segunda-feira, abril 20, 2020

A afirmação de que vidas fazem a economia e não o contrário é conversa para Disneylândia - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 20/04

Estamos chegando perto de onde a curva da relação entre a vida e a economia se confundirão

A oposição humanismo versus utilitarismo é pura retórica barata, mas é boa para a polarização política. Humanista, no sentido que se usa nesta epidemia, é valorizar a vida acima de tudo. Como cada morte é um absoluto, a ideia do valor absoluto da vida é inquestionável.

Mas, quando um oportunista diz isso, ele paralisa seu raciocínio. Utilitarista, também no senso comum da epidemia, é o desumano que pensa na economia e não reconhece o valor absoluto da vida. Errado: o utilitarismo não é desumano.

A realidade não cabe nessa oposição. Quer um exemplo didático? O próprio confinamento (considerado pelo senso comum como humanista) visa diminuir o gargalo do sistema de saúde e reduzir a contaminação do corpo médico, não só porque o corpo médico (todo o pessoal do hospital) é feito de gente, mas porque a destruição do corpo médico implica maior risco do sistema de saúde, que, por sua vez, se for destruído, matará mais gente. Este raciocínio, para qualquer pessoa treinada em ética utilitária, é cristalino.

A afirmação “vidas fazem a economia e não o contrário” é conversa para Disneylândia, retórica barata de marqueteiro querendo seguidores; adultos sabem que vida e economia estão intrinsecamente relacionadas. Vida não é um conceito abstrato. E economia não é só mercado financeiro. Estamos chegando perto de onde essa “curva” (curva está na moda) da relação entre a vida e a economia se confundirão.

Aqui no Brasil isso tem nome: pobres vão morrer e bonitinhos vão sair do pânico e se esquecer da epidemia.

Infelizmente, por culpa do nosso presidente, caímos numa armadilha que armou o discurso humanista marqueteiro que dissocia a vida de suas condições concretas. Muita gente vive querendo dar provas de pureza anti-bolsonarista e faz parecer que só existe a defesa absoluta e eterna do confinamento ou a
delinquência presidencial.

Não. O grande debate utilitário (definição abaixo) e humanista no mundo agora é quando e como sair do confinamento. Quem negar esse fato, o faz por má-fé ou por ignorância.

Não se trata, pura e simplesmente, de suspender o confinamento e correr para o shopping, mas, como resolver o problema da imunidade do rebanho (única forma a mão de combate a epidemia) e da economia, que sustenta todas as vidas, se ficarmos trancados em casa com medo por meses, criando uma reserva de futuros não imunizados.

Imunidade de rebanho é quando a maioria já ficou imune ao vírus e isso só acontece quando entramos em
“relação” com ele e a maioria esmagadora sobrevive.

Se você acha que ser humanista é “defender a vida acima de tudo” e dorme bem com essa definição empobrecida, eu pergunto a você: tá valendo bater em gente para mandar essa gente para casa na porrada? Não preciso ser um discípulo de Foucault ou Agamben pra ver aí um ato de violência biopolítica, que reduz a pessoa a condição de vida nua, que implica por sua vez em vê-la apenas como transmissora do vírus. Ela não é mais gente, é um corpo científico que traz o vírus para a sociedade. O paradoxo do humanismo barato aparece aí na sua farsa.

Infelizmente, o marketing político está jogando com o termo humanista como se ele fosse um atestado de responsabilidade pública. Não é.

Contrariamente ao que afirmam os oportunistas, o utilitarismo é humanista, no sentido filosófico do termo: acreditar na capacidade racional do homem de tomar decisões que reduzam o sofrimento das pessoas. A fronteira entre humanismo e utilitarismo é menor do que parece.

E, por último, uma pequena nota de alerta. Há um outro comportamento se espalhando que é indecente. Supostos “cientistas” que afirmam que ficaremos em confinamento por um ou dois anos como conclusão falsamente científica cometem uma indecência. Projeções sem dados suficientes, que é o caso, não valem nada em epidemiologia, mesmo com o carimbo de grifes acadêmicas.

O “terrorismo pseudocientífico” deve ser visto com cuidado. É puro marketing pessoal ou institucional: o pânico dá dinheiro. Esse ato de terrorismo psicológico não deve encontrar eco na mídia profissional.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Ato de Bolsonaro constrange generais - CAROLINA BAHIA

ZERO HORA - RS - 20/04


Jair Bolsonaro passou da negação ao desrespeito. No final de semana em que o coronavírus levou ao colapso o sistema de saúde de Manaus e pressiona outras regiões, o presidente da República participou de ato a favor da intervenção militar, fez da caçamba de um carro palanque improvisado e não falou uma palavra de conforto aos familiares das 2.462 vítimas fatais ou aos milhares de profissionais da saúde que colocam suas vidas em risco para combater os efeitos da Covid-19.

Aliados do presidente argumentarão que ele está preocupado com os empregos perdidos. Se essa fosse a real motivação, ele estaria em contato com governadores e prefeitos, desenhando com a nova equipe do Ministério da Saúde uma forma de transição segura.

Quando Bolsonaro afirma que tem o foco nas vidas, é uma frase vazia. Nos atos cotidianos, ele revela que está mais preocupado é com a própria popularidade. Caso contrário, não promoveria cenas insólitas, como sair para comprar um picolé na Praça dos Três Poderes ou estimular aglomeração no Setor Militar, em Brasília, onde ocorreu a manifestação.

Aliás, o ato de ataques às bases democráticas provocou constrangimento entre os generais. Quem conhece bem as Forças Armadas reconhece que usar o Quartel General do Exército como pano de fundo para defender a volta do AI-5 ou fechamento do STF provoca constrangimento à cúpula militar.

— É um escândalo. Ele ofendeu o Exército brasileiro e os nossos valores — disse um general à coluna.

Sentido-se ameaçado, Bolsonaro resolveu partir para a briga de rua - coisa que entende bem. Os inimigos da vez são os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, além do STF. Atos covardes contra jornalistas ocorreram em Porto Alegre.

O presidente do Brasil fala para a sua bolha, enquanto o mundo inteiro se dedica a enfrentar a maior crise. À coluna, o ministro Marco Aurélio Mello resumiu o domingo de horrores:

— Não sei onde o capitão está com a cabeça.

Mais testes
O ministro da Saúde, Nelson Teich, vai encontrar já em andamento um programa para a ampliação dos testes para detectar a Covid-19, criado pela equipe do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta.

Nesta segunda-feira (20) será lançado um pregão para a compra de 12 milhões de testes rápidos, que se somarão aos 10 milhões doados pela Vale do Rio Doce e por um pool de bancos. Além disso, a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) adquiriu 10 milhões de testes moleculares. Objetivo é testar 15% da população brasileira.

Linha direta
O secretário da Atenção Primária, Erno Harzheim, está em contato direto com fornecedores dos kits para testes na China, assegurando as vendas para o Brasil. Por meio do TeleSUS, o Ministério da Saúde está ligando para as pessoas acima de 60 anos e de grupos de risco, que estão sendo questionadas sobre sintomas gripais. Dependendo da situação, eles receberão SMS com autorização para a realização do teste.

Uso de dados de celular na Covid-19 - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 20/04

Existem três modelos; no utilizado no Brasil, o foco é na árvore, e não na floresta

A crise da Covid-19 suscitou um importante debate sobre o uso de dados de celular no seu combate. Há pelo menos três modelos que vêm sendo adotados nesse sentido: a) uso de dados de localização agregados e anonimizados; b) monitoramento individual da circulação de cada indivíduo; e c) monitoramento e exposição em mídias sociais de todas as pessoas infectadas.

O uso de dados de localização agregados e anonimizados é o adotado pelo governo do estado de São Paulo e o que havia sido anunciado pelo governo federal em 27 de março, mas acabou sendo cancelado recentemente.

A aplicação desse modelo é a criação de um índice de distanciamento social, com o objetivo de medir o percentual de pessoas de uma cidade, bairro ou região que estão em casa ou sem se deslocar. O produto é a geração de mapas de calor (heatmaps) que mostram as áreas com mais movimentos (em vermelho, por exemplo) e as áreas com menor movimento (em amarelo, por exemplo).

Nesse modelo, os dados são anonimizados e agregados. Não há necessidade de compartilhar o deslocamento individual, mas apenas o índice geral de deslocamentos na região. O foco é na árvore, e não na floresta.

Pela lei geral de proteção de dados aprovada no Brasil, dados anonimizados não são considerados dados pessoais, já que não são capazes de identificar um indivíduo. Sua utilização é permitida.

É claro que a anonimização deve ser bem-feita. A lei exige um padrão mínimo para isso. É considerado anonimizado o dado que "não pode ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento".

Já o modelo de monitoramento individual da circulação de cada indivíduo usa, sim, dados pessoais. Nesse caso, acompanha-se o deslocamento de cada pessoa e com quem ela se encontra. É o chamado "contact tracing" (rastreamento de contatos).

O resultado do modelo não é um mapa de calor. É, sim, uma rede detalhada listando cada pessoa e com quem ela se encontrou, bem como as pessoas com quem ela se encontrou, e assim por diante. Se alguém cruzar com uma pessoa infectada, toda a rede de pessoas que tiveram contato com ela é colocada em quarentena.

Esse modelo foi adotado pela Coreia do Sul. Sua aplicação só faz sentido se for conjugada com a aplicação massiva de testes de detecção da Covid-19. Isso porque é preciso monitorar não só as pessoas que já estão com sintomas mas também as assintomáticas, que são o principal vetor de transmissão.

O projeto do Google com a Apple anunciado recentemente para combater a Covid-19 usa um modelo similar a esse de "contact tracing", só que sem identificar cada pessoa.

Países como Singapura levaram esse modelo ao extremo. Fizeram a mesma coisa que a Coreia, só que também adotaram a estratégia de publicar o nome de todas as pessoas testadas positivas com Covid-19.

Essa estratégia mais agressiva depois foi repensada e considerada exagerada e com eficácia adicional duvidosa.

Até agora, o Brasil só usou o primeiro modelo, de dados agregados e anonimizados. Outros modelos vão depender da evolução da doença no país e, especialmente, da visão do novo ministro da Saúde sobre a questão dos dados.

READER
Já era: dificuldade de realizar deepfakes

Já é: deepfakes na política

Já vem: deepfakes em tempo real em lives e videoconferências

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Tudo esquisito num mundo em confinamento - SÉRGIO AUGUSTO

O Estado de S.Paulo - 20/04

Ministros que citam Platão, filósofos de esquerda negacionistas, o que resta ainda para nos surpreender?



Um ministro do Boçalnistão que cita Platão no meio de uma coletiva, religiosos inseguros questionando a Teodiceia de Leibniz, youtuber recomendando a resiliência moral e espiritual dos estoicos, um filósofo italiano de ideias sólidas dando a impressão (mas só a impressão) de concordar com os negacionistas da pandemia. E como se toda essa filosofância não bastasse, eis que o ‘enfant terrible’ esloveno Slavoj Zizek, entusiasmado com o surto de solidariedade humana deflagrado pela pandemia mundo afora e a concomitante desmoralização do ultraliberalismo econômico, reapareceu para celebrar o surgimento de um espírito comunitário há muito perdido e, num arremate hiperbólico bem ao seu feitio, antecipar a aurora socialista. O que mais falta acontecer? Filosófica e sanitariamente falando, a internação manicomial do Rasputin do boçalnarismo, Aiatolavo de Carvalho. Na ala dos horoscopistas.

Também me aturdi com a alusão do ex-ministro Mandetta ao Mito da Caverna. Como esperar que um integrante do governo mais agressivamente ignorante e obscurantista da história do Brasil, ademais ministro da Saúde, não da Cultura, tirasse do bolso do jaleco a República de Platão enquanto conversava com a imprensa?

Desde o início entendi a alusão como uma indireta para embaraçar o presidente apedeuta, que até então só devia conhecer do filósofo grego o conceito de “amor platônico”. E no entanto, ele, o “Mito da Caserna”, metáfora sem paternidade filosófica definida, deveria saber, empiricamente, do que trata a alegoria da caverna de Platão, pois nela parece ter vivido desde que nasceu, a confundir as sombras que a fogueira projeta nas paredes com o mundo real.

Surpreendeu-me a ressalva de Mandetta de que leu sobre o Mito da Caverna diversas vezes, desde os 14 anos, e até hoje não o entendeu direito. A alegoria é simples, translúcida, de fácil compreensão. O personagem de Jean-Louis Trintignant explicou-a, didaticamente e sem muitas palavras, numa cena de O Conformista, filme antifascista de Bernardo Bertolucci visualmente marcado por sombras cavernosas, o que, aliás, já motivou pelo menos um ensaio a respeito: Shadows Philosophy: Plato’s Cave and Cinema, de Nathan Andersen, editado pela Routledge seis anos atrás.

Infinitamente mais embaraçoso seria se o ministro tivesse feito uma alusão, por exemplo, às mônadas do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) ou ao ápeiron do pré-socrático Anaximandro (circa 610 a.C.). Aos ouvidos do presidente, não tenham dúvida, ápeiron (elemento invisível que teria dado origem ao universo) soaria como mais uma panaceia a ser testada no combate ao covid-19, uma nova cloroquina, no caso, de procedência grega, que ele, suspeito, adotaria instantaneamente, na esperança de logo pôr fim ao confinamento e enxotar a população de volta ao batente.

Por falar em Leibniz, se Mandetta até hoje não captou por inteiro a alegoria platônica, por que haveríamos de entender o sentido e alcance da Teodiceia? Sei o que Teodiceia significa e finjo entendê-la além da rama. Sempre me lembro dela diante de um flagelo de grandes proporções e da clássica cobrança de Epicuro: se Deus é onipotente e generoso, por que permite que o mal triunfe e guerras e outras desgraças sacrifiquem tantas vidas inocentes? Esta indagação me parece ociosa se feita por um ateu ou um agnóstico, pois estes duvidam ou descreem da existência do Altíssimo e seus divinos poderes, ou por um crente, que jamais há de pôr em dúvida a suprema bondade e o indisputável senso de justiça do Santo Pai.

O mencionado filósofo italiano que de início deu a impressão de fechar com os negacionistas é Giorgio Agamben. Sumidade em análises estéticas e biopolíticas e pertinaz estudioso do “estado de exceção”, bem assistido de traduções no Brasil, Agamben ateou fogo no arraial ao criticar, em três textos publicados na Itália, as medidas excepcionais impostas pelo combate à pandemia, segundo ele, perigosamente desproporcionais, já que para a maioria dos infectados o covid-19 será apenas uma gripe mais forte.

Agamben, que a três dias de completar 78 anos pertence a um dos grupos de risco, não é contra as emergenciais, e em princípio transitórias, medidas de isolamento e distanciamento social em si, apenas questiona sua abrangência e os eventuais perigos decorrentes da quarentena e demais limitações draconianamente impostas a todos nós pelas autoridades. Danos sobretudo psicológicos e políticos.

O prolífico pensador romano não é contra os protocolos sanitários vigentes, apenas receia que redundem em aparato de opressão e sirvam para ampliar a dominação do Estado sobre nossos corpos e nossas mentes, reduzindo nossa liberdade, com o abalizado respaldo da medicina. A China, realça ele, já está normalizando algumas de suas medidas de emergência, com interesses que vão além da proteção à saúde pública. Agamben contesta os imperativos biopolíticos de valorização da vida acima de tudo. Sim, outras demandas fundamentais a vida nos oferece ou impõe, mas a sobrevivência biológica é condição sine qua non para o cultivo dos valores sociais privilegiados pelo filósofo. Os mortos não têm escolha.

O vazio americano - MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA DE SP - 20/04

EUA deixaram de jogar o jogo do multilateralismo, e China se aproveitou

Donald Trump acerta ao criticar a atuação da Organização Mundial de Saúde.

Os seus dirigentes gaguejam na hora de abordar a responsabilidade da China pelo atraso na notificação da pandemia ou na comunicação fantasista do número de infectados e vítimas.

Mas o presidente americano omite um detalhe: ele é o principal responsável pela instrumentalização da OMS.

Por uma combinação de incompetência e ideologia, o seu governo deixou de jogar o jogo do multilateralismo. E a China ocupou o vazio.

Em 2017, quando os europeus tentaram dar um novo rumo à OMS, dirigida por representantes da China havia quase uma década, Pequim aproveitou a apatia de Washington para eleger um novo aliado,
o etíope Tedros Adhanom.

Antes de a pandemia explodir, o diretor-geral atuava como comercial da “rota da seda da saúde”, uma tentativa chinesa de dominar a saúde global. Enquanto isso, a administração Trump ordenava cortes no orçamento do sistema das Nações Unidas.

A decisão americana de abandonar o financiamento da OMS deve, portanto, ser recebida com uma ponta de ironia. Se é verdade que Washington pagava as contas, quem mandava na máquina eram os chineses.

O que é suposto ser uma demonstração de força vinda de Donald Trump é, na realidade, a constatação de sua incompetência.

A relação dos Estados Unidos com China aparece como uma das dinâmicas mais contraintuitivas da era Trump.

A escalada retórica e a guerra comercial davam a impressão de que ele era o primeiro presidente americano a peitar os chineses.

É o avesso: ele foi o grande facilitador da troca de guarda na comunidade internacional.

A capitulação dos Estados Unidos também compromete a reação das organizações multilaterais à crise econômica global.

Sob as ordens de Trump, o secretário do Tesouro americano vetou o plano de aumento de liquidez desenhado pelo FMI para ser destinado aos mercados emergentes.

A justificativa é cruel: Venezuela, Irã e outros que aparecem como vilões devem sofrer sozinhos.

Com uma liderança tão mesquinha, a repetição do histórico G20 de Londres, quando Barack Obama, Lula e Gordon Brown articularam o pacote crucial do FMI em 2008, não passa de uma miragem.

Falar de novo século chinês ainda é premeditado. Uma das poucas certezas de um possível governo Joseph Biden, o recém-designado candidato democrata nas presidenciais, será o regresso em força
da diplomacia americana.

O democrata instaria potências médias como o Brasil a deixar de loucuras e retomar o seu papel histórico nos fóruns globais.

O momento atual deve servir de aviso para a esquerda “Guerra Fria”, que insiste em ver no declínio americano o prenúncio de um mundo mais justo.

​Até agora, a diplomacia da pandemia tem se resumido à criação de realidades epidemiológicas alternativas, à promoção de soluções autoritárias, e à venda no atacado de máscaras e respiradores.

Já deu tempo de sobra para sentir saudades do bom e velho calhambeque do multilateralismo, dirigido pelos Estados Unidos.

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Bolsonaro, comorbidade brasileira - CELSO ROCHA DE BARROS

FOLHA DE SP - 20/04

Nova onda de ataques ao Congresso e ao STF cria pesadelo institucional

Nas últimas semanas esta coluna defendeu a estratégia de isolar Bolsonaro até o final da crise.

O presidente da República sabotava abertamente o esforço dos governadores contra a epidemia. Não havia tempo para impeachment. Um Bolsonaro que ao menos não atrapalhasse parecia ser o melhor cenário possível. Um dia nos perguntaremos como foi que isso virou o melhor cenário possível e quem bloqueou os outros cenários.

Quando, 15 dias atrás, Bolsonaro foi impedido de demitir o então ministro da Saúde Henrique Mandetta, pareceu que a estratégia daria certo. E talvez ela tenha nos garantido semanas importantes, em que o combate dos governadores pode ter feito diferença.

Mas parou de dar certo, ou está dando bem menos certo. Nem tanto pela substituição do ministro —ainda não estão claras as posições de Nelson Teich— mas pelo desastre que é ter Bolsonaro e seu ódio à ciência de volta à conversa em uma hora dessas.

Mandetta foi demitido porque os militares no governo o abandonaram. Os generais haviam sido decisivos para que não fosse demitido 15 dias antes. Diz-se que a mudança de posição dos militares se deu pela entrevista do agora ex-ministro ao Fantástico, que teria caracterizado "quebra de hierarquia".

O argumento é ridículo. A hierarquia foi quebrada porque o topo da hierarquia enlouqueceu.

Em tempos normais, a entrevista de Mandetta talvez justificasse a demissão. Mas não são tempos normais.

Estamos na pior crise do milênio, e o presidente do Brasil é internacionalmente reconhecido como o pior gestor da crise entre os líderes dos grandes países.

Nós só não somos piada mundo afora porque ninguém acha que o que vai acontecer no Brasil vai ser engraçado.

Se há tempo para nos preocuparmos com a honra ferida de Jair Bolsonaro, certamente deveria haver tempo para discutirmos seus inúmeros e bem documentados crimes de responsabilidade.

Se a oposição aceita não propor impeachment durante a crise, é intolerável que o governo aceite perder tempo com presidente sabotando ministro.

Bolsonaro, como sempre, interpretou a concessão como sinal de fraqueza do adversário e redobrou o ataque.

Poderia ter reagido à queda de Mandetta com sobriedade e aproveitado a vitória. Em vez disso, imediatamente lançou uma nova onda de acusações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, criando um cenário de pesadelo de crise institucional durante a pandemia.

É o pior presidente do mundo. É o pior presidente da história. E não conseguimos contê-lo a tempo de salvar as vidas dos brasileiros.

Mesmo se o novo ministro for competente, vai levar tempo para tomar pé da situação. Mesmo se uma nova acomodação com Congresso e Supremo Tribunal Federal for negociada, não vai ser em dois dias. E essas semanas que perderemos são exatamente as que, no início do processo, prevíamos que seriam as piores.

O que é possível fazer nesse quadro?

A pandemia sempre seria difícil para um país pobre como o Brasil, mas muitas forças se mostraram dispostas a combatê-la: governadores, parlamentares, ministros do Supremo Tribunal Federal, imprensa profissional, associações comunitárias, universidades e centros de pesquisa.

Nosso sistema imunológico institucional tinha chances razoáveis, e ainda está na briga. Mas enquanto enfrentarmos a comorbidade do bolsonarismo, o otimismo é difícil.

Celso Rocha de Barros
Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

O socorro a Estados e municípios - CLAUDIO ADILSON GONÇALEZ

ESTADÃO - 20/04

Não há como negar a necessidade de aportes extraordinários da União para esses entes federativos


É inegável que o distanciamento social para reduzir a velocidade de contaminação pelo novo coronavírus e evitar o colapso do sistema de saúde provocará quedas expressivas na arrecadação dos Estados e municípios, provavelmente em maior intensidade do que ocorrerá com o governo federal. Os principais tributos que financiam esses entes federativos – a saber, ICMS e ISS – são ligados diretamente à atividade econômica.

Os orçamentos dos Estados e municípios foram elaborados com base em projeções de crescimento real da economia entre 2% e 3%, o que, somado à inflação estimada (em torno de 3,5%), tenderia a propiciar elevação, em média, de aproximadamente 6% da arrecadação em relação a 2019. Com base nessas expectativas foram desenhadas as políticas públicas e orçadas as despesas para o corrente ano. Assim, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 149/19, aprovado na Câmara, que determina a recomposição, pelo governo federal, da queda nominal da arrecadação dos próximos seis meses, em relação ao observado no mesmo período do ano passado, não elimina a necessidade de os governos estaduais e municipais realizarem cortes em suas despesas.

Estados e municípios não têm fonte de financiamento além de suas próprias receitas e das transferências constitucionais. Não podem, como a União, lançar mão de endividamento ou emissão monetária. Além da frustração de receita, terão de arcar com o aumento dos custos na área de saúde, em decorrência do avanço da epidemia. Assim, não há como negar a necessidade de aportes extraordinários da União para Estados e municípios, não só na fase mais aguda de evolução do surto epidêmico, que de acordo com o Ministério da Saúde deve ocorrer entre maio e junho, como nos demais meses do ano, dado que a saída do isolamento social e a recuperação do crescimento econômico tendem a ser bem graduais. Nesse sentido, o PLP tem inegável mérito, ao reconhecer a necessidade de amparo da União aos demais entes federativos, em montante mais ajustado ao tamanho da crise do que o que tem sido proposto pelo Ministério da Economia.

Mas há uma crítica pertinente quanto à forma como o projeto foi concebido na Câmara. Ao oferecer esse seguro contra queda de arrecadação, o projeto poderia criar um incentivo perverso aos entes federativos, desestimulando-os não só de tentar maximizar sua arrecadação tributária, como também de promover cortes e racionalizações em suas despesas, de modo a financiar os gastos extras com o controle da epidemia e outras ações na área de saúde. Isso é o que os economistas chamam de risco moral ou, em inglês, moral hazard. Concordo em parte com essa crítica, mas creio que a solução é mais simples do que alguns colegas economistas e técnicos do Ministério da Economia vêm alardeando.

Digo que concordo só em parte porque, como foi dito no início deste artigo, ainda que os Estados e municípios tenham suas receitas recompostas no mesmo nível nominal de 2019, serão forçados a realizar políticas de austeridade fiscal, uma vez que suas despesas foram orçadas com base nos cenários de arrecadação de antes da crise.

E para eliminar de vez o moral hazard decorrente do PLP, a solução é utilizar o mesmo procedimento adotado pelas companhias de seguros, que consiste na coparticipação do segurado nos custos do sinistro. É o que todo proprietário de veículo conhece pelo nome de franquia. A proposta aqui é simples: ao invés de cobrir 100% da eventual queda nominal da receita, a União garantiria a recomposição da maior parte, mas não do total dessa perda. Minha sugestão é que se adote o porcentual de 90% de reposição. Essa parte não recomposta, somada à frustração de receita já mencionada, garante expressiva coparticipação do ente federativo nos custos da crise, não havendo mais que falar em incentivo perverso.

ECONOMISTA E DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA

Eu me lembro - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 20/04

Os muitos tipos de confinamento de que o cinema já tratou


Um jovem poeta desiludido tem a ideia de se isolar do mundo numa loja de departamentos —aquelas tipo Sears, que ocupavam um prédio inteiro e vendiam de tudo. O plano do rapaz é entrar, esperar que ela feche e passar a viver lá, escondendo-se durante o dia. Faz isso e, para sua surpresa, descobre que outros já tiveram essa ideia e formam uma pequena comunidade oculta. É um conto de 1940 do escritor inglês John Collier (1901-1980), “Evening Primrose”. Stephen Sondheim fez dele um musical em 1966, de que saiu a canção “I remember”.

E de que, depois de algum tempo, eles se lembram? Do céu, chuva, vento, ruas, árvores, folhas, dias —dos dias, que eram diferentes uns dos outros. É como muitos de nós estamos nos sentindo.

Mas eu me lembro também dos muitos tipos de confinamento de que o cinema tratou, desde o de uma cela de prisão, em “O Homem de Alcatraz” (1962), de John Frankenheimer, até o do túnel que se escava para fugir, no francês “A Um Passo da Liberdade” (1960), de Jacques Becker. Do confinamento espontâneo e doentio de “Repulsa ao Sexo” (1965), de Roman Polanski, ao imposto por um desabamento, em “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), de Billy Wilder, e ao infligido por alguém a uma vítima indefesa, como o de “O Colecionador” (1965), de William Wyler.

Lembro-me também de confinamentos coletivos, como o de “O Anjo Exterminador” (1962), de Luís Buñuel, em que grades imaginárias prendem um grupo que se destroça, e o de “A Comilança” (1973), de Marco Ferreri, em que amigos se prendem para comer até morrer. Sem falar no pior dos confinamentos, o de ser enterrado vivo, como em “Obsessão Macabra” (1962), de Roger Corman, baseado em Edgar Allan Poe.

No conto de John Collier, ninguém pode fugir da loja, para não denunciar os outros. Os que tentam são mortos, embalsamados e transformados em manequins da própria loja. Brrr? Calma, é só ficção.

Catherine Deneuve em 'Repulsa ao Sexo' (1965) - Divulgação

Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Depois do vírus, Kant ou Hobbes? - DEMÉTRIO MAGNOLI

O GLOBO - 20/04

China triunfou sobre os EUA no teste da pandemia


Volta à normalidade? A ideia sedutora do tempo circular, do retorno ao ponto de partida, não ajuda a decifrar a paisagem pós-pandemia.

Os analistas que apostam numa ordem global mais kantiana — isto é, mais integrada e cooperativa — erram tanto sobre a partida quanto sobre a chegada. Os pratos da balança inclinaram-se ao nacionalismo antes da pandemia e suas consequências acelerarão o curso do fechamento. Na “Foreign Policy” de 20 de março, Stephen Walt opinou que a pandemia “reforçará o Estado e o nacionalismo”, provocará um “retrocesso na globalização” e “criará um mundo menos aberto, menos próspero e menos livre”. Hobbes, não Kant.

Henry Kissinger, em artigo recente, chamou os EUA a rememorar os motivos que o levaram a erguer a arquitetura de cooperação internacional do pós-guerra. A suspensão do financiamento americano da OMS evidencia que Trump escolheu o caminho oposto.

O G7 só produziu palavras vazias. Os EUA isolaram-se na sua crise sanitária interna, que revelou ao planeta o despreparo governamental e os assombrosos níveis de exclusão social da superpotência. Na mesma “Foreign Policy”, Kori Schake prevê que os EUA “não mais serão vistos como líder internacional” pois “falhou no teste da liderança”. Como resultado do fracasso americano, a China ganhou a guerra da Covid, apesar do ocultamento inicial da epidemia e da fabricação de estatísticas altamente suspeitas.

No pós-guerra, o rival era a URSS, uma potência fechada no casulo geopolítico e econômico do bloco socialista. O rival de hoje, a China, pelo contrário, é uma potência conectada às redes da globalização. O triunfo chinês sobre os EUA no teste da pandemia não só amplia sua influência internacional como delineia uma aura de eficiência em torno de seu modelo autoritário de capitalismo de Estado. O conceito nacionalista de Trump sai fortalecido da emergência mundial. Mas, ironicamente, a vitória doutrinária é de Pirro: representa uma derrota estratégica para os EUA.

“Nosso maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial”, disse Angela Merkel, referindo-se tanto à Alemanha como à União Europeia (UE). A UE desapareceu na hora em que o tsunami do vírus atingiu a Itália e, diante do dilema do resgate econômico, repetiu a cisão Norte/Sul verificada uma década atrás, na crise do euro. A Espanha clamou por um “novo Plano Marshall”, intra-europeu, baseado na mutualização das dívidas emergenciais, e ganhou os apoios da França e da Itália. A Alemanha resistiu, uma vez mais, à emissão de títulos europeus (eurobonds), secundada por Holanda e Áustria. O bloco caminha sobre gelo fino.

A emergência sanitária devasta as economias europeias enquanto se desenrola a conclusão do Brexit — e sob as nuvens escuras da erosão da aliança transatlântica. Sem a parceria com os EUA, explicou Kissinger anos atrás, a Europa ficaria à mercê da China, reduzindo-se a mero apêndice da Eurásia. Merkel referiu-se a esse argumento quando, em janeiro, admitiu que, “como europeus, precisamos refletir agudamente sobre nossa posição no mundo”. Agora, diante da pandemia, a Alemanha deve encarar o que o espanhol Pedro Sánchez definiu como uma “encruzilhada crítica” na qual se decidirá a sobrevivência da UE.

“Um mundo menos aberto, menos próspero”. O Japão ensaia um programa de “repatriação” em massa de suas multinacionais estabelecidas na China, por meio de bilionários subsídios governamentais. Nos EUA e na Europa, dirigentes de corporações globais reavaliam os riscos embutidos nas extensas cadeias de suprimentos que conectam o Oriente ao Ocidente. O espectro de novas pandemias e o precedente das quarentenas alteram os cálculos econômicos de custos, gerando uma tendência à reaglomeração das cadeias produtivas.

Simultaneamente, os EUA invocam esquecidas leis de guerra para compelir a GM a fabricar respiradores hospitalares, e os países europeus alargam o conceito de ativos nacionais sensíveis para incluir a produção de equipamentos médicos, remédios e vacinas. Hobbes: a estratégia, razão do poder, impõe-se ao lucro, razão do capital. Chegamos à era da “desglobalização”?

Viver na incerteza - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 20/04

O que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar

Simone de Beauvoir escreveu no célebre livro “O segundo sexo” que era difícil se sentir uma princesa, em tempos de menstruação, com um incômodo pano entre as pernas.

É difícil se sentir o rei da cocada preta fechado em casa, com um medo de uma invisível partícula proteica que mata as pessoas e devasta a economia planetária. Sobretudo, é difícil sentir-se dono de grandes certezas, num mundo em que a normalidade foi para o espaço.

Edgard Morin merece admiração por isso. É quase centenário, e seu pensamento ao longo dos anos evoluiu para enfatizar a complexidade e a incerteza.

Apesar de ter escrito muitas vezes sobre segurança biológica e ter detectado o impacto desse vírus nos seus primórdios, confesso que, como quase todos os outros, o subestimei.

Ao sair de Fernando de Noronha, em 16 de março, ainda tinha esperanças de seguir viajando pelo Brasil, na presunção de que o vírus não chegaria aos lugares onde vou.

De fato, tenho tido contato permanente com pontos remotos do Brasil e, à exceção de Fernando de Noronha e grandes cidades, o vírus ainda não chegou lá.

Esqueci-me das estradas, dos postos de gasolina, dos restaurantes e hotéis no caminho, dos perigosos aeroportos e aviões. E esqueci que estava bem próximo dos 80 anos.

Interessante nesse mundo de grandes incertezas como as pequenas certezas nos mobilizam. As redes estão cheias de conselhos sobre o que ler, como se exercitar, rezar, o que comer, a que filmes assistir, como organizar toda a rotina.

Essa enxurrada de conselhos às vezes confunde. Por isso, achei engraçado um áudio que caiu na rede. Era de um homem que lamentava com a amiga: todos dizem que tenho de lavar as mãos, lavar as mãos, não se esqueça de lavar as mãos, mas eu queria também tomar um banho, será que pode?

Da mesma forma, achei interessante o desabafo de uma jovem diante de um certo otimismo exagerado, do gênero “o coronavírus veio para melhorar nossos sentimentos, aumentar a solidariedade, mudar o mundo”.

O vírus veio para nos destruir e devastar a economia. Essa é a verdade inicial. Ele não é revolucionário. Tudo vai depender de nossas escolhas daqui para a frente.

Sem dúvida, bons sentimentos afloraram, milhares de profissionais de saúde arriscam suas vidas pelas nossas, mas houve também quem tentasse aplicar golpe nas pessoas que precisam dos R$ 600 emergenciais, gente que hostilizou enfermeiros em transporte público, países que confiscam carregamento de máscaras ou especulam com o preço de equipamentos médicos.

O mundo continua um espaço onde bem e mal coexistem, assim como a grandeza e a miséria dos seres humanos não desapareceram com o vírus.

Certamente, ficaremos materialmente mais pobres, com movimentos mais limitados e sempre sujeitos a um novo recolhimento forçado, enquanto não aparecer uma vacina.

Certamente, sairemos mais humildes e não pronunciaremos o termo civilização com arrogância. Mas o que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar às novas situações, e encontrar uma centelha de felicidade mesmo nos lugares e momentos mais difíceis.

Às vezes, à noite, depois de uma torrente de notícias pesadas, acordo sobressaltado, qualquer tosse noturna traz sempre a pergunta: será ele, o vírus, será essa a hora?

Tomei todas as precauções. Se ele entrou pelo vão da porta, se veio navegando pelo suave vento que entra pela janela, o que fazer?

Nessas horas, respira-se fundo e se reafirma o compromisso com a vida. No mais é como dizem nos países hispânicos: que vengan los toros, let it be, na linguagem dos 60.

Assim como as viagens, segundo o poeta, nos lembram que estamos sós ao nascer, o vírus pelo menos tem a utilidade de nos lembrar que somos mortais. Com ou sem ele, temos de usar bem esse tesouro: o tempo que nos resta.

Não quero adicionar mais uma avalanche de conselhos que nos soterra desde o início da crise.

Mas já parou para sentir como é bom respirar?

Primitivo na condução do país, Bolsonaro estabeleceu a paranoia como diretriz - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 20/04

Presidente age como estivesse em um ringue contra supostos inimigos em rounds imaginários


“Chega da velha política”, disse Jair Bolsonaro na caçamba de uma caminhonete a um grupelho aglomerado em um ato anti-isolamento e pró-intervenção militar.

A frase partiu do presidente que nos últimos dias acenou ao centrão, bloco dos partidos apetitosos por cargos e verbas federais.

“É agora o povo no poder. Todos têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”, ele afirmou neste domingo (19).
O presidente Jair Bolsonaro na caçamba de uma caminhonete - Pedro Ladeira/Folhapress

Um sinal da vontade das ruas está no mais recente Datafolha. Segundo a pesquisa, 79% dos brasileiros defendem punição a quem viole as regras de cumprimento da quarentena no combate ao coronavírus.

Por duas vezes no fim de semana, Bolsonaro, do grupo da faixa etária de risco, saiu sem máscara, aglomerou pessoas desprotegidas e discursou e tossiu cercado de seguranças.

O povo citado pelo presidente é o mesmo que, além de votar nele em 2018, escolheu também os 513 deputados e dois terços dos senadores.

Portanto tão legítima quanto a eleição à Presidência foi a votação para a composição do Congresso.

O mesmo Congresso que, por meio do Senado, sabatina e aprova os indicados pelo Executivo para o STF.

Os três Poderes atuam em harmonia, com freios e contrapesos. Ou Bolsonaro não compreende ou, propositalmente, tenta bagunçar o tabuleiro da mesma forma que faz na relação com os governadores.

Ele age como estivesse em um ringue contra supostos inimigos que se revezam em rounds imaginários.

Quando um sai de cena, outro é escalado para o embate. Foi assim com Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, logo após a demissão de Luiz Henrique Mandetta (Saúde).

Há quem aposte que, devido às capacidades limitadas do chefe da República, essa não é uma tática de poder elaborada pelo presidente.

A pandemia do coronavírus, no entanto, reforça a tese de que, sim, Bolsonaro, um sujeito primitivo na condução do país, estabeleceu a paranoia como uma diretriz de governo. E assim será até o fim dele.

Leandro Colon
Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.

Bolsonaro ultrapassa limites e desafia o estado de direito - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 20/04

Contrário ao isolamento social, presidente vai a manifestação em que é defendido golpe militar


O presidente Bolsonaro tem feito jus à biografia de um político radical que construiu a carreira na bancada do baixo clero na Câmara sem nunca ter se preocupado em se distanciar do lado mais escuro da ditadura militar. Eleito legitimamente presidente da República, Jair Bolsonaro tem sido coerente com seu passado e, à medida que se sente legalmente tolhido a praticar um enfrentamento sem base científica da epidemia da Covid-19, radicaliza, tendo chegado a um ponto perigoso ontem, ao participar de manifestação em Brasília em que se pregou golpe militar.

Bolsonaro foi além do desrespeito a indicações dos especialistas para se evitar a propagação do vírus, o que tem feito com sistemática há semanas, contra a posição do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e agora do seu substituto, Nelson Teich, que acertadamente tenta montar um sistema de aferição da evolução da epidemia, para que sejam tomadas decisões bem fundamentadas, e não como deseja Bolsonaro, preocupado apenas com seu futuro político, e não com a saúde da população. Aboletado numa caminhonete, o presidente fez um pronunciamento no estilo do populismo mais tosco: “(...)vocês estão aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil (...). Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder (...) Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro (...)”. Este discurso, na boca de um presidente, representa uma agressão ao estado democrático de direito.

Ainda em Brasília, Bolsonaro, de volta ao Planalto, subiu a rampa e do alto apontou para a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), no outro lado da Praça dos Três Poderes, enquanto lamentava que a Corte tenha decidido que estados e municípios podem baixar medidas que considerem necessárias para conter a marcha do Sars-CoV-2 — “Tem prefeitos aí que cometeram barbaridades”. Entenda-se por “barbaridades” decretar fechamento de comércio, de praias, sempre com a preocupação correta de impedir aglomerações e, assim, conter a propagação do vírus.

A radicalização do discurso de Bolsonaro é acompanhada pela mobilização de milícias virtuais no ataque a alvos do presidente, entre eles, o deputado Rodrigo Maia, que preside a Câmara e atua, junto com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para o Legislativo aprovar medidas necessárias à compensação dos efeitos da grande recessão que está às portas na economia e no campo social.

Bolsonaro demonstra conviver mal com os freios e contrapesos de uma democracia representativa. Desde o início do seu governo ele já teve várias oportunidades de aprender que Legislativo e Judiciário existem para atuar ao lado do Executivo de forma harmônica, mas que existem barreiras institucionais para conter um poder que tente se sobrepor aos outros. Caso do Executivo com ele na Presidência. E terá de ser sempre assim.

Presidentes que não governam - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 20/04

O drama humanitário e econômico do coronavírus mostra a falta de líderes à altura da crise


Diante do drama humanitário e econômico causado pelo novo coronavírus, tem sido frequente a constatação de que faltam líderes no cenário mundial à altura da crise. Uma das raras exceções é a Alemanha, em que até políticos da oposição têm reconhecido o privilégio de poder contar, em momento tão delicado, com a liderança da chanceler Angela Merkel.

O caso brasileiro é de outra ordem. Não se trata de lamentar a ausência de lideranças magnânimas e altruístas. Aqui, o problema é básico. Desde 2003 o País tem assistido a uma sucessão de presidentes que, eleitos para governar, não governam, preferindo fazer do mandato uma contínua campanha eleitoral, seja para sua reeleição, seja para a eleição de seu sucessor.

A exceção foi o presidente Michel Temer, que buscou de fato governar, sem submeter o interesse público a questões eleitorais. No entanto, o interregno durou pouco. Tão logo assumiu o cargo, o presidente Jair Bolsonaro mostrou, sem maiores pudores, que reinstalaria a prática petista de não descer do palanque.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi exímio manobrista da cadeira presidencial para fins eleitoreiros. Nos oito anos em que esteve no Palácio do Planalto, Lula orientou toda a ação do governo, em seus mais variados âmbitos, em benefício da empreitada eleitoral do PT.

São abundantes, nos dois mandatos de Lula, os exemplos de captura do Estado para fins partidários. Ainda que contasse com o apoio da maioria do Congresso, Lula não realizou nenhuma reforma estruturante, receoso de que eventual aprovação poderia trazer riscos para sua reeleição ou para a eleição de seu sucessor. Com esse critério eleitoral a guiar o governo, Lula também não fez nenhuma ação que contrariasse, por exemplo, os interesses das corporações do funcionalismo. Os privilégios foram mantidos intactos. Além disso, valeu-se amplamente de nomeações nas estatais, agências reguladoras e cargos comissionados para o aparelhamento do Estado.

Candidata inventada a partir dessa lógica eleitoreira, a presidente Dilma Rousseff, uma vez no cargo, deu continuidade ao estilo petista de não governar. Sem enfrentar os problemas nacionais, ela optou por medidas populistas, em cópia piorada do voluntarismo de seu criador.

Quando começaram a aparecer os efeitos nefastos de sua política econômica, Dilma Rousseff temeu por sua reeleição e, em vez de fazer as devidas correções, fez o diabo para esconder a realidade dos olhos da população. Colocava em prática, assim, sua famosa frase, dita em 2013, de que “nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição”. Reelegeu-se em 2014, mas pouco depois o País inteiro tomou conhecimento não apenas do tamanho da crise, mas da gravidade de suas pedaladas fiscais, o que lhe rendeu o devido processo de impeachment.

Durante a campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro prometeu romper com a lógica eleitoreira. Disse até que pretendia “fazer uma excelente reforma política, acabando com o instituto da reeleição, que começa comigo, caso seja eleito”. Tudo isso foi logo esquecido. Desde o início do ano passado, Jair Bolsonaro imita à risca a estratégia de Lula de não governar, estando em contínua campanha eleitoral. Além de aprofundar a divisão do País – há sempre um inimigo a inventar, até mesmo dentro do próprio Ministério –, Bolsonaro esquiva-se de tudo o que possa representar algum risco eleitoral, como é o caso da reforma administrativa.

Prometida várias vezes, até agora a proposta do Executivo não saiu do forno. Além disso, o presidente comporta-se no pior estilo da propaganda eleitoral, falsificando a realidade. “Nosso time está ganhando de goleada”, disse Bolsonaro, em coletiva no mês passado para tratar da pandemia do novo coronavírus. Maior alheamento, impossível.

Como escreveu Rosângela Bittar no Estado, “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas”. Que o eleitor, nas próximas eleições, não se esqueça dessa irresponsabilidade e indiferença em relação ao País. É preciso eleger quem queira de fato governar.

Os poderes do BC - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 20/04

Órgão deve usar com parcimônia autorização para comprar papéis; juros podem cair


Em meio ao combate à pandemia do novo coronavírus, o Banco Central está prestes a ganhar novos e controversos poderes, por meio da proposta de emenda constitucional que estabelece normas orçamentárias e financeiras especiais para o período de calamidade.

Recém-aprovada com alterações pelo Senado e enviada de volta à Câmara dos Deputados, a chamada PEC do Orçamento de Guerra estabelece, entre outras inovações, que o BC poderá comprar em mercado títulos públicos e algumas categorias de papéis privados —para assegurar que a intermediação de crédito continue funcionando.

Ao longo de março, observou-se em diversos países a interrupção generalizada de financiamentos, bloqueando uma veia essencial para a dinâmica da economia, em consequência das medidas restritivas impostas pelos governos para o combate à disseminação do vírus.

Mesmo empresas de alta qualidade tiveram interrompido seu acesso ao mercado. Nesse contexto, os principais bancos centrais do mundo passaram a intervir para evitar o colapso financeiro e danos permanentes ao emprego e à renda.

Após levar seus juros a zero, o americano Federal Reserve reativou os mecanismos de atuação utilizados na crise de 2008.

O Brasil não está inovando nesse aspecto, portanto. Ainda assim, as prerrogativas a serem concedidas ao BC suscitam polêmica, sobretudo a possibilidade de compra de papéis privados, que cria brecha para favorecimentos indevidos.

O Senado, corretamente, restringiu o rol de papéis elegíveis e exigiu transparência diária nas eventuais transações, além de restringir a distribuição de dividendos no setor financeiro até dezembro.

Qualquer ação nessa frente deve primar pela parcimônia, mesmo porque o BC ainda dispõe de amplo espaço para utilizar seus meios tradicionais. Num regime de metas para a inflação, como o brasileiro, o instrumento principal é a taxa de juros, que ainda permanece em 3,75% ao ano.

Com a dívida pública em rápido crescimento devido às medidas de combate à crise e à queda da arrecadação, cortes adicionais da taxa Selic não deixam de carregar riscos. Mesmo assim, entende-se que a autoridade monetária deveria avançar mais nessa área.

O critério principal a seguir é a expectativa de inflação, que está em queda por causa da recessão esperada e permanece abaixo das metas até 2021. Assim, apesar das incertezas, há espaço para juros mais baixos. Fundamental agora é reduzir no que for possível o custo de capital para empresas e famílias.