terça-feira, abril 30, 2019

Saudades das cavernas - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 30/04

Os reacionários que enchem a boca com a história desconhecem-na grosseiramente

O tempo é dos reacionários. Falo daquelas "mentes naufragadas", de que falava Mark Lilla no seu livro, e para as quais o presente em que vivemos é tão precário, tão imundo, tão cruel que o melhor é retornar ao passado.

Antigamente, dizem eles, tudo era mais simples, mais ordenado, mais perfeito. Como os revolucionários que tanto abominam, os reacionários são iguais a eles e podem estar à esquerda e à direita, entre ateus ou fervorosos crentes.

Podem ser ambientalistas radicais (não confundir com cientistas) que, seguindo uma criança sueca aparentemente perturbada (Greta Thunberg), defendem um retorno às cavernas para salvar o planeta.

Podem ser nacionalistas extremistas que desprezam a democracia pluralista e sonham com formas autoritárias de política.

Sem esquecer o pessoal das arábias, que procura recriar, pela força das bombas e das decapitações, um novo Califado.

É contra essa moda que se insurge o filósofo francês Michel Serres em ensaio recente. Serres, do alto dos seus quase 90 anos, publicou "Antes é que Era Bom!" (edição portuguesa pela Guerra & Paz), ensaio de uma ironia fina, no qual a autobiografia se mistura com a filosofia. Antes é que era bom?

Sem dúvida, escreve Serres. Para ficarmos apenas no século 20, esse tempo arcádico para onde os reacionários querem voltar, havia grandes estadistas, como Hitler ou Stálin, Mao ou Pol Pot.

E havia também paz, muita paz, ao contrário das barbáries de hoje. Como não recordar, com um sorriso nostálgico, os anos de 1914 ou 1939? Como esquecer os piqueniques em Hiroshima ou Nagasaki? Como não sonhar com os tempos felizes no Gulag ou em Auschwitz?

Mas Michel Serres não se fica pela grande história. A pequena também tem espaço nas suas meditações rezingas. Vejamos.

Antigamente, quando tudo era bom, vivia-se longamente até aos 35 ou 40 anos —e uma família tinha que ter cinco filhos, às vezes mais, na esperança de conservar dois.

Não havia problemas na previdência social porque, em rigor, não havia previdência social. Nem previdência social, nem água encanada, nem sistema de descarga, nem antibióticos, nem anestesia. Uma ida ao dentista era uma experiência deliciosa.

E se o leitor, indignado, acusa Michel Serres de não ser sensível às tribulações do presente —o ambiente, a condição da mulher, a alimentação artificial, as redes sociais—, o pobre filósofo não tem defesa possível para cada um desses males.

A revolução industrial ou o regime de semiescravidão em que viviam as mulheres não têm paralelo com a trágica situação atual.

Redes sociais? O mundo era sem dúvida melhor quando as comunicações duravam semanas (e não segundos) —e as viagens duravam meses (e não horas).

E sobre os produtos naturais que era possível consumir diretamente da origem, sem controle sanitário de qualquer espécie, Michel Serres, filho de agricultores, suspira: era diarreia em família seis vezes por ano! Que interessava a febre aftosa quando era possível beber leite acabado de mungir de uma vaca bucólica e enferma?

Eu sei, eu sei: nunca devemos confundir progresso material com progresso moral. Se, como dizem os hipocondríacos, a saúde é uma fase transitória que não augura nada de bom, o momento que vivemos no Ocidente, de relativo conforto e acalmia, um dia será recordado como um "intermezzo" na história da humanidade. E essa história, como alguém dizia, sempre foi a história dos crimes contra a humanidade.

Mas, por outro lado, como negar que esse "intermezzo" existe? E que, material e até moralmente, nunca estivemos tão bem --na longevidade, na alimentação, no trabalho, no lazer? E até na política, sim, sobretudo quando nos comparamos com os desgraçados fantasmas que cresceram e morreram às ordens de Lênin, Franco ou Ceausescu?

Os reacionários que enchem a boca com a história desconhecem-na grosseiramente. E eu, depois de ler Michel Serres, imagino como seria terapêutico construir uma Disneyland só para eles —um resort gigantesco onde, voluntariamente, os reacionários poderiam experimentar os prazeres do passado com que tanto sonham.

Viveriam 24 horas sob vigilância policial. Trabalhariam a terra com as mãos, ou com instrumentos tão rudimentares como as mãos, e não com as frescuras da tecnologia. Os cuidados de saúde estariam a cargo de um barbeiro —ou, então, de um médico especializado em sangrias ou lobotomias.

E as mulheres reacionárias, especialmente elas, viveriam submetidas aos caprichos dos pais, dos maridos, dos irmãos, sem direitos cívicos de qualquer espécie. Se estivessem em plena menopausa, era hospício para elas.

Ah, já me esquecia: a alimentação seria "autêntica". Como negar aos nostálgicos os prazeres de uma boa diarreia?

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Por um choque de conexão! (Sem email-bomba) - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 30/04

Carlos solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente escancarado



O Brasil Oficial precisa de um “choque de conexão”. Tem de ser radicalmente plugado ao Brasil Real. Hoje este só existe em véspera de eleição. Está excluído de tudo para além do momento em que deposita o voto na urna. “As reformas” são uma novela sem fim a que o País assiste à distância há gerações. “Desta vez vai!” Mas o roteiro é exclusivo do grupo da privilegiatura momentaneamente investido do Poder Executivo, vivendo o papel para ele inédito de pagador e não apenas de gerador de contas, mais os seus interlocutores únicos: o resto da privilegiatura. Pelo País Real, feito touro de arena, entra no picadeiro sozinho, para ser desmontado, o ministro da Economia da vez. No final, todos “cedem”, docemente constrangidos, a seus próprios interesses porque a condição de “governo” é temporária, os empregos e as aposentadorias públicas é que são para sempre.

Não é que esteja faltando convencer alguém. Não há mais o que discutir. Não há mais o que argumentar. Todo mundo está convencido não só da iniquidade criminosa da situação como, a esta altura, da iminência do desastre, mas Miami e Lisboa são logo ali.

Falta entrar nesse debate quem tem tido o sangue chupado. Quem vai ter de continuar aqui. O Brasil sonha esquerda x direita, mas acordado é nobreza x plebeu. “Velha política” é a de político sem patrão, intocável. “Nova política” só quando todo mundo souber quem pôs cada um deles onde está e eles passarem a ter medo que os seus eleitores os tirem de lá todo santo dia; só quando formos nós a dar a última palavra sobre as leis que aceitamos acatar. Esperar que uma nova política nasça de mais regulamentos baixados pela velha é ilusão de noiva.

Estão aí as Forças Armadas para não nos deixarem mentir. O orçamento delas já era uma miniatura do orçamento do Brasil. ¾ do dinheiro vai pra salário. R$ 81,1 bi de 107,7 bi. O gasto com reservistas é maior que com militares da ativa porque, como no resto do serviço público, os aposentados, sempre precoces, são remunerados pelo provento máximo. Nas FAs eles custam, por enquanto, R$ 46,2 bi por ano contra contribuições previdenciárias de R$ 2,4 bi. O resto paga o favelão nacional que não se aposenta nunca. O que sobra para investimento em equipamentos de defesa, que é a parte que nos cabe nesse latifúndio, é o mesmo que sobra para investimento em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas na União, nos Estados e nos municípios. Estão orçados para este ano R$ 9,8 bi, 16% menos que em 2018, número que irá de menos em menos até o amargo fim empurrado pelas fórmulas de “reajustes” automáticos que a privilegiatura ativa ou aposentada se atribui como “direito adquirido”, se nada mudar muito nesse meio tempo.

E já sabemos que vai mudar, só que para pior. Como toda a discussão se dá exclusivamente entre eles e com base exclusivamente nos parâmetros deles, não será corrigida a pornográfica defasagem para cima do salário inicial de R$ 18 mil do ascensorista do Congresso em relação à realidade do favelão nacional. Será, sim, corrigida a defasagem para baixo do salário do general em relação ao dos ascensoristas do Congresso.

A “alternativa militar” na sua vez no poder após 34 anos de ostracismo resolveu o seu, portanto. Tomou distância do Brasil plebeu e está agora pau a pau com a privilegiatura.

E o desemprego? A economia paralisada? A guerra civil que mais mata no mundo? Quem?! Como?! Onde?! A gente do poder tem mais o que fazer. Mas se valer olhar pelo buraco da fechadura do banheiro, é bom lembrar, nem o papa resiste. Carlos Bolsonaro solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente da República escancarado. Anda sempre à beira de um ataque de nervos. O dedo puxa o gatilho antes da participação do cérebro. Com ele tudo logo vira um enredo “família Bórgia”. Na equipe, no palácio, no Brasil, no mundo, tudo é uma só e mesma conspiração. Com o filósofo esotérico esbravejando por cima, essa “noia” toda ganha um endosso “teórico”. E então, dia sim, dia não, o ratinho que sai de um buraquinho vira um ratazão, vira um tigre-leão.

Nos albores da internet ganhou enorme notoriedade o “email-bomba”. O cara chegava em casa vindo do boteco e começava a “desabafar por escrito” no computador. Vomitava tudo de mais azedo que tinha atravessado na garganta desde priscas eras, como fazia antes de si para si. Só que no final, “uósh”, lá ia o bomba para o computador de alguém, onde ficava gravado para todo o sempre para ser lido, relido e cem vezes amargado. E de lá vinha outro do mesmo calibre, vazado naqueles termos que nos sobem à veneta na hora da raiva, mas que se repetidos em voz alta não passariam na polícia do bom senso.

As regras de convivência, a cerimônia e o mínimo de polidez exigidos no trato social, até pelos indivíduos mais toscos, foram moídos pela internet, onde o “convívio” se dá entre solidões. Você, o semianalfabeto, o “noiado”, todo mundo conversa na rede sozinho no seu canto, trancado no banheiro, sem ouvir o que ele próprio está dizendo, sem ver a reação das pessoas, sem o concurso do tom de voz, da expressão do rosto, do gestual, enfim, que dá a cor e o peso ao que é dito e ouvido, sem esclarecer os mal-entendidos. O que passa de um computador para outro nessas discussões é o texto sem contexto nem revisão. Despido. Árido. De pedra.

O resultado é a guerra. Mundial e de todos contra todos, cada vez mais. Babel. Coisa de Exu.

Isso arrebentou tantas amizades, tantas empresas e tantas famílias que um dos primeiros aplicativos que fez sucesso na lojinha da Apple foi um que procurava sinais de excesso de substâncias intoxicantes no texto dos emails digitados após o anoitecer (erros de grafia, palavrões, etc.) e aplicava um bom questionário ao seu autor, buscando aferir o grau de consciência crítica que lhe restava antes de liberálo para envio.

Sumiu. E pelo que está pintando, vai levar 5 gerações para o 03 entender a importância fundamental dos ritos do poder. O diabo é que o Brasil não tem nem mais 5 minutos pra perder.

Lula, o incorrigível - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 30/04

Entrevista do ex-presidente e presidiário na semana passada põe em dúvida a capacidade do sistema prisional de ressocializar detentos.


A entrevista que o ex-presidente e presidiário Lula da Silva concedeu na semana passada põe em dúvida a capacidade do sistema prisional de ressocializar os detentos. Pois o chefão petista, mesmo depois de um ano na cadeia, deu todos os sinais de que continua o mesmo: além de não reconhecer os crimes que cometeu, julgando-se um preso político, Lula não foi capaz de admitir nem sequer a participação da fina flor do lulopetismo nos maiores escândalos de corrupção da história brasileira, assim como não admitiu o envolvimento ativo do PT na ruína econômica, política e moral do País. Ou seja, é o Lula de sempre.

Na entrevista, dada aos jornais Folha de S.Paulo e El País, Lula, quando questionado sobre a corrupção petista, respondeu: “Ela (a corrupção) pode ter havido”. Isso significa que, para o ex-presidente, a condenação de alguns dos principais dirigentes petistas (inclusive do próprio Lula), de vários tesoureiros do partido e de diversos políticos que de uma forma ou de outra estavam ligados a governos petistas não é suficiente para caracterizar a corrupção petista. É difícil imaginar o que mais seria necessário para que o líder máximo do PT finalmente admitisse os crimes cometidos por ele e seus correligionários – primeiro passo para provar sua regeneração.

Mas Lula ainda acha que é preciso uma “prova” e que ele seja julgado “em função das provas”. É como se os oito juízes que já o julgaram e o condenaram por unanimidade até agora, em três instâncias judiciais, fossem todos despreparados ou, pior, mancomunados para prejudicá-lo e, por extensão, aos pobres do País. Para Lula, aliás, a “farsa” de seu processo foi “montada no Departamento de Justiça dos Estados Unidos”. Com o passar do tempo, a narrativa lulopetista para as agruras do demiurgo de Garanhuns vai adquirindo contornos de fábula – ainda mais quando Lula diz que “combater a corrupção é uma marca do PT”.

Lula tampouco aceita fazer qualquer reflexão sobre seus erros e os do PT, que custaram o isolamento do partido mesmo entre as esquerdas. Ao contrário: o único “erro grave” que o ex-presidente admite ter cometido foi o de não ter feito “a regulamentação dos meios de comunicação” quando esteve no governo. Em português simples, se a imprensa tivesse sido “regulada” – um eufemismo nada sutil para censura e pressão –, Lula e seu partido não estariam sofrendo todos esses dissabores.

Para Lula, é preciso “fazer uma autocrítica geral neste país”, em razão “do que aconteceu em 2018 na eleição” – ou seja, quem precisa refletir sobre seus erros é o eleitor brasileiro, e não o PT. “O que não pode é este país estar governado por esse bando de maluco”, disse o ex-presidente – o mesmo que legou ao Brasil um desastre chamado Dilma Rousseff, responsável por dois anos de recessão e pelo colapso das contas públicas, e o mesmo que entregou o patrimônio nacional a quadrilhas de corruptos e a empresários desonestos.

Lula e o PT ainda são forças políticas consideráveis e poderiam ser importantes para a construção de uma oposição forte e atuante ao governo de Jair Bolsonaro, algo que é essencial ao bom funcionamento da democracia. Mas a irresponsabilidade e o espírito autoritário do lulopetismo impedem que o ex-presidente e seus devotos aceitem a democracia quando esta não lhes favorece – seja na forma do voto na urna, seja na forma de uma condenação judicial, mesmo que, em ambos os casos, tenham sido respeitados todos os trâmites estabelecidos na lei.

Ao mesmo tempo que diz respeitar “o voto do povo” e que “o povo não é bom só quando vota em mim”, Lula colocou a eleição em dúvida ao dizer que foi “atípica”, pela “quantidade de mentiras” disseminadas pelos adversários – como se os petistas não usassem essas mesmas armas, desde sempre. Para Lula, que fez sua carreira dividindo o País entre “nós” e “eles”, nunca se viu “o povo com tanto ódio nas ruas”.

Assim, Lula continua a apostar na polarização – a mesma estratégia da militância que sustenta o presidente Bolsonaro. Ou seja, os dois extremos ganham, enquanto o País perde.


O presidente das pequenas coisas - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 30/04

Bolsonaro dedica-se a assuntos que não deveriam estar entre suas prioridades

Até as pedras sabem que o sucesso do governo Bolsonaro dependerá da economia, mais especificamente da reforma da Previdência e de outras medidas que destravem o crescimento. Não obstante, o mandatário prefere dedicar suas energias a uma cruzada moralista e a assuntos que, embora não sejam desimportantes, jamais deveriam ocupar o topo da escala das prioridades presidenciais.

Jair Bolsonaro está se tornando o presidente das pequenas coisas. Na semana passada, ele censurou uma peça publicitária do Banco do Brasile fez observações pouco congruentes sobre o turismo gay. Isso foi até a quinta-feira. Na sexta, manifestou apoio a um plano do ministro da Educação de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”.

Uma coisa se pode dizer em favor de Bolsonaro. Ele não comete estelionato eleitoral. Tenta cumprir todos os desatinos prometidos durante a campanha. Não dá para reclamar de ele ser conservador. Ele foi eleito com essa plataforma e, numa democracia, se a sociedade decide coletivamente caminhar para trás, caminha-se para trás.

Só que o presidente perde a razão quando se apoia em erros factuais para justificar suas idiossincrasias. Não é verdade, por exemplo, que exista uma centralização de investimentos em faculdades de filosofia e sociologia. Como mostrou análise de Sabine Righetti e Nina Stocco Ranieri, as matrículas em filosofia ou sociologia representaram apenas 0,6% do total de inscrições em 2017. São ainda cursos incomensuravelmente mais baratos que os de áreas tecnológicas, o que significa que é preciso ter tomado um ácido para imaginar que exista concentração de verbas nessas carreiras.

Como dizia o senador americano Daniel Patrick Moynihan, aliás, uma rara combinação de pessoa que deu certo na política e na academia (sociólogo), “você tem direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos”.

Vai dar o que falar - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 30/04

Bolsonaro não pode meter a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é.


Opresidente Jair Bolsonaro deu boas notícias ontem a um setor fundamental não apenas para o seu governo, mas para a própria economia brasileira: o agronegócio. A questão é que, ao agradar ao setor, o presidente está desagradando a outros setores. “Vai dar o que falar”, admitiu ele após uma das notícias. Acertou em cheio.

Depois de torrar bilhões de reais da Petrobrás por ingerência no preço do diesel e de dividir o Planalto ao vetar uma propaganda do Banco do Brasil para o público jovem, o presidente voltou à carga ontem contra a autonomia das estatais, aliás, do mesmo BB. Apelando até ao “coração e ao cristianismo” do presidente do banco, pediu a redução dos juros no crédito rural. Essa é uma forte reivindicação do setor, que adorou a iniciativa. Mas o mercado se arrepiou mais uma vez e as ações do banco sofreram.

Bolsonaro também aproveitou a Agrishow, a maior feira de agronegócio da América Latina, para anunciar que enviará ao Congresso uma proposta para isentar de punição o produtor rural que atirar em invasores de sua propriedade. Para o pessoal de Direitos Humanos, corresponde a uma licença para matar. E não só invasores, mas concorrentes e desafetos.

Por fim, o presidente anunciou R$ 1,5 bilhão para a agricultura e avisou que está fazendo “uma limpa” no Ibama e no Instituto Chico Mendes (ICMBio) e adorou a ida de policiais militares para o instituto, anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente. Como árbitro nos naturais conflitos entre agricultura e ambiente, o presidente assumiu um lado em detrimento do outro.

Bolsonaro tem muita razão em prestigiar e investir no agronegócio, um dos orgulhos nacionais e um dos propulsores do desenvolvimento brasileiro. Se não fosse a agricultura, o tombo do PIB na era Dilma Rousseff teria sido muito pior e mais drástico.
O setor responde por 23% do PIB, ou seja, por praticamente um quarto de todos os bens e serviços produzidos no País. Também é responsável por 32% da mão de obra e foi o segundo setor que mais cresceu em 2018, apesar de todas as dificuldades.

Além disso, já passou da hora de amplos setores da opinião pública e da academia deixarem de acreditar que a área rural e a agricultura são “atrasadas”. A área rural é conservadora em costumes, sim, mas a agricultura, definitivamente, não é atrasada.

As gerações foram se sofisticando, estudando nas melhores escolas, especializando-se mundo afora, investindo nas tecnologias mais up-to-date. Se os patrões modernizaram-se, as condições de trabalho igualmente avançaram muito ao longo das décadas.

O Brasil está entre os três maiores exportadores agrícolas do mundo. Logo, é uma potência nessa área e só chegou lá porque trabalha com maquinário, sementes e defensivos agrícolas altamente sofisticados – e que exigem mão de obra proporcionalmente bem capacitada.

Todas essas condições já tão especiais ganharam foco e tendem a ser potencializadas no atual governo. Afinal, a agricultura foi uma das primeiras e mais decisivas áreas a aderir à campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República, no rastro do desencanto do setor e das regiões Sul e Centro-Oeste com o PSDB.

Para arrematar, Bolsonaro escolheu para o Ministério da Agricultura a engenheira agrônoma e empresária Tereza Cristina, deputada do DEM de Mato Grosso do Sul e presidente da bancada ruralista.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas nada disso pode significar liberdade para Bolsonaro insistir em imitar Dilma e continuar metendo a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é. Não pode dizer uma coisa e o presidente fazer outra. Aliás, fazer uma atrás da outra.

A agricultura é fundamental, mas nada justifica Bolsonaro agir como Dilma e intervir no BB

As redes sociais da Presidência - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 30/04

No início de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro deu aos brasileiros minimamente sensatos uma nesga de esperança de que, uma vez passadas as diatribes da campanha eleitoral, suas redes sociais seriam geridas com zelo e profissionalismo, como convém a um meio de comunicação que é amplamente utilizado pelo presidente da República.

O Decreto n.º 9.671, publicado no dia 2 de janeiro, entre outras disposições, atribuía à Assessoria Especial da Presidência da República, em coordenação com a Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo, a “competência para administrar as contas pessoais das mídias sociais do Presidente da República”. Ou seja, servidores públicos seriam os responsáveis por administrar as contas do presidente na internet e decerto o conteúdo publicado haveria de passar por um crivo republicano.

É sobejamente conhecido o apreço que Jair Bolsonaro tem pelo Twitter e pelo Facebook como meios de “comunicação direta” com o público, a tal ponto que seu triunfo eleitoral, em larga medida, é atribuído ao uso que fez das redes sociais para transmitir sua mensagem aos eleitores ante o exíguo tempo de propaganda no rádio e na TV.

No decorrer da campanha eleitoral, suas contas nas redes sociais foram administradas por seu filho Carlos Bolsonaro, vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo PSL. Carlos é usuário compulsivo das redes sociais e tido como hábil manipulador das informações que circulam naquele ambiente.

Uma coisa, no entanto, é a comunicação do candidato à Presidência. Outra, muito distinta, é a comunicação oficial do chefe de Estado e de governo. O Decreto n.º 9.671, portanto, indicava novos ares.

A esperança não durou mais do que poucos dias. Tanto Jair Bolsonaro não passou a moderar suas publicações nas redes sociais, tendo em vista o alto cargo que passou a ocupar na República, como suas contas, quando não administradas por ele mesmo, continuam a ser usadas por terceiros que não detêm prerrogativa para tal.

Para soltar as amarras legais que ele mesmo, em boa hora, havia atado, o presidente Jair Bolsonaro editou um novo decreto – Decreto n.º 9.703, publicado em 8 de fevereiro – revogando as disposições do Decreto n.º 9.671 que atribuíam a competência para a administração de suas contas pessoais nas redes sociais à Assessoria Especial da Presidência da República. Em outras palavras: servidores responsáveis por administrar as redes sociais do presidente da República, oficialmente, não têm mais qualquer ingerência sobre o que sai publicado no Twitter e no Facebook em nome de Jair Bolsonaro. Na prática, se assim quiser, o presidente da República pode deixar que um de seus filhos, ou qualquer pessoa que ele designar, publique informações em seu nome nas redes. Uma temeridade.

De acordo com reportagem do jornal Valor, o dispositivo do Decreto n.º 9.671 que procurava dar seriedade às postagens públicas da Presidência da República no Twitter e no Facebook foi revogado porque – pasme o leitor – “não deu certo e o presidente continuou postando”. Diz-se que o Brasil é um estranho país onde há leis que “pegam” e leis que “não pegam”. É preocupante quando uma lei “não pega” nem para o chefe do Poder Executivo.

A necessidade de moderação no uso das redes sociais pelo presidente se dá, antes de tudo, porque o que Bolsonaro diz ou escreve tem evidentes repercussões políticas e econômicas. Deveria ser desnecessário enfatizar que as pulsões do presidente no manuseio de suas redes sociais são incompatíveis com a estabilidade de que o País precisa.

O porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, um funcionário sério e responsável, passou a trabalhar com nova estrutura de comunicação do governo. Era de esperar que, com a nova organização, as crises geradas pelo uso das redes sociais pelo presidente Bolsonaro fossem pelo menos amenizadas. Mas tudo continua na dependência de o presidente Bolsonaro entender a natureza do cargo que ocupa e o alcance que têm as suas palavras.

Invencionice tributária - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 30/04

Ampliação de incentivos para Zona Franca de Manaus desestimula modernização


Numa decisão que fragiliza ainda mais os depauperados cofres públicos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 6 votos a 4, ampliar os incentivos fiscais para a Zona Franca de Manaus (ZFM).

Na interpretação criativa da corte, empresas que comprarem insumos produzidos na região, já isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), terão mesmo assim o direito a crédito tributário —uma compensação financeira a cargo do governo— nas etapas subsequentes da cadeia produtiva.

Se o entendimento se mostra no mínimo controverso, o custo para o conjunto dos contribuintes é certo e estimado pela Receita Federal em R$ 16 bilhões anuais.

Mesmo antes da nova benesse, a ZFM já figurava entre os maiores programas de subsídio oficial a empresas, a um custo de cerca de R$ 25 bilhões ao ano. Foi estabelecida num longínquo 1967 como recurso temporário de fomento regional, mas um lobby público-privado e multipartidário já conseguiu esticar sua vigência até 2073.

Defensores da medida do STF repetem o surrado argumento da necessidade de apoiar entes menos desenvolvidos da Federação —como se a experiência já não tivesse demonstrado a baixa eficácia desse modelo obsoleto de incentivos.

Manaus abriga um caso raro, talvez único no mundo, de zona franca cujo objetivo principal não é exportar, mas produzir para o mercado interno. A teia de benefícios, agora ampliada, desestimula a modernização das fábricas e aprofunda o caos tributário nacional.

A distorção no sistema produtivo é evidente. Companhias alteram sua logística, sacrificando a eficiência, para reduzir o pagamento de impostos estaduais; a decisão do STF tende a gerar efeito similar.

Ademais, como alertam alguns especialistas, o crédito extra para os insumos pode tornar menos atrativa a produção de bens de maior valor agregado na região, com perda para a população local.

Passa da hora de enfrentar interesses estabelecidos e conceber mecanismos mais eficazes. Uma alternativa seria, por exemplo, aportes diretos da União com foco na proteção ambiental e exploração sustentável da biodiversidade.

Uma revisão geral dos excessivos benefícios tributários brasileiros, aliás, constitui o caminho mais óbvio para reduzir distorções econômicas e melhorar a qualidade da arrecadação dos governos —de preferência, com margem menor para invencionices judiciais.

Francamente - ANA CARLA ABRÃO

O Estado de S. Paulo - 30/04
Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em imposto que nunca foi pago



Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) se arvorou a fazer política pública. Ao determinar que o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de empresas que comprem insumos produzidos na Zona Franca de Manaus seja reconhecido como crédito tributário, o STF ampliou uma política pública cuja eficácia é amplamente questionável e cujos custos, já grandes, passarão a ser ainda maiores. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas ainda a serem conhecidas.

A decisão do STF, embora tomada a partir do julgamento de recursos judiciais impetrados pela União, vem em defesa de questões que vão além de sua competência constitucional. Os votos favoráveis à decisão avançam com base em análises econômicas de proteção do emprego na região e do impacto sobre o desmatamento da Amazônia. Por trás dessas análises, estudos esporádicos, com conclusões cuja robustez os ministros certamente não têm como julgar. Daí a importância de se criar a sistemática formal de avaliação de políticas públicas no Brasil.

Políticas públicas podem atuar tanto pelo lado da receita quanto pelo lado da despesa. Pela receita, o sistema tributário de maneira geral, os tratamentos fiscais diferenciados, sejam eles isenções, alíquotas diferenciadas ou simplificadas ou a definição de alíquotas de impostos para cada faixa de renda, são todos exemplos de políticas públicas. Tarifas de importação, fixação de preços e regulação de bens e serviços públicos também são políticas públicas. Todas elas têm impacto direto ou indireto na economia e na disponibilidade de recursos dos entes federados e da sua capacidade de atender às demandas da população.

Pelo lado da despesa, todo dispêndio público também é uma escolha de política pública. Desde as vinculações constitucionais que determinam gastos em áreas definidas como prioritárias, programas sociais como o Bolsa Família e tantos outros, a divisão do orçamentos entre as diversas áreas e órgãos do governo, são todas decisões de política pública. Da mesma forma, escolhas ligadas à gestão como a destinação final dos recursos ou onde priorizar os gastos de investimento, cada vez mais reduzidos, tudo é política pública.

Ou seja, decisões de política pública são tomadas diariamente pelos nossos governantes e legisladores por meio da proposição e/ou aprovação de leis. Mas quase nenhuma dessas decisões é previamente avaliada, seguidamente monitorada e eventualmente revista, ajustada ou descontinuada em razão de sua baixa efetividade. Somos profícuos e criativos em desenhar, propor e aprovar novas e ousadas políticas públicas. Mas somos parcimoniosos em interrompê-las quando não estão dando certo. E somos muitas vezes ignorantes em relação aos seus reais impactos – antes e depois de implantadas. Falta investir tempo avaliando e redesenhando o que aí está e não funciona. Afinal, recursos são escassos e carências são infinitas, o que por si só já justifica uma postura mais austera em relação às nossas políticas. Falta, como condição precedente para a aprovação e implantação de novas e a continuidade de velhas políticas públicas, ser guiado por uma avaliação criteriosa – e não somente pelas por pressões de grupos de interesse ou políticos.

Mas é no campo das isenções fiscais que nos tornamos campeões em desenhar políticas públicas igualmente inovadoras e desastrosas para o País. Conforme relatório apresentado pelo TCU, só em 2017 foram R$ 354 bilhões em isenções fiscais cujo resultado não é, na melhor das hipóteses, aquele que seria o esperado. Na pior, foram um dos motores do processo de desequilíbrio fiscal que nos empurrou para esses últimos duros anos de recessão, desemprego e baixa produtividade.

Mas mesmo campeões, ainda conseguimos inovar. Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em um imposto que nunca foi pago. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas.

Os custos estão claros. Os benefícios – e se esses justificam os custos – ninguém sabe, ninguém viu. Nem verá. Francamente, não precisamos de mais uma instância fazendo política pública sem avaliação – ainda mais, má política pública.

O centro se arma - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 30/04

Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar

A busca de alternativas à polarização política não terminou com as eleições, muito ao contrário. Esmagado pela disputa ideológica entre Bolsonaro e o PT, o centro político procura uma saída para o impasse instalado, já que o presidente e seus seguidores continuam a alimentar essa radicalização a fim de manter viva a chama do eleitorado de extrema-direita que forma o núcleo duro de apoio ao governo, cuja popularidade vem perdendo substância.


O PT, no outro extremo, continua empenhado na mesma luta ideológica de sempre, sem admitir seus erros nem fazer uma necessária, mas impossível, autocrítica. A única saída do PT parece ser “fugir para a frente”, fazer de Lula uma vítima de conspiração. Uma vitória do partido seria (será?) sua absolvição política.

As pesquisas atestam uma queda de popularidade de Bolsonaro justamente por dedicar-se mais a cevar seu nicho eleitoral do que a ampliar sua atuação para atender aos demais cidadãos que votaram nele por diversas outras razões que não apenas a visão moralista tosca e a guerra ideológica incessante.

Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição do ano passado está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar, sem dar chance a que Lula ou Bolsonaro se aproveitem de seus erros para continuarem sua disputa particular. Dois populistas em busca da perpetuação no poder.

Os movimentos de aproximação do novo PSDB sob o comando do governador de São Paulo João Doria, e o DEM se tornaram evidentes pela escolha do relator da reforma da Previdência, com os tucanos ganhando um posto chave na questão mais central da política hoje, uma decisão que coube ao presidente da Câmara Rodrigo Maia, do DEM.

Ao mesmo tempo, na convenção do DEM em São Paulo, o governador Doria foi aclamado como candidato a presidente. As conversas entre PSDB e DEM têm a participação também do PSD de Kassab, para se fundirem um único partido, ou para trabalharem em conjunto na direção da centro-direita e se opor aos radicalismos de esquerda e de direita.

O Centrão ganhou a presidência da Comissão, e terá o poder de controlar o tempo da tramitação, mais rápida se seus pleitos forem atendidos pelo governo, mais lenta se houver resistência a eles. Ganhará importância política se seus membros entenderem que os pleitos não podem ser fisiológicos como geralmente foram no passado.

O cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas do Rio, especialista na análise do quadro partidário brasileiro e sua interação com o Executivo, já há algum tempo vem tentando identificar qual o papel que o PSDB poderia vir a ocupar em um governo Bolsonaro. Especialmente porque, com as derrotas sucessivas à presidência, vem perdendo paulatinamente a capacidade de exercer a função de protagonista no jogo majoritário.

A sua hipótese é que o PSDB poderia exercer o papel de legislador mediano, algo semelhante ao que o PMDB exerceu nos governos FHC, Lula e Dilma. Sem repetir os erros. A distribuição ideológica dos partidos na Câmara dos Deputados que emergiu das ultimas eleições revela, segundo Carlos Pereira, que PSDB e PSD passaram a ocupar exatamente esse mediano.

Como os partidos maiores (PT e PSL) estão distantes do mediano, analisa Carlos Pereira, o PSDB teria o perfil ideal e mais confiável para os outros partidos para evitar um relatório extremado, tanto para à esquerda como para a direita.

Acho, diz ele, que faz completo sentido o PSDB, PSD e DEM tentarem se fundir em uma nova alternativa de centro-direita. São partidos ideologicamente hoje muito próximos, depois que as lideranças tucanas mais identificadas com a centro-esquerda perderam a influência, avalia Carlos Pereira.

Tudo, no entanto, parte da premissa de que os políticos entenderam que indicar nomes para a administração não pode significar mais querer “aquela diretoria da Petrobras que fura poço”. E que o Executivo entenda que governar num modelo de coalizão pressupõe repartir o Poder com o Legislativo.


partidos 1 | divulgação

O que é o bolsonarismo? - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 30/04

Em matéria de objetivo, o bolsonarismo em nada difere do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado


Essa pergunta se tornou frequente desde que me lancei a uma série de artigos em que tento radiografar a força antipolítica que preside o Brasil. A resposta não é banal, embora facilitada pelo estudo da ascensão do que se pode chamar de nacionalpopulismo mundo afora. Está claro, a propósito, que o sumo bolsonarista deriva mais da cepa populista corrente na Europa, notadamente a húngara, do que da singularidade do que exprime Donald Trump, em favor de quem sempre haverá a rede de proteção democrática americana.

O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou a atividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.

O bolsonarismo tem meios e códigos próprios. Como desdobramento do desprezo pela democracia representativa, despreza a instância partidária — descartada como base por meio da qual se aglutinar e financiar, ao contrário da relação entre PT e lulopetismo. A forma bolsonarista de lidar com o PSL é eloquente. O partido consiste numa estrutura para fins meramente utilitários, esvaziado da mais mínima chance de ter caráter e identidade, condição fundamental para futuro despejo. Em matéria de objetivo, porém, o bolsonarismo em nada difere daquele do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado.

Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual, de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente — do conflito constante — em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.

O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.

A revolta dos caminhoneiros, de maio de 2018, ilustra essa efusão pelo caos. O bolsonarismo é a revolta dos caminhoneiros, levante que soube distinguir e que encampou com engenho, e por meio do qual testou hipóteses sobre até onde se poderia esticar a corda da pressão popular em rede e instrumentalizá-la contra o establishment. Aquela mobilização criminosa, evento pré-eleitoral, foi destacado componente na cesta de insatisfações e falências que resultaria na eleição de Bolsonaro.

Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar — sob tal conformação — que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.

Insisto, no entanto, em que não se deve observar o que está em curso com os olhos engessados do século XX, como se estivéssemos diante de uma marcha ditatorial que suprimirá liberdades e fechará o Congresso. O bolsonarismo avança para comprimir, e sempre precisará do que comprimir, de resto porque promove a insólita limpeza que aparelha para desaparelhar. Este é seu modus operandi: como o cupim, mina as bases, corrói os pilares, mas sem desarmar a carcaça. Precisa do aparato democrático em modo de segurança, em versão econômica, tão somente funcional, para emparedar e subordinar tudo quanto possa ser apregoado como musculatura autônoma e ameaçadora.

Para dar corpo à mentalidade e figura às práticas: Carlos Bolsonaro é mais bolsonarista do que Jair Bolsonaro; Eduardo Bolsonaro, idem — e é a ação deste filho, respaldada pela guerrilha daquele, que será lastreada pelo bolsonarismo.

É hora de avaliar a real eficácia dos subsídios à Zona Franca de Manaus - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/04

Modelo é insustentável no longo prazo, pela dependência crescente de dinheiro público



Raríssimas são as iniciativas de políticas públicas no Brasil que atravessam incólume os mandatos de dois governos. O caso da Zona Franca de Manaus é singular. Ela recebeu garantia constitucional de existência até o ano de 2073, quando completará 116 anos de vida custeada por todos os brasileiros.

Trata-se de uma escolha política, à princípio justificável por objetivos como o desenvolvimento da Amazônia em bases alternativas ao extrativismo de alto risco para o bioma e a floresta, dos quais a Ciência ainda conhece muito pouco.

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu destinar mais recursos à Zona Franca de Manaus via renúncia fiscal.

Ela já custa ao país cerca de R$ 24 bilhões anuais. O STF resolveu adicionar outros R$ 16 bilhões por ano em incentivo (via crédito de IPI) às 600 empresas da área, cujas atividades abrangem desde a produção de refrigerantes até eletroeletrônicos.

Essa despesa deve superar R$ 50 bilhões nos próximos cinco anos. Mas poderá duplicar se as empresas obtiverem em tribunais direito a créditos tributários sobre as compras dos últimos cinco anos.

Além de isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados, as empresas de Manaus têm um cardápio de outros benefícios fiscais, como alíquotas tributárias diferenciadas (PIS e Cofins), restituição de 90,25% de ICMS, desconto de 75% no Imposto de Renda, redução de imposto na importação de insumos, descontos de IPTU sobre terrenos e imóveis adquiridos por doações ou isenções locais.

O argumento dominante no STF foi o mesmo que se esgrime desde 1957, sobre a necessidade de desenvolvimento com proteção ao patrimônio amazônico. Em contraste, alertou a minoria vencida no Supremo, essa política tende a desestimular a industrialização integrada e a expansão da oferta de empregos qualificados, de melhor remuneração.

O fato relevante é que, depois de 62 anos, o modelo de Manaus precisa de completa reavaliação. Ele é insustentável no longo prazo, pela dependência crescente de dinheiro público para garantir poder de competição a negócios privados lá instalados.

O caso de Manaus deveria ser exemplo de mudança na concessão de subsídios estatais, obrigando-se à submissão a padrões rígidos de eficácia na multiplicação do emprego e da renda local, em comparação com os custos para a sociedade.

O lobby regional conseguiu prorrogar a Zona Franca de Manaus na Constituição pelos próximos 54 anos. Quem vai pagar essa conta tem o direito de cobrar resultados.

segunda-feira, abril 29, 2019

A gargalhada - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 29/04

No Brasil, direita e esquerda parecem pastar como jumentos na grama da guerra fria

Sempre que tenho o prazer de ir ao leste europeu, ouço a mesma resposta quando conto que no Brasil a maior parte dos jovens “informados” e da classe culta em geral são simpáticos a regimes socialistas ou comunistas: uma gargalhada seguida de espanto. “Mas, eles não sabem o que aconteceu aqui nos países comunistas durante décadas?”, me perguntam.

Claro que esta adesão ao socialismo e comunismo como tara intelectual não é um pecado brasileiro. Por todo o ocidente, inteligentinhos brincam de socialistas e comunistas. Diante da violência e miséria que viveram, os habitantes dos países que padeceram sob o regime comunista de fato, só podem dar uma gargalhada como esta.

Arriscaria dizer que só agora começamos a ter a chance de tentar entender, em algum grau, nossa história política desde a guerra fria. O trágico período da ditadura(que nenhum inteligentinho de direita venha dizer que não houve ditadura no Brasil) foi seguido por outro período em que, ao invés de termos uma elite cultural que olhou para o país de uma forma um pouco mais realista (um filósofo diria, “empírica”), tivemos uma elite cultural monolítica que continuou presa a geopolítica da guerra fria. A polarização política no Brasil hoje é anacrônica. Direita e esquerda parecem pastar como jumentos na grama da guerra fria.

Se Bolsonaro e seus seguidores são uma espécie de cadelas hidrófobas que saíram do quarto escuro quase 30 anos depois (a imagem é inspirada em Nelson Rodrigues), nostálgicos de uma ditadura, a elite culta ativa nos “aparelhos culturais e educacionais” pós-ditadura se encastelaram numa narrativa atávica, presa a um “profetismo” marxista (e derivados) que logo estará na lata de lixo da historiografia.

Ao invés de propor uma análise mais complexa e ampla da política, grande parte de nós preferimos transformar as universidades, a mídia, a arte e a cultura em espaços de disputa política baixa, a serviço de interesses de classe, assim como se vê hoje em dia uma parte do poder judiciário fazer a mesma coisa: que se dane o país, contanto que seus privilégios de uma República das Bananas continuem a funcionar.

A historia do pensamento político é essencial para pensarmos qualquer política. A obviedade da afirmação acima é proposital. Referências existem por toda parte, cito aqui apenas uma delas: “On Politics” do professor Alan Ryan, que ensinou teoria política nas universidades de Oxford e Princeton, da editora W.W. Norton & Company.

O debate sobre como fazer a vida em sociedade um pouco menos ruim (porque é disso que se trata a política), desde a Grécia, tem alguns marcadores essenciais. Vou dar apenas dois exemplos importantes.

Um deles é a busca de “regimes mistos”, como buscava Aristóteles em Atenas e Cícero em Roma, ambos na antiguidade, e “Os Federalistas” (James Madison, John Jay e Alexander Hamilton) nos EUA, no final do século 18. “Misto” aqui significa um regime que integre minimante uma “aristocracia” (não de sangue) competente a agentes que representem o “povo”, a maioria, de forma razoável. A busca dessa integração institucional visa evitar a ganância dos poderosos e o ressentimento dos mais pobres.

Política é o campo em que conflitos auto-justificados se organizam institucionalmente a fim de que esses conflitos não destruam a sociedade. Esta tradição atinge seu apogeu justamente nos Federalistas, com a criação de mecanismos práticos e institucionais de pesos e contrapesos que limitem o poder de todo mundo que tem alguma forma de poder.

Outro marcador essencial é o debate acerca da natureza humana (não vou debater com os inteligentinhos o conceito de natureza humana aqui). De um lado, Santo Agostinho, na antiguidade tardia, para quem o pecado faz de nós seres interesseiros que a qualquer hora podem destruir tudo para realizar seus desejos mais mesquinhos e que, portanto, necessitam de uma ordem mínima que os mantenham sob cuidado e atenção. David Hume, cético, já no século 18, pensava que seria uma máxima política justa supor que todo homem pode a qualquer hora agir como um patife, e por isso mesmo, se faz necessário confiar desconfiando, em bom português.

Do lado oposto, a tradição, grosso modo, iluminista, de Rousseau a Marx (e derivados) para quem os homens são vítimas históricas que um dia, libertos da opressão, serão anjos políticos.

Você também está ouvindo a gargalhada de Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, Federalistas e David Hume?

A conspiração dos algoritmos - SAMY DANA

O GLOBO - 29/04

Algoritmos de preços são conjuntos de regras, em geral muito simples, que usam tentativa e erro para obter uma venda

Se você já comprou on-line, sabe como funciona: escolheu um produto, viu quanto custava e fez a compra. Enquanto tudo acontecia, um algoritmo provavelmente definiu o preço que você pagou. Esses programas hoje são importantes para o comércio on-line. A quantidade de produtos é imensa. Na Amazon, por exemplo, são mais de 600 milhões diferentes à venda. Seria impossível contar só com a ação humana, por isso um terço dos preços do site é atualizado por algoritmos.

O problema é que podem custar caro nas suas compras, segundo quatro economistas italianos — Emilio Calvano, Giacomo Calzolari, Vincenzo Denicolò e Sergio Pastorello. Algoritmos de preços podem agir às vezes como vendedores mal intencionados, combinando com os concorrentes para aumentar os preços, sugere um trabalho do quarteto, publicado em fevereiro pelo Centre for Economic Policy Research.

Algoritmos de preços são conjuntos de regras, em geral muito simples, que usam tentativa e erro para obter uma venda. Como um vendedor que tenta seduzir o cliente, esses robôs tentam seguidas estratégias de preços, com dados como os preços dos concorrentes, tentando oferecer um valor atraente para o comprador e o máximo de lucro para o vendedor.

A ideia é usar as estratégias que funcionam melhor. Se uma fracassa, simplesmente tentam de novo com outra até acertar. Mas, no meio do processo, o estudo demonstrou que podem se dar conta que o melhor para lucrar mais é cobrar mais caro em vez de fazer uma guerra de descontos.

Para testar a teoria, os economistas criaram dois robôs de preços e deixaram que um interagisse com o outro. Isto é, quando um baixava o preço, o outro reagia, baixando ainda mais, e quem ganhava era o consumidor. Mas, quando um dos algoritmos mudou de comportamento, o outro parou de dar descontos e o acompanhou. Os preços subiram e voltaram aos níveis do começo do experimento.

Pelo movimento dos preços, a manipulação foi evidente, mas, segundo os pesquisadores, não há traços de como aconteceu. Nenhum dos algoritmos quebrou qualquer regra ou se comunicou um com o outro, os dois apenas reagiram a leis básicas sobre como se formam os preços, escolhendo a estratégia que levava a mais ganhos.

Até agora, estranhas subidas de preços tinham chamado atenção da internet, como uma árvore de Natal de plástico comum à venda por US$ 10 mil no site da Amazon, mas eram consideradas falhas de programação. O estudo sugere outra explicação: talvez algoritmos, competindo, possam elevar preços ao infinito. Mas é uma hipótese em aberto.

Alguns economistas defendem que é impossível algoritmos formarem um cartel, já que não se comunicam. Mas, em um artigo publicado no começo do ano no Oxford Journal of Legal Studies, dois professores de Direito, Ariel Ezrachi e Maurice E. Stucke, citam casos, no Chile e na Alemanha, em que os preços subiram sem combinação prévia quando o governo publicou o valor da gasolina em cada posto. A medida devia incentivar a concorrência, mas, vendo o preço dos outros, cada posto aumentava o seu. Algo parecido ocorreu no experimento dos quatro italianos.

Não se trata de imaginar programas malignos, criados para lesar consumidores. Para as empresas, algoritmos só tomam decisões melhores do que humanos sobre os preços. O problema, os dois estudos sugerem, é quem pode acabar pagando por isso. Seu bolso.

A paralisia do investimento - SERGIO LAMUCCI

Valor Econômico - 29/04
Dúvidas sobre Previdência e demanda fraca travam decisões


O investimento segue travado, mesmo depois de passadas as eleições presidenciais e da queda de mais de 30% no auge da crise. Com a demanda anêmica e as incertezas em relação à aprovação da reforma da Previdência, o setor privado investe muito pouco, ainda mais num cenário em que grande parte das empresas tem enorme capacidade ociosa. O setor público contribui ainda menos, dada a péssima situação fiscal do governo federal e de muitos Estados e municípios.

Sem o investimento ganhar fôlego, o PIB crescerá a um ritmo fraco também em 2019 - não por acaso, aumentam as apostas numa expansão de 1,5% ou menos neste ano. Do lado da demanda, o consumo das famílias, os gastos do governo e as exportações não puxarão a atividade, e o país deverá ter mais um ano perdido em termos de crescimento e redução do desemprego.

O anúncio de investimentos desacelerou significativamente depois da greve dos caminhoneiros, em maio do ano passado, como aponta o economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato. Levantamento do banco com base em projetos anunciados na imprensa mostra uma queda mais forte exatamente a partir de junho de 2018. De julho de 2017 a maio do ano passado, a média de projetos divulgados foi de 109 por mês. De junho de 2018 a março deste ano, ficou em 56.

No segundo semestre de 2018, as incertezas relacionadas às eleições seguraram o investimento. Hoje, as dúvidas quanto à reforma da Previdência, fundamental para garantir a sustentabilidade das contas públicas no longo prazo, mantêm o setor privado em compasso de espera.

Como pano de fundo, uma demanda muito fraca e uma grande ociosidade na economia. Honorato cita a sondagem industrial de março da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em que houve um salto das empresas apontando a "demanda interna insuficiente" como um dos maiores obstáculos. No quarto trimestre de 2018, esse era um dos principais problemas para 31,1% das companhias; no primeiro trimestre deste ano, o número pulou para 37,5%.

A ociosidade é enorme. O nível de utilização de capacidade instalada da indústria de transformação ficou em 74,4% em abril, de acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV). É um número muito abaixo da média registrada desde 2001, de 80%.

Segundo Honorato, as dúvidas quanto à Previdência afetam mais diretamente um grupo de grandes empresas globais, muitas de capital de aberto, que esperam uma definição sobre o futuro das contas públicas para tomar decisões de investimento. "Há dois canais de transmissão aí", diz Honorato. Se a reforma não passar, a tendência é de haver uma desorganização do ambiente econômico, o que leva as empresas a esperar antes de investir. O outro é o risco de que haja um aumento de impostos no futuro se não houver a mudança do sistema de aposentadorias, gerando dúvidas sobre a rentabilidade dos investimentos.

No caso de empresas de médio e pequeno porte, de capital fechado, o efeito das incertezas sobre a Previdência é diferente, afirma Honorato. Ele se dá porque a indefinição quanto ao sistema de aposentadorias impede mais estímulos para a demanda por parte do próprio Banco Central (BC), por exemplo. Isso poderia contribuir para reduzir mais o custo de capital. É um efeito indireto. Esse empresário só vai investir mais quando perceber a perspectiva de crescimento mais forte da demanda. É obviamente um fator crucial também para as empresas de maior porte, mas uma perspectiva clara de aprovação da reforma da Previdência poderia deflagrar decisões de investimento das companhias maiores, que anteveriam um cenário melhor para a economia, avalia Honorato. Ele espera que a proposta passe em primeira votação na Câmara dos Deputados em julho ou agosto, com aprovação final pelo Senado ainda neste ano.

No primeiro trimestre, a economia foi mal. O Bradesco estima que o PIB tenha recuado 0,1% em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal. Nessa base de comparação, a previsão é que o investimento tenha recuado 0,6%. Por enquanto, Honorato projeta um crescimento do PIB de 1,9% em 2019, número que eventualmente pode ser reduzido. Pelo que indica a pesquisa empresarial do banco, o segundo trimestre se encaminha para uma alta de 0,5%, melhor do que no primeiro, mas que, se confirmada, torna difícil um avanço no ano perto de 2%.

A demora na tramitação e a aprovação de uma versão pouco robusta da reforma da Previdência podem retardar ainda mais a recuperação da formação bruta de capital fixo (FBCF, medida do que se investe em máquinas e equipamentos, construção civil e inovação). Entre o terceiro trimestre de 2013 e o quarto trimestre de 2016, a FBCF caiu 31,6%.

Em recuperações cíclicas que se seguiram a recessões anteriores, o investimento costumava liderar a retomada. Depois de uma queda superior a 30%, não seria absurdo esperar um aumento da FBCF em torno de dois dígitos num primeiro momento. Nos oito trimestres seguintes ao fim da recessão, porém, a FBCF só cresceu 6%. Para Honorato, o problema não é falta de financiamento - a queda dos empréstimos do BNDES já foi mais do que suplantada pelas emissões no mercado de capitais, segundo ele.

Com demanda fraca e o setor público sem espaço para investir, uma opção seria cortar mais os juros, em 6,5% ao ano desde março de 2018. Honorato acredita que a redução da Selic é tema para o segundo semestre. Até lá, deverá ficar claro para o BC que o repique recente dos preços é transitório, como ele e a grande maioria dos analistas avaliam. Se a atividade continuar fraca, a inflação e o câmbio ficarem comportados e a reforma da Previdência estiver bem encaminhada, o BC poderá então baixar mais os juros. Nesse quadro, não seria necessário esperar a aprovação final pelo Senado, diz ele.

Se não for possível estimular a demanda pela redução dos juros, Honorato vê como outras possibilidades promover outras reformas, como a tributária, e intensificar privatizações e concessões de infraestrutura. Hoje, essa agendas estão em segundo plano pela prioridade dada à mudança na Previdência.

Nesse quadro, é fundamental o governo se concentrar na articulação dessa reforma no Congresso, tentando aprovar o mais rapidamente possível uma versão robusta da proposta. A falta de coordenação política da administração de Jair Bolsonaro já cobra o seu preço em termos de crescimento, por adiar a retomada do investimento e dificultar a adoção de outras medidas para estimular a demanda, como novos cortes dos juros.

Twitter: um mundo à parte - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/04

O papel do Twitter como um microcosmo da sociedade tem sido supervalorizado


Há poucos dias, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebeu o CEO do Twitter, Jack Dorsey, no Salão Oval da Casa Branca. Oficialmente, o objetivo da reunião foi discutir medidas a fim de “proteger a saúde do debate público” na rede social tendo em vista as eleições gerais no ano que vem. Entretanto, o presidente americano, ávido usuário da plataforma para se comunicar com o público, aproveitou para reclamar do que chama de “discriminação” da empresa em relação a ele.

Trump alega ter perdido recentemente muitos seguidores no Twitter – 59,9 milhões de pessoas o seguiam na rede no momento em que este editorial foi escrito – e crê que nada há de espontâneo nessa debandada. Em sua visão, ela seria fruto de um ardil da empresa para reduzir o alcance de suas publicações, o tal “tratamento discriminatório” que ele diz sofrer em virtude do viés político-ideológico de seu governo.

Noves fora a preocupação adolescente do chamado líder do mundo livre, alguém que tem sobre a mesa de trabalho questões muito mais sérias a despachar, não resta dúvida de que o Twitter é uma valiosa ferramenta de comunicação e há mais de uma década tem moldado uma nova forma de interação entre pessoas, empresas e instituições.

Não obstante, o papel do Twitter como uma espécie de microcosmo da sociedade tem sido supervalorizado. É o que indica uma pesquisa feita pelo Pew Research Center com 2.791 usuários adultos da rede social nos Estados Unidos. Os resultados foram divulgados na terça-feira passada.

A pesquisa revelou que a idade média dos usuários do Twitter é menor do que a idade média da população americana adulta: 40 e 47 anos, respectivamente. A renda é outro fator que separa os usuários da rede do restante do país: 41% dos pesquisados informaram receber acima de US$ 75 mil por ano, ante os 32% da média nacional. A escolaridade é outro muro que divide os usuários do Twitter e a população americana em geral. De acordo com a pesquisa, 42% dos respondentes têm diploma universitário, 11 pontos porcentuais acima da média nacional (31%).

A metodologia da pesquisa demonstrou o quão descolado da realidade é o debate que se dá no Twitter. O Pew Research Center optou por dividir os usuários em dois grupos: os 10% mais ativos e os 90% menos ativos na rede social. A média de tweets mensais dos usuários menos ativos é de apenas duas publicações. Já a da fração mais engajada é de, pasme o leitor, 138 tweets, o que equivale a quase 5 postagens por dia. Ou seja, uma pequeníssima porção de usuários é capaz de produzir conteúdo suficiente para, não raro, mascarar o que, de fato, ocupa o debate no restante do país. É uma minoria bastante barulhenta.

As preferências partidárias entre os usuários do Twitter também divergem da média da população americana. Na rede, 36% declaram se identificar com os democratas e 26%, com os republicanos, de acordo com o levantamento do Pew Research Center. Entre a população americana em geral, os porcentuais são de 30% em relação aos democratas e 21% em relação aos republicanos.

Questões raciais, de gênero e imigratórias também foram objeto da pesquisa. Entre os usuários do Twitter, para 64% dos pesquisados os negros são tratados injustamente nos Estados Unidos. Entre a população em geral, são 54% os que acreditam nesta afirmação. No que se refere aos imigrantes, 66% dos tuiteiros, ante 57% em geral, acreditam que os estrangeiros fortalecem o país, e 62% dos usuários da rede veem barreiras sociais que tornam a vida das mulheres mais difícil do que a dos homens. Entre a população em geral, os que veem tais barreiras para as mulheres somam 56%.

A pesquisa feita pelo Pew Research Center é importante para mostrar que o Twitter é um mundo à parte, ainda que sua importância para as relações humanas no século 21 seja inegável. Serve de alerta, portanto, para os que tomam as redes sociais como perfeita amostra da sociedade. Não são.

Ainda não se tem notícia de pesquisa semelhante no Brasil. Viria em boa hora.

O desalento começa a prevalecer - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 29/04

Não é mera coincidência o comportamento mais conservador adotado tanto pelo empresariado do comércio como pelo da indústria na gestão dos estoques. Esse comportamento observado recentemente parece antecipar sua percepção de que haverá queda nos negócios nos próximos meses. Têm sido pequenas, até agora, as variações dos índices que medem os estoques nos dois setores, mas elas mostram atitude mais cautelosa dos dirigentes das empresas. O economista Aloísio Campelo, superintendente de Estatísticas Públicas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), escolheu uma expressão um pouco mais direta, “desalentador”, para se referir ao cenário que vai se formando no ambiente de negócios a partir dos dados que vão sendo conhecidos.

O índice de adequação de estoques do comércio, calculado pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) registrou alta de 5,9% em abril na comparação com o resultado de um ano antes, o que indica que, nesse período, a economia ganhou fôlego. Mas a comparação com dados mais recentes mostra uma tendência menos brilhante. Em relação a março, o índice teve aumento de 1,5%, mas essa variação, como ressaltam os economistas da FecomercioSP, não se deveu à melhora do ambiente econômico. Os empresários do setor já não têm o otimismo que demonstravam no início do ano. O comportamento mais conservador se deve ao fato de que o comércio “já percebe sinais de arrefecimento das vendas”.

Também na indústria o cenário é de estoques ajustados e de pequena melhora na demanda interna, o que levou à alta de 0,4 ponto entre março e abril na prévia do Índice de Confiança da Indústria medido pela Fundação Getúlio Vargas. Mas as expectativas vêm se deteriorando. O resultado preliminar do índice que mede essas expectativas caiu 0,2 ponto entre março e abril, o que o economista Aloísio Campelo interpretou como “uma ducha de água fria” no humor do empresariado industrial.

Outra pesquisa confirma essa tendência. O Índice de Confiança do Empresário Industrial (Icei) calculado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) caiu 3,5 pontos em abril, após queda de 0,2 ponto em fevereiro e de 2,6 pontos em março. A queda deveu-se tanto ao recuo das expectativas como à piora da avaliação das condições de negócios.

O mau desempenho da economia no primeiro trimestre decerto afetou o humor do empresariado. O Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) caiu 0,73% de janeiro para fevereiro, depois de ter recuado 0,41% em janeiro na comparação com dezembro. São dados que, por anteciparem com razoável precisão os resultados oficiais do Produto Interno Bruto (PIB) calculado pelo IBGE, indicam desempenho negativo da economia brasileira no primeiro trimestre. As revisões para baixo nas previsões para o comportamento do PIB neste ano, por economistas de instituições financeiras privadas e do próprio governo, realimentam a desconfiança do empresariado. Ou o “desalento”, como prefere o economista do Ibre-FGV.

O quadro político-administrativo acentua esse sentimento. As expectativas positivas alimentadas após o conhecimento do resultado das eleições de outubro do ano passado foram sendo paulatinamente corroídas por confusões, retrocessos e notória desarticulação política do governo que tomou posse em 1.º de janeiro.

Há oportunidade e tempo, obviamente, para que aos poucos se vá recompondo a confiança do empresariado e das famílias com relação ao desempenho da economia nos próximos meses. É absolutamente indispensável para isso que avancem as propostas destinadas a assegurar o equilíbrio futuro das finanças públicas, sem o que o País não poderá crescer de maneira consistente. E isso depende do governo Bolsonaro, que precisa demonstrar mais firmeza de propósitos e mais competência política do que apresentou até agora.

"Quem, além do pai, parças, Tite e Edu Gaspar, consegue entender Neymar?" - MAURO CEZAR PEREIRA

GAZETA DO POVO - PR 29/04
"O maior jogador brasileiro da atualidade, brindado pelo destino com imenso talento para a prática do maior esporte do universo, parece imbuído num projeto inequívoco de auto-sabotagem. Não bastasse o cai-cai da Copa do Mundo, que não faz um ano virou meme mundial, Neymar segue se envolvendo em situações que o expõem de maneira negativa.

Sábado, seu time, o milionário Paris Saint Germain, rico desde a incomensurável injeção econômica da família do Emir do Qatar; perdeu um título aparentemente ganho. Campeão francês antecipadamente, abriu 2 a 0 sobre o Rennes na Copa da França. Mas permitiu que o oponente igualasse o placar e depois o derrotasse na decisão por pênaltis.

A reviravolta deu ao 11º colocado na liga francesa o título da Copa nacional, com um orçamento quase sete vezes inferior ao dos parisienses. Um feito e tanto. Um vexame imenso para a equipe que também conta com Buffon, Thiago Silva, Marquinhos, Daniel Alves, Verratti, Di María, Draxler, Mbappé, Cavani e outros destaques do futebol internacional.

O cenário era, obviamente, ruim para o elenco do PSG. E quando seus astros subiam a escadaria rumo às tribunas do Stade de France, um torcedor rival acionou seu celular, começou a filmar e a desferir ofensas aos jogadores derrotados. Neymar largou a mão no rosto do fãs da equipe do Rennes, em momento devidamente registrado em vídeo.

O motorista de entregas Edouard, de 28 anos, como identificado pela imprensa da França, diz que nada fez. “Eu não o insultei, disse que ele era ruim”, alegou ao jornal “L’Equipe”. Contudo, em um dos vídeos da agressão divulgado em redes sociais, ele parece chamar Buffon de “idiota” e Verratti de “racista”. Ao brasileiro diz: “Vai aprender a jogar futebol”.

Não foi a primeira vez que esse tipo de situação aconteceu com o camisa 10. Em meio à festa pela conquista da medalha de ouro no futebol dos Jogos Olímpicos de 2016, discutiu com um torcedor no Maracanã. Furioso, o craque fez questão de ir até o local onde o cidadão estava para tomar satisfações em tom agressivo e sendo contido à margem do campo (abaixo).

Entendo a revolta de Neymar com o torcedor, que se teve a chance de ficar tão próximo, não tem o direito de ofende-los ali, cara a cara, acreditando que jamais reagiriam. Mas ao esmurrar o sujeito, o jogador se posicionou no papel de vilão e permitiu ao agressor verbal se transformar em agredido fisicamente. Melhor seria ignorar, ou confrontá-lo sem atacá-lo.

Um dos maiores problemas do jogador parece ser a redoma onde vive. Cercado por “parças”, os tais amigos que o seguem em todas as partes, pai, agentes, assessores etc, parede sentir-se como se o mundo contra ele estivesse. Algo que até parece ter sido real no auge dos memes sobre cai-cai, ano passado. E o destempero demonstrado algumas vezes só o prejudica.

Segue fresca, viva, a frase “não é fácil ser Neymar”, dita pelo dirigente da CBF Edu Gaspar após a eliminação do Brasil no Mundial do ano passado. Foi uma das mais inacreditáveis declarações paternalistas já registradas no mundo do futebol. “O que esse menino sofre não é fácil”, acrescentou o ex-jogador, atual coordenador técnico da Seleção.

Semanas depois foi a vez de Tite: “Neymar merece elogios por comportamento, pela recuperação, pela disciplina. Mantenho o que disse: ele é top três do mundo”, sentenciou. “O último contato que tive com ele, disse quando dei um abraço: ‘Neymar eu gosto muito de ti. Eu gosto de ti muito mais que tu pensa que gosto. Eu sei o seu valor’”.

Aparentemente quase todos que o cercam tentam protegê-lo, paparicá-lo, dando sequência a um processo de não-amadurecimento, à manutenção do homem no papel de menino. Ninguém o ajudará assim e o próprio não colabora com ele mesmo. A questão é: até que ponto isso seguirá afetando seu desempenho em campo? O tempo está passando e Neymar o desperdiça.

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O contundente 4 a 1 do Athletico sobre um Vasco fragilizado, com técnico interino e desfalcado de seu goleiro (Fernando Miguel) e do melhor zagueiro (Leandro Castán) foi normal. Pela boa fase do Furacão em casa e com tantas dificuldades vividas pelos vascaínos, a goleada não foi surpreendente, absolutamente. O time rubro-negro é forte.

O problema atleticano é a distância da Arena da Baixada. O time perdeu os dois jogos que fez longe de Curitiba pela Libertadores, o mais recente na quarta-feira passada, para o Jorge Wilstermann (antes caiu para o Tolima). E sofreu reveses nos três últimos compromissos fora, perdendo para Londrina e Toledo antes dos 3 a 2 sofridos na Bolívia.

Sim, são times diferentes o campeão paranaense e o que disputa o certame internacional e agora o Brasileiro. Mas esse ponto em comum remete à Série A 2018, quando em 19 pelejas como visitante o Athletico venceu somente duas. Se quiser continuar se infiltrando entre os grandes para nunca mais sair, o time rubro-negro precisa melhorar seu desempenho fora.

Fortaleza, Chapecoense, pelo Campeonato Brasileiro, e Boca Juniors, pela rodada derradeira da fase de grupos da Libertadores, serão os três próximos adversários dos atleticanos, todos fora do Paraná. A ver.

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Badalado, campeão mineiro, antecipadamente classificado na Libertadores com 100% de aproveitamento, o Cruzeiro foi mais do mesmo na derrota para o Flamengo, no Maracanã. Cauteloso, sem apetite ofensivo, incapaz de explorar o momento tenso do rival, derrotado no Equador dias antes pela competição sul-americana, perdeu pela primeira vez em 2019.

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Cuca levou a campo um São Paulo reativo diante de um Botafogo que pode ser identificado como uma das mais fracas equipes que já pisaram um gramado exibindo no peito a estrela solitária. Estreou três bons reforços, Pato, Tchê-Tchê e Vítor Bueno, mas não passou dos 33% de posse de bola, esperando em seu campo o frágil time alvinegro. Desolador.

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Nobre a atitude do Coritiba, distribuindo os ingressos para o jogo contra a Ponte Preta, que marcará a estreia na Série B, com a homenagem ao ídolo Dirceu Krüger. O Couto Pereira estará repleto, 40 mil torcedores são esperados e o Flecha Loira, que morreu na quinta-feira aos 74 anos, será revivido numa noite à altura. Desde que o time nele se inspire."

Uma PEC para a prisão em segunda instância - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 29/04

A melhor solução é mesmo reformar a Constituição e colocar o peso do Congresso sobre a solução do impasse.


Com a confirmação da condenação do ex-presidente Lula da Silva pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no caso do tríplex do Guarujá e a perspectiva de que avance em segunda instância o processo referente ao sítio de Atibaia, no qual Lula já conta com mais 12 anos de condenação pela juíza Gabriela Hardt, a sombra do ex-presidente vai diminuindo sobre a discussão da execução da pena após condenação em segunda instância. Já não era sem tempo. O tema tem repercussões jurídicas e sociais importantes e está desgastando o capital institucional do Supremo Tribunal Federal (STF), preso a um impasse interno a seus membros. Livre do peso de Lula, o assunto poderá ter um desfecho, que deve vir por emenda constitucional.

O início do cumprimento da pena após a condenação definitiva em segunda instância é a regra geral em quase todos os países do mundo – ela é suficiente para garantir, de forma substantiva, a ampla defesa e o devido processo legal, ao mesmo tempo em que possibilita a duração razoável dos processos e a efetividade do sistema penal. No Brasil, desde que Operação Lava Jato foi deflagrada, em 2014, e o STF retornou a seu entendimento original em 2016, a execução em segunda instância foi apontada como fundamental para o combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco. E com razão: é inegável que o Brasil tenha avançado como nunca antes nesse campo e que a espera do esgotamento de todos os recursos nos tribunais superiores frustraria a finalidade do sistema jurídico em garantir a eficácia da lei.

O problema, porém, é que a atual redação da Constituição Federal faz essa interpretação, do ponto de vista jurídico, aproximar-se perigosamente do ativismo judicial. Diz o inciso LVII artigo 5º que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Para quem é contrário à execução em segunda instância, a prisão, pelo texto constitucional, só poderia se dar por razões processuais – preventiva ou provisória – ou com o esgotamento de todos os recursos. Esse embate tem dividido a classe jurídica e o Supremo, preso a uma disputa renhida, com direito a idas e vindas e manobras regimentais que enfraquecem a autoridade do tribunal. Enquanto a redação do inciso LVII for esta, não há perspectiva de que a questão seja pacificada e a segurança jurídica, garantida definitivamente.

É alvissareiro, então, que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tenha dito em recente entrevista à Globonews que o parlamento não pode mais se furtar a esse debate. Maia sinalizou, inclusive, que o tema pode ser votado ainda em 2019. O ministro da Justiça, Sergio Moro, defende que mudança seja feita por meio de lei, uma vez que o STF já tem interpretação a favor da segunda instância. O PL anticrime enviado por Moro ao Congresso propõe uma mudança no Código de Processo Penal, que passaria a prever que a possibilidade de prisão, além das hipóteses já existentes, em decorrência de decisão “exarada por órgão colegiado”. A lei passaria ainda a dizer que, “ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas”, exceto se houver questão legal ou constitucional relevante que “possa plausivelmente levar à revisão da condenação”.

Embora projetos de lei possam ser aprovados com mais facilidades que emendas constitucionais, a mudança legal não afastaria em definitivo as dúvidas sobre a interpretação do dispositivo constitucional que tanto causa polêmica. Por isso, a melhor solução é mesmo reformar a Constituição e colocar o peso do Congresso sobre a solução do impasse. Já tramitam apensadas na Câmara duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC), de autoria dos deputados Alex Manente (CD-SP) e Onyx Lorenzoni (DEM-RS), hoje ministro, que propõem uma nova redação para o inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.

É claro que nem mesmo uma PEC garante que se encerre de vez o assunto, porque existe a possibilidade de o STF ser acionado sob o argumento de que uma mudança dessa natureza violaria um direito fundamental cláusula pétrea da Constituição. Mas, nesse caso, a discussão muda de patamar, uma vez que não haveria tendência alguma, sob uma interpretação razoável, de se abolir a presunção de inocência no país. A mudança do texto não atinge a substância da garantia constitucional. Seja como for, a execução da pena após condenação em segunda instância é requisito de segurança jurídica, estabilidade institucional e efetividade da lei penal. Hoje, o melhor caminho para isso é reformar a Constituição.

A questão indígena - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 29/04

Tribo paresi (MT) quer progredir e decidir seu destino, sem depender da tutela do Estado

A questão indígena é um dos temas mais apaixonantes pelas emoções que suscita, entrando em linha de conta tanto o desconhecimento da situação quanto considerações sobre a liberdade de escolha dos indígenas, passando pela atuação de ONGs e dos mais diferentes tipos de interesse. A ignorância ou a má-fé não deixa de ser um desses seus elementos.

Segundo dados do IBGE, a população indígena no País é constituída por aproximadamente 1 milhão de pessoas, pouco mais de 550 mil em zona rural. O caso de índios urbanos, observe-se, é de natureza diferente, por não envolver demandas fundiárias, mas de saúde, educação, trabalho, condições dignas de vida e luta contra o preconceito. Chega a ser uma vergonha que o País não consiga atender dignamente um contingente tão pequeno de pessoas, pertencentes originariamente a esta terra.

Do ponto de vista territorial, a população indígena restante ocupa em torno de 118 milhões de hectares, correspondentes a 14% do território nacional. Se fôssemos seguir as ONGs indigenistas, deveriam ocupar, segundo cálculos preliminares, 24% do território. Faz sentido?

Isso não significa, evidentemente, que nenhuma área deva ser doravante demarcada, mas um diagnóstico da situação deveria analisar a especificidade de cada tribo. Não é o mesmo uma tribo perdida, sem nenhum contato cultural, na Amazônia, os conflitos ditos fundiários em Dourados e em Mato Grosso do Sul e os paresis em Mato Grosso.

No que diz respeito a essa tribo na Amazônia, salta aos olhos que seu território deveria ser demarcado, é essencial para sua preservação. Daí não se segue, porém, que ela deva ser usada como objeto de manipulação ideológica, como se seu caso servisse de parâmetro para outras tribos. Basta ver como fotos são divulgadas por ONGs nacionais e estrangeiras para constatar a instrumentalização realizada!

No que toca à situação de Mato Grosso do Sul, as partes em confronto têm pretensões de direito aparentemente legítimas, cada uma delas apresentando seu próprio pleito. Nessa região os produtores rurais, em geral, possuem títulos de propriedade centenários, outorgados pelo próprio Estado. Imaginem um(a) produtor(a), depois de décadas morando e trabalhando em determinado lugar, receber um belo dia a notificação de que a terra não lhe pertence. Como assim? Por um suposto laudo antropológico que tudo anula, deve ele simplesmente ser expulso, deixado à própria sorte?

Note-se que não há propriamente desapropriação de terras indígenas, mas simplesmente expropriação, o proprietário não é indenizado pela terra nua, mas apenas pelas benfeitorias. É como se a terra não fosse sua propriedade, sendo ele uma espécie de usurpador. Seriam famílias de usurpadores por todo o País!

Se há conflitos de direitos, deveria o Estado, se fosse o caso, pagar pela propriedade, pela terra nua, podendo os indenizados se instalar em outros lugares, nada perdendo. Nada diferente do que já estabelece a legislação quilombola no País, estipulando que as pessoas indenizadas devem ser pagas em dinheiro, segundo avaliações de mercado. Já ocorre em muitos locais que os proprietários, cansados de disputas intermináveis, de invasões e violências, apenas pretendam uma justa indenização.

No caso tão discutido de Dourados, nem se trata de demarcação, pois a área em questão já está demarcada, isto é, quando se demarca um território como indígena, demarca-se ao mesmo tempo o seu entorno como não indígena. O que lá acontece é uma explosão demográfica dentro da terra demarcada. Em vez da exploração ideológica e de ONGs, bastaria comprar a terra do entorno, conforme valores estabelecidos em acordo com os proprietários. Muitos, porém, vivem da eternização dos conflitos, como se deles dependessem para se justificar.

Outro caso totalmente diferente é o da tribo paresi, que planta em Mato Grosso soja no verão, milho, feijão e girassol no inverno. Trata-se de um caso exemplar, ao pôr em pauta a liberdade de escolha. Querem eles decidir por si mesmos o próprio destino, sem depender do Estado nem recorrer a ONGs. E por isso mesmo estão sendo penalizados, por exigirem para si uma atitude cidadã!

São índios que falam por si mesmos, exigindo ser tratados como agricultores, com os mesmos direitos destes. No entanto, recebem do Estado como resposta que devem ser tutelados, como se não soubessem do que estão falando. Não saberiam dos seus interesses, devendo permanecer sem voz. Calados pelo politicamente correto!

Almejam melhores condições de vida para o seu povo, vivendo do seu próprio trabalho. Não exigem Bolsa Família, nem esmolas. Querem poder escolher o seu trabalho e o seu modo de vida, dependendo apenas de si mesmos. Com uma população de pouco mais de 2 mil pessoas, cultivam soja em 10 mil hectares, com agricultura moderna e mecanizada. Neste ano devem movimentar em torno de R$ 50 milhões em suas duas safras. Note-se que essa sua área de cultivo corresponde a apenas 1,7 % do seu território. Somente isso!

Conforme a mentalidade de uma nova época, criaram uma cooperativa, o que tornou viável a compra comum de insumos, a venda da produção e contratos bancários. Contudo, por serem indígenas, submetidos a tutela, têm dificuldades de acesso ao crédito. Bizarro, não?

Ademais, estão sendo multados em mais de R$ 140 milhões por não terem sido autorizados a produzir monocultura para comercialização e, em caso de outras pessoas da mesma etnia, por fazerem arrendamento. Teriam ainda cometido outro pecado capital, a utilização de sementes transgênicas. Isto é: o seu supremo pecado teria sido o exercício, como qualquer brasileiro, de sua liberdade de escolha!

Se há questões legais envolvidas, muito simples. Basta elaborar uma nova legislação segundo o espírito de um novo tempo!

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS

A guerra das fintechs - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 29/04

Experiência mostra que apostar contra a inovação não costuma dar certo


Enquanto um bom punhado de gente acompanha o mundo virtual de "Game of Thrones", há uma outra guerra real e dramática acontecendo em torno da ascensão das fintechs, as startups do setor financeiro.

Essa guerra pode ser resumida por uma única palavra: "unbundling" (desagregação).

Hoje, o modelo dos bancos é agregar o maior número de serviços em uma mesma estrutura monolítica: conta-corrente, investimentos, seguros, crédito, pagamentos, gestão patrimonial e até mesmo loterias, como nos chamados "títulos de capitalização".

Esse modelo, obviamente, dá muito certo. Especialmente porque é um prato cheio para a possibilidade de colocar em prática subsídios cruzados. É fácil escolher um produto altamente popular e zerar o seu preço, desde que ele sirva de ponte para outros produtos altamente rentáveis. Não por acaso as margens de lucro do setor são muito elevadas.

No entanto, há bárbaros cercando o castelo. Lucros exorbitantes são um forte chamariz para a competição (ou ao menos deveriam ser). Como disse o presidente-executivo da Amazon, Jeff Bezos: "A sua margem é a minha oportunidade".

E, obviamente, Bezos já notou as ineficiências do sistema bancário. Para cada um dos serviços que os bancos agregam hoje, a Amazon está lançando um competidor equivalente: Amazon Pay (pagamentos), Amazon Lending (empréstimos), Amazon Cash (conta-corrente), Amazon Protect (seguros), Amazon Prime (cartão de crédito) e assim por diante.

No entanto, a competição está acontecendo mesmo no território das fintechs, as startups que estão desagregando cada um dos serviços que os bancos prestam de forma unificada, criando modelos mais eficientes e de maior qualidade para o consumidor.

No Brasil, já existe uma pletora dessas novas empresas, cada uma atacando uma modalidade de serviço específico.

E, é claro, isso começou a incomodar e gerar reações. A experiência com outras indústrias nos últimos anos demonstra, no entanto, que apostar contra a inovação não costuma dar certo. Em 2006, entre as 5 maiores empresas globais em valor de mercado, havia um banco. Em 2019, todas as cinco maiores empresas do planeta são de tecnologia.

As mudanças ocorrem rapidamente. O que hoje é monolítico em cinco anos pode não ser mais, como gosta de dizer o consultor Anand Sanwal, citando Hemingway: "Como você faliu? De dois jeitos. Gradualmente, depois subitamente".

Chegou o momento em que as fintechs começarão a ter curvas de adoção parecidas com a das empresas de tecnologia. No entanto, esse caminho não vai ser fácil. O papel da regulação do setor e da proteção à competição vai ser determinante.

Quando a indústria da música foi "desagregada" pela internet, tentou ao máximo valer-se da regulação para conter os novos entrantes. Queriam continuar vendendo CDs com 12 músicas para consumidores que queriam comprar só uma. O resultado é que hoje as gerações mais novas nem sabem o que é um CD.

Com os serviços bancários, a banda já começou a tocar dessa forma. Resta saber se a música será um tango argentino ou um abre-alas para a inovação, capaz de construir um futuro sintonizado com os desejos da ponta que mais importa, o consumidor.

READER
Já era Inteligência artificial vencendo humanos só em jogos de tabuleiro (xadrez, go etc.)

Já é IA vencendo humanos em games complexos, como "Starcraft 2"

Já vem
IA vencendo humanos em Magic: The Gathering

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

O poder briga com a sombra - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 29/04

Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas

O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.

Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens. Persigo um quadro um pouco maior.

Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.

A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.

Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice. Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um vice decorativo.

Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se preparava para substituir Dilma.

No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.

Mas a política não se faz apenas com teorias. Ela é mediada por nossas paixões humanas. Sem combinar suas posições, agindo desorganizadamente, acabaram caindo na armadilha de sempre: até que ponto o vice pode ser protagonista?

No princípio da campanha, Mourão parecia tão ou mais conservador que Bolsonaro. Com o tempo, foi abrandando seu discurso, voltado para o mercado financeiro, a imprensa, a diplomacia.

Até que ponto Mourão quis apenas manter a amplitude da frente que elegeu Bolsonaro, até que ponto seu protagonismo é a maneira de se diferenciar dele, mostrar-se como uma alternativa?

Isso dá margem para tantas nuances interpretativas que prefiro avançar um pouco na tese inicial. Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas, sobretudo pela ausência de uma forte oposição. Um efeito colateral dos confrontos entre alas do governo é o tiroteio contra as Forcas Armadas. O que se diz sobre os militares em posts e lives da direita, não se dizia nem nos panfletos da extrema esquerda no tempo da Guerra Fria.

Não me importo com textos que tentam interpretar o golpe de 64 como algo realizado pelos civis, muito menos com a afirmação de que os militares destruíram os políticos de direita.

O mundo da internet é recheado de interpretações, eletrizado por teorias conspiratórias. Por que perder tempo em desfazê-las?

As coisas mudam de figura quando os ataques às Forcas Armadas são postados na conta do próprio presidente da República.

É algo tão grave, em termos políticos, como a postagem do golden shower. Não creio que Bolsonaro compartilhe realmente da tese de que as Forcas Armadas no Brasil são uma nulidade. Todo os que viajam pelo Brasil podem testemunhar a ação positiva do Exército. Se quiser reduzir o aprendizado a duas situações, basta ir à fronteira com a Venezuela, ou mesmo às cidades mais secas do Nordeste, onde o Exército organiza o abastecimento de água.

Quem gosta de ler também pode ter acesso às obras que militares têm publicado. Outro dia, resenhei o livro do coronel Alessandro Visacro sobre “A guerra na era da informação”. Acabo de receber o livro “Direito internacional humanitário”, do coronel Carlos Frederico Cinelli. Um estudo sobre a ética em conflitos armados.

As Forcas Armadas não divagam sobre filosofia ou política, mas cuidam de temas ligados à sua atividade principal.

Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro. Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se for candidato.

A comparação das fotos de posse de Fernando Henrique e Bolsonaro é sintomática. No carro de FH, Marco Maciel obcecado em ser discreto; no carro de Bolsonaro, a ausência. Em seu lugar, Carlos Bolsonaro, protegendo o pai.

O protagonismo de Mourão foi suprimido no ritual. Naquele momento, o drama, como dizia o poeta Drummond, já se precipitava sem máscaras. Era só olhar.

domingo, abril 28, 2019

O novo império do cliente - GUSTAVO FRANCO

ESTADÃO - 28/04

Nada pode ser mais salutar para a concorrência que a elevação do poder do cliente

Os últimos anos testemunharam inovações de gigantesco potencial no terreno monetário e bancário e um bom começo para mapear o que está se passando é a lei que definiu, em 2001, o SPB, Sistema de Pagamentos Brasileiro (Lei 10.214). Parecia apenas mais uma medida prudencial restrita às “câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação”, portanto, apenas mais um rescaldo da crise de 2008, com vistas a limitar o risco sistêmico.

Entretanto, ao isolar e proteger os circuitos de pagamentos do restante da atividade bancária a regulação abriu horizontes amplos e inesperados. Uma parte do sistema financeiro, o SPB, passava a ser tratada como uma “infraestrutura essencial”, ou “de utilidade pública”, diferentemente de outras atividades dos bancos. O BCB se viu, subitamente, frente a frente com um desafio concorrencial que nunca foi sua especialidade, e foi se abrindo uma colaboração interessante com o Cade, o qual, por sua vez, nunca teve a agilidade para remediar ou reprimir condutas anticompetitivas no sistema financeiro.

Nos anos subsequentes, foi se observando com mais clareza uma tensão insolúvel: os “donos” de plataformas que compunham o SPB procuravam usar essa posição para escravizar seus clientes dos outros produtos financeiros “não essenciais”, como os instrumentos de poupança e outros tantos serviços. Era como se o supermercado só vendesse produtos da própria marca, ou se a companhia de eletricidade obrigasse seus consumidores a comprar as TVs de plasma, torradeiras e geladeiras das empresas ligadas. Era o império da venda casada e da reciprocidade.

Quando a lei brasileira revisitou o assunto em 2016 (Lei 12.865), foi bem além do estabelecido em 2001 ao tratar o sistema de pagamentos como um conjunto de plataformas, instituições e arranjos cujas relações entre si deveriam ser regidas por princípios novos, com sonoridade tecnológica, como “interoperabilidade” (capacidade de trabalhar “em grupo”), ou concorrencial, como “tratamento não discriminatório aos serviços e às infraestruturas necessários” ao funcionamento dos arranjos (o sistema não pode ter pedágios, interrupções discricionárias e dificuldades introduzidas para gerar rendas de monopólio). Tal como a internet.

A nova lei regulou algumas novidades revolucionárias, dentre elas a “moeda eletrônica” e, especialmente, as “contas de pagamento”, que criaram a possibilidade de instituições de pagamento competirem com bancos comerciais oferecendo contas remuneradas a 100% do CDI com as mesmas funcionalidades de depósitos à vista.

Era uma transformação importante, pois essas contas são muito parecidas, nos seus efeitos, com uma criatura de que se fala apenas no ambiente laboratorial: as moedas digitais “emitidas” por bancos centrais. E funcionam como criptoativos, mas sem necessidade de “blockchain”. Elas representam uma seriíssima e muito bem-vinda ameaça competitiva aos grandes bancos comerciais com os quais se dizia que era impossível competir.

A próxima novidade, anunciada nesta semana, atende pelo nome de “open banking”, uma frente muito ampla de possibilidades que se poderia tentativamente descrever como a ideia de, com vistas a melhorar a experiência do cliente, levar às últimas consequências a segregação entre o sistema de pagamentos e a comercialização de produtos financeiros, inclusive crédito.

Sua face mais conhecida é designada como “portabilidade”, ou seja, o direito de o cliente trocar de ofertante conforme encontre uma experiência melhor em determinados produtos (plano de previdência, crédito consignado) ou serviços (recebimento de seu salário). Como quem troca de provedor de acesso a uma rede.

Na semana que passou, o Banco Central deu prosseguimento ao assunto de “open banking”, agora com essa designação, focando no poder do cliente dispor e portar os dados sobre seu histórico bancário. Com isso, o cliente pode cotar operações de crédito de forma competitiva, com grandes benefícios para si.

Nada pode ser mais salutar para a concorrência no sistema financeiro que a elevação do poder do cliente buscar o melhor para si.