segunda-feira, abril 27, 2020

Daqui a cinco anos - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 27/04

Menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção


Esse exercício ficcional do futuro é dedicado a quem defende uma sociabilidade com a Covid-19 baseada em métodos de controle epidemiológicos e a quem faz marketing de si mesmo "torcendo pelo vírus".

São Paulo, 27 abril de 2025.

Passaram-se cinco anos desde que a hoje chamada "gripe coronial" surgiu. No início achava-se que começara na China, hoje já não se tem mais certeza de nada acerca da sua origem. Uns creem ter sido lançada no mundo pelos seres extraterrestres que nos criaram e que desistiram do experimento. Outros defendem que a natureza decidiu dar um basta em nossa ganância.

A verdade é que muito se escreveu sobre a epidemia nesses cinco anos. Mas, pela saturação de narrativas, depois de algum tempo, esse acúmulo de dados científicos circulando em meio a um público sem nenhuma condição de avaliá-los acabou por se transformar na nova normalidade. Quase ninguém mais se interessa por nada que não tenha a ver com a segurança epidemiológica.

Agora começa a ficar claro como menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção.

No Brasil de cinco anos atrás, o então presidente, um idiota desastrado, clamava por violência contra a democracia. Esse fato ridículo nos distraiu para o verdadeiro processo transformador em curso: a aceitação tranquila do regime em que agora vivemos, onde nada se pode fazer que não seja posto sob modelos epidemiológicos de segurança. Não há um nome para esse regime. Não ouso mentir.

Os primeiros indícios surgiram quando os cidadãos conscientes começaram a brigar nas ruas cobrando pessoas irresponsáveis que não usavam máscaras. Depois passaram a cobrar roupas especiais de segurança (que hoje são objetos da nova moda, batizada de "estilo cuidado"), assim como não dizer "bom dia" para as outras pessoas se tornou a norma, já que alguns artigos afirmaram por um tempo que o vírus podia entrar pela boca enquanto você falava.

Mesmo que esses artigos hoje tenham desaparecido no mapa infinito de produções científicas, a memória social os manteve ativos. Agora o silêncio social é uma prova de adesão aos modos corretos, e artistas postam fofamente #fiquedebocafechada.

Outro indício foi a decisão que grupos de riscos perderiam o direito a liberdade de ir e vir. Depois de sucessivas tentativas de controlar o vírus, governos, munidos de todas as formas do que agora chamamos de "tecnologias democráticas do cuidado" (em inglês, CDT) chegaram, graças ao desenvolvimento tecnológico dentro da nova normalidade, a uma capacidade de gestão quase absoluta da mobilidade urbana.

No começo, esse controle era feito por pessoas mobilizadas pela causa da luta contra o vírus, mas agora os aplicativos do cuidado avisam onde existem grupos de riscos rompendo o novo contrato social. Não se sabe ao certo aonde vão essas pessoas, mas, seguramente, creem os crentes, devem ir a lugares onde serão cuidadas apropriadamente e onde não colocarão em risco o sistema mundial de cuidado em que todos vivemos.

Um problema, mas que hoje parece pertencente ao passado (a sensação de aceleração da nova normalidade foi muito alta nos primeiros dois anos), foi a superação do modelo familiar patriarcal, como era chamado.

As pessoas que agora chegaram aos 30 anos moram basicamente sozinhas com seus pets. Essa tendência, que antes era uma questão de escolha, se radicalizou quando a ciência determinou definitivamente que animais não eram transmissores do vírus.

A vida atualmente é controlada remotamente. O mercado, como sempre, se acomodou à nova normalidade. Onde estará a vacina?

O grande debate agora é a submissão da reprodução humana aos novos modelos epidemiológicos de segurança. Já que o sexo praticamente não existe (atividade de risco, identificada como tal logo no primeiro ano), a reprodução assistida hoje é objeto de ceticismo por parte das autoridades, já que, possivelmente, novos seres humanos seriam novos hospedeiros para o vírus.

A pobreza generalizada, finalmente, encerrou o hábito de consumo. A vida é simples agora. As pessoas hoje praticam mindfulness remotamente, livres do "fetiche do presencial". Lindo, né?

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Loucos do futebol - MAURO CEZAR PEREIRA

ESTADÃO - 27/04

Gestão financeira dos times no Brasil parece reunir pessoas insanas


Estão por ser publicados nesta semana os balanços de 2020 dos clubes de futebol do país. O prazo termina na quinta-feira, 30 de abril, mas até sexta passada, entre os 20 da Série A, apenas Bahia, Flamengo, Fortaleza e Grêmio haviam publicado os seus.

São relatórios detalhados que mostram o “raio X”, ou a “ressonância magnética” das finanças dessas agremiações em 31 de dezembro do ano passado. E quatro meses depois, o cenário é pior.

Claro, a pandemia do novo coronavírus paralisou o futebol e os empurrou para um abismo econômico, com estagnação absoluta em alguns casos, devido à falta de jogos e, consequentemente, receitas. Direitos de transmissão de TV tiveram pagamentos adiados, patrocinadores recuaram, suspenderam ou pediram prazos para quitar o que devem pagar, sócios-torcedores pedem cancelamento e as despesas continuam, não cessam, de jeito algum.

O balanço do Corinthians é um dos mais aguardados. Isso porque desde a volta do time à primeira divisão, em 2009, o endividamento alvinegro cresceu 627,5%. E na atual gestão, do presidente Andrés Sanchez, eleito em fevereiro de 2018, tais cifras dispararam, saindo de R$ 435,8 milhões em dezembro de 2017, no final do mandato do antecessor, Roberto de Andrade, para R$ 626,2 milhões em junho do ano passado. Um salto incrível.

Importante frisar que as finanças do Corinthians no que se refere aos demonstrativos financeiros não incluem a Arena de Itaquera, que é gerida por um fundo e não integra o balanço do clube. E nesse período, na atual gestão, nenhum grande craque foi contratado. Título? Dois Estaduais. Os investimentos mais pesados em valores, jogadores caros, caíram depois de 2015, embora em alguns momentos muitas contratações tenham sido feitas.

A dívida do Corinthians aumentou R$ 190,4 milhões em um ano e meio, ou seja, depois de todo 2018 e metade de 2019, ela foi ampliada em cifras beirando duas centenas de milhões de reais. Onde terá parado no final de 2019? Como o estádio tem um custo que ninguém consegue precisar, mas que já há algum tempo estima-se em mais de R$ 1,5 bilhão, não será surpreendente se chegarmos à conclusão que o clube deve perto de R$ 2 bilhões.

A Arena não aparece no balanço, mas drena receitas do Corinthians, que não pode destinar parte da receita gerada pelas rendas de seus jogos para pagamento de salários e outras despesas regulares. O que entra ali, vai para o fundo, mas sequer consegue cobrir todo o custo da obra na zona leste de São Paulo, que saltou para valores estratosféricos quando transformada em palco da abertura da Copa do Mundo de 2014.

Em Minas Gerais, o Atlético passou um domingo de medo. O time treinado pelo argentino Jorge Sampaoli corre o risco de perder três pontos no Campeonato Brasileiro por causa de uma dívida na Fifa, devido ao não pagamento do meia-atacante Maicosuel, adquirido em maio de 2014 junto à Udinese. Foi a centésima contratação do presidente da época, Alexandre Kalil, atual prefeito de Belo Horizonte.

Sérgio Sette Câmara, atual mandatário, separou o dinheiro para quitar a pendência. Para isso, atrasou salários do elenco. Mas a moeda europeia disparou nos últimos dias e os reais reservados deixaram se ser suficientes para cobrir os 2,177 milhões de euros. Estão faltando cerca de R$ 3,4 milhões. Vale lembrar que na última década Corinthians e Atlético ganharam Libertadores, Brasileiros, Copa do Brasil, mas a que custo? Roteiro que tem semelhanças com o do Cruzeiro, encalacrado e na Série B.

A gestão financeira no Brasil parece reunir os loucos do futebol.

Rastreamento de arma e munição: Bolsonaro humilha Forças Armadas; MPF reage - REINALDO AZEVEDO

UOL - 27/04


Almirante Ilques Barbosa Júnior, general Edson Leal Pujol e tenente-brigadeiro do ar Antonio Carlos Moretti, comandantes, respectivamente, da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Permitir a livre circulação de armas e munições, ainda que originalmente legais, sem rastreamento, ofende a Constituição e remete ao papel que têm as Forças Armadas na garantia dos valores constitucionais e no auxilio à Segurança Pública. A "agência de emprego" do governo compensa a humilhação?


Os militares que estão no Planalto não vão deixar Jair Bolsonaro na mão. Aliás, estão no Planalto, no segundo escalão, no terceiro, no quarto... As Forças Armas estão sendo cooptadas, o que é uma tragédia moral para a sua história, pela via econômica, pelo emprego, pelos cargos... Pode não ser corrupção naquela modalidade, digamos, propriamente penal, mas é corrupção em sentido mais amplo: a corrupção dos princípios.

Só isso pode explicar o que se vai narrar abaixo. Leiam com atenção. Volto em seguida. Informa o Estadão:

Sob suspeita de ingerência na Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro entrou agora na mira do Ministério Público Federal (MPF) por indícios de violar a Constituição ao interferir em atos de exclusividade do Exército. Procuradores abriram dois procedimentos de investigação para apurar uma ordem dada por Bolsonaro ao Comando Logístico do Exército (Colog), no último dia 17, que revoga três portarias publicadas entre março e abril sobre monitoramento de armas e munições.

A procuradora regional da República Raquel Branquinho aponta a possibilidade de Bolsonaro ter agido para beneficiar uma parcela de eleitores e que não há espaço na Constituição "para ideias e atitudes voluntaristas" do presidente, ainda que pautadas por "bons propósitos". O desdobramento do caso pode levar a uma ação de improbidade na Justiça Federal ou à abertura de um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF).

As portarias 46, 60 e 61, revogadas pelo comandante do Colog, general Laerte de Souza Santos, por exigência de Bolsonaro, foram elaboradas em conjunto por militares, policiais federais e técnicos do Ministério da Justiça. "Determinei a revogação das portarias (...) por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos", escreveu Bolsonaro no Twitter em 17 de abril.

Essas portarias estabeleciam o controle, rastreabilidade e identificação de armas e munições importadas e fabricadas pela indústria nacional, sob a finalidade de atividades esportivas, de colecionador e também para abastecer os quartéis. Na avaliação dos procuradores, ao revogá-las, o governo facilita o acesso do crime organizado a armas e munições desviadas. "A cidade do Rio de Janeiro é a face mais visível dessa ausência de efetivo controle no ingresso de armamento no País", observou Raquel Branquinho em ofício obtido pelo Estado.

Ex-braço direito da então procuradora-geral da República Raquel Dodge na área criminal e uma das integrantes do grupo escolhido pelo atual chefe do MPF, Augusto Aras, para atuar na Lava Jato, Raquel Branquinho é considerada uma procuradora linha dura, conhecida por seu trabalho em processos importantes, como o mensalão.

As normas estabeleciam diretrizes para identificação de armas de fogo, bem como para a marcação de embalagens e cartuchos de munições. Umas das regras revogadas, por exemplo, determinava que armas apreendidas pela Justiça cuja identificação tenha sido suprimida ou adulterada poderiam ganhar uma nova numeração.

O pedido de investigação foi enviado por Raquel Branquinho no dia 20 deste mês ao chefe da Procuradoria da República no Distrito Federal, Claudio Drewes José de Siqueira. No ofício, a procuradora argumenta que Bolsonaro fere princípios constitucionais.

"Ao assim agir, ou seja, ao impedir a edição de normas compatíveis ao ordenamento constitucional e que são necessárias para o exercício da atividade desempenhada pelo Comando do Exército, o Sr. Presidente da República viola a Constituição Federal, na medida em que impede a proteção eficiente de um bem relevante e imprescindível aos cidadãos brasileiros, que é a segurança pública, e possibilita mecanismos de fuga às regras de controle da utilização de armas e munições", escreveu Raquel Branquinho.

Agora, o MPF vai avaliar os motivos da conduta de Bolsonaro de determinar a derrubada das portarias do Exército. Numa avaliação inicial, Raquel Branquinho entendeu que a finalidade da revogação das portarias pode ter sido a de "atender uma parcela de eleitores."
(...)


RETOMO

Faço aqui um desafio ao presidente Jair Bolsonaro ou a quem ele delegasse tal tarefa: demonstrar que o rastreamento de armas e munições atenta contra as liberdades individuais ou contra algum princípio consagrado pela Constituição.

A quem interessa o não rastreamento de armas e munições destinadas a atividades esportivas, colecionador e quartéis? Ora, certamente não interessa aos esportistas, colecionadores e militares. Ao contrário: a estes, a possibilidade de rastreá-las atua como uma garantia, não é mesmo?

Não por acaso, os próprios militares participaram da redação das portarias, em parceria com técnicos do Ministério da Justiça e membros da Polícia Federal. Quem faz uso legal da arma não se importa que haja a identificação e rastreamento.

A quem interessa a revogação das portarias. A resposta é escandalosamente simples: às milícias, ao tráfico de drogas e ao tráfico internacional de armas. Que dúvida pode haver a respeito? Só não aceita o monitoramento do Estado nesse caso quem está com más intenções.

Esse rastreamento tem de ser feito porque, no caso de apreensão de armas estrangeiras, é preciso saber se entraram ilegalmente no país ou se foram importadas regularmente, caindo depois em mãos criminosas. No caso de armas nacionais, dado que a posse e o porte foram brutalmente alargados por Bolsonaro, faz-se necessário verificar se indivíduos não estão sendo usados como compradores-laranjas para repassá-las depois a bandidos.

A informação é essencial para a elaboração de políticas públicas.

Com a revogação das portarias -- contrariando, diga-se, o Estatuto do Desarmamento, que delega ao Exército esse controle --, é evidente que Jair Bolsonaro joga no lixo também o Caput do Artigo 144, a saber:
"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio".

Venham cá: o Estado exerce o seu dever, e os cidadãos têm respeitado o seu direito, com o rastreamento ou sem ele?

Se o Brasil vira um território livre para a circulação de armas e munições, sem nenhum controle do Estado, a Constituição não resta ferida em sua essência?

DE VOLTA AOS MILITARES

A interferência de Bolsonaro, do modo como se deu, constitui um ato de verdadeira humilhação às Forças Armadas.

Estabelece o caput do Artigo 142:
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
A autoridade suprema é do presidente da República, mas segundo um ordenamento legal. A cúpula das Três Forças se atreveria a sustentar que, sem a possibilidade de rastrear armas e munições no país, elas estarão exercendo a contento a "defesa da Pátria"?

Pergunto: o Poder Executivo como agência de empregos para militares compensa esse despropósito? A relação pode ser boa para quem arruma o emprego. E para a instituição? Lembrem-se, senhores! Todos vocês também estão fazendo história. E a história vai ser contada.

Pode-se escolher a honra.

Pode-se escolher o opróbrio.

Bolsonaro torna Justiça e PF puxadinhos da família - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 27/04

Há uma originalidade suicida no governo de Jair Bolsonaro. A ação do presidente é desconstrutiva. Ele já não se preocupa em maneirar. Executa com afinco a missão inconsciente de desnudar-se. Transforma o Ministério da Justiça e a Polícia Federal em puxadinhos da família Bolsonaro. É como se desejasse desvendar os crimes denunciados por Sergio Moro, cometendo-os.

Para a pasta da Justiça, Bolsonaro escolheu o atual secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira. Trata-se de um grande amigo. É major aposentado da Polícia Militar de Brasília. Convive com a família desde garoto, pois seu pai, o capitão do Exército Jorge Francisco, trabalhou por duas décadas com o então deputado Bolsonaro.

Jorge Oliveira foi, ele próprio, assessor parlamentar de Bolsonaro. Trabalhou também como chefe de gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, de quem se tornou padrinho de casamento. É formado em Direito. Mas não vai à pasta da Justiça por ser grande advogado. Ascende ao cargo por ser um advogado genial aos olhos do inquilino da Presidência. Pode não ser um ás em jurisprudência. Mas entende de conveniência.

Para a função de diretor-geral da Polícia Federal, Bolsonaro escolheu o chefe da Agência Brasileira de Inteligência, delegado Alexandre Ramagem. Na campanha de 2018, coordenou a equipe de segurança do então candidato Bolsonaro. A despeito da facada, caiu nas graças de Bolsonaro e de sua dinastia.

Ramagem achegou-se aos três membros do clã Bolsonaro que exercem mandatos eletivos: o deputado Eduardo, o senador Flávio e, sobretudo, o vereador "federal" Carlos. Todos são fustigados por investigações da PF. Flávio, por causa da rachadinha. Eduardo e Carlos, por conta da suposta industrialização de notícias falsas e de ataques a rivais nas redes sociais.

Neste domingo, Bolsonaro foi questionado por um internauta nas redes sociais sobre a escolha de um amigo dos filhos para comandar a PF. Respondeu: "E daí?" É como se o presidente, de passagem pelo Planalto, criasse uma monarquia particular, coroando-se. Está no comando Dom Bolsonaro 1º, o Absoluto.

Como se sabe, há dois tipos de monarquia: as absolutas e as constitucionais. Bolsonaro optou pela monarquia absoluta. O absolutismo lhe pareceu mais conveniente porque, nesse modelo, o soberano não deve nada a ninguém. Muito menos explicações.

O desprezo pelos métodos clássicos de acobertamento faz de Bolsonaro um político atípico. Ele expõe seu desatino pelo excesso. De erro em erro, Bolsonaro vai se convertendo num avanço institucional. Ele deixa pelo caminho as pistas para que os investigadores concluam que, na monarquia de Bolsonaro 1º, reina a desfaçatez.

Pode o IBGE receber tudo das teles? - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 27/04

MP não é melhor caminho para obrigar a entrega de dados de clientes


Dentre tantas polêmicas da semana passada, houve também a questão da medida provisória que obriga as empresas de telefonia a entregar para o IBGE “a relação dos nomes, números de telefone e endereços dos seus consumidores, pessoas físicas e jurídicas”.

O tema causou alvoroço. Entregar mais de 200 milhões de números para um órgão do governo federal não parece ser das melhores decisões de política pública.

A controvérsia foi tão grande que a ministra Rosa Weber concedeu liminar suspendendo sua aplicação. Além disso, a MP recebeu 227 emendas no Congresso. Em outras palavras, 227 congressistas acharam que alguma coisa precisa mudar ali.

Isso em si demonstra que uma MP não é o caminho para tratar de tema tão importante. Ela possui efeitos imediatos. Se os dados forem já entregues, não há como “desentregá-los”. Essa ação (e o dano potencial dela) é irreversível e põe em situação vulnerável todas as pessoas que têm um celular no Brasil.

Além disso, a MP ignora os princípios básicos de proteção de dados, que foram aprovados pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em 2018.

Por exemplo, nem a medida provisória nem a instrução normativa que a regulou trataram da segurança dos dados. Como serão armazenados? Haverá criptografia? Há controle específico de quem acessa? Quem não quiser ter seu número na base do IBGE poderás se opor? Qual o canal e o prazo fazer isso? Todos esses requisitos são exigidos pela LGPD e foram ignorados.

Foi ignorado também o princípio mais importante: a necessidade e proporcionalidade. Qual é o tamanho da amostra de pessoas que a realização da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) demanda?

A Pnad de 2018, por exemplo, trabalhou com 211 mil domicílios. Por que raios então estão sendo pedidos 200 milhões de números?

Um caminho que seria legalmente (e constitucionalmente) aceitável seria limitar a demanda ao número exato de pessoas necessárias para a pesquisa ter validade estatística.

As teles, nesse caso, só entregariam esse número específico. E poderiam adotar o critério de seleção aleatória do IBGE, sem a necessidade de compartilhar nenhum dado além do necessário.

Há também mais soluções. Não seria preciso nem sequer passar números para o IBGE para realizar a Pnad. Basta adotar um sistema de números anonimizados, atendendo aos critérios da pesquisa, em que o IBGE pode entrar em contato telefônico direto com os cidadãos e cidadãs de que precisa, sem que o número dessas pessoas seja revelado.

Seria similar a quem liga para um motorista da Uber ou do Rappi (e vice-versa) e consegue falar com a pessoa sem que os números de cada um sejam revelados. A ligação é intermediada por um sistema desenhado para isso.

Vale ressaltar aqui que o problema não é o IBGE. A presidente do IBGE é um dos melhores quadros do governo federal, e acredito que as intenções por trás da medida provisória sejam as melhores.

O problema foi de forma, e não de conteúdo. Se o IBGE ajustar o texto da MP atendendo aos requisitos acima e outros aplicáveis, sua demanda torna-se não só legítima mas constitucional.

READER
Já era Mandetta na Saúde

Já é Saída de Moro da Justiça

Já vem Guedes na Economia?

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

China corta tarifa e dispara compra de soja dos EUA - NELSON DE SÁ

FOLHA DE SP - 27/04

South China Morning Post diz que preço brasileiro ainda é competitivo, devido à desvalorização cambial


Começou com sites americanos como Agri-Pulse festejando que a "China está comprando mais soja dos EUA", 198 mil toneladas na quarta e 272 mil na quinta, segundo o Departamento de Agricultura.

Dois analistas ligados aos exportadores americanos creditaram o resultado à isenção das tarifas por Pequim, que tornaram os preços competitivos em relação à soja brasileira. O salto nas compras chinesas vale também para a carne americana.


Na sexta, a Reuters noticiou que a "China compra soja dos EUA pelo terceiro dia seguido", agora 136 mil.

Citando duas fontes, a agência acrescentou que o plano chinês é comprar 10 milhões de toneladas de soja americana no ano de mercado 2019/20, o que foi confirmado pela Bloomberg, com a imagem acima, de colheita de soja em Illinois (EUA).

Mas a soja brasileira resiste, garante o South China Morning Post, do grupo chinês Alibaba. "Mesmo com a remoção da tarifa sobre os EUA", diz ao jornal a consultoria Grains Council, "os suprimentos brasileiros são ainda muito competitivos, especialmente dado o enfraquecimento cambial [do real] contra o dólar".

Ainda assim, domingo na Reuters, "Compra chinesa de soja brasileira caiu em março".

TRUMP SEGURA ATAQUE
O site Politico noticia, com chamada no Drudge Report, que os senadores republicanos candidatos à reeleição foram instruídos pelo comando do partido a "atacar a China".

Mas o New York Times informa que Trump discorda, por avaliar que é cedo para voltar com o "vírus chinês". O problema é que "novas pesquisas sinistras em Michigan, Pensilvânia e até Flórida deixam o partido temeroso de perder" não só a Presidência, mas o Senado.


'CAIXIN DESAFIA'
A revista dominical do francês Le Monde perfila o chinês Caixin, que manteve dois repórteres, fotógrafo e editor em Wuhan nos 77 dias de confinamento.

Foi a equipe que entrou no hospital e entrevistou em janeiro o médico Li Wenliang, que havia sido o primeiro a falar publicamente do coronavírus, sendo punido por isso, e morreria uma semana depois, infectado.

Nelson de Sá
Jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.

Brasil se isola na pandemia e lembra África do Sul do apartheid - MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA DE SP - 27/04

No jogo de fatos científicos e agendas políticas, o Brasil está condenado a perder todas as partidas


O maior drama político do governo Bolsonaro explode quando o mundo começa, depois de dois meses de choque e introspeção, a preparar a próxima fase da pandemia, com a transição do confinamento para o “novo normal” na linha de mira.

Uma das poucas certezas é que a reputação sanitária será o fundamento da diplomacia, pelo menos nos próximos dois anos. A administração Trump já começou a condicionar a imigração dos países mais afetados pela pandemia, enquanto a União Europeia se prepara para criar “passaportes sanitários”. Os voos internacionais desembarcam na China em aeroportos selecionados, e seus passageiros são quarentenados.

Na ausência de uma ideia clara sobre a imunidade, as fronteiras de nações ou blocos regionais serão o principal instrumento de regulação epidemiológica nos próximos meses. Nesse jogo que mistura fatos científicos e agendas políticas, o Brasil está condenado a perder todas as partidas.

A resistência em aceitar a nova realidade que caracteriza o governo Bolsonaro coloca o Brasil em situação semelhante à da África do Sul do apartheid no final dos anos 1980. Naquela altura, a comunidade internacional agiu em concerto para isolar um regime que representava tudo o que se considerava moralmente inaceitável. Se a aplicação de sanções é impossível por conta da proteção americana, iniciativas espontâneas podem agravar o colapso econômico.

Como sugeriu Elio Gaspari na sua coluna deste domingo (26), investidores serão pressionados a preterir um país onde o governo desrespeita as medidas mais elementares de prevenção sanitária. Mercadorias brasileiras também serão alvos fáceis para países em busca de argumentos protecionistas.

No imaginário de uma parte da elite nacional, a eleição de Jair Bolsonaro era um bilhete de ida simples para o ocidente: a entrada na OCDE, a integração com os Estados Unidos, o regresso dos grandes investimentos. Agora, essa elite terá de aprender a conviver com a repulsa que suscita um país pária. Por conta das ações do governo, expatriados, empresários e turistas brasileiros terão de se sujeitar a observações desagradáveis em praticamente todo o mundo.

Numa ironia do destino, é a África do Sul que está ocupando o lugar de “esperança do Sul” que o Brasil assumiu na crise de 2008. Desmoralizado por inúmeros casos de corrupção e má-governança, o governo sul-africano recuperou o seu prestígio graças ao pacote elaborado pelo ministro da fazenda e novo queridinho dos mercados, Tito Mboweni: multilateralismo, parcerias com o setor privado e programas de ajuda coordenados com a sociedade civil.

Todo o contrário de Paulo Guedes, o último economista do mundo a pensar que a pandemia seria uma marolinha. A sua apatia abriu caminho para os militares formularem uma alternativa programática. Depois do balão de ensaio desenvolvimentista da semana passada, até os gestores de fundo mais destemidos começaram a fazer as malas para lugares mais preparados para a travessia.

Se o delírio negacionista criou um estigma contra o governo brasileiro, foi o fracasso da política econômica que o confinou definitivamente ao isolamento.

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

A morte das ideias - LUÍS EDUARDO ASSIS

O Estado de S.Paulo - 27/04

Nesta terra onde canta o sabiá, a tese do Estado mínimo está gravemente enferma



A covid-19 não vai apenas ceifar centenas de milhares de vidas. Algumas ideias do pensamento econômico liberal também correm o risco de morrer. O entendimento de que a austeridade fiscal é uma virtude absoluta e incondicional, por exemplo, está sob séria ameaça. Não que a tese gozasse de boa saúde. Ao contrário, ela já estava no grupo de risco desde a crise de 2008, quando os países ricos gastaram o que não tinham para evitar que a recessão fosse ainda mais profunda. Nesta nova crise, mais ampla e mais intensa, novamente os cânones da economia liberal foram mandados às favas em favor de uma ação pragmática. Gastar é tudo o que os governos podem fazer hoje.

O conceito de Estado mínimo já tinha sido conspurcado em dois livros recentes com títulos autoexplicativos, ambos certamente merecedores da ojeriza de nosso ministro da Economia (Austerity, the Great Failure, de Florian Schui, e Austerity, the History of a Dangerous Idea, de Mark Blyth). Para ambos, a austeridade é um mal desnecessário. Ela não funciona e está fundamentada apenas em princípios ideológicos e morais. Atacando por outro flanco, a Moderna Teoria Monetária também corroeu a ortodoxia econômica.

Para a principal porta-voz dessa vertente, Stephanie Kelton, que foi assessora econômica da campanha de Bernie Sanders, o governo não deve se preocupar com o crescimento da dívida pública desde que isso não ameace a inflação. Um Estado soberano que emite sua própria moeda sempre poderá se financiar por meio de novas dívidas. Mesmo o argumento de que as novas gerações herdarão o fardo de resgatar uma dívida pública maior é rechaçado com o exemplo da economia americana no pós-guerra. Os baby boomers nasceram devendo muito, mas ainda assim viveram um longo período de prosperidade que diluiu o ônus da dívida pública emitida pela geração que os antecedeu.

Nesta terra onde canta o sabiá, a tese do Estado mínimo está gravemente enferma. A descoberta de que o governo federal não tem dinheiro, mas ainda assim pode gastar centenas de bilhões é tão atordoante quanto encantadora. Governadores e prefeitos acharam o máximo serem ressarcidos da queda dos impostos sem que tenham de oferecer nenhuma contrapartida. Mas não só eles. O núcleo duro dos militares que cerca o presidente também se empolgou. Se não há o deus da austeridade, tudo é permitido.

O programa Pró-Brasil, anunciado na semana passada, é tosco, foi improvisado e está longe de fazer decolar os investimentos. Marca, no entanto, uma ruptura clara com os ditames austeros do Ministério da Economia. A desarticulação política do próprio governo auxilia no desmantelamento dos princípios ideológicos ultraliberais do ministro Paulo Guedes. É a casa da mãe Joana (e ela saiu para comprar pão).

Resta à equipe econômica abjurar a explosão de despesas e tentar organizar a fila dos pedintes. Desde o início, os economistas do governo aderiram ao aumento dos gastos com o mesmo entusiasmo com que um congregado mariano participa da turma da pipoca no carnaval de Salvador. Essa estratégia é contraproducente porque cria resistências dentro do próprio governo. Sem capacidade de articulação política, o Congresso Nacional vai se embriagar com a possibilidade de aumentar os gastos públicos.

Pode haver muita discussão acadêmica sobre as teses liberais de Paulo Guedes, hoje internadas, moribundas, na UTI. Mas a volta do populismo fiscal seria um preço muito alto a pagar pela incúria de um governo que parecia ter jurado a cruz da austeridade. Quando o mundo não acabar, se o mundo não acabar, será extremamente difícil para um governo acuado pela inépcia retomar os cânticos e louvores ao equilíbrio fiscal.

Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor de Economia da PUC-SP e da FGV-SP.

Alto risco de tragédia - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 27/04

Para viabilizar sua trajetória política, Moro precisará se distinguir de Bolsonaro

Num momento em que todos reprisam, o governo é pródigo em lançar novelas inéditas. Mal acabou a novela Mandetta, entrou no ar a Sergio Moro, e começaram as filmagens da Paulo Guedes. O que está acontecendo na cabeça do presidente Bolsonaro? Ela foi sacudida pelo impacto do coronavírus.

Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro afundou.

Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia: despolitizaram o vírus.

Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.

Desde o princípio, Bolsonaro viu a chegada do vírus como algo que ameaçava seu governo. A única forma de neutralizar sua importância era adotar uma tese que permitisse neutralizar os impactos econômicos. Esta tese foi a de imunização de rebanho: a maioria vai ser contaminada, é melhor que isso aconteça logo para que nos livremos do vírus.

Bolsonaro jamais considerou seriamente o fato de que, se muitos se contaminarem ao mesmo tempo, o sistema de saúde entraria em colapso, muitas pessoas morreriam na porta dos hospitais ou em casa. Um cenário que, de certa forma, se desenhou na Itália e mais tarde, de forma grotesca, em Guayaquil.

Foi por aí que caiu Mandetta. E indiretamente Moro. Bolsonaro sempre pensou em concentrar poderes. Mas a impossibilidade de determinar sozinho uma política contra o coronavírus condensou seu drama. Os governadores e prefeitos tiveram um papel decisivo. O Congresso os apoiou, o STF chancelou essa autonomia local.

A relação com Moro já sofria um desgaste. Mas Bolsonaro, na sua solidão, reclamou da ausência do ministro em sua cruzada contra o isolamento social. Moro, segundo alguns, não só era favorável à política de Mandetta, como pensou em decretar multas para quem rompesse com o isolamento social. O que, aliás, acontece em muitos países da Europa.

Sem o Congresso, STF, ministro da Saúde e da Justiça, Bolsonaro deu um passo decisivo participando de manifestação antidemocrática diante do QG do Exército. Isso resultou num inquérito que acabou se entrelaçando com outro: o das fake news. Os investigados são os mesmos: apoiadores do presidente e, possivelmente, até familiares de Bolsonaro.

Moro teve uma chance de sair depois daquela manifestação. Possivelmente estava incomodado com a posição temerária de Bolsonaro sobre o coronavírus. Mas agora estava diante de uma posição temerária contra a democracia.

Moro não se pronunciou. Num determinado momento de sua trajetória, a mulher de Moro escreveu numa rede social que ele e Bolsonaro eram a mesma coisa.

Ele pode ter sido salvo agora pela maneira como cai. A tentativa de interferir na autonomia da Polícia Federal é algo que não encontra apenas resistência na corporação, mas em muitos setores conscientes da sociedade. É inconstitucional.

Nesse sentido, Moro cai de pé. Mas, para que sua trajetória política tenha viabilidade, será necessário se distinguir de Bolsonaro, algo que não fez quando esteve no governo. O tom de seu discurso de saída é um indício de que compreendeu isto. Pelo menos se distanciou da visão atrasada de submeter o trabalho da PF aos desígnios de um presidente. O que é no fundo um crime de responsabilidade.

Mas Moro indicou claramente que Bolsonaro teme o inquérito no Supremo. Resta agora ao STF assumir seu papel institucional e não amarelar diante da pressão de Bolsonaro.

É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso de Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de tragédia.

Bolsonaro perdeu a Lava Jato - CELSO ROCHA DE BARROS

FOLHA DE SP - 27/04

Sem imagem de cruzada moral, governo passará a ser julgado como os outros


A saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça alterou o equilíbrio político estabelecido pela eleição de 2018. Bolsonarismo e lavajatismo aproximaram-se na campanha de 2018, com consequências trágicas para o Brasil. Romperam na última sexta-feira (24). Não foi pacífico.

Em seu discurso de demissão, Sergio Moro começou lembrando que sob os governos petistas a Polícia Federal tinha mais autonomia que sob Bolsonaro. Doeu porque é verdade, Jair. Moro fez denúncias muito graves. Horas depois, o Jornal Nacional mostrou a conversa de WhatsApp em que Bolsonaro pediu a Moro a demissão do diretor da PF porque deputados bolsonaristas estavam sendo investigados. Na mesma semana em que Bolsonaro rompeu com Sergio Moro, aproximou-se de notórios acusados de corrupção como Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e Arthur Lira.

Agora vamos descobrir se o autoritarismo de Bolsonaro consegue se promover sem parasitar a indignação criada pelas revelações da Lava Jato.

O discurso de guerra às instituições só foi viável em 2018 porque havia uma percepção generalizada de que o sistema era corrupto. Blindado pela facada e por toda uma vida dedicada à irrelevância, Bolsonaro conseguiu se tornar a tela em branco onde todas as fantasias moralizadoras foram projetadas.

Foi um senhor feito; não o subestimem. Mas era tudo mentira. Bolsonaro nunca teve qualquer atuação no combate à corrupção, e a nova aliança com Jefferson e Costa Neto é uma volta para casa.

Da mesma forma, o entusiasmo bolsonarista sempre foi alimentado por notícias falsas e crimes cometidos em redes virtuais, mas a raiva que ali se manipulava tinha um substrato real: os escândalos de corrupção revelados em Curitiba. Agora vamos descobrir se a máquina de crime virtual funciona tão bem jogando sem, ou contra, essa indignação preexistente.

Não há dúvida de que a Lava Jato também cometeu abusos, como ficou claro após as revelações da Vaza Jato. Essa disposição messiânica para passar por cima das regras, manifesta sobretudo no julgamento de Lula, certamente ajudou na aproximação com o bolsonarismo. Mas hoje está claro que Bolsonaro nunca se interessou pelo combate à corrupção, e que, da Lava Jato, Bolsonaro só gostava dos abusos.

Sem a imagem de cruzada moral, o governo Bolsonaro passará a ser julgado como os outros governos, por seus resultados. Como andam os resultados, Jair? Pois é.

Encurralado, Bolsonaro também pode tentar dobrar a aposta autoritária. É bem possível, mas, repito: teria que fazê-lo sem o entusiasmo antissistema que a Lava Jato lhe emprestava.

No momento, o governo tenta se reorganizar com militares e centrão. É cedo para dizer se funciona, mas noto que os militares não morreriam para evitar um governo Mourão. E o centrão não morre por ninguém.

Enquanto isso, tentam vender a tese do “Moro traidor”. O bolsonarista Alexandre Garcia postou que “a facada do Adélio foi pela frente”. A referência é oportuna, porque o bolsonarismo corre o sério risco de voltar aos níveis de popularidade pré-facada. Se acontecer, Bolsonaro pode cair. Se resolverem não derrubar, lembrem-se: isso tudo ele fez, durante a pandemia, porque achou que sobreviveu bem à queda de Mandetta. Imagine o que vai fazer se sobreviver à queda de Moro?


Celso Rocha de Barros
Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

O maior desafio da história de São Paulo - JOÃO DORIA

FOLHA DE SP - 27/04

Muitos desperdiçam tempo com debates estéreis e promoção de ódio


A pandemia de Covid-19 virou o mundo de ponta-cabeça, gerou ansiedade, temor, mortes, confrontos e chacoalhou verdades estabelecidas. Entendo que haja discordâncias e descontentamentos. Mas, à semelhança das grandes democracias, enfrentamos o coronavírus adotando as referências da medicina e da ciência. Ou seja, que o isolamento social é a única forma de evitar a explosão mortífera do vírus.

Em quarentena, ganhamos tempo para preparar hospitais e profissionais da saúde, pesquisar vacinas, certificar medicamentos e produzir testes. Um tempo necessário para cuidar das consequências que atingem os mais vulneráveis. E também para rearranjar a produção industrial e os serviços.
Governos responsáveis estabeleceram prioridades e ações, não politizaram o vírus. Precisamos nos preparar para vivermos com o máximo de normalidade em meio à maior excepcionalidade em mais de um século.

Em São Paulo, teremos quarentena até dia 10 de maio. Nenhum governante tem prazer em ampliar o período de quarentena. Aqui não brigamos com a ciência. Aqui, respeitamos a ciência.

Países ou regiões que retardaram a quarentena sofreram perdas humanas 10 a 20 vezes mais do que as de São Paulo. Consenso não é unanimidade. É uniformidade de propostas em função de um bem maior. No caso, salvar vidas para abreviar consequências econômicas e sociais.

Em boa parte do Brasil, no entanto, vivemos um paradoxo: o acerto das medidas de governadores e prefeitos, que pouparam milhares de vidas até o momento. E os que minimizaram a doença, dando voz a falsos profetas de uma normalidade que não existe. Houvesse pilhas de corpos, os que hoje se queixam estariam em silêncio.

Muitos desperdiçam tempo com debates estéreis, manifestações irresponsáveis e com a promoção de ódio. Será que não conseguem romper a cegueira da ignorância, do egoísmo ou do oportunismo, para olhar além de seus interesses mesquinhos? Fere a lógica imaginarmos que alguns tentam fazer comício em velórios. Não podemos cultuar a morte. Em São Paulo pensamos o contrário: vamos celebrar a vida.

A pandemia cancelou os Jogos Olímpicos, paralisou fábricas, congelou conflitos armados. Confinou 4,5 bilhões de pessoas em 110 países. E agora está superlotando hospitais, ameaçando médicos e enfermeiros. O que ainda é preciso para reconhecer tamanho poder destruidor?

Até que surja uma vacina ou remédio comprovadamente eficaz, o coronavírus será parte do nosso cotidiano. São Paulo preparou sua estrutura de saúde para enfrentar a curva de contaminação.

Estamos comprando equipamentos. Ampliamos o número de leitos. Contratamos novos profissionais. Montamos hospitais de campanha.

Adotamos medidas para reduzir o impacto social da pandemia. Está em curso a maior ação solidária da história do Estado: a doação de quatro milhões de cestas básicas de alimentos, para atender a população mais carente. Uma cesta reforçada com produtos de higiene e limpeza. Essa ação solidária é resultado de doações de quase 90 empresas.

O Estado fornece ajuda financeira para mais de 700 mil alunos da rede pública, em situação de extrema pobreza. Negociamos, com as empresas de água, luz e gás encanado, a carência de 90 dias para famílias de baixa renda que estejam inadimplentes.

Precisamos de união para construir a nova realidade. Quanto maior for nossa disciplina e respeito ao próximo, mais eficiente e segura será a retomada gradual da economia.

Cada município, empresa, indústria ou comunidade deve providenciar suas regras de distanciamento físico nos equipamentos de uso coletivo. Precisamos rastrear rapidamente possíveis contaminações para isolar potenciais doentes e evitar surtos.

A quarentena é uma etapa imprescindível para que São Paulo, e o Brasil, vençam o maior desafio da sua história. Temos de nos guiar pela ciência para derrotar o vírus, pela inovação para retomar o desenvolvimento e pela solidariedade para reduzir o sofrimento. Essa é a tarefa de quem não tem tempo a perder. Nem medo do que fazer.

João Doria
Governador de São Paulo (PSDB), ex-prefeito de São Paulo (jan.2017 a abr.2018) e empresário

Acepções da direita - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 27/04

Os liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o PT, mas dele se afastaram


Dentre as inúmeras confusões do atual cenário político, destaque-se a tendência a atribuir tudo o que o presidente Bolsonaro faça à direita, genericamente concebida. Para alguns, seu eventual fracasso significaria o fracasso “da direita”. A realidade, porém, é muito mais complexa, o País apresenta um leque diversificado de “direitas”: extrema direita, direita conservadora e direita liberal. Se há alguns anos o Brasil estava preso à oposição “direita x esquerda”, hoje a luta política se deslocou para confrontos dentro do campo da direita. O inimigo de Bolsonaro, na pandemia, é João Doria ou Luiz Henrique Mandetta, não Lula e o PT – estes estão desaparecidos de cena. O presidente, aliás, necessita urgentemente da sua volta!

Bolsonaro e seu clã constituem um perfil ideológico que poderíamos denominar de extrema direita; é formado pelo presidente, por sua família, seus assessores mais diretos, um ideólogo identificado com a extrema direita americana e um grupo digital que a eles adere sem nenhum critério crítico. Eis alguns pontos centrais: 1) Sua concepção política está baseada na distinção amigo/inimigo, sempre precisando de alguém para atacar. O diálogo não faz parte dessa concepção por necessitar apontar alguém como inimigo a ser destruído (Lula, a esquerda, Doria, Mandetta, as instituições, Rodrigo Maia, a imprensa, os meios de comunicação, o “sistema”, os políticos, e assim por diante). 2) Em decorrência, necessita do confronto permanente, até mesmo levando instabilidade às instituições. 3) Apoia-se numa teoria conspiratória, própria desse tipo de concepção. Apresenta-se como “vítima” do “sistema”, dos “políticos”, tidos por definição como corruptos, dos que querem abatê-lo das formas mais secretas. 4) Em sua luta contra o “sistema” e a “conspiração”, as instituições democráticas são consideradas obstáculos que devem ser removidos, não têm nenhum valor em si mesmas. 5) Diz falar em nome do “povo”, mas isso significa tão somente os que o seguem fanaticamente nas redes sociais. Ao se pautar por redes sociais controladas e incentivadas por seus filhos e seguidores, robôs incluídos, além dos seus apoiadores que se aglomeram no Palácio do Alvorada, diz estar falando em nome do “povo”. 6) O desprezo pela ciência é outro dos seus pontos centrais, algo claro no combate à pandemia, não seguindo nenhum critério científico ou técnico. A ignorância sobre o que seja a ciência é total, não seguindo regras e critérios vigentes na comunidade científica, de validade internacional. 7) Uso intensivo de fake news nas redes sociais, tornando a mentira e as acusações arbitrárias instrumentos políticos.

A direita, na acepção conservadora, caracteriza-se pela defesa de valores provenientes da tradição e da religião, assim como das instituições existentes. Nesse sentido, privilegia a ordem e o que está publicamente estabelecido. Um exemplo pode ser bem ilustrativo. O estamento militar, no Brasil e no mundo, é de perfil conservador, dada a mentalidade específica que lá se cria. Dentre os seus valores, salientem-se 1) o respeito à hierarquia, mediante comandantes transmitindo suas ordens de acordo com as orientações de sua própria instituição; 2) o mérito como critério de ascensão hierárquica, o que pressupõe cursos e estágios que se tornam condições para qualquer promoção; 3) a família como valor maior, presente em expressões como a “família militar”; 4) o coleguismo e a ajuda mútua, algo que se aprende nos estudos sobre a guerra, assim como na vivência do dia a dia; e 5) o respeito à ordem pública, que se traduz pelo respeito à própria Constituição, à qual todos devem obediência.

O Judiciário, também, tem uma estrutura conservadora, baseada na defesa das leis, que devem resistir ao tempo. É bem verdade que, em seu seio, posições de esquerda se introduziram, como as oriundas do direito dito “alternativo” e do “intervencionismo político”, que dita leis ao arrepio das leis.

Os liberais, por sua vez, têm ganho muito espaço nos anos recentes, sobretudo na área econômica, embora na pandemia venham sofrendo um baque. Coloca-se, agora, a questão da redefinição do papel do Estado, inclusive com a tendência de tornar medidas emergenciais definitivas. O plano “desenvolvimentista”, dito Marshall, anunciado pela Casa Civil, sem a participação da área econômica, mostra o recuo de um liberalismo econômico que parecia assentado.

A direita liberal, contudo, não está acantonada na área econômica, expandiu-se politicamente, tornando-se presente em movimentos e organizações sociais que se estruturam por valores liberais, incidindo em questões comportamentais e numa concepção liberal da sociedade, em contraponto tanto à direita conservadora quanto, mais diretamente, à extrema direita.

Os setores liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o PT, mas dele se afastaram em suas diatribes contra qualquer divergência e em questões comportamentais e culturais. “Votei contra o PT, e não pela família presidencial e por suas concepções e seus valores”, tornou-se mote comum. Novas oposições aí se desenham.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS.

Argentina enfrenta confluência de crises na saúde e na economia - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 27/04

Situação é agravada pelo embate político entre o presidente Alberto Fernández e a vice, Cristina Kirchner

A imagem de um tsunami em câmera lenta parece ser apropriada para se descrever a atual situação da Argentina. A pandemia avança sobre o país, que perdeu a noção de valor da própria moeda, há tempos não tem acesso ao crédito internacional e tenta convencer os credores a aceitarem títulos no valor de US$ 65 bilhões — cerca de 40% da dívida externa não paga, levando-os a uma redução de 62% nos juros e encargos, com um período de carência de três anos. Os credores rejeitaram.

A pandemia e a crise da dívida deixam a Argentina em vulnerabilidade ímpar. No melhor cenário, haverá queda de 5,7% na economia neste ano. Como observou Kristalina Georgieva, diretora do Fundo Monetário Internacional, “da mesma maneira que o vírus afeta as pessoas com comorbidades, as mais vulneráveis, golpeia mais duramente as economias com dificuldades preexistentes.” As perspectivas ficaram mais turvas, no curto prazo, com a saída das negociações comerciais do Mercosul.

Antes da Covid-19 o país se encontrava em “terapia intensiva”, admitia o presidente Alberto Fernández, cuja popularidade aumentou (para 80%) com medidas de prevenção sanitária. Na confluência da pandemia com o calote, assiste-se a uma crise agravada por um duelo pelo poder entre o presidente e sua vice, Cristina Kirchner. Ela acumula a presidência do Senado com a liderança do agrupamento peronista mais radical dentro do governo, La Cámpora, cuja premissa é a confrontação com os Estados Unidos, com as empresas privadas e com os credores do Estado argentino.

“Alberto Fernández nos governa, Cristina nos conduz”, definiu o senador Oscar Isidro José Parrilli, atualmente o principal porta-voz da vice-presidente, em cujo governo (2007-2015) serviu como chefe do serviço de espionagem. O embate Fernández-Kirchner já é perceptível nas decisões estratégicas, como a que levou ao impasse nos contratos privados de suprimento de gás, com subsídios, que há dias quase levou metade do país a um desabastecimento energético.

A ambiguidade no poder aumenta o custo da crise para os 44 milhões de argentinos, dos quais 16 milhões (40% da população urbana) são pobres. Desses, metade está há mais de um ano submetida a uma dieta involuntária por escassez absoluta de dinheiro para comprar comida. O drama se agrava num país que só conheceu a vida na estabilidade econômica, matematicamente expressa pela inflação de um dígito, durante um curto intervalo de 12 anos das últimas nove décadas.

Não é ‘esculacho’, é a lei - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 27/04

Jair Bolsonaro vê as investigações contra o filho Flávio como 'esculacho'. A Nação conta com a Justiça para impedir que 'esculachada' seja a igualdade de todos perante a lei


No início do mês passado, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) requereu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a suspensão das investigações sobre a prática de “rachadinha” em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Para relembrar o caso: em dezembro de 2018, o Estado revelou que um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontou movimentação financeira “atípica” nas contas bancárias de Fabrício Queiroz, amigo da família Bolsonaro e ex-assessor do filho mais velho do presidente da República quando o chamado “01” era deputado estadual no Rio. Para o Ministério Público Estadual, Queiroz gerenciava um esquema urdido no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro para confiscar parte dos salários dos servidores, a tal “rachadinha”, espécie de pedágio a ser pago pelas nomeações.

Desde que o País tomou conhecimento da escandalosa prática, há quase um ano e meio, esta foi a nona vez que Flávio Bolsonaro tentou impedir o avanço das investigações do chamado Caso Queiroz, que, em última análise, o afetam diretamente. Não obstante algumas decisões que lhe foram favoráveis no período, para o bem do decoro parlamentar, da moralidade pública e do viço da democracia representativa, as investidas do senador para obstar o devido esclarecimento de tão graves suspeitas não têm encontrado guarida no Poder Judiciário.

No dia 17 passado, o ministro Félix Fischer, do STJ, rejeitou novo recurso impetrado pela defesa do senador Flávio Bolsonaro contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que reconhecera a legalidade da quebra de seus sigilos fiscal e bancário de janeiro de 2007 a dezembro de 2018. No entender do ministro Fischer, as investigações sobre o esquema da “rachadinha” devem prosseguir porque estão sustentadas por “fortes indícios de autoria e materialidade” na formação do que o magistrado chamou de “grande associação criminosa”. Não há mais dúvida de que houve a prática de “rachadinha”. No entanto, é de grande interesse público que as investigações sobre o Caso Queiroz avancem para que à sociedade seja dado conhecer quem foram os grandes beneficiários de um esquema fraudulento que a um só tempo subverteu o bom uso dos recursos públicos e amesquinhou a atividade parlamentar.

Segundo a defesa do senador Flávio Bolsonaro, as investigações deveriam ser sustadas porque “houve inobservância da formalidade exigida (na quebra dos sigilos do senador) por recente julgado do Supremo Tribunal Federal, em razão de uma suposta troca de e-mails entre o Coaf e o Ministério Público Estadual”, que teria tido acesso às informações fiscais e bancárias do senador por meio ilegal. Em parecer enviado ao STJ, o subprocurador-geral da República Roberto Luís Thomé alegou que “não houve qualquer devassa indiscriminada” na vida financeira de Flávio Bolsonaro, cuja análise se limitou ao período em que o agora senador exercia mandato de deputado estadual.

O ministro Félix Fischer acolheu os argumentos do Ministério Público Federal, julgando ser “distorcida a afirmação de que o Ministério Público requereu, sem autorização judicial, informações sobre todas transações bancárias dos investigados por uma década”. No entender do magistrado, “a pesquisa solicitada estava relacionada apenas às movimentações suspeitas, e não a todas movimentações financeiras e fiscais dos investigados”. Melhor assim.

O pai de Flávio Bolsonaro é uma das mais estridentes vozes a vituperar contra a chamada “velha política”. O filho, portanto, deveria ouvi-lo e torcer pelo pronto esclarecimento do Caso Queiroz, haja vista que poucas práticas caracterizam melhor a “velha política” do que a tal da “rachadinha”. Mas isso, evidentemente, não irá acontecer. O presidente Jair Bolsonaro vê as investigações não como ritos previstos em lei, mas como um “esculacho em cima” de seu filho. O senador, por sua vez, aferrou-se à tese do “complô” contra o pai por trás dessas investigações. A Nação conta com a Justiça para impedir que “esculachados” sejam a moralidade pública e o primado da igualdade de todos perante a lei.

Dados na pandemia - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 27/04

MP que dá ao IBGE informações de teles deve mudar para viabilizar pesquisas


As medidas de distanciamento social, ora necessárias em razão da pandemia de Covid-19, produzem efeitos que vão além da paralisação das aulas, da limitação do funcionamento do comércio e da restrição à aglomeração de pessoas.

Elas acarretam também inevitável impacto sobre a coleta de dados que o Estado realiza de maneira regular —e normalmente de forma presencial. O censo populacional programado para ocorrer neste ano, por exemplo, encontra-se suspenso por tempo indeterminado.

Outros levantamentos, no entanto, não podem ser postergados, sob o risco de levar o país a um trágico apagão estatístico. Destaca-se, nesse rol, a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, conduzida pelo IBGE para apurar taxas de desemprego e informalidade, entre outras.


São dados cruciais para dimensionar as dificuldades que os trabalhadores do país enfrentarão nas próximas semanas e meses, em que a estagnação da atividade econômica vai gerar demissões em diversos setores, bem como para amparar políticas públicas destinadas a enfrentar esse quadro.

A fim de contornar essa dificuldade, o governo federal editou a medida provisória 954, cujo texto determina que as operadoras de telefonia forneçam nome, endereço e telefone de clientes pessoas físicas e jurídicas para que o IBGE realize suas pesquisas a distância.

Trata-se, sem dúvida, de informações sensíveis. Por constituírem uma espécie de chave de acesso individual a milhões de brasileiros, elas possuem valor não apenas para a esfera pública mas também para atividades comerciais e, mais grave, até criminosas.

Assim, não deveriam ser repassadas sem que os cidadãos tenham garantias de que seus dados pessoais não serão utilizados para outros fins, algo que a MP deixa de contemplar de modo satisfatório.

Ela não estipula, por exemplo, nenhum mecanismo de controle, seja da sociedade civil, seja do Judiciário ou do Ministério Público, a fim de minimizar o risco de uso indevido das informações.

Tampouco especifica quem estará autorizado a acessar os dados ou como se dará o monitoramento desse acesso. Ignora, por fim, questões tecnológicas básicas, por exemplo a forma de armazenamento dessa base —se estará criptografada e como será descartada posteriormente.

Diante de tantas incógnitas, agiu bem a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, ao suspender a medida provisória de forma liminar. Cabe agora a Executivo e Legislativo reescrever o diploma, que gera resistência política.

O país precisa de dados confiáveis, mas sem negligenciar a segurança e a privacidade dos cidadãos.