, por volta de 2086, que percebi que eu era diferente de todos a minha volta. O mundo ficou de uma clareza insuportável. Eu andava pelas ruas de New York e observava com espanto crescente as "legiões desejantes" que passavam. A todos os anseios a industria do desejo tinha de atender. Havia os pelotões clonados dos "Amantes Felizes", por exemplo, beijando-se incessantemente de olhos brilhantes e bocas úmidas numa intolerável ausência de tédio ou cansaço.

Havia também os grupos adeptos do orgasmo total, herdeiros da utopia de William Reich (velho psicólogo esquecido), todos desfilando com seios, vaginas e pênis recriados para desempenho perfeito, arfando e se mordendo com gritos de tesão, correndo para os "motéis do povo". Eu via também as violentas legiões de neo- punks (para usar um nome antigo), legiões de sádicos e psicopatas liberados arrebentando caras e narizes de seus parceiros antitéticos, seus opostos, os Masoquistas Tolerantes , nostálgicos de humilhações e porradas. Eu via multidões das "Madames Prostitutas", felizes, tomando chá elegantemente, esperando os esquadrões de PFs, ("Professional Fuckers") que as violavam em brutais relações selvagens.

Havia também os "AA"s ("Artistas Artificiais"), trabalhando com os olhos faiscantes de talento programado, para abastecer o mercado com "best sellers" comandados por editores: "Este é o ano do realismo; agora a volta ao lirismo; agora, pornografia sangrenta; agora, nostalgia, esperança".

Tudo parecia harmônico e organizado, mas, reparei com espanto que, depois da passagem de cada legião, restava um silêncio aterrador e os grupos se paralisavam como bonecos sem engonço, robôs sem corda, animais domesticados para a dor e o riso, vermes inúteis sob as estrelas.

Aos poucos, meu terror foi aumentando. Fui descobrindo que a imensa dor, a infelicidade que me dilacerava o peito não tinha sido programada por ninguém era real, essa coisa remota. Eu estava só na cidade. Eu era um defeito de fabrica. Entendi que tinha uma missão: eu seria o anjo da morte, um herói em busca da "imperfeição salvadora" a única salvação para a humanidade.

E iniciei minha destruição criadora, minha guerra solitária em busca do passado real. Disfarçado de "andróide sádico" não causei suspeita alguma quando explodi o Mega Gene Center; depois, os "Spas" dos "Amantes Eternos", em seguida os "Motéis do Orgasmo Absoluto".

E hoje, depois de muitas vitórias, já vou mais longe. Carrego em minha maleta um detrito do passado, uma velha bomba atômica que dormiu por mais de cem anos no fundo do rancor de minha família. E ninguém sabe que, sob meu manto, guardo o retrato de meu antepassado e inspirador, Osama, o profeta.

A cidade vai desaparecer sob uma nuvem luminosa. Eu vou morrer também, feliz em meu martírio, pois sou o guerreiro do acaso, sou o santo que vai restituir a duvida, o vazio, o medo. Eu sou o alivio da insuportável perfeição. Sou o Salvador, mas ninguém sabe. Sou maravilhosamente ilógico. Nos tempos que correm, ninguém imagina que eu possa existir".

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