quinta-feira, julho 16, 2020

Desastre anunciado - WILLIAM WAACK

O Estado de S.Paulo - 16/07

O quadro eleitoral americano parece confirmar as previsões para nossa política externa


Profissional de carreira que é, pode-se assumir que o embaixador brasileiro em Washington já cultive contatos com os democratas que provavelmente vão assumir junto com Joe Biden. Talvez áreas do governo como Economia, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, além das pastas militares, possam ajudá-lo. O pessoal da área internacional “pura” do atual governo só tem os números da turma ligada a Trump.

Se as eleições fossem hoje Trump estaria fora, e as relações do Brasil com Washington em precária situação. A opção preferencial pela pessoa do Trump feita por Jair Bolsonaro configura-se um desastre de proporções inéditas na história da nossa política externa. Não há exemplo de “alinhamento automático” tão mal conduzido. Mesmo na Guerra Fria o regime militar brasileiro levou nossos negócios em relação aos EUA de forma mais autônoma.

Cristalizaram-se nos últimos dias dois dilemas geopolíticos que se tornaram ainda piores devido ao apego de Planalto a Trump. O primeiro é o fato de que Joe Biden, o candidato democrata que hoje derrotaria Trump apresentou um ambicioso programa de recuperação econômica dos Estados Unidos baseado na “economia verde”, o que inclui a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris (que o Brasil, macaqueando Trump, maltratou).

Procura jogar a ainda maior economia do mundo numa larga avenida de investimento em energias renováveis, novas tecnologias e provavelmente exercendo ainda maior pressão política e comercial sobre o Brasil e suas políticas ambientais. Biden não vai conseguir fazer o relógio voltar para trás, mas promete retomar muito do “multilateralismo” (“globalismo”, como preferem dizer os bolsonaristas) e restituir parte da importância de agências que Trump fez questão de tentar destruir, como as da ONU (em alguns casos, com implícita colaboração brasileira).

A outra questão geopolítica é a participação da gigante de telecomunicações chinesa Huawei na infraestrutura brasileira do 5G, uma decisão que se aproxima para legisladores e governantes brasileiros, e que já causa notável angústia. O ministro Paulo Guedes resumiu há pouco o problema: “o ideal seria deixar a competição progredir, americanos contra chineses, mas surgiu essa questão geopolítica”. Trata-se da cobrança para o Brasil seguir o mesmo caminho que o Reino Unido, que foi banir a gigante chinesa de telecomunicações.

O 5G vai colocar também a cúpula militar brasileira contra a parede. Nossos militares no momento celebram, e com razão, um entendimento com os americanos que promete aplainar o acesso a tecnologias de ponta na área de defesa. Mas os sinais vindos de Washington são inequívocos: parcerias estratégicas no campo de defesa vão depender do comportamento do Brasil em relação ao uso de tecnologia e equipamentos chineses.

Conter a China é um consenso entre republicanos e democratas nos EUA, com a diferença do mau humor em relação ao Brasil que se pressupõe inicialmente de uma administração democrata – que ainda por cima tem boas chances de conquistar nas urnas em novembro também o Senado. Boa parte do nosso governo acredita que a China precisa comer e não vai retaliar o Brasil, um de seus principais fornecedores de commodities agrícolas. É uma perigosa zona de conforto mental. A China tem condições de nos causar muita dor.

Na figura do general Hamilton Mourão, vice presidente e coordenador das políticas para a Amazônia, o governo brasileiro admitiu no Senado esta semana que a guerra das narrativas está perdida para nós, que o Brasil está na defensiva, e que precisa apresentar resultados ao mundo para “sair das cordas” (Mourão). O que deixa Bolsonaro diante de um problemão formidável de política externa pelo qual só pode culpar a si mesmo.

Fogo na Amazônia e o governo deixa queimar CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 16/07

Não há um plano integrado de desenvolvimento para a Amazônia e é muito pouco apenas aumentar o monitoramento, como quer Mourão


Não dá ainda para admitir que o governo Bolsonaro mudou sua postura diante do alastramento das queimadas na Amazônia.

O que há é o reconhecimento tardio e flácido do descontrole sobre o que se passa por lá. O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, coordenador de um organismo inoperante chamado Conselho da Amazônia, reconhece que “nossos mecanismos de monitoramento são péssimos”, mas não diz como nem sob que condições nem com que objetivo é preciso passar do péssimo para algo aceitável.

Em todo caso, essa é uma postura diferente porque até agora o governo se limitava a repelir as denúncias internacionais que condenavam a destruição por não passarem, como vem afirmando o presidente Bolsonaro, de tentativas de atropelar a soberania nacional na região ou de justificar práticas de chantagem destinadas a solapar as exportações brasileiras de produtos agropecuários.

Pelo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia teve 20% a mais de focos de queimada em junho deste ano em relação ao mesmo período de 2019 (veja o gráfico). A devastação beneficia grupos que se apropriam do patrimônio nacional e que quase nada acrescentam à renda dos brasileiros.

Depois de ter repelido o quanto pôde as denúncias dos especialistas brasileiros e das autoridades internacionais, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, agora afirma que é preciso “ouvir as críticas” que vêm do exterior, como se não as conhecesse ou como se entendesse que bastará fingir que as ouve para fazê-las cessar.

Até agora, a única política ativa do governo Bolsonaro para a Amazônia se limitou a mobilizar o corpo diplomático para responder às críticas que provêm de todos os quadrantes e, assim, reduzir o desgaste da imagem do País. O resto é deixar rolar e deixar queimar.

A destruição da Amazônia começou a prejudicar os investimentos estrangeiros no Brasil. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, vêm advertindo que a omissão do governo não está apenas corroendo a imagem do País lá fora, mas também cancelando exportações e bloqueando projetos de desenvolvimento por aqui. Também por isso, a aprovação do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia corre sério risco de não se confirmar. O presidente da França, Emmanuel Macron, acaba de manifestar sua oposição à assinatura do acordo.

O pleito do “desmate zero”, como está no manifesto dos ex-ministros da Economia e dos ex-presidentes do Banco Central, deve ser visto como a definição de um ponto de partida. Mas até mesmo para isso é preciso saber o que queremos e para onde queremos ir.

Nos últimos 50 anos, as políticas de governo para a Amazônia se limitaram a objetivos de defesa e de ocupação das áreas fronteiriças, como definidos pelo Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) e pelo projeto da Calha Norte.

Planos de desenvolvimento da região foram insuficientes ou tiveram graves desvios de finalidade. A Sudam, o sistema de incentivos para investimentos, por exemplo, se transformou em foco de corrupção e em cemitério de iniciativas inviáveis. A Zona Franca de Manaus, que hoje oferece pouco mais de 60 mil empregos diretos e indiretos, carrega o vício original de dar prioridade a investimentos em indústrias, muitas delas artificiais, e de desdenhar de polos mais promissores de desenvolvimento, como o turismo e o aproveitamento racional e sustentável de minérios e demais recursos naturais. Hoje, Manaus é uma cidade em degradação acelerada, como vem denunciando com dor no coração um dos seus mais lúcidos filhos, o escritor Milton Hatoum.

Não há um plano integrado de desenvolvimento para a Amazônia. E, sem saber o que fazer, é muito pouco apenas aumentar o monitoramento, como quer o general Mourão.

Mudanças do vento - ZEINA LATIF

O Estado de S. Paulo - 16/07

Haverá o recrudescimento da atual tendência nacionalista ou uma mudança de rumo?



Como será a ordem econômica mundial no pós-pandemia: haverá o recrudescimento da atual tendência nacionalista ou uma mudança de rumo? Há razões para acreditar no segundo cenário. Afinal, como diz Delfim Netto, “a história é escrita por acidentes”. Acidentes causam inflexões.

A crise global de 2008, fruto de erros de governantes, trouxe muito descontentamento social e despertou sentimentos nacionalistas e antidemocráticos, alimentando políticos de perfil populista.

Nos EUA, como aponta Luigi Zingales, a bronca veio dos que se sentiram deixados para trás, penalizados por desemprego e execução de hipotecas, em meio à visão de que o mercado financeiro, o causador da crise, saíra ileso. Não foi diferente na Europa.

O descontentamento se espalhou entre os países emergentes com maior fragilidade interna, conforme a perda de ímpeto do comércio mundial e o fim do ciclo de commodities reduziram seu ritmo de crescimento. O maior símbolo foi a Primavera Árabe.

Não se pode negar a influência do quadro internacional no Brasil, mas a insatisfação e o apelo ao populismo foram muito mais frutos de nossos erros – a corrupção e a política econômica que causaram a recessão passada.

A crise de 2008 aumentou nos países desenvolvidos o sentimento contra a globalização, apesar do seu impulso a ganhos de produtividade e crescimento mundial. A desigualdade, em trajetória ascendente mesmo antes da crise, por conta da perda de empregos em favor de pares nos países emergentes, se agravou. E da pior forma: a queda da renda dos mais pobres.

Foram os emergentes que mais ganharam com a globalização, principalmente pelo forte crescimento do comércio mundial após a entrada da China na OMC em 2001. A redução da pobreza e o surgimento da nova classe média não foram exclusividades do Brasil.

Alguns acreditam que a pandemia irá exacerbar a antiglobalização, pela busca dos países em reduzir a dependência externa de produtos estratégicos. Algo preocupante, inclusive para a geopolítica, pois o comércio mundial promove a cooperação entre as nações.

No entanto, poderá haver correção de rumo. A falha de populistas em lidar com a pandemia, em contraposição ao sucesso de lideranças liberal-democráticas, poderá enfraquecer a pauta antiglobalização.

Nesse contexto, as eleições nos EUA ganham maior importância. Mesmo sendo a guerra comercial China-EUA um assunto de Estado, e não de governo, a saída de Trump poderá facilitar as negociações. Mais importante, uma postura mais agregadora do próximo presidente poderá ajudar na composição de países avançados com vistas a conter excessos da China.

Não sem razão esses países são críticos à OMC, pois foi dado à China o acesso a mercados do Ocidente, sem cobrar medidas para proteger a propriedade intelectual, fortalecer o estado de direito e dar tratamento equivalente a empresas estrangeiras em seu território.

Uma maior coalizão dos países, incluindo emergentes que desejam a globalização, irá significar um saudável contraponto à China, que expande sua influência.

Enquanto isso, Xi Jinping, a 7 anos no poder, enfrenta questionamentos por conta da forma omissa com que lidou com a pandemia. Desgastado, o líder chinês poderá enfrentar dificuldades para um terceiro mandato em 2022, ainda que a economia se recupere rapidamente.

Os EUA terão oportunidade de retomar a ordem mundial liberal, mas promovendo o compromisso com políticas sociais. Os benefícios do liberalismo precisam ser melhor compartilhados com a sociedade.

Novos ventos poderão trazer uma maior integração de parceiros comerciais tradicionais, afastando o cenário de isolamento e conflito entre as grandes nações.

No Brasil, a captura desses (possíveis) ventos dependerá do surgimento de lideranças políticas de perfil liberal-democrático com capacidade de competir em 2022. Até lá, teremos de lidar com o isolamento político do País na arena mundial e as crescentes pressões externas diante das falhas em lidar com a saúde e o meio ambiente.

Mundo mais complexo, mas não inexoravelmente pior.

Consultora e doutora em economia pela USP