segunda-feira, julho 08, 2013

Doutora Juliana - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


Há médicos e médicos. Uns trabalham todos os dias para salvar a vida de outras pessoas. Sabem que, ao final, vão perder, mas voltam ao combate após. cada derrota. Convivem diariamente com a morte e, em muitos casos, derramam lágrimas amargas, em algum lugar onde não possam ser vistos, quando um cliente se vai. Essa é a cruz que carregam em sua vida. É. também, a sua honra. Outros têm o mesmo diploma, mas não são a mesma coisa. Suas relações com os pacientes mantêm-se impessoais e, como acontece em tantas outras profissões, seu objetivo prioritário é ganhar dinheiro. Praticam atos duvidosos de autopromoção e dedicam boa pane de seus esforços a atividades de relações públicas. Para alguns, o grande sonho profissional é aparecer na Ilha de Caras e ter atrizes da Globo ou "celebridades na lista de clientes.

Não há nada de útil que valha a pena dizer a respeito desses últimos. Mas há muito que pensar sobre os primeiros, os médicos de verdade, quando o povo vai para a rua gritar que não suporta mais. entre tantas outras barbaridades, os crimes diários que são cometidos pelo governo nos serviços públicos de saúde. Os marqueteiros do Palácio do Planalto não fizeram nenhuma pesquisa para saber quantos deles, nestes dias de revolta, estão fervendo com a mesma indignação que foi para a praça pública; acham que é uma "catarse emocional". Mas o fato é que dezenas de milhares de médicos em todo o Brasil estão fartos de aguentar calados a prodigiosa incompetência, a mentira em massa e a vadiagem dos responsáveis pela saúde pública brasileira — além de uma ladroagem sem fim na qual se roubam verbas, ambulâncias, sangue e tudo o mais que pode ser rapado pelos amigos do PT e da "base aliada"". O leitor é convidado, aqui, a ouvir uma dessas vozes. É puro TNT. Vamos ver, então, o que a presidente Dilma acha dessa ""catarse", ou se quer propor um "plebiscito" à doutora Juliana Mynssen da Fonseca Cardoso, cirurgiã-geral no Hospital Estadual Azevedo Lima. no Rio de Janeiro. E ela a autora do relato abaixo, publicado na internet com o seguinte título: "O dia em que a "presidenta" Dilma em 10 minutos cuspiu no rosto de 370 000 médicos brasileiros".

"Há alguns meses eu fiz um plantão em que chorei. (...) Eu, que carrego no carro o manual da equipe militar que atendia "na guerra do" Afeganistão, chorei. (...) Na frente da sala de sutura tinha um paciente idoso internado. Numa cadeira. Com o soro pendurado num prego similar aos que pregamos samambaias. Ao seu lado, seu filho. (.-*) Seu pai estava há mais de um dia na cadeira. Ia desmaiar. Tudo o que o rapaz queria era uma maca. Não um quarto, nem um leito; só uma maca. Teve um momento em que ele desmoronou. Se ajoelhou no chão, começou a chorar, olhou para mim e disse: "Não é para mim. É para o meu pai". Saí. chorei, briguei e o coloquei numa maca na ala feminina. (...) Nestes últimos dias de protestos nas ruas e nas mídias, brigamos por um país melhor. (...) Não tenho palavras para descrever o que penso da "presidenta" Dilma. (Uma figura que se proclama "presidenta"já não merece a minha atenção.) Mas hoje, por mim, por você. pelo meu paciente da cadeira, eu a ouvi. (Ela) disse que importará médicos para melhorar a saúde do Brasil... Melhorar a qualidade? Sra. "presidenta", eu sou uma médica de qualidade. (...) O médico brasileiro é de qualidade. Os seus hospitais é que não são. O seu SUS é que não tem qualidade. O seu governo é que não tem qualidade. O dia em que a sra. "presidenta* abrir uma ficha numa UPA for internada num hospital estadual, pegar um remédio numa fila do SUS e falar que isso é de qualidade, aí conversaremos. Não cuspa na minha cara. Não pise no — meu diploma. Não me culpe da sua incompetência."

E aí, presidente Dilma — gostou? E aí. ex-presidente Lula (que diz ter criado no Brasil "um dos melhores serviços de saúde do mundo", mas se trata no Sírio-Libanês de São Paulo), gostou? Se não gostaram, deveriam ter a coragem de ir para a televisão e debater esses fatos com a doutora Juliana, na frente de todo mundo. Se não toparem, passam um atestado público de covardia. Podemos esperar sentados. Dilma teve medo até de ir ao Maracanã, numa final disputada pela equipe do país que preside. Lula fugiu para a Etiópia. Nem sequer vão ler a história acima, pois não vão gostar, e tudo aquilo de que não gostam está automaticamente errado. Acham que se trata de sentimentalismo barato, ou choro de classe média alta. ou algo assim. E o leitor, em quem acredita? Em Dilma, em Lula ou na doutora Juliana?


Ascensão e queda - CARTA AO LEITOR

REVISTA VEJA

A Carta ao Leitor da edição que traz a reportagem de capa que ilustra esta página revelava que os novos milionários brasileiros tinham como ídolo o empresário Eike Batista, em quem viam com enorme admiração o fato de ele "não ter vergonha de ser rico”. VEJA refletiu essa percepção e colocou Eike na capa, em janeiro de 2012, como uma versão brasileira de Deng Xiaoping, o líder cuja pregação "Enriquecer é glorioso" foi o sinal de largada para a transformação da China em potência econômica. O legado do líder chinês, morto em 1997, ficará para sempre. Embora não deva crescer neste ano no mesmo ritmo alucinante com que vinha impulsionando quase sozinha a economia mundial, a China se consolidou como potência. Já nosso Eike Xiaoping, que sonhava acordado em ser o homem mais rico do mundo, não correspondeu às expectativas.

Uma reportagem desta edição de VEJA narra a ascensão e queda do empresário que, até há bem pouco tempo, era símbolo de empreendedorismo e baluarte de um Brasil que enriquecia rapidamente. Eike Batista se transformou no seu oposto. Com o valor de suas empresas na bolsa derretendo como picolé no asfalto, Eike tornou-se o paradigma do espertalhão que ficou rico vendendo gato por lebre. Para piorar as coisas, a derrocada de Eike acompanha a própria degradação da economia brasileira.

Uma análise mais detida mostra as razões desse triste paralelismo. Eike decolou em grande parte pela força das mãos do governo. Obteve créditos bilionários do BNDES. Foi recebido quando quis pelo então presidente Lula e por sua sucessora, Dilma Rousseff. Era um eleito do poder, um dos poucos empresários escolhidos para ser vencedores no jogo do capitalismo estatal brasileiro. A reportagem de VEJA que explica as causas do desmoronamento do império de Eike Batista revela a série de erros cometidos pelo empresário e por seu parceiro nessa aventura, o governo brasileiro.

São enganos típicos dos momentos ingratos em que os governantes ignoram as leis de mercado e imaginam que podem impunemente controlar a economia, arbitrando taxas de juros, subsidiando combustíveis, escolhendo vencedoras entre as empresas. Ambos, Eike e o governo, estão agora pagando pelos erros. O empresário perdeu a confiança do mercado. O governo, a popularidade. Tanto sofrimento poderia ter sido evitado se houvesse prevalecido em Brasília esta antiga e límpida lição: “Os governos são péssimos em escolher vencedores, mas os perdedores são ótimos em escolher governos”.

A camisa do Feliciano - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 08/07

Sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay. Difícil?


Nesses tempos sombrios de crise, somos obrigados a falar muito e por isso sempre acabamos falando demais. Precisamos de mais clareza, mas, como dizem por aí, a democracia é o regime do barulho, e no barulho o mais fácil é gritar "palavras de ordem", muito mais fácil para temperamentos que gozam em assembleias. Não é o meu caso, (in)felizmente.

No dia 29 de junho, aconteceu em São Paulo a Marcha para Jesus. Nela, o conhecido pastor e deputado Feliciano usava uma camisa na qual estava escrito "eu represento vocês".

Claro, de primeira, entendemos que ele quer dizer que representa os evangélicos que ali estavam. Não tenho tanta certeza: tenho amigos e conhecidos que são evangélicos e estão muito longe do que Feliciano diz representar. Não podemos jogar todos os evangélicos no mesmo "saco".

Mas me interessa hoje outra coisa: ele diz ser representante dos conservadores no Brasil. O conceito é complexo e pouco afeito a espíritos que gostam de falar para multidões. Mas é urgente dizer que Feliciano não representa o pensamento conservador no Brasil. Vou dar um exemplo "clichê" em seguida. Antes, vamos esclarecer uma coisa.

A tradição "liberal-conservative", como se diz comumente em inglês, se caracteriza por uma sólida literatura quase desconhecida entre nós: David Hume (sua moral), Adam Smith, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Friedrich Hayek, T.S. Eliot, Michael Oakeshott, Isaiah Berlin, Russell Kirk, Theodore Dalrymple, John Gray, Gertrude Himmelfarb, Thomas Sowell, Phyllis Schafler, Roger Scruton, entre outros.

Não é à toa que matérias como a da "Ilustrada" do domingo 30 de junho falam que a Flip (poderia ter falado de qualquer outra atividade intelectual no país) é de esquerda: quase ninguém conhece a bibliografia "liberal-conservative" entre nós, porque a esquerda mantém uma poderosa reserva de mercado na vida intelectual pública no país, inclusive tornando um inferno a vida na universidade para jovens interessados neste tipo de bibliografia.

Esta reserva de mercado intelectual e ideológica inviabiliza pesquisas e trabalhos mesmo em sala de aula. Isso faz dos jovens intelectuais interessados nessa tradição uns fantasmas invisíveis, verdadeiras almas penadas, sem corpo institucional para atuarem. Mesmos os centros financiados por bancos investem apenas na bibliografia de esquerda.

Como toda visão política, os conservadores são diferentes entre si e nem sempre convivem bem com seus pares, principalmente quando saímos do livro e vamos para política partidária. Imagine alguém de uma esquerda "islandesa" sendo obrigado a engolir Pol Pot em seu clube intelectual.

O pensamento "liberal-conservative" se caracteriza por defender a sociedade de livre mercado, a propriedade privada, a liberdade de expressão e religiosa, pluralismo moral, a democracia representativa com "corpos médios" locais atuantes, uma educação meritocrática, emancipação feminina, tributação alta para grandes heranças, desoneração da classe trabalhadora, profissionais liberais e pequenos e médios empresários, Estado mínimo necessário (inclusive porque isso diminui a corrupção), saúde eficaz para a população.

E, não esqueçamos: opção liberal quanto à vida moral, cada um faz o que quiser na vida privada contanto que respeite a lei, e esta deve levar em conta esta liberdade privada.

Simplesmente não existe opção partidária no Brasil para quem pensa dessa forma. Por exemplo, dizer que os conservadores queimam bandeiras do movimento negro é uma piada. Isso deve fazer Joaquim Nabuco tremer em seu túmulo, já que ele, conservador, foi um dos principais intelectuais e defensores da abolição da escravatura no Brasil.

E aí voltamos à camisa do Feliciano. Ele não representa os conservadores no Brasil, a começar porque é alguém que mistura religião com política.

Deixe-me esclarecer uma coisa (vou usar um tema "clichê"): sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay.

E aí, esquerda: vamos conversar? Vamos parar de se xingar e sentar numa távola redonda e discutir o Brasil?

Calma, gente - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 08/07

Católicos ortodoxos manifestaram a Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio, que são contra a presença de artistas, segundo eles, “mundanos” — Cássia Kiss, Murilo Rosa, Eriberto Leão, Toni Ramos, Ana Maria Braga... — na encenação da via-crúcis.
Já o diretor Ulysses Cruz acha que a turma “ajudará a chamar a atenção de ovelhas desgarradas, jovens alienados, vendo seus ídolos abraçando uma fé”. Eu apoio.

Todas as tribos
Paula Lavigne, empresária de Caetano e outros artistas do grupo “Procure saber”, que defende a fiscalização da gestão coletiva da música, rebate a acusação de que o movimento é excludente e elitista:
— O grupo sempre procurou conversar com pessoas de opinião diferente. Fernando Brant e Danilo Caymmi, por exemplo, estiveram na casa de Gil discutindo o tema. É claro que estamos sempre abertos.

Segue...
Ela diz que o movimento é amplo:
— Somos mais de 200 e estamos crescendo. Cabem todas as tribos, do samba ao rock, da MPB ao funk, do sertanejo ao rap.

Volta da guerra fria
Esta história do Evo Morales, cujo avião foi impedido de sobrevoar países da Europa por causa da suspeita de transportar o ex-agente americano Edward Snowden, lembra os tempos de Guerra Fria.

O avião de Fidel Castro, nas viagens entre Havana e Moscou, naquela época, fez, por vezes, uma volta ao mundo, até mesmo com escala nos Montes Urais, para evitar o espaço aéreo de alguns países “inimigos”.

No mais...
Este episódio mostra — a
exemplo do golpe militar no Egito — um retrocesso histórico. É pena.

Gois na Flip I
O escritor bósnio radicado nos EUA Aleksandar Hemon sentiu-se tapeado na festa. Trouxe chuteiras achando que no país do futebol a bola rolava todo dia.
Mas, em Paraty, não encontrou ninguém disposto a jogar uma pelada.

Gois na Flip II
Do diretor pernambucano Marcelo Gomes, de “Cinema, aspirinas e urubus”, depois de assistir às conversas de escritores na Flip:
— Isso aqui é muito mais denso, mais interessante. Perto da Flip, os festivais de cinema são um estupro.

Gois na Flip III
Míriam Leitão, a coleguinha querida, publicará seu primeiro romance em maio de 2014. “Magnífico” sairá pela Intrínseca.

Gois na Flip IV
A Flip de 2014 será em agosto por causa da Copa.
A turma sonha em levar para Paraty o jornalista Glenn Greenwald, que mora no Rio, autor do furo sobre o esquema de vigilância do governo Obama, e também Nate Silver, o blogueiro do “The New York Times”, gênio da estatística que acertou as eleições em 49 estados dos EUA. Até lá

Voz das ruas
A onda de protestos que agita o país parece influenciar a pacata Rua Soares, no Méier, Zona Norte do Rio.
Um morador, cansado de limpar os, digamos, torpedos caninos da frente de sua casa, colocou este cartaz num poste da rua (veja acima).

Tempos modernos
A “quadrilha” de São João do último ano do colégio Andrews, em Botafogo, no Rio, ontem, acabou com o padre beijando o noivo, e um grupo levantando um cartaz onde se lia: “Feliciano não nos representa!”

Aliás...
Semana passada, a frase campeã nas redes sociais foi esta: “Eu era queijo frescal. Depois do deputado Feliciano, fiquei curado.”
Faz sentido.

Carnaval 2014
A Acadêmicos do Grande Rio poderá arrecadar R$ 6.035.200, pela Lei Rouanet, para seu próximo desfile.
A tricolor, como se sabe, vai contar na Avenida a história de Maricá, RJ.

Já...
O Salgueiro, cujo enredo será “Gaia — A vida em nossas mãos”, foi autorizado a captar R$ 5.152.750.

Quem tem, tem medo
Teve um momento durante a luta em Las Vegas, em que o americano Chris Weidman venceu o nosso Anderson Silva, que Mike Tyson, na plateia, ficou de pé, empatando a visão de um brasileiro que estava atrás dele.
Mas o conterrâneo achou prudente não reclamar com o ex-pugilista. Vai que Tyson não gostasse...

Quem não cala, consente - LÚCIA GUIMARÃES

O Estado de S.Paulo - 08/07

Dois episódios, em seguida ao desastre com o avião da Asiana em São Francisco, ilustram a redefinição do cidadão privado no século 21. Um passageiro exausto, mais de 5 horas depois de conseguir pular do avião em chamas, se queixou por telefone à rádio local de São Francisco que não o deixavam ir para casa. Segundo ele, autoridades no aeroporto tinham criado um curral de sobreviventes não feridos, 123 ao todo, os afastavam da mídia e diziam que eles tinham que "ser processados", o FBI estava para chegar. O próprio governo federal americano já tinha anunciado que não havia o menor indício de terrorismo na aterrissagem catastrófica do Boeing 777 com 307 pessoas a bordo. Ninguém pode entrar num avião com destino aos Estados Unidos sem fornecer data de nascimento, telefone de contato, informações que tornam o passageiro acessível, se é que a NSA, Agência de Segurança Nacional americana, já não está se divertindo com seus e-mails e telefonemas privados.

Por que, depois de passar pelo trauma de um grande acidente aéreo, um cidadão acusado de nada, a não ser de sobreviver, tem seus movimentos cerceados com tanta naturalidade? O âncora da CNN, ao vivo, perguntou timidamente a outro passageiro para confirmar que ele não tinha mesmo direito de ir para casa. A situação, pelo que conferi mais tarde, não foi questionada. O rebanho de sobreviventes ficou à disposição das autoridades.

Zapeando entre canais, logo ouvi a outra notícia ligada ao desastre aéreo. Sheryl Sandberg, a Chefe Operacional do Facebook, anunciou em sua página da dita rede social que estava vivinha da silva. Explicou que ela e seu grupo de amigos e parentes, cujos nomes foram citados, estavam com reserva no mal fadado voo 214 da Asiana mas trocaram de companhia em cima da hora para Sandberg usar suas milhas acumuladas na United. O que estes dois episódios têm em comum? Não falo da hipocrisia de uma mulher com salário anual de US$ 600 mil e dezenas de milhões em ações de sua companhia querer a nossa simpatia por procurar desconto em passagem aérea. Qualquer um sabe que, para a esmagadora maioria de passageiros de meios modestos, milhagem hoje rima com miragem, tal os obstáculos impostos pelas companhias aéreas.

Falo de como os dois episódios ilustram dois lados de uma moeda. Um passageiro que nada fez, além de se salvar de um acidente, não pode ficar calado e ir para casa. A mais poderosa mulher num cargo de COO não quer se calar sobre um momento privado.

É neste contexto que precisamos avaliar a temporada de escândalos sobre a vigilância da vida privada, não mais restritos às atividades da NSA, já que a França, em meio à falsa indignação de Hollande, teve Le Big Brother exposto pelo jornal Le Monde.

Pare e pense onde você estava, há 20 anos. Fazendo vestibular? Trabalhando num escritório? Jantando num restaurante? Tente voltar ao seu estado mental de então e imagine que, em cada uma dessas situações, um estranho se aproxima e lhe pergunta por que você foi rejeitado por uma namorada (cujo status online acaba de dar a dica), por que você não foi convidado para o casamento de seu irmão, por que foi despedido do emprego? Há 20 anos, o rubor da súbita exposição indesejada lhe subiria ao rosto. Hoje, esta exposição é iniciada por você. Mas o uso que podem fazer dela, agora e num futuro distante, escapa ao seu controle.

Sei que o meu desconforto é geracional porque fui criada para entender que a distinção entre o público e o privado, além de um direito civil a ser protegido, faz parte da boa educação. Minha mãe teria recebido o anúncio da Sheryl Sandberg não pelo prisma do hoje arruinado verbo compartilhar, mas sim como sinal de vulgaridade.

Você pode contestar o direito de um agente do governo de lhe interrogar sobre sua viagem à China sem um mandado judicial. Mas não esqueça que já contou tudo via Facebook, Twitter e Instagram.


Uma primavera no outono? LOURDES SOLA

O ESTADO DE S. PAULO - 08/07

Os fatos são subversivos é o título de um dos últimos livros de Garton Ash, um dos mais lúcidos "historiadores do presente". "Os fatos são subversivos (...) porque subvertem os argumentos dos líderes democráticos eleitos tanto quanto dos ditadores (...) porque subvertem as mentiras, as meias-verdades e os mitos de todos aqueles de fala fácil." É à luz dessa reflexão (já citada neste espaço) que situo a irrupção de um movimento de massas apartidário, de escala nacional, cujo alcance surpreendeu a todos. Apesar da perplexidade, porém, tem sido percebido em retrospecto como "a crônica de uma revolta anunciada". Como caracterizá-lo? O que há de comum com outros movimentos similares e o que há de específico?

Uma das características surpreendentes é a força gravitacional de um movimento liderado por jovens de uma classe média diversificada, em que manifestantes das classes C e D marcharam junto aos das classes A e B. Em poucos dias, o que era uma reivindicação tópica adquiriu escala nacional, atraindo cidadãos urbanos não organizados em 360 cidades. Com isso a pauta de reivindicações ganhou em densidade, diversificou-se e converteu-se num alvo móvel. Um dos fatores de sucesso é seu caráter apartidário, graças ao uso intensivo dessa imagem como seu principal asset político.

Há fatores socioeconômicos, políticos e institucionais a registrar. Um deles é o impacto politicamente persuasivo das questões econômicas. A inflação traduz-se em erosão da confiança da sociedade no compromisso do governo com a estabilidade de preços. Há um regime - o de metas inflacionárias -, ou seja, um conjunto de normas estáveis, que foi deixando de pautar as decisões de governo. O que se reflete no fato de que o teto da meta aos poucos se converteu em piso. Nesse quadro, a explosão do custo dos alimentos e as pressões que exerce sobre o orçamento familiar da imensa maioria dos brasileiros traz à luz a distância entre intenções e resultados das políticas oficiais. Daí a relativa unanimidade em torno ao que está efetivamente em questão: a qualidade dos gastos públicos, condensada na demanda algo irônica por "escolas e hospitais padrão Fifa".

Há evidências de que a entrada das classes médias emergentes no cenário sociopolítico ocorre sob a égide da frustração, apesar dos baixos índices de desemprego. Sabem que pagam impostos, mas recorrem a sistemas privados de saúde e de ensino superior, que estão longe de oferecer os benefícios que as empresas relevantes vendem. Sabem que a carga impositiva é a maior da América Latina e entre os Brics. A valorização do transporte público é sintoma de uma dramática redução na tolerância com o modelo de crescimento inaugurado em 2006 e exacerbado depois de 2008. O que acabou por se esgotar, entenda-se, foi a eficácia dessa agenda econômica em termos político-eleitorais. Por conta de um processo cumulativo: os níveis de endividamento dos usuários do crédito fácil, concedido pelos bancos públicos, subvencionados pelo Tesouro; as evidências de que esse modelo responde aos lobbies da indústria automobilística; as redes minúsculas de metrô e o trânsito pesado nas grandes cidades. Serão esses os primeiros indícios de que as classes médias emergentes estão em via de desenvolver uma agenda pós-Lula (como sugere Elio Gaspari)? A pesquisar.

Outros fatores explicam a escala das manifestações e a recusa dos participantes a deixar-se pautar pela agenda dos partidos ditos populares. Ao contrário, é o movimento social que está pautando as respostas das elites governamentais, no Congresso e nos Executivos federal, estadual, municipal. A suspensão dos aumentos das tarifas, a derrubada da PEC 37, a proposta de tornar a corrupção crime hediondo são exemplos. Como explicar esse tipo de impacto? Minha hipótese é que ele reflete o reconhecimento implícito de uma crise de legitimação política combinada com a crise de representação. A resposta atabalhoada de extrair a fórceps uma reforma política mobilizando a sociedade via plebiscito é uma tentativa canhestra de desatar esse nó, inteiramente novo para governos que se querem populares.

O que há de comum com outros movimentos sociais similares e o que há de específico ao nosso? Todos têm caráter difuso e horizontal, ausência de uma liderança permanente, constituem maiorias que podem ser ocasionais, unidas em torno de uma ou várias causas, articulados pelas redes sociais. O que há de específico são quatro características distintivas: 1) Sua inesperada força gravitacional, su poder de arrastre, em bom castelhano; 2) desenvolve-se num marco democrático, por melhora dos gastos públicos e por uma democracia de melhor qualidade; 3) ocorre no quadro de dominância de um partido cujas imagem e tradição se ancoravam no "monopólio" de representação dos interesses populares; e 4) a julgar pelas respostas recentes das autoridades relevantes e do Congresso, cabe falar numa boa dose de responsiveness (embora canhestra) por parte das elites governamentais - uma característica ausente na Turquia e mesmo em democracias consolidadas.

Há, portanto, lugar para otimismo, pois refletem algumas das qualidades da nossa democracia. Uma delas é a multiplicidade de instituições que limitam os poderes das elites político-partidárias: a relativa autonomia do Sistema de Justiça; as instituições que produzem indicadores e prospecções tecnicamente competentes, divulgados por uma mídia razoavelmente competitiva. Em condições de abertura e de integração do País ao sistema e à sociedade globais, o Twitter e o Facebook atuam como correias de transmissão, de dupla via. Pelas quais as avaliações da mídia internacional, das agências de rating e de uma cultura política mais igualitária são filtradas e internalizadas; e, vice-versa, nossos déficits, meias-verdades e mitos são expostos globalmente.

Ficou mais difícil - LUÍS EDUARDO ASSIS

ESTADÃO - 08/07

É sempre tentador, no rastro dos ensinamentos do materialismo histórico, atribuir rupturas políticas a crises econômicas. O problema é que esse modelo se encaixa com enorme dificuldade ao que ocorre hoje no Brasil.

A economia brasileira não está em crise, a inflação não escapou do controle e não existe ameaça imediata de recessão. Nem mesmo o economista mais infausto deixa de admitir que o PIB de 2013 crescerá mais que no ano passado. A taxa de desemprego aberto (5,8% em maio) é uma das mais baixas da história e causa inveja aos países ricos. A inflação mensal acumulada nos últimos 12 meses é alta (6,5%), mas nos últimos dez anos ela superou esse patamar nada menos que 32 vezes. O saldo líquido de contratações e demissões com carteira assinada aponta a criação de 533 mil novos empregos em 2013. O custo da cesta básica em São Paulo representava 50% do valor do salário mínimo em maio, a mesma proporção registrada para a média dos últimos cinco anos. O rendimento médio real das pessoas ocupadas em 2013 ficou em R$ 1.864,44 nos primeiros quatro meses de 2013, 5,5% maior que o rendimento médio de 2010, ano de forte crescimento do produto. A inadimplência das pessoas físicas vem caindo sistematicamente depois de ter alcançado 6% dos empréstimos em maio do ano passado. Devidamente torturados, portanto, os dados recentes da conjuntura confessam que não estamos diante de um quadro agudo de crise econômica.

Isso não significa que tudo vai bem. Desde 2011 estamos vivendo uma forte reversão de expectativas. O trem continua andando para a frente, mas a velocidade se reduziu drasticamente, forçando as pessoas a reagendarem seus compromissos. Quem imaginava trocar de carro em dois anos e comprar uma casa em cinco teve que mudar de ideia. Confirmada a estimativa de crescimento do produto para este ano (que é revista para baixo todos os dias) teremos um aumento do PIB nos três primeiros anos do governo Dilma de pouco mais de 6%, contra 7,5% de crescimento no último ano da gestão Lula e 43% na primeira década deste século. É muito pouco.

Estamos quase parando. Considerando o aumento da população, a evolução do produto per capita desde 2010 está em 1,2% ao ano. A esse ritmo de caracol, demoraremos algo como 60 anos para alcançar a renda per capita atual da Grécia, país que raramente é citado como modelo no imaginário brasileiro.

Como nutrir a confiança, se temos de esperar tanto para andar tão pouco? Como sonhar? Como manter a esperança de um andarilho perdido no deserto se o prêmio é uma fanta morna, sem gás? Tudo fica mais difícil quando não existe a convicção de que o futuro será melhor amanhã. Na falta de perspectivas melhores, a percepção das conquistas recentes rapidamente se esvanece. Isso é ressaltado pelo próprio mecanismo que engendrou a ascensão social que testemunhamos nos últimos anos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento real médio do brasileiro aumentou 24,5% entre 2004 e 2011. Não está mal, para quem marcava passo há décadas. Essa melhoria, no entanto, foi bastante desigual e varia inversamente ao nível de renda. Os 10% mais pobres viram seu rendimento aumentar 69% nesse período. Mas essa taxa decresce à medida que a faixa de renda aumenta. Para os 10% mais ricos, a evolução foi de apenas 14%. Em outras palavras, para as famílias que ascenderam na escala social a velocidade de crescimento diminui, o que pode alimentar, paradoxalmente, uma frustração de expectativas. Quanto mais se avança, menor é a velocidade da mudança e menos prazeroso o sabor das novas conquistas.

Nessas condições, o raio de manobra para mudanças significativas na economia ficou ainda mais restrito, já que teremos de conviver a partir de agora com agendas e prioridades conflitantes. Tudo ficou mais difícil. Nos últimos anos, quando a conjuntura internacional nos era favorável, a política econômica evoluiu aos rodopios, em trôpegos passos miúdos. Ao som do ronco colérico das ruas e sob a influência de um quadro internacional mais adverso, manobrar com sensatez as regras econômicas exigirá engenhosidade até agora não demonstrada pela equipe econômica. Nossa vida de cigarra chegou ao fim, ao mesmo tempo que as demandas sociais se dramatizam. Descartada a doce ilusão de que o governo pode dar um salto instantâneo de eficiência, melhorar a qualidade dos serviços públicos exige mais despesas, que pressionam o déficit, que empurra a inflação, já ameaçada pela desvalorização cambial. Empenhamos o futuro em proveito de benefícios de curto prazo, mas o futuro chegou. Isto é particularmente transparente na política de preços administrados. Vivemos em um país onde um litro de gasolina é 72% mais barato que um litro de água de coco, do que resultou a depauperação da Petrobrás e de sua capacidade de investimento, sem mencionar o impacto nefasto sobre a indústria do álcool. O mesmo vício parece agora assolar a tarifa dos serviços públicos, que pode ser congelada para aplacar a fúria dos usuários insatisfeitos. Isto representa um risco adicional aos leilões das novas concessões programadas para os próximos meses. Sem concessões, os investimentos não avançam e sem eles o País pode parar, talvez andar para trás. A crise política pode se agravar se a ela for sobreposta uma crise econômica, hoje inexistente.

É tempo de recompor as forças, escolher prioridades e recuperar a credibilidade em torno de uma agenda mínima que contemple o controle da inflação e a estabilidade de regras como condições para o crescimento duradouro. Do contrário, é melhor poupar nosso pessimismo agora. Podemos precisar muito dele mais adiante.

Tamarod - FRIED­MANN­ WEND­PAP

GAZETA DO POVO - PR - 08/07

A palavra de ordem no Egito foi “rebela-te!” O movimento de rebelião pôs nas ruas mais de 20 milhões de pessoas que pediam democracia, laicidade, liberdade. Ocorre que o presidente Mursi havia sido eleito há um ano e conseguiu aprovar em referendo a nova Constituição. É verdade que apenas um terço dos eleitores compareceu às urnas e, especialmente mobilizados pela Irmandade Muçulmana, aprovaram o novo texto magno que pôs o país na linha das teocracias.

O Egito tem 80 milhões de habitantes, sendo uns 10 milhões cristãos. A convivência não era perfeita, mas havia pouca violência de fundo religioso. Com a ascensão de Mursi – que prometeu governo não sectário, mas não cumpriu – começou a destruição de igrejas e perseguição violenta a cristãos e outras minorias, muçulmanas ou não.

Se mais de 20 milhões de pessoas se manifestaram contra as restrições à liberdade decorrentes da islamização do governo, significa dizer que a causa da democracia vai além do aspecto da mera tolerância religiosa. É sinal alvissareiro de amadurecimento da percepção de que a ligação entre religião e política faz mal aos direitos fundamentais. Quando o Estado se torna adepto de uma religião, todas as leis são feitas nos moldes do credo hegemônico e o dissenso, a oposição, é considerada heresia, pecado.

A religião é modalidade de ideologia utópica, no sentido de que um modus vivendi específico é moralmente superior aos outros. Assim, em nome do paraíso vale qualquer meio para impor a ideia correta, inclusive exterminar quem pensa de modo diferente ou cultua de modo errado o deus errado. As guerras religiosas na Europa (1560 a 1648) entre católicos e protestantes mataram proporcionalmente mais gente que as duas guerras mundiais no século 20. A violência do fervor religioso é, paradoxalmente, maior que a de outras motivações.

A rebelião contra a imposição política de uma religião no Egito mantém o espírito de primavera árabe, impedindo o inverno do sectarismo, da perseguição. O maior êxodo da história ocorreu entre 1947 e 1948, quando 8 milhões de muçulmanos caminharam da Índia para o recém-criado Paquistão, enquanto uns 5 milhões de hindus fugiram para a Índia. Un roi, une loi, une foi. Modernizando a expressão: um Estado, uma lei, uma fé. Para não conviver com “impuros” vale tudo.

A Irmandade Muçulmana se mobilizou para defender Mursi. O acirramento dos ânimos é péssimo porque qualquer concessão ao diálogo parece traição. Acelera-se a espiral de agressão para mostrar aos correligionários que a causa é divina; sofrer e provocar sofrimento é purificação para merecer a bênção de Deus.

Entre nós existem grupos religiosos que fazem política em nome de Deus e políticos que pactuam até com o demônio, mas a prevalência da laicidade assegura liberdade para rebelar-se em relação a tantos outros assuntos que as democracias parecem panela de pipoca, porém não explodem como as de pressão!

A favor ou contra a derrubada do presidente Mursi? Por princípio, a resposta óbvia é ser contra. Contudo, o Egito não é simples. Os democratas tinham medo da eleição popular por causa da Irmandade Muçulmana; esta, por sua vez, deplora a democracia, mas ganhou o poder no voto. Não há resposta fácil.

Dez anos de política industrial - DAVID KUPFER

VALOR ECONÔMICO - 08/07

Há dez anos, em 25 de junho de 2003, teve lugar a reunião inaugural do Grupo Interministerial sobre a Agenda de Desenvolvimento, constituído sob o comando da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, para a elaboração da política industrial do governo Lula, então recém-empossado. A opção de abrigar o trabalho no núcleo duro da formulação da política econômica - a Câmara de Política Econômica - atesta a proeminência que se pretendeu conferir à política industrial no escopo da política econômica, pondo fim a quase uma década de ostracismo a que o fundamentalismo neoliberal a havia confinado. Não é sem sentido, portanto, definir essa data como o marco do retorno da política industrial no Brasil.
Ao longo desses dez anos foram editadas três versões da política industrial. Em março de 2004 foi lançada a "Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior" (PITCE). Seguiram-se a "Política de Desenvolvimento Produtivo" (PDP), de maio de 2008 (segundo governo Lula) e o atual "Plano Brasil Maior" (PBM), divulgado em agosto de 2011 e amplificado em abril de 2012 (governo Dilma).
Refletindo o contexto da crise cambial de 1999, a PITCE buscava enfrentar o problema da vulnerabilidade externa. Para tanto, concebeu uma política ativa de agregação de valor às exportações com base na inovação. O foco da PITCE foi direcionado para setores intensivos em tecnologia como bens de capital, semicondutores e software que poderiam transmitir ganhos de produtividade para o restante da indústria, além de abrir oportunidades para desenvolver o sistema nacional de inovação.
Sem pensar à frente de seu tempo, Brasil é sempre surpreendido por rupturas no seu diagnóstico de base
Porém, a rápida e intensa melhora dos termos de troca do comércio exterior brasileiro fez o serviço já em 2004, propiciando desde então saldos comerciais exuberantes a partir dos próprios produtos básicos e não dos produtos de maior conteúdo tecnológico projetados pela PITCE. Com isso, o fluxo de capitais externos inverteu a direção, o real apreciou-se, o PIB acelerou, enfim, houve uma verdadeira ruptura no cenário econômico que havia fornecido o diagnóstico de base da PITCE poucos anos antes. O principal legado da PITCE que, diga-se de passagem, não é pouco, ateve-se ao fortalecimento da base institucional da política industrial e tecnológica (criação do CNDI, da ABDI, Lei do Bem, Lei da Inovação, etc..).
O reconhecimento dessa transformação radical no modus operandi da economia brasileira levou à formulação da PDP sob uma nova racionalidade. Como explicitado no diagnóstico da PDP, o Brasil encontrava-se ao final de 2007 com os fundamentos macroeconômicos em ordem e recém agraciado com o grau de investimento, com implicações positivas sobre a confiança e a redução do custo de capital. Crédito, mercados de capitais, emprego e salários estavam em expansão enquanto as empresas encontravam-se capitalizadas, prontas para investir. Com o mote "inovar e investir para sustentar o crescimento", a PDP visou exatamente alavancar esse processo de investimento. Para tanto, construiu um minucioso mapa de ações abrangendo 25 setores dentre candidatos a se consolidarem como líderes mundiais, a receberem programas de fortalecimento da competitividade ou abrigarem ações de mobilização em áreas estratégicas. Contudo, a grande crise financeira internacional, que atingiu seu ápice poucos meses após o lançamento da PDP, colocou em xeque as diretrizes da política. Com isso, a PDP acabou exercendo mais um papel anticíclico - sem dúvida crucial para a saída em V da crise já em 2010 - e menos a esperada função transformadora do padrão de investimento da economia.
Elaborado sob a expectativa de que o pior da crise havia ficado para trás, o PBM centrou seus objetivos na criação de competências visando o adensamento produtivo e tecnológico das cadeias de valor. A frustração dessa expectativa aliada aos sinais cada vez mais visíveis de acirramento da concorrência internacional nos mercados interno e externo foram forçando o plano a se direcionar para a defesa do mercado doméstico e a recuperação das condições sistêmicas da competitividade, com foco mais diretamente nos fatores formadores do custo-país e menos nas ações estruturantes de seus programas setoriais.
Para os que pretendem realizar um balanço do retorno da política industrial cabe ter em mente alguns pontos. Primeiro, dez anos não são suficientes para o timing do processo de mudança estrutural que, como mostra a literatura, pode requerer períodos muito mais longos, da ordem de 25 anos. Segundo, embora mais proeminente, a política industrial permaneceu como uma linha auxiliar da política macroeconômica, não logrando encontrar um espaço próprio de atuação. Terceiro, e provavelmente mais importante, a política industrial brasileira ainda não se mostrou capaz de pensar à frente de seu tempo, sendo sempre surpreendida por rupturas no seu diagnóstico de base.
É provável que isso tenha decorrido da exacerbada volatilidade da economia mundial nesses últimos dez anos. Como economia reflexa que é, mesmo tendo superando as graves restrições de balanço de pagamentos do passado, a economia brasileira ainda reage com excessiva intensidade aos sacolejos da economia global. Porém, não se deve rejeitar a possibilidade de que o curto-prazismo que marcou os primeiros dez anos do retorno da política industrial no Brasil seja um reflexo da ausência de coesão política e social em torno de um projeto futuro de indústria no país. Essa segunda razão, se realmente válida, ajuda a entender porque a co-evolução entre instituições e políticas continua truncada no país - e não somente na política industrial. Que os próximos dez anos sejam o da superação dessa lacuna.

O custo do consumismo - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 08/07

Certa vez, um cientista argentino, em algum dos momentos em que um dos Governos autoritários da Nação vizinha pressionava para falar bem do país, disse que eu poderia subornar um poeta para escrever sobre minha longa cabeleira, mas o fato é que com isso não ganharia um único cabelo (o personagem em questão era inteiramente calvo).

A frase vem a calhar em momentos em que é preciso ser realista, quando o Governo torce pela perspectiva de termos um crescimento maior que o do ano passado e insinua que o maior crescimento do PIB esperado para este ano em relação a 2012 seria o prenúncio da recuperação do espírito reinante até 2008, antes da crise posterior do baixo crescimento - noves fora o ponto fora da curva do crescimento excepcional de 2010 nfelizmente, a realidade é mais complicada do que o discurso otimista permite supor. Para entender o processo em curso, é necessário retroagir a 1999. Naquele ano, o país fez uma das inflexões de política econômica mais importantes do pós-guerra. Em um contexto externo adverso, foi feito um ajuste expressivo, sem que a inflação escapasse ao controle, sem que a economia mergulhasse em queda livre e sem calote , nem interno nem externo. Foi um caso exemplar. Ajuste, porém, dói - e leva a popularidade dos Governos ladeira abaixo. Para entender por que Fernando Henrique era impopular em 2002, basta acompanhar a trajetória do consumo naqueles anos - e para entender por que a popularidade do Governo Lula não era uma Brastemp em 2003 e 2004, também. Em cada um dos 5 anos de 2000 a 2004, tanto o consumo total como o consumo das famílias, nas Contas Nacionais do IBGE, cresceram abaixo do PIB. Naqueles cinco anos, ocorreu uma mudança macroeconômica maiúscula: a poupança doméstica elevou-se mais de 6% do PIB e o Brasil fez um ajuste externo de quase 6% do PIB. De 2005 em diante, esse quadro sofreu uma mudança completa: a partir de então, em linhas gerais, o consumo total e o consumo das famílias cresceram a taxas superiores às do PIB, a poupança doméstica caiu e o resultado das transações correntes com o exterior deteriorou-se lenta e persistentemente, apesar dos preços internacionais exuberantes.

O que se tem dito dos gregos? Viveram anos às custas do resto do mundo , não aproveitaram o bom momento para fazer reformas e gastaram graças ao financiamento dos alemães . As diferenças entre as economias grega e brasileira são enormes, mas peço ao leitor que preste atenção nas taxas reais de crescimento anual médio das exportações e importações nas Contas Nacionais: 11,2% e 2,2%, respectivamente, nos anos de ajuste entre 1999 e 2004; e 3,4% e 11,9% nos anos da farra consumista entre 2004 e 2012. Já nos primeiros 5 anos, o crescimento anual do consumo das famílias foi de apenas 1,9% e nos 8 anos posteriores, de 5,0%. A conclusão é cristalina: os deuses sorriram para o Brasil. Preços das exportações nas nuvens e capital internacional abundante no contexto de juros externos no subsolo geraram um apetite por risco fenomenal, disposto a financiar qualquer desequilíbrio nos países emergentes para garantir melhores rendimentos que os que poderiam ser obtidos nos países centrais.

Vivemos um paradoxo. As políticas que permitiram uma expansão expressiva do consumo - no Governo atual e no anterior - explicam a popularidade de Lula e, até recentemente, da Presidente Dilma, ao mesmo tempo em que a manutenção dos rumos prevalecentes nesses anos é garantia de problemas futuros. É preciso introduzir ajustes na economia, para que o consumo cresça durante vários anos a taxas inferiores às do PIB e assim permitir ganhar espaço para uma ampliação da taxa de investimento e um aumento dos saldos exportáveis. Ajuste está longe de ser arrocho , mas implica tirar o foco do consumo como o eixo em torno do qual se estruturam as políticas governamentais. Há alguns sinais disso em 2013, quando o investimento aumentou no primeiro semestre do ano. Infelizmente, isso se dá em um contexto em que nossa competitividade péssima faz com que mais investimento gere mais déficit na conta corrente. Sem um mix adequado de políticas, o risco que corremos é voltar a ter déficits de 4% a 5% do PIB. Estamos pagando a conta de anos de consumismo.

Tirar os índios da praia - RUBENS RICUPERO

FOLHA DE SP - 08/07

As respostas dos governos aos protestos tiveram apenas objetivo de comprar a volta à normalidade


As respostas dos governos aos protestos tiveram apenas objetivo de curto prazo: comprar a volta à normalidade a qualquer preço. Lembram a explicação de Brizola, no exílio em Lisboa, em entrevista na qual Hermano Alves se surpreendia com a moderação de seus propósitos: "Tenho primeiro de tirar os índios da praia para poder desembarcar!".

Suspender o aumento das tarifas era o mínimo denominador comum das manifestações e foi o único pedido atendido. Não resolve nada no longo prazo nem garante a melhora dos transportes públicos. Intelectuais estrangeiros como Castells elogiam o espírito democrático dos governantes brasileiros, contrastando-o com a obstinação dos turcos.

Confundem com o desejo de atender à população o que pode não passar de maneira diferente de dizer não. Afinal, adiar as soluções práticas equivale à negação.

Se não é assim, por que não fazer logo o que depende só da decisão do Executivo? A bandeira mais frequente após o preço das passagens era o protesto contra a prioridade errada de estádios faraônicos.

Admitindo-se a dificuldade do governo em confessar que o melhor teria sido construir hospitais e facilitar o transporte, restava algo fácil e à mão. Bastava anunciar que recursos fantásticos reservados à mais mentirosa das prioridades --o trem-bala-- seriam destinados à construção de metrôs e trens suburbanos.

Ora, o que se fez foi o contrário: reafirmar o enlouquecido projeto rejeitado por virtual unanimidade do país. O governo confirma que suas prioridades continuam tão confusas como antes. Prova de que não houve contrição, nem desejo sincero de emenda, é que, na mesma semana, renovaram-se as manobras da contabilidade criativa para dissimular aumento de gastos e da dívida pública bruta.

Portanto, omite-se o que apenas depende do Executivo. Em lugar de medidas simples e imediatas, embarca-se o Congresso e a população no mais complexo e demorado dos desafios: a reforma do sistema político. Ainda se por milagre a reforma sair perfeita, os efeitos sobre a mobilidade urbana ou melhorias na saúde e educação serão, na melhor das hipóteses, indiretos e tardios.

O pior é renovar a velha ilusão brasileira de esperar da reforma política mais do que ela pode dar, o que vem gerando frustração desde o Ato Adicional e a Lei Saraiva do Império. As propostas do plebiscito são insuficientes. Lidam com problemas do passado. Nos países onde tudo isso já existe há muito tempo, discute-se como superar a crise da democracia representativa mediante meios diretos de controle e participação. Para esse problema atual da era das redes sociais e da internet, o plebiscito nada sugere.

Tampouco serve para evitar gastos da verba pública com estádios superdimensionados, motivados por um projeto triunfalista de poder. Ou para impedir falsas prioridades como o trem-bala, contabilidade criativa, inflação de ministérios inúteis e outros produtos de governos incompetentes.

O que obriga a uma conclusão: o plebiscito é uma fuga para frente, isto é, não podendo ou querendo fazer o possível agora, dilui-se o desafio na geleia geral das coisas remotas e impossíveis.

Em cima do laço - - RAUL VELLOSO

O GLOBO - 08/07

O ministro da Fazenda acaba de anunciar um corte de R$ 15 bilhões no custeio geral do governo, para viabilizar a nova meta fiscal de 2013. Ao mesmo tempo, na direção oposta, fala-se de maiores desonerações tributárias no transporte urbano, algo que também agradaria aos manifestantes. Como em situações que vivi várias vezes no governo, esse tipo de corte é pouco eficaz, mas é o que resta à Fazenda quando se trata de fazer ajustes em cima do laço. O certo seria mudar a estrutura do gasto, como se verá ao final.

A verdade é que o governo foi pego no contrapé quando estouraram as manifestações. Primeiro, porque enfrenta uma séria crise de credibilidade na gestão fiscal, crise essa inteiramente desnecessária. Que os resultados fiscais vêm piorando há bastante tempo, é fato. Só que, em vez de apresentar justificativas válidas — a crise etc. —, o governo resolveu esconder a situação real mediante o uso do que ficou conhecido como “contabilidade criativa”. Havia espaço para os saldos fiscais caírem, pelo menos até certo ponto, pois, no conceito de “dívida líquida”, que exclui da dívida bruta as aplicações financeiras, a razão dívida/PIB não tenderia a subir. Bastaria o governo dizer que, passado o auge da crise, tudo voltaria ao normal.

Outro problema tem a ver com a brutal expansão dos financiamentos do BNDES, que se têm viabilizado pela inédita emissão de títulos públicos dos últimos anos. Um maior volume de financiamentos para viabilizar a expansão da infraestrutura será crucial para tirar o país do buraco, mas dois subprodutos do que tem ocorrido até agora começam a despertar preocupação. Como tem havido pouca infraestrutura e outras prioridades no leque de aplicações do BNDES, o forte crescimento da dívida pública bruta resultante dessas emissões precisa ser mais bem justificado. Paralelamente, o salto observado nas transferências de dividendos do BNDES ao Tesouro, em grande medida relacionado com essas operações, tem um forte cheiro de maquiagem fiscal.

O governo é também mal avaliado pelo fato de o modelo de crescimento do consumo, que vem sendo posto em prática há vários anos, ter se esgotado. Em vez de mudar o curso do “transatlântico” na direção de mais investimento e menos consumo, optou-se por esgarçar o modelo ao máximo, interferindo indevidamente no sistema de preços (como nos congelamentos de preços e tarifas básicas), e tolhendo a ação privada séria nas concessões de infraestrutura. Para completar, anunciou-se no início do ano que não haveria mais meta fiscal a cumprir, algo em que o ministro da Fazenda acaba de voltar atrás. É nesse contexto que se diz que foi abandonado o tripé macroeconômico herdado da fase FHC e do início do governo Lula. A síntese disso tudo é que a inflação está acima do tolerável e a economia anda a passo de cágado.

Agora que é preciso, em adição, responder adequadamente às manifestações, o governo procura desviar as atenções para outros temas, dessa feita uma confusa reforma política, cuja impossibilidade prática só vai aumentar a pressão das massas à frente. E anuncia, abertamente, o rompimento de contratos, ao suspender reajustes de pedágios programados normalmente para agora.

Além de recuperar a credibilidade fiscal e da gestão econômica, sem o que acabaremos perdendo a classificação de “grau de investimento” das agências de risco internacionais, o que seria um caos para o país, penso ser hora de se fazer uma discussão mais profunda e produtiva do orçamento federal, exatamente por ser o lugar onde reformar é efetivamente prioritário.

Ninguém sabe disso com clareza, mas 75% do gasto da União se dão com uma gigantesca folha de pagamento de benefícios previdenciários e assistenciais, além dos salários de servidores, resultado de um exagerado modelo de transferência de dinheiro para certos segmentos, não necessariamente os mais necessitados. Essa folha corresponde hoje a cerca de 54 milhões de contracheques, onde se pendura mais de metade da população brasileira, se raciocinarmos com duas pessoas sustentadas a cada contracheque.

Os 25% restantes da despesa total se decompõem em 8% para gastos correntes em saúde; 1,3% para os investimentos em transportes; 4,7% para os demais investimentos; e os demais 11% são gastos correntes pulverizados em setores que às vezes deveriam ser prioritários e não o são. Essa última parcela inclui, ainda, o espremido custeio geral da máquina, de onde o ministro da Fazenda quer agora tirar algo 50% acima do gasto em transportes, obviamente inviável.

Ressalte-se que em 1987, um pouco antes da implementação do atual modelo de gastos, os gastos em saúde representavam os mesmos 8% do total, enquanto os de investimento eram 16% do todo. Enquanto isso, a “grande folha de pagamento” pesava bem menos: 39% do total.

Como se vê pelos protestos, saúde e infraestrutura estão na linha de frente dos gritos. Ou seja, só transferir dinheiro não é suficiente. A tarefa é grande e urgente. O país precisa correr porque está em cima do laço.

Dilemas e novidades no comércio exterior - SÉRGIO LEO

Valor Econômico - 08/07

As dificuldades de países-sócios do Brasil no Mercosul tiveram um efeito curioso - e positivo - no desempenho do comércio exterior brasileiro: a compra de automóveis como investimento para fugir da inflação está entre as principais razões para o forte aumento das exportações de veículos para Argentina neste primeiro semestre. Na Venezuela, para algumas montadoras, também há esse impulso nas vendas ao país.

"Como investimento, a compra de automóveis é ruim, mas na Argentina os usados não se desvalorizam tanto quanto no Brasil", comenta o economista Maurício Claverin, coordenador da área de comércio exterior da consultoria argentina abeceb.com, um dos especialistas que constatou o fenômeno, já identificado por executivos de montadoras no Brasil, segundo um executivo do setor.

O aquecimento do mercado de consumo nesses países também influencia nesse comportamento, mas, tanto na Argentina quanto na Venezuela, o aumento do controle do governo sobre a disponibilidade e as transações com dólar fizeram com que os investidores se voltassem para ativos reais, como imóveis.

Na Argentina, a redução na oferta de imóveis e a demanda de alternativas, por poupadores com menor poder aquisitivo, aumentou a procura pelos carros, ampliando o mercado dos brasileiros nos dois países.

No primeiro semestre, as vendas de veículos de passeio à Argentina chegaram a quase US$ 2,1 bilhões, um aumento de 35,5%, na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo informações do Ministério do Desenvolvimento ao Valor. Na Venezuela, as vendas de carros foram inexistentes no primeiro semestre de 2012; neste ano, já chegaram a US$ 16 milhões até junho, e devem ficar bem acima dos quase US$ 29 milhões de 2011.

Especialistas acreditam - e a indústria espera - que essa tendência na Argentina e Venezuela persista neste e no próximo ano, dando um empurrãozinho heterodoxo na balança comercial brasileira, enquanto a recente valorização do dólar não faz seu trabalho, desencorajando exportações e elevando a competitividade de produtos fabricados com custos em reais, mais desvalorizados em relação ao dólar.

Como divulgou o Ministério do Desenvolvimento, além do crescimento nas vendas de automóveis (32% em valor total, 25% em quantidade), a balança comercial brasileira teve impacto sensível de uma operação meramente contábil, o registro, como exportação, do lançamento ao mar de uma plataforma de petróleo da Petrobras, de US$ 1,6 bilhão. Descontado esse item, porém, a soma total das exportações ainda é impressionante, só abaixo do recorde de 2011.

A queda conjuntural, de 29,5%, nas vendas de aviões - que não deve se manter durante todo o ano, segundo o setor - impediu um desempenho mais favorável das exportações Um setor sensível, o de laminados planos, teve alta de 18% na quantidade vendida no primeiro semestre, mas acompanhado de uma queda nos preços superior a 17%.

Um olhar detalhado sobre os dados da balança comercial mostra que, cada vez mais, estão dentro do país, e não fora, os maiores desafios para o Brasil. O maior fator de deterioração dos resultados do comércio externo ainda é o mercado interno brasileiro, especialmente o de combustíveis; caem as exportações de petróleo e derivados e aumentam importações para abastecer o consumo sem freios do motorista brasileiro.

Também persiste o furor importador de bens não duráveis, especialmente alimentos, produtos farmacêuticos e bebidas, com aumento, nas compras diárias, superior a 14% no primeiro semestre, em comparação ao mesmo período de 2012, e de 23% só em junho, na comparação com junho do ano passado.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que cresce o volume de importados, cai o ânimo protecionista do governo, segundo se constata em conversas reservadas com a equipe econômica. A razão está na briga com as pressões inflacionárias, e na recente onda de valorização do dólar (mais de 10% neste semestre), que, por si só, desencoraja importadores e anima exportadores.

Estava prevista para dia 12 uma reunião da Câmara de Comércio Exterior (Camex), que deveria discutir a nova lista de cem produtos para os quais o Brasil poderia aplicar tarifas de importação superiores à TEC, a tarifa comum do Mercosul. São fortes os sinais de que a lista pode ser adiada indefinidamente.

Em outra direção, o governo parece cada vez mais interessado em encorajar o corte de impostos de importação por motivos de "interesse público", novidade aplicada pela primeira vez para produtos destinados à Copa do Mundo e à Olimpíada.

Premido pela batalha anti-inflacionária a aceitar um volume maior de importações, o governo também enfrenta um dilema no campo das exportações: apesar das manifestações enfáticas em favor de acordos internacionais de comércio, o empresariado brasileiro, longe de microfone e câmeras, mostra-se bem menos corajoso.

Nos preparativos para as negociações de acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, ao montar a lista de produtos que vão receber corte de tarifas para os exportadores europeus, os técnicos não conseguiram alcançar 80% do total de comércio (são necessários pelo menos 90%). É grande o número de setores que pede para ficar fora da abertura aos europeus, ou reivindica cronogramas que estenderiam bem além, na próxima década, o eventual livre comércio de seus produtos.

As negociações de comércio com os europeus ganharam novo obstáculo na semana passada com a trapalhada cometida pelos europeus, ao bloquear indevidamente o trânsito do avião do presidente boliviano, Evo Morales, sob suspeita de abrigar Edward Snowden, perseguido pelo governo americano por denunciar o sistema de espionagem dos EUA sobre comunicações na internet.

Condenada na região, a ação europeia levou a um pedido de desculpas da França, mas azedou o clima político. Poderá até aparecer como razão para que as negociações comerciais degringolem, para alívio de muitos no setor privado, que serão, assim, poupados de aparecer como força protecionista no Brasil.


MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO

FOLHA DE SP - 08/07

Estados 'disputam' R$ 50 bilhões para obras de mobilidade urbana
O governo federal começa hoje a receber representantes de governos estaduais e de prefeituras para selecionar as obras que entrarão no pacote de R$ 50 bilhões para melhorias na mobilidade urbana.

O aporte foi anunciado pela presidente Dilma Rousseff em meio às manifestações que se espalharam pelo país no mês passado e que tiveram o transporte público como uma das pautas.

Entre hoje e amanhã, os ministros Miriam Belchior (Planejamento) e Aguinaldo Ribeiro (Cidades) terão encontros particulares com autoridades de oito Estados.

A maioria dos projetos escolhidos por administrações estaduais já estava no papel antes do anúncio federal.

O governo paulista levará a Brasília três projetos em andamento, com custo estimado de R$ 3,5 bilhões. A expansão da linha 5-lilás até o Jardim Ângela, na zona sul da capital, já passou por licitação.

Minas Gerais também tentará apoio para expandir seu metrô. A ideia é conseguir cerca de R$ 5 bilhões da União.

Secretários de Pernambuco estavam em reunião na última sexta-feira para definir as propostas do Estado.

Bahia, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul também estão na agenda do "processo seletivo".

Não há data para a divulgação dos projetos escolhidos. Cerca de 190 obras estavam na primeira etapa do plano, que repassou R$ 88 bilhões.

VACINA CONTRA HPV
A escolha da empresa Merck Sharp & Dohme (MSD), em parceria com o laboratório Butantan, para produzir a vacina contra o HPV que será distribuída pelo SUS foi feita pelo Ministério da Saúde de olho na nonavalente.

A vacina nonavalente, que vem sendo pesquisada há cinco anos, poderá proteger contra vírus que estão relacionados a aproximadamente 90% dos casos de câncer de colo do útero.

A vacina atual, que o SUS disponibilizará a partir de março de 2014, garante a proteção contra dois vírus (que desenvolvem 70% dos cânceres), além de outros dois tipos de HPV.

A expectativa do ministério é que os resultados das pesquisas clínicas da nonavalente sejam entregues para a Anvisa até o final do ano que vem.

Os valores dos investimentos que estão sendo realizados no desenvolvimento dessa nova vacina não foram divulgados.

A infecção pelo HPV atinge hoje uma em cada dez pessoas no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, cerca de 700 mil novos casos são registrados a cada ano. Estima-se que sejam entre 9 milhões e 10 milhões de infectados em todo o país.

Nova legislação para os portos pode provocar brigas na Justiça
Em vigor desde junho após intensa batalha no Congresso, a nova Lei dos Portos pode levar empresas a tentar reverter mudanças na Justiça, segundo especialistas.

O advogado Bruno Duarte, do Trench, Rossi e Watanabe, diz que é possível a existência de "brigas de liminares" motivadas por "players" que tinham contratos de arrendamento em portos públicos antes de 1993 (ano da antiga lei).

"O governo vetou a proposta do Congresso de renovar os contratos. Se o veto não for derrubado, arrendatários tentarão judicializar a questão."

Também poderá ser questionada a saída dos terminais privados da área de portos organizados, afirma José Mário da Costa Silva, do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff.

"Novos terminais terão de investir em uma estrutura física, que antes era das Companhias das Docas estaduais."

Mauro Penteado, do escritório Machado Meyer, diz que ainda há incerteza em alguns pontos, como a chamada pública de novos projetos.

"É um modelo diferente de outros setores regulados. Mas avalio que é um avanço, não vejo fuga de investimentos."

DE OLHO NA CARGA
O número de roubos e veículos de caminhões registrados pela Tracker (empresa de rastreamento) cresceu 44% no primeiro trimestre deste ano na comparação com o mesmo período de 2012.

"Esse tipo de crime tem como objetivo, além do caminhão, a carga", afirma Ronaldo Megda, vice-presidente do grupo.

Os registros passaram de 113 (que representavam 11,5% do total das ocorrências do mês) para 163 (15,6%).

"A recuperação desses veículos é mais difícil que a de carros. São quadrilhas mais especializadas", acrescenta o executivo.

Também em relação ao primeiro trimestre do ano passado, houve alta de 8,5% no número de roubos e furtos de utilitários. Por outro lado, a empresa registrou queda de 14,7% nas ocorrências com motos. As com veículos leves permaneceram estáveis.

HOSPEDAGEM MINEIRA
A rede de hotéis Arco, de Minas Gerais, dobrará o número de unidades nos próximos dois anos: dos atuais sete para 14 empreendimentos.

O aporte na ampliação, feito por investidores imobiliários, somará R$ 700 milhões.

O grupo manterá o foco em Minas. Dos sete novos hotéis, somente um será no Espírito Santo, mas em Colatina, perto da divisa.

A expansão inclui novas unidades em Belo Horizonte e em cidades de médio porte, como Governador Valadares, Sete Lagoas e Viçosa.

"Avaliamos os municípios e verificamos que ainda há demanda, principalmente por empreendimentos de padrão médio e econômico", diz Rodrigo Mangerotti, superintendente do grupo.

"Queremos nos consolidar em Minas com hotéis corporativos e de eventos."

A violência esquecida - MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

FOLHA DE SP - 08/07

Que relação haveria entre o assassinato brutal do menino boliviano e a truculência nos protestos?


Era noite junina, a fogueira ardia na praça da Vila Madalena, a sanfona tocava bailinho, músicos se revezavam ao violão, o quentão circulava com seu cheiro de gengibre e a prosa do arraial, claro, não poderia ser outra. As manifestações, a aparição dourada e marqueteira da presidente na TV, as tentativas de entender o que estava se passando.

Repetiam-se as dúvidas e as hipóteses conhecidas, quando alguém, considerando que as coisas no Brasil estavam piores do que a propaganda oficial tentava fazer crer, citou o assassinato de um menino boliviano, em São Paulo, que tinha ocorrido naquele dia.

Talvez fosse forçar um pouco a barra trazer para a conversa sobre as insatisfações difusas das ruas o crime bárbaro contra uma criança indefesa, filha de estrangeiros pobres explorados por nosso subimperialismo sorridente.

Mas talvez não fosse.

Primeiro, porque não se trata de um caso isolado. Presenciamos uma sinistra escalada criminosa. Vítimas de assaltos são incendiadas, pessoas desarmadas são mortas no meio da rua. Depois, porque foi um aspecto importante, presente do início ao fim nas manifestações, tanto com as agressões dos chamados vândalos ("alguém precisa fazer uma letra de música com essa palavra", sugeri a amigos compositores no arraial) tanto com a intervenção desproporcional da polícia em São Paulo, um ponto de inflexão na dinâmica das ruas.

Como notou o sociólogo Luiz Eduardo Soares, as movimentações embora não apresentassem uma plataforma unificada, mantiveram uma conexão metonímica com algumas questões centrais para o Brasil. E uma delas certamente é a violência.

A presidente Dilma Rousseff, contudo, em sua tentativa canhestra de responder ao que acha que ouviu das ruas esqueceu o assunto. Normal. Entra governo, sai governo, as políticas públicas nessa área vão se arrastando ao sabor de medidas parciais, no plano estadual.

Os números são enfáticos. Vivemos num dos país que comete 50 mil homicídios dolosos por ano (mais 90% dos quais permanecem sem esclarecimento) e já temos a terceira população carcerária do planeta, atrás de Estados Unidos e China. Pesquisas mostram que os novos presos são na maioria jovens pobres, predominantemente negros, de baixa escolaridade, envolvidos com venda de drogas. Não devem ter conseguido vaga no call center pra trabalhar e comprar uma moto em 72 prestações. Ou não se alistaram na polícia.

É evidente que a violência tem causas múltiplas, mas um projeto nacional para enfrentá-la tem de prever a reforma das polícias. É preciso mudar o modelo herdado da ditadura e romper a amarra constitucional que praticamente impõe duas corporações concorrentes sob jurisdição estadual.

Num post no Facebook, do qual compartilho um trecho aqui, Soares levantou a questão, sempre incômoda: "A classe média descobriu a brutalidade policial, que os pobres e negros nunca ignoraram. Polícia tornou-se um dos temas-chave, nas ruas. Por que a presidenta omitiu o debate em torno da mudança do modelo policial, que envolve a desmilitarização, e que vem sendo adiada desde a transição democrática? É urgente estender a transição à segurança pública. O silêncio oficial tem sido cúmplice de milhares de execuções extrajudiciais, de torturas, violações cotidianas, inclusive contra os próprios policiais."

Um retrato na parede - RICARDO NOBLAT

O GLOBO - 08/07

"Não pensem que eu estou acuada. Vou para cima e vou disputar o nosso legado ."
Dilma, presidente da República


Se você imaginava que o PT se resignaria em ser expulso das ruas pelos manifestantes que convulsionam pedaços das maiores cidades do país, sinto muito , enganou-se. Avalizada por Dilma, a ordem foi emitida pela direção do partido: lustrem as estrelas guardadas junto com antigas lembranças. Espanem a poeira das bandeiras rotas. Dispam-se dos trajes de burocratas. Todos às ruas na próxima quinta-feira.

POUCO IMPORTA que o "Dia Nacional de Luta ", que prevê passeatas e greves, tenha sido convocado pelas centrais sindicais e movimentos afins. O PT não amanhecerá menor no dia seguinte só porque pegou carona em ato alheio. De resto, é o governo que tudo financia. Até mesmo o que poderá machucá-lo um pouquinho. O peleguismo se renovou. Mas não deixou de ser peleguismo.

QUE PALAVRAS de ordem gritará o PT? O que cobrará por meio de faixas e cartazes? O governo encomendou o apoio à reforma política elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva e submetida a um plebiscito. O PT entregará a encomenda. Por absurda, a ideia da Constituinte foi sepultada em menos de 24 horas. O plebiscito naufragou por falta de tempo para que seus efeitos incidissem sobre as eleições do próximo ano.

DILMA ESPERAVA lucrar com uma reforma que lhe garantisse melhores condições de concorrer ao segundo mandato . E que levasse o PT a emergir da eleição ainda mais forte . Casuísmo descarado , pois - não a re-forma, necessária . Mas a pressa com que seria feita e a tentativa de empurrar goela abaixo do Congresso pontos da reforma destinados a agradar Dilma e o PT .

A INSISTÊNCIA com a Constituinte e o plebiscito trai o desejo de Dilma em responsabilizar o Congresso pela reforma que ele não quer fazer . E denuncia o momento confuso e delicado que o governo atravessa. Uma pena o PT não poder dizer aqui fora o que diz quando se reúne no escurinho do cinema. Ou mesmo o que começou a dizer recentemente a Dilma. A coragem muitas vezes é movida pelo medo. E o PT receia perder o poder .

A POLÍTICA econômica está uma droga. A culpa não cabe apenas a Guido Mantega - aquele que Fernando Henrique chamou de "bem fraquinho" quando virou ministro da Fazenda do governo Lula. Cabe também a Dilma - aquela que Lula apresentou como melhor gestora do que ele. Maluf elegeu Celso Pitta prefeito de São Paulo pedindo para não votarem mais nele, Maluf, caso Pitta fracassasse. Pitta fracassou. Lula não foi tão longe em relação a Dilma.

AUMENTA A inflação. Diminuem os investimentos. Desequilibram-se as contas públicas. Revisa-se para baixo o Produto Interno Bruto (PIB), a soma de todas as riquezas do país. O governo carece de uma estratégia compartilhada por seus 39 ministros. Há ministros demais e competência de menos. Em larga medida, o voluntarismo de Dilma é responsável pelo mau desempenho da economia. Seu desprezo pelos políticos só lhe cria problemas.

LULA MONTOU uma gigantesca coligação de partidos para eleger Dilma e ajudá-la a governar . Esqueceu-se de escalar ministros aptos a cuidar da articulação política. Apostou suas fichas em Palocci, posto na Casa Civil para escorar Dilma. Descobriu- se que ele se tornara milionário enquanto fazia política. Acabou demitido . A coligação ameaça se esfarelar . A persistir a queda de Dilma nas pesquisas, ela ser á abandonada.

O PT DO passado teria material de sobra para na quinta-feira ecoar a voz das ruas. O de hoje, não. É apenas uma fotografia na parede.

Injeção extra - VERA MAGALHÃES - PAINEL

FOLHA DE SP - 08/07

O programa do governo para atrair médicos no interior do país e nas periferias, que será lançado hoje, terá investimento previsto de R$ 3 bilhões até 2014 e vai pagar salários de R$ 4 mil para enfermeiros. Além disso, a Marcha dos Prefeitos, que acontece nesta semana em Brasília, turbinou o Mais Médicos. Integrantes do governo afirmam que haverá recurso adicional para reforma de hospitais e compra de equipamentos para municípios pequenos, pleito das prefeituras.

Trauma Segundo auxiliares, um dos motivos que podem levar Dilma Rousseff a se ausentar da marcha é o fato de que, no ano passado, a presidente foi vaiada por prefeitos após discursar durante a abertura do evento.

Plantão médico Se antes do Mais Médicos se dizia que faltava a Alexandre Padilha (Saúde) uma marca para ser candidato a governador de São Paulo, aliados dizem agora que o ministro não poderá deixar a pasta apenas seis meses depois do lançamento do programa.

Pega... Miriam Belchior (Planejamento) vai receber nos próximos dias 16 governadores e prefeitos para discutir a distribuição dos R$ 50 bilhões do PAC Mobilidade prometidos por Dilma após os protestos de junho.

...a senha A romaria começa hoje, com reuniões reservadas com Geraldo Alckmin (PSDB) e Fernando Haddad (PT), Sérgio Cabral (PMDB) e Eduardo Paes (PMDB), e Jaques Wagner (PT) e ACM Neto (DEM).

Recordar é viver Em fevereiro, Dilma informou, pelo blog do Planalto, que "não estava preparando uma reforma ministerial". Um mês depois, a presidente substituiu titulares de três ministérios: Aviação Civil, Trabalho e Emprego e Agricultura.

A conferir Anteontem, a petista divulgou nota desmentindo especulações de novas trocas na equipe.

Desarmando... Na linha do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) diz que o caminho da Câmara não será derrubar o veto presidencial relativo ao fim do fator previdenciário. A pauta será discutida com as centrais sindicais amanhã.

...a bomba O presidente da Casa defende cobrar do governo uma alternativa ao veto, como o projeto do então deputado Pepe Vargas (PT-RS), que prevê novo cálculo sobre idade e tempo de serviço. A ideia já foi discutida com a área econômica

Mais fundo O governador Geraldo Alckmin (PSDB) discutirá amanhã com sua equipe os detalhes de um segundo corte de despesas do governo, que deve ser anunciado ainda neste mês.

Prioridades Estão em debate a fusão de mais secretarias e empresas públicas. O tucano pretende ainda vender 100 imóveis desocupados do Estado até o fim do ano, como o antigo escritório de representação do governo de São Paulo na capital federal.

Xerife Alckmin também prepara um pacote de combate à corrupção, em resposta aos protestos de junho. Na sexta, chegou a seu gabinete a proposta de um código de ética para a gestão estadual, com regras rígidas de conduta para os gestores. Ele pretende ainda divulgar salários de dirigentes de estatais.

Vem pra rua 1 Sondagem feita pelo Sebrae-SP com 602 micro e pequenas empresas do Estado mostra que 54% delas tiveram os negócios afetados pelas manifestações de rua em junho.

Vem pra rua 2 Ainda assim, 91% dos que responderam à pesquisa do Sebrae disseram apoiar os protestos.

tiroteio
"A realização de plebiscito para as eleições de 2014 está em coma profundo e irreversível na UTI. Só falta a gente desligar os aparelhos."
DO LÍDER DO PMDB NA CÂMARA, EDUARDO CUNHA (RJ), sobre a intenção do governo de que a consulta sobre a reforma política valha para o ano que vem.

contraponto


Soletrando
Irritado com o PT nas últimas votações da Assembleia Legislativa paulista antes do recesso parlamentar, o líder do governo Barros Munhoz (PSDB) fez um discurso inflamado na tribuna da Casa. Comandando a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014, o tucano responsabilizou o PT pelo impasse.

No meio de sua fala, Barros percebeu que o tempo regimental estava se encerrando e improvisou:

-- Vamos praticar a democracia, porque, como dizia o saudoso e inesquecível governador Orestes Quércia, no fundo, no fundo, o que importa é vê-ô-vó, tê-ô-to. Voto!

Quem tem medo dos pobres? - RENATO JANINE RIBEIRO

VALOR ECONÔMICO - 08/07

Nada mais século XIX do que ter medo do voto dos pobres. Nada mais século XIX, em pleno século XXI, do que conservar esse medo e pretender privá-los do direito de votar. Numa manifestação recente, uma senhora pediu que os beneficiários do Bolsa Família perdessem o direito de eleger os governantes. Essa ideia teve alguma repercussão. É um puro balão de ensaio, que não prosperará, porque o sufrágio universal é cláusula pétrea da Constituição e uma emenda neste sentido não pode sequer ser examinada pelo Congresso. Mas vejamos o que isso significa.

O século XIX descobre a pobreza. Ela existia antes, claro, e em enorme escala. Mas é depois de 1800 que as grandes cidades, como Londres e Paris, são tomadas por pobres - gente que vem dos campos trabalhar nas fábricas ou nas casas, olhando com espanto, e depois com crescente ódio, para quem regurgita de riqueza enquanto eles passam fome. É o que a historiadora Maria Stella Bresciani chama de espetáculo da pobreza. Eles formam o que o historiador Louis Chevalier denominou "classes laboriosas, classes perigosas": os operários ameaçariam o "statu quo" vigente. Havendo o sufrágio universal, a maioria de pobres poderia decidir confiscar os bens dos ricos e reparti-los entre si. Esse é o grande medo do século XIX.

Para fazer-lhe frente, a elite recorre a dois ou três expedientes. Um deles, que ora funciona, ora não, é deixar o poder executivo nas mãos de um monarca; mas isso não cabe em regimes democráticos ou semi, como o norte-americano, o britânico, o francês. Outro é ter um Senado ou Câmara Alta de espírito conservador, com membros nomeados (os Lordes ingleses, os Pares franceses) ou eleitos por um mandato mais longo, a quem caberá refrear os ímpetos da Câmara Baixa, aquela que é eleita pelo povo inteiro. E, finalmente, o voto censitário, ou seja: o direito de voto dependeria da renda ou propriedade do indivíduo. Pobres simplesmente não votariam. É célebre a resposta de Guizot, primeiro-ministro de Luís Felipe, rei da França, quando a oposição lhe pede que baixe as exigências econômicas para votar: "Enriqueçam-se", diz ele. Ganhem mais, tenham mais, que poderão votar. No Império do Brasil, era a mesma coisa.

Quais as razões dadas para restringir o voto a quem tem posses ou renda elevadas? Entendia-se que essas pessoas seriam mais racionais. Quem vive da mão para a boca nada tem a perder, portanto, não é controlável. Essencialmente, é isso: vota quem tem a perder. Se eu sou rico, não quero políticas irresponsáveis, que poriam a perder a economia, o Estado, talvez a independência de meu país. Se sou pobre, que diferença me faz? Já tenho tão pouco que qualquer mudança pode ser para melhor. Exigia-se ter "bens de raiz", sinônimo de propriedade, termo interessante: somente quem está fixado ("enraizado") na sociedade, com bens ou rendimentos que ofereçam uma espécie de caução ao que diga ou faça, merece votar. Os outros, se votassem, não pagariam pelas consequências de seu voto.

Isso mudou por completo ao longo do século XX. O avanço da causa democrática levou as sociedades a repudiarem o voto censitário. Negar o voto aos pobres se tornou indigno. Além disso, quem deflagrou as guerras mais mortíferas do século não foram os pobres. Se a Alemanha e a Rússia imperiais rumaram para o desastre em 1914, não foi por iniciativa de seus miseráveis, mas de seus príncipes e nobres, em suma, dos mais ricos. E os pobres foram, sim, quem mais arcou com os custos dessas guerras infames. Deles saiu a maior parte dos milhões que morreram em batalha ou de fome. Mais perto de nós, a crise de 2008 não foi causada pelos pobres ou beneficiários da previdência social norte-americana. Não há base empírica para culpar os mais pobres pela adoção de políticas desastrosas.

Hoje, se alguém sugere, ainda que implicitamente, que pobres não votem, está retomando um imaginário antigo, arcaico. Na verdade, o século XX, sobretudo em sua segunda metade, mostrou que não é preciso negar aos pobres o voto para evitar que eles tomem os bens dos ricos; o circo - isto é, o imaginário do entretenimento - cumpre muito bem esse papel. Se for somado ao pão, isto é, à supressão da fome e da miséria, dificilmente os pobres se revoltarão. Isto, se eu quiser dar um argumento de esquerda. Um argumento mais moderado é: todo aquele que tem futuro - o que geralmente se chama "família" - se interessa em não o colocar em risco e, por isso, não apoia políticas irresponsáveis. É quando o trabalhador passa a ter, em vez de prole, uma família, quando sua renda se torna suficiente para viver mais tempo e criar filhos, que ele deixa de apoiar revoluções nas ruas. Daí, por sinal, que alguns radicais culpem a família por um certo conservadorismo que as classes trabalhadoras assumem.

Mas, de todo modo, é sinal de deficiência na cultura política a proposta de que perca o direito de votar quem viva de esmolas - um tema ainda mais antigo, porque grassou no século XVII inglês. Afinal, um Estado sempre arbitra transferências de riquezas; ele pode destiná-las aos mais ricos, como fez por milênios, ou começar a transferi-las aos mais pobres, o que é recente mas, certamente, do ponto de vista moral, não é pior.

Em minha última coluna critiquei Marina Silva por deixar passar a eleição de 2010 e as manifestações recentes, sem organizar sentimentos que tendiam na direção de sua Rede. No mesmo dia em que saiu a coluna, Marina entrou em contato comigo, por meio do professor Ricardo Abramovay, querendo conversar, o que fizemos dois dias depois, longamente. Tratarei do assunto numa futura coluna.