sexta-feira, abril 10, 2020

Os bolsonaros da China - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 10/04

Um filme de 1936 antecipa a repressão sofrida pelo médico chinês que alertou para a pandemia


Na França de 1860, um médico vai sair para fazer um parto. Limpa a caspa das lapelas com as mãos, pega os instrumentos e, ao jogá-los na maleta, um deles cai ao chão. O médico o recolhe e o atira na maleta. Sua paciente morrerá ao dar à luz, vítima não da "febre do parto", como se dizia, mas dos germes provocados pela falta de higiene no procedimento. Os médicos da época sequer lavavam as mãos para trabalhar.

Assim começa o filme "A História de Louis Pasteur", de 1936, do subestimado William Dieterle, que rendeu a Paul Muni o Oscar pela interpretação de Pasteur. Embora fosse um filme da Warner, especializada em gângsteres, as armas em cena eram os microscópios, não as metralhadoras. A história mostra Pasteur sofrendo dura oposição dos médicos, para quem sua teoria dos micróbios como causa das doenças era um delírio. Eles fazem o governo proibi-lo de pesquisar e só vão lhe dar razão 20 anos depois, quando a França já estava quase dizimada.

Na vida real, Pasteur não foi assim tão perseguido, nem descobriu sozinho a cura para as infecções. Mas essa história antecipa a vivida 160 anos depois por um médico chinês: o dr. Li Wenliang, o primeiro a alertar, a 30 de dezembro último, sobre a iminência de uma epidemia. Wenliang descobrira sete pacientes com sintomas de um novo coronavírus no hospital onde trabalhava, em Wuhan.

As autoridades policiais e médicas da China o acusaram de "propagar boatos" e "perturbar a ordem social" e o obrigaram a se desmentir. Mas, a 12 de janeiro, o próprio Wenliang caiu infectado. Internou-se e morreu três semanas depois. Se seu alerta tivesse sido ouvido no começo, talvez milhares de vidas ainda pudessem ser poupadas.

Hoje, o dr. Li Wenliang é um herói na China. Já os bolsonaros locais --e eles são os mesmos em toda parte--, que negaram a gravidade da denúncia, serão esquecidos, para lástima dos tribunais da humanidade.

O século chinês - SIMON SCHWARTZMAN

ESTADÃO - 10/04

Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios...

Indústria Americana, o documentário produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama que ganhou o Oscar da categoria este ano e pode ser visto na Netflix, conta a história tragicômica de um milionário chinês que decide transformar uma planta abandonada da General Motors nos Estados Unidos numa moderna fábrica de vidros de automóveis, com operários americanos trabalhando sob as ordens de gerentes chineses. Os chineses esforçam-se para entender a cultura individualista e a falta de disciplina dos americanos, levam americanos para a China para verem como uma fábrica deve funcionar e acabam trocando a maioria dos americanos por robôs, para que a fábrica finalmente possa dar lucro.

Vendo o filme, fica mais fácil entender o sucesso dos chineses em controlar a epidemia do coronavírus em Wuhan com um mínimo de mortes e impedindo que se alastrasse por sua imensa população, e a dificuldade dos americanos e europeus em fazer o mesmo. A explicação que geralmente se ouve é que a China é um Estado autoritário, com poderes para controlar sua população que seriam inimagináveis numa democracia. Há rumores de que não estão contando toda a história. Pode ser. Mas o a fato é que conseguiram estancar a hemorragia. Além da força bruta, outros dois fatores, a forte coesão social e o uso intensivo e competente de tecnologias avançadas, parecem ter sido muito mais importantes.

“Coesão social” refere-se ao grau em que as pessoas se sentem parte de uma comunidade e obedecem às normas de comportamento de seus grupos. Todos concordam que é uma coisa boa, mas discordam sobre quanto. No documentário, os americanos olham espantados como os operários chineses marcham sincronizados e gritam palavras de ordem, e como, numa festa da fábrica, as crianças dançam com precisão geométrica em louvor à eficiência e à produtividade, lembrando as gigantescas manifestações coreografadas na Coreia do Norte em homenagem ao Grande Líder. Os chineses trabalham muito mais horas por dia que os americanos, ganham muito menos e são muito mais produtivos.

Vendo isso, é difícil separar o que é coesão social do que é totalitarismo, mas outros países que também estão conseguindo controlar a epidemia são a Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Japão, regimes democráticos com culturas semelhantes à chinesa. É a coesão social, mais do que o regime político, que os diferencia dos países ocidentais.

O terceiro fator que explica o sucesso desses países é o uso intensivo de tecnologias de testagem, acompanhamento dos movimentos da população pelos celulares, equipamentos de proteção de médicos e paramédicos e amplo uso de equipamentos caros e complexos, como tomógrafos, para melhor diagnosticar os doentes. Aqui também vem a dúvida de quando é admissível, numa democracia, permitir que governos controlem cada movimento das pessoas, mas isso já é feito em nossos países para fins comerciais. Essas tecnologias também estão disponíveis e muitas delas tiveram origem no Ocidente, mas os orientais têm sido mais eficientes em produzir, inovar e utilizar em grande escala do que os americanos e europeus.

Das muitas especulações que se fazem sobre como será o mundo pós-coronavírus, para quem sobreviver à imensa catástrofe que estamos presenciando, parece-me claro que o século 21 será, definitivamente, o século chinês. Isso não significa que ficaremos todos sob a ditadura de Xi Jinping, já que a própria China pode evoluir para formas menos autocráticas de governo e os países ocidentais certamente recuperarão suas economias. Mas a China, que já vinha ocupando espaço cada vez maior na economia mundial, deve sair desta crise muito mais fortalecida, transferindo definitivamente o polo da economia e do avanço tecnológico mundial para o Oriente.

Das lições que temos de aprender da China, a que menos interessa, e infelizmente muitos vão apregoar, é que as democracias não são capazes de enfrentar os grandes desafios epidemiológicos e ambientais que nos esperam e precisam ser substituídas pelos candidatos a ditador que surgem nestas horas difíceis. A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes. Mais do que armas para eventuais guerras, é indispensável ter estoques estratégicos de suprimentos e equipamentos médicos que não dependam dos interesses comerciais e incertezas do mercado internacional, como vem ocorrendo. O SUS precisa ser repensado, concentrando recursos em saúde preventiva, vigilância epidemiológica e atendimento médico à população carente. Não se pode, e não sei se queremos, copiar o modelo de coesão social dos países orientais, mas precisamos tornar nossas sociedades mais educadas, coesas e solidárias.

Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios, para conseguirmos sobreviver no século chinês.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O fiasco dos profetas da negação - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 10/04

Previsões furadas, sem base científica, ameaçam levar país por caminho desastroso



No dia 22 de março, em plena campanha contra as autoridades de saúde, Jair Bolsonaro arriscou um palpite. Em entrevista na TV, ele disse que as mortes pelo novo coronavírus ficariam abaixo das 796 vítimas da gripe H1N1 no ano passado.

"A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus", pressentiu, pedindo o fim das medidas de isolamento aplicadas para frear as contaminações.

O presidente não citou a origem dessa tentativa de adivinhação, mas foram necessárias menos de três semanas para desmoralizá-lo. Os mortos pela Covid-19 no Brasil já se aproximam de mil, e a curva de contaminações ainda aponta para cima.

Se não quisesse passar vergonha, bastava a Bolsonaro ter ouvido médicos e cientistas sérios. Ele preferiu liderar um time de profetas da negação, que conduzem um país inteiro por caminhos desastrosos.

O presidente se aconselha com o deputado Osmar Terra, que já foi demitido do governo, mas faz as vezes de ministro paralelo da Saúde. Dias antes da previsão furada de Bolsonaro, ele também dizia que o novo coronavírus mataria menos que a H1N1.

No início desta semana, Terra tentou ajustar suas planilhas imaginárias. Afirmou que haveria menos vítimas de Covid-19 do que mortes por gripes sazonais. Segundo os boletins do Ministério da Saúde, porém, os vírus influenza fizeram 1.122 vítimas no ano passado. Infelizmente, os próximos dias deverão provar que o deputado estava errado, de novo.

Terra usa uma bola de cristal fajuta para se alinhar a Bolsonaro e derrubar o verdadeiro ministro da Saúde. Em conversa divulgada pela CNN, ele conspira contra Henrique Mandetta, repete a premonição equivocada e, agora, diz esperar "entre 3.000 e 4.000" mortes durante a crise.

As projeções dos pesquisadores superam esse número —principalmente se as medidas de isolamento forem suspensas, como defendem Terra e Bolsonaro. Os falsos adivinhos, afinal, preferem ignorar a ciência e desprezar as vítimas da doença, sejam elas quantas forem.

Tolhido pelo STF - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 10/04

Liminar esvazia ainda mais poder de Bolsonaro contra políticas antipandemia


Obsessões com a potência masculina tornaram-se lugar-comum na psicanálise. A do presidente Jair Bolsonaro se fixa no objeto caneta, a pequena haste capaz, segundo seus manifestos recorrentes, de num rabisco materializar os desejos do chefe de Estado.

É uma lástima para ele —e ótima notícia para o Brasil— que a tinta de sua esferográfica esteja ficando escassa na crise. Ameaçou usá-la para demitir o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, mas foi impedido por uma sensata reação palaciana.

Cogitou deslanchar uma campanha publicitária para incentivar a circulação de pessoas em meio à epidemia, mas foi bloqueado pelo Supremo Tribunal Federal.

Decretou a inclusão de igrejas em listas de estabelecimentos cuja operação não pode ser restringida em nome do combate à Covid-19, mas seu ato tem sido questionado em circunscrições locais.

Sonhou em voz alta com comandos que pudessem atropelar ordenanças estaduais e municipais de combate à emergência sanitária, mas foi advertido, também à luz do dia, por autoridades legislativas e judiciárias de que os sortilégios terão vida curta.

Na quarta-feira (8), o que era uma advertência se tornou decisão cautelar da corte constitucional. A Ordem dos Advogados do Brasil obteve do ministro Alexandre de Moraes o reconhecimento liminar de que o Executivo federal não pode desfazer unilateralmente as determinações municipais e estaduais de limitar atividades.

Com essa torrente de vetos impostos ao seu poder, o presidente da República veio sendo reduzido a uma espécie de crítico teimoso e falastrão do que todas as outras autoridades, inclusive no seu governo, estão fazendo. Quanto mais ataca e ameaça, menos pode.

A situação, surreal, escapa à lógica política que prevalece em quase todos os países democráticos, onde governantes ganham popularidade ao alinhar-se aos protocolos que vão sendo cristalizados pela comunidade científica e sanitária.

Foi essa a maneira, no entanto, que a institucionalidade brasileira encontrou de atenuar a capacidade destrutiva do presidente Jair Bolsonaro em meio a uma crise em que estão em jogo a vida e a renda de milhões de cidadãos.

A fala em cadeia nacional no dia 8 mostra que a ignorância presidencial não ficou inofensiva. Bolsonaro, fantasiado de curandeiro, direciona a máquina do governo federal para apostar em um dos vários fármacos em fase de testes contra a doença —numa politização descabida do uso da cloroquina.

Trata-se de imitação tosca do que faz nos Estados Unidos seu congênere e modelo Donald Trump, que ao menos já assumiu atitude mais colaborativa contra a pandemia.

A economia no conflito político - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 10/04


A guerra é política, mas as armas lançadas foram números. Uma divergência de mais de R$ 80 bilhões. A Câmara dos Deputados e o Ministério da Economia discordam sobre qual é o custo do programa de ajuda aos estados e municípios que está para ser votado na segunda-feira. O governo chama de “pauta bomba”, Rodrigo Maia nega e lembra, com razão, sua adesão à pauta fiscalista. Ele acha que há objetivo político de atacar o centro, enfraquecendo os governadores do Sudeste, principalmente.

O ambiente está envenenado faz tempo. A crise do coronavírus não permitiu a superação. Nem poderia, porque o próprio presidente Jair Bolsonaro passa o tempo todo atirando contra os governadores. Nunca soube liderar a federação. Prefere chefiar uma facção que tem cada vez menos apoio.

A origem do debate é o que fazer com o Plano Mansueto. Ele foi pensado como um projeto de ajuste dos estados com maior desequilíbrio fiscal, mas agora a situação é totalmente outra. Ele não inclui todos os estados, apenas os que estavam em pior situação, e traz uma lógica do ajuste fiscal, mas este é um momento de expansão de gastos para salvar vidas. O projeto deveria já ter sido votado há muito tempo e ficou parado no Congresso. Agora o momento é de criar estradas para a ida de recursos federais para as unidades da federação.

O projeto do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) propõe que sejam suspensas as dívidas dos entes federados com a Caixa e o BNDES. Isso custa R$ 9 bilhões. Propõe que o governo federal recomponha três meses de ICMS, que está caindo em torno de 30%. O custo seria de R$ 36 bi. Que a União compense também as perdas do ISS, que daria R$ 5 bi. Além disso, e aí veio a confusão, permite que estados elevem seu endividamento em até 8% da Receita Corrente Líquida, com aval do Tesouro. O custo para o Tesouro seria de R$ 50 bilhões caso todos dessem calote na dívida. Tudo somado daria R$ 100 bi, nessa hipótese extrema dos empréstimos não serem pagos.

O Ministério da Economia acha que já concedeu bastante quando propôs a recomposição das perdas do Fundo de Participação de Estados e o dos Municípios. O problema é que o FPE e o FPM beneficiam principalmente estados mais pobres e cidades menores. Portanto, para São Paulo, Rio, Minas, Rio Grande do Sul o fundo é pouco importante. Receita fundamental é o ICMS. De fato, sem uma ajuda na perda de receita do ICMS e do ISS não se socorre os maiores estados e as maiores cidades, justamente onde estão acontecendo o maior número de casos da Covid-19.

O governo federal em sua conta sobre esse projeto registra o custo da suspensão do pagamento da dívida dos estados e municípios ao Tesouro, mas quem tem determinado essa interrupção de pagamento dos juros é uma liminar do ministro Alexandre de Moraes. E não tinha mesmo cabimento, os estados e as cidades, com seus cofres desidratados, arranjarem dinheiro para pagar a dívida. Como os maiores estados já conseguiram, é óbvio que todos terão. A guerra de números teve até a divulgação de uma tabela atribuída ao Ministério da Economia com um erro de conta.

O governo federal tem sim que ajudar os estados e municípios que veem minguar seus cofres em momento de elevação de gastos para enfrentar a pandemia. Os impostos são centralizados, a União é a única que não precisa pedir licença para se endividar e pode imprimir moeda. Logo, é o governo central que faz o papel principal. Não é favor da administração Bolsonaro. O dinheiro é do contribuinte e a dívida é contraída em nosso nome.

Mas é preciso evitar o contrabando para o projeto de medidas oportunistas e é fundamental saber a hora de retirar os benefícios. Essa foi a lição de 2008, como já escrevi aqui. O Plano de Sustentação de Investimento, uma das ferramentas para enfrentar a crise de 2008, custou R$ 40 bilhões no primeiro ano, e R$ 400 bilhões nos anos seguintes quando não era mais necessário.

Agora é a hora de salvar vidas, ampliar a rede de proteção social e mitigar a queda econômica. Depois, será preciso retomar os parâmetros fiscais. O risco é que sejam incluídas nos projetos emergenciais permissões que durem além da crise. Esse é o coração do debate econômico. Mas como o presidente exacerbou o conflito federativo no meio da pandemia, tudo vira um embate político.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)

Combate virtual - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 10/04


“Quem com ferro fere, com ferro será ferido”, uma citação bíblica tornada ditado popular, tão ao gosto do presidente Bolsonaro, pode explicar o que está acontecendo na disputa pelas redes sociais, fundamentais na estratégia política do presidente Bolsonaro, ou melhor, de seu filho 02, o vereador especialista digital Carlos Bolsonaro.
De tanto apanharem nas redes sociais da milícia digital dos Bolsonaro, comandados pelo “gabinete do ódio” que funciona dentro do Palácio do Planalto, ministros e políticos em geral resolveram montar seus próprios esquemas digitais para se contraporem à ação dos bolsonaristas.
Quando querem “fritar” algum ministro, eles começam pelas redes sociais, geralmente comandados pelo guru Olavo de Carvalho. Foi assim que caíram os ministros Gustavo Bebianno e Santos Cruz, que costuma chamar de “gangue digital” os seguidores de Bolsonaro que atuam nas redes sociais como verdadeiras milícias.
A ponto de terem criado mensagens fakes onde o então ministro criticava o presidente no WhattsApp. Santos Cruz provou que era uma montagem, mas já era tarde. O falecido Bebianno também caiu, depois de uma fritura intensa, por causa de uma discussão no WhattsApp.
O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, depois de quase ter sido demitido pelo presidente no início da semana, ganhou cerca 100 mil seguidores no Twitter, Facebook e Instagram em um só dia, segundo dados da Bites Consultoria especializada nesse acompanhamento digital.
Na quarta-feira, Mandetta participou de uma “live” da cantora sertaneja Marília Mendonça que chegou a ter mais de 3,2 milhões de visualizações ao mesmo tempo. No sábado anterior, atraindo a fúria do presidente Bolsonaro, Mandetta havia aparecido também na “live” de Jorge e Mateus, que teve 3,1 milhões.
No dia seguinte, Bolsonaro deu a declaração de que muitos ministros estão virando estrelas, e que o dia deles iria chegar. A mesma empresa Bites mostra que o número de tuítes em defesa do ministro chegou a quase 500 mil, enquanto os ataques nas redes sociais a ele foram compartilhados apenas 81 mil vezes.
O ministro Sérgio Moro, da Justiça e Segurança Pública, entrou no início do ano no Instagram, e hoje tem mais de 1 milhão de seguidores. No Twitter, ele ultrapassou 2 milhões de assinantes.“São instrumentos para divulgar as ações do Ministério da Justiça e da Segurança Pública e para colher opiniões a esse respeito”, alega, mas de fato as redes sociais têm servido de pára-raios em meio às crises.
Quando Bolsonaro foi a um ato contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal em frente ao Palácio do Planalto, em meio à pandemia do coronavírus, o número de opositores do presidente nas redes sociais superou o de apoiadores. Segundo a mesma consultoria Bites, 1,4 milhão de perfis do Twitter atacaram o presidente, enquanto 1,2 milhão o defendeu, em pesquisa realizada entre 15 e 26 de março.
Nesse período, o presidente intensificou críticas aos governadores, especialmente aos do Rio, Wilson Witzel e o de São Paulo João Dória. Em contraposição a Bolsonaro a partir da defesa do isolamento social, os governadores se fortaleceram nas redes sociais, aponta o levantamento.
A popularidade virtual dos governadores João Doria (PSDB-SP), Wilzon Witzel (PSC-RJ) aumentou, mesmo que Bolsonaro continue disparado no Índice de Popularidade Digital da consultoria Quaest, que agrega informações do Twitter, Facebook, Instagram e, mais recentemente, também analisa YouTube, Google Trends e acessos a Wikipedia.
Em março, Bolsonaro caiu de 83,1 para 69,1 (o IPD varia de 0 a 100) – queda de 16,8%. Mesmo em patamar abaixo do presidente, os governadores tiveram altas importantes: Doria cresceu 66,1% e Witzel, 39,6%. A posição dos governadores trouxe também vantagens na popularidade digital para os governadores do Maranhão, Flavio Dino, do Pará Helder Barbalho, Comandante Moisés de Santa Catarina, Camilo Santana. Do Ceará, entre outros. De vários partidos, mas unidos em torno do isolamento horizontal.
Segundo a consultoria Bites, o mais importante não é uma eventual queda do presidente Bolsonaro nas redes sociais, mas o crescimento de uma onda oposicionista sem liderança no universo digital, especialmente no Twitter.

Varejo chega a perder 80% das vendas - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 10/04

Coronavírus para o país, governo não tem plano racional de saída


O valor das compras com cartão, débito ou crédito, caiu 44% na semana passada, na comparação com dias equivalentes de fevereiro. Têm despiorado desde a primeira semana do isolamento: sai do buraco profundo do inferno para um degrau acima. Nesta semana, até quarta, caíam 35,5%, talvez com a ajuda da Páscoa. Os dados são da Cielo, para o varejo.

O valor das vendas com cartões equivale a cerca de 40% do que nas contas nacionais, no PIB, se chama de “consumo das famílias”. Equivale a uns 25% do PIB.

É uma catástrofe.

O consumo de energia elétrica caiu 8% de 18 de março a 3 de abril, na comparação com os dias de 1º a 17 de março. Na sexta-feira, 3 de abril, caiu 14% (na comparação com a média das sextas-feiras de março até dia 17, pré-isolamento). Os dados, os mais recentes, são da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica.

Em alguns setores, a devastação é quase total. No varejo de vestuário, a queda nas vendas está em quase 83% nesta semana (ainda na comparação com fevereiro). Nos restaurantes, de 72%. Nos serviços, em geral, 73,3%. Móveis, eletrodomésticos e lojas de departamento, 58,4%.

O varejo de bens não-duráveis, que inclui mercados e supermercados, sobe nesta semana, 4,7% (Páscoa?), mas caía 7,8% na semana passada.

Note-se que se trata de médias. As lojas de vestuário da rua estão sem vender nada, assim como o pessoal de serviços pessoais (salões de beleza, manicures, barbeiros) está sem trabalho. Muitos restaurantes estão fechados. Comércio e serviços demitem em massa. As medidas do governo, crédito para a folha e suplementação de salário não bastam. Não há como pagar salários um pouquinho maiores e outras contas, como aluguel.

Vale sempre repetir alguns números da vida real. A empresa mais comum no Brasil é a loja de roupas e acessórios: mais 1,1 milhão de firmas. A seguir, vêm os negócios de cabeleireiros, manicures e pedicures, com 808 mil empresas. Somados, os grupos restaurantes e lanchonetes e similares são 812 mil empresas.

A paralisia também atinge um centro da indústria, as montadoras de veículos. Na sexta-feira passada, o consumo de energia lá caíra 75% (em relação às sextas do mês de março antes do isolamento). Na indústria têxtil, queda de 52%. Nos manufaturados, 39%. Serviços, também menos 39%.

Em resumo, com dois meses desta situação haverá a maior recessão da história do país, um afundamento quase duas vezes mais rápido daquele que se viu em 2015.

Para diminuir o tamanho do desastre econômico, o governo terá de, no mínimo fazer o seguinte.

PRIMEIRO. Rever em detalhe o alcance das medidas de socorro, crédito ou doação, para salvar empregos e empresas. Microempresas ainda estão fora do radar, empresas um pouco maiores do que médias (faturam mais de R$ 10 milhões por ano) estão descobertas, pequenas e médias não estão conseguindo fechar as contas, estão fechando.

SEGUNDO. No que resta de racional no governo, elaborar um plano de guerra para produzir e comprar testes, criar meios de aplica-los em ordem e aumentar a capacidade de análise dos laboratórios. Parece que todo mundo já ouviu falar disso. MAS O GOVERNO NÃO TEM UM PLANO. Sem tal programa, não temos como planejar a saída do desastre.

Parece repetitivo. É. Precisa ser feito, é preciso capacidade executiva e liderança, para ontem. Não é um debate teórico nem louco, como a receita de óleo de cobra para espinhela caída do coronavírus, que se tornou a conversa central do nosso presidencialismo de alucinação.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Cloroquina sim ou não? - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 10/04

Testes são importantes, mas o fundamental é isolamento, isolamento, isolamento


Enquanto o mundo vai chegando a cem mil mortos (cem mil!), a cloroquina vira o grande assunto nacional, dividindo opiniões de autoridades, médicos, estudiosos, pacientes e qualquer um que esteja acompanhando as notícias sobre a pandemia ao redor do mundo, sobretudo no Brasil: a dona Maria, o seu José, quem faz isolamento, quem não faz. Virou uma febre.

Então, aos fatos: desde que China e Estados Unidos passaram a falar publicamente no uso de cloroquina contra o coronavírus, isso entrou na pauta internacional e animou o Brasil. A primeira reação foi uma corrida às farmácias, esvaziando as prateleiras para quem tem malária, lúpus ou artrite e realmente precisa do medicamento. Até por isso a Anvisa decretou a exigência de receita médica. A compra ficou restrita, mas o debate disparou e cada um passou a ter suas próprias certezas. Um festival de achismos.

A cloroquina passou a ser associada a outros remédios para tentar salvar vidas de pacientes de covid-19 em estado crítico, depois para pessoas internadas e está perto de virar remedinho para gripezinhas e resfriadinhos, qualquer um toma. Não há, porém, trabalho científico e documento de órgão oficial de saúde atestando que ela efetivamente cura no caso de coronavírus. Como disse uma epidemiologista na TV, há muita suposição, nenhuma comprovação científica.

O governo está correto em garantir preventivamente estoques – até porque se trata de um medicamento muito barato – e a bola está, não com políticos, seja o presidente, governadores ou prefeitos, mas sim com os médicos. Cabe a eles determinar quem, quando e em que circunstâncias deve usar a cloroquina. E, se a pessoa sobreviver, é preciso comprovar se foi por causa desse remédio específico, já que são administradas diferentes substâncias.

Antes da comprovação científica, boa parte do Brasil, a começar do governo federal, aposta todas as suas fichas numa saída milagrosa: aplicação de cloroquina a torto e a direito. Todos os pacientes se curam alegremente, o número de mortos fica muito aquém das previsões, a pandemia se vai como por encanto e viveremos todos felizes para sempre. É um bom sonho, mas convém combinar com a realidade.

De acordo com a OMS e todos os países desenvolvidos – que se preveniram a tempo ou que tentam remediar após milhares de mortes – o ideal seria dividir essas fichas aí, tá ok? Investir sim nas pesquisas com a cloroquina e aplicação de plasma de curados, por exemplo, mas com prioridade para testes, leitos, adequação do sistema de saúde à emergência e para aquelas duas palavrinhas mágicas: isolamento social.

Quanto mais a realidade grita, mais as pessoas desfilam despudoradamente, sem máscaras e distância mínima, fechando olhos e ouvidos para o colapso à vista no sistema de saúde e acreditando que quem morre são os “outros”, não somos nós, nossos pais, avós, parceiros, entes queridos. Pois deveriam aprender com EUA, Itália e Espanha que, depois, não adianta chorar sobre o leite derramado – e sobre os corpos.

Ficar trancada em casa quatro semanas é chato, estranho, mas isso é o mínimo que cada um de nós tem de fazer para reduzir a contaminação de um vírus que vai se espalhando e chegando à pobreza, onde não há nem água e sabão, quanto mais álcool gel. Não dá para contar com cloroquina, é preciso agir contra o contágio.

O efeito da pandemia é terrível na economia mundial e de cada país. O Brasil não escapa disso. Mas, mais importante do que economia, empresas e empregos – que o Estado tenta proteger como pode –, o fundamental é salvar vidas. Esse é o dever, obrigação e compromisso número um dos governos e de todos nós. Isolamento, isolamento, isolamento! Enquanto seu lobo não vem e não há cura comprovada!

Louco da caneta - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

ESTADÃO - 10/04
Ah! Figura nova, veio do longínquo 2020, hoje muito popular nos manicômios

Em um hospício do futuro, dois enfermeiros conversam:

“Quem é aquele enfezadinho, naquele cercadinho, que anda com uma grossa caneta na mão, dizendo te demito?”.

“Ah! Figura nova, veio do longínquo 2020, hoje muito popular nos manicômios. Antigamente existia o Napoleão. Agora é o pô, sou presidente. Com a caneta, ameaça demitir todos os psiquiatras, visitantes e residentes.”

Em casa, desafio Marcia, minha mulher:

“Sem olhar no celular diga que dia é hoje?”.

Marcia pensa, arrisca:

“Sexta-feira”.

“Como acertou?”

“Semana passada, fiz compras para uma semana e era sexta-feira. Então? E amanhã então é sábado, maravilha.”

“Maravilha por quê.”

“Não teremos o que fazer.”

“Mas faz 15 dias que não temos o que fazer, o que fazemos é por nossa conta, você dá retoques em um projeto, eu esboço um texto, você vê um filme, eu mergulho em A Balada do Café Triste, de Carson McCullers, além do lindo livro de Marina Colasanti, que acabou de sair, Mais Longa Vida. Sem esquecer Wisnik, Dentro do Nevoeiro. Belo título para os dias de hoje.

Wisnik, vejam só, décadas atrás, eu um insensato, tive um arranca-rabo injusto com ele, que até hoje me envergonha. Não ter o que fazer? Loucura. É só querer que tem. Na verdade, temos feito muito, mas achamos que não estamos “fazendo” nada. Põe a mesa, tira a mesa. Faxina no quarto, no banheiro. Mais tarde na sala e no quarto. Leva o lixo para baixo. Você acaba de arrumar cozinha, já tem outra à espera. E as roupas para lavar. Passar? Para quê? Não vamos sair. Amassado é moda, assim como jovens andam rasgados. E minha mãe que não me deixava sair de casa, aos 20 anos, se o vinco da calça não estivesse perfeito? Hoje, ao menos, não têm mais meias para cerzir. Falando em meias, e o comovente gesto de Liliana Aufiero, convocando todos os funcionários da Lupo e adaptando máquinas para fazer máscaras e doar? Eta Araraquara! E os Trajanos, do Magazine Luiza, dizendo: “Temos dinheiro para aguentar a crise”, enquanto muitos choram e mamam? Eta! E tira o pó, e tira o pó, e faz e repete, faz e repete, faz e repete, bate uma vitamina, bate um bolo, faz um mexidinho, e lava e desinfeta, lava e desinfeta. Maçanetas, trincos, botões de elevador, tudo que é tocado pela mão humana se torna maldito.

Porteiro chama: “Chegou o álcool gel”. Ele coloca no elevador, não era álcool gel, era água de coco mandada pelo meu filho Daniel. Mas a neura hoje é álcool gel.

Estamos “descobrindo o valor das domésticas, essas que superlotam a Disney, segundo o Guedes PecPecPecPecPec. O homem parece um pato grasnando. Não há declaração sem citar a PEC. Dá logo o dinheiro do povo e desgruda dessa PEC. Perdemos a contagem dos dias. Robinson Crusoe fazia uma marca com faca em árvores para cada dia que passava: foram 28 anos. No isolamento, olho a primeira página do jornal, vejo a data. Se um dia entregarem o jornal atrasado, vão me descontrolar. Também para que preciso saber o dia, todos são iguais, silenciosos, desertos? O que notamos é o ar mais puro. Antes, sair com camisa branca significava chegar em casa com o colarinho preto. Nunca vi como agora um céu tão límpido, durante o dia ou à noite.

Solidariedade e humor têm nos feito suportar o isolamento. A frase tornou-se clichê, mas deixe, vamos repetir à exaustão. Ao receber um meme, se gosto, reenvio. Quem não recebeu este, leia. Memes são como piadas, não se sabe onde nascem.

“Balanço do mês.

Taxas, pagamentos, crediários.

Boletos de banco contaminados, 14.

Sob ameaça de ter coronavírus, 9.

Mortos, 11.”

Há finais de livros e filmes que ficam para sempre em nossas mentes. A frase de Joe Brown, Ninguém é perfeito, no filme Quanto Mais Quente Melhor é motivo de riso até hoje, passados 60 anos. Ruy Castro encerrou de modo exemplar uma crônica recente. Falando da hierarquia militar, rígida, severa, que faz o Exército ser o que é, ele comenta: “Hoje, generais batem continência para um ex-capitão expulso do Exército por indisciplina”. Há que pensar, há que pensar!

Outra foi Tati Bernardi que assim fechou sua crônica: “Vai ficar tudo bem. Eu sei que vai dar tudo certo, precisa dar. Eu tenho uma filha”. Nós todos temos, Tati. Filhas, filhos, netos, tudo. Quem tem razão é a blogueira Marli Gonçalves dentro do Chumbo Gordo, pondo o dedo na ferida: “A maior desgraça mundial hoje, além do vírus, é a ignorância, que aqui no Brasil há anos contamina nossos dias”.

Sobrevivemos. A cada dia, sento-me em uma cadeira diferente, em um lugar diferente, olho de uma janela diferente, coloco músicas que nunca ouvi, ou que fazia anos que não ouvia (Hernando’s Hideaway ou Mercado Persa), estou localizando aquela pilha de livros que comprei compulsivamente e jamais li. Dia desses, encontrei antiquíssima agenda de telefones, liguei para Daisy. Quem seria? Um homem atendeu: “Você é daqueles que, 50 anos atrás, ligavam sem parar e me infernizavam a vida?”. Era o pai ou o marido? O que fez Daisy no passado que eu não soube? Deu-me vontade de ligar para todos aqueles telefones, saber o que aconteceu com cada pessoa. Só que os números foram mudando, mudando, crescendo e as pessoas desaparecendo, assim como desaparecem os fones fixos, os orelhões e as listas telefônicas, que serviam para tudo, desde encostar a porta para que não batesse com o vento, até para marombados mostrarem sua força rasgando-as ao meio.

Tenho medo de que nos acostumemos com o confinamento. Medo de passarmos a gostar de encontros virtuais, festas virtuais, reuniões virtuais, happy hours virtuais, ida ao banheiro virtual, jejum virtual, transas virtuais, beijos virtuais, doenças virtuais, brigas virtuais, guerras virtuais, caminhadas virtuais. Cada um de nós isolado, segregado, desarticulado, afastado, insulado dentro de nós mesmos, nascendo com um celular acoplado na mão.

Voluntarismos fora da lei - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 10/04

Determinar destinação de dinheiro público compete ao Legislativo e ao Executivo


Sob a justificativa de colaborar para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, juízes vêm alterando o uso de recursos públicos, o que foge completamente de sua alçada. A contribuição do Poder Judiciário neste momento tão delicado do País consiste em aplicar a lei. Determinar a destinação de dinheiro público é competência do Legislativo e do Executivo. Além de adentrar no campo do arbítrio, voluntarismos fora da lei produzem desorganização e ineficiência no Estado. Não é assim que o País vencerá o enorme desafio da covid-19.

Na terça-feira passada, o juiz da 4.ª Vara Federal Cível de Brasília Itagiba Catta Preta Neto determinou o bloqueio dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário, colocando-os à disposição do governo federal para uso “em favor de campanhas para o combate à pandemia ou amenizar suas consequências econômicas”. Os recursos somam quase R$ 3 bilhões.

Não deveria existir o Fundo Partidário e tampouco o Fundo Eleitoral. Sendo entidades privadas, os partidos devem ser sustentados com recursos privados, oriundos de seus apoiadores. Mas o fato é que a lei criou tal deformidade – destinando dinheiro público a partidos políticos – e um juiz não pode dispor sobre a utilização desses recursos, o que já foi feito pelo Congresso, alegando que dos “sacrifícios que se exigem de toda a Nação não podem ser poupados apenas alguns, justamente os mais poderosos, que controlam, inclusive, o orçamento da União”.

Em recurso interposto pela Advocacia-Geral da União (AGU) contra a decisão da 4.ª Vara Federal Cível de Brasília, o presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1.ª Região, Carlos Moreira Alves, suspendeu no dia seguinte a liminar, por entender, entre outras razões, que o bloqueio pela Justiça dos fundos “interfere em atos de gestão e de execução do orçamento público, da mesma forma como interfere no exercício de competências constitucionalmente outorgadas a autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo”.

Outra frequente interferência do Poder Judiciário em seara que não lhe compete refere-se a recursos devolvidos aos cofres públicos por meio de acordos judiciais com empresas e delatores. Segundo o Estado apurou, a Justiça já destinou à área da saúde cerca de R$ 2,5 bilhões relacionados a ilícitos. Além de não ser atribuição do Judiciário realizar a gestão desses valores, muitos desses casos não envolvem recursos públicos, e sim dinheiro privado que, mesmo depois da descoberta da manobra ilícita, não é restituído ao verdadeiro dono.

No mês passado, por exemplo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que parte dos recursos oriundos do acordo da Petrobrás com autoridades dos EUA, cerca de R$ 1,6 bilhão, fosse aplicada no combate à covid-19. Trata-se do terceiro destino dado a tais valores. Originalmente, os recursos seriam usados para constituir um fundo anticorrupção, a ser gerido pelo Ministério Público. Diante do escândalo da medida, o Supremo destinou os valores para a educação e a proteção da Amazônia. Agora, parte do montante vai para o combate da covid-19.

É preciso advertir que esses “recursos recuperados pela Lava Jato”, aos quais a Justiça dá a cada momento um determinado destino, não são dinheiro público. No caso, são valores subtraídos da Petrobrás, uma sociedade de economia mista. Seus recursos são, portanto, de seus acionistas. A União é a maior acionista, mas há outros milhares de acionistas privados, cerca de 400 mil, que detêm grande parcela do capital acionário.

Há também decisões em que o Judiciário atua como se fosse o Executivo. Na Paraíba, a Justiça decidiu que R$ 3,8 milhões recuperados na Operação Calvário fossem usados para comprar 15 respiradores pulmonares. Em Mato Grosso, decisão judicial destinou R$ 566 mil recuperados na Operação Ararath ao Hospital Universitário Júlio Muller.

Por mais nobre que seja a finalidade, não há bom uso do dinheiro público fora da lei. O estado de calamidade pública não amplia nenhuma competência da Justiça. Determinar o destino de recurso público continua sendo atribuição do agente político eleito, como dispõe o regime democrático.

O perigo de uma crise nos hospitais privados - ADELVÂNIO FRANCISCO MORATO

O GLOBO - 10/04

Unidades de pequeno e médio porte especulam o risco de fechar as portas

A capacidade do sistema de saúde está sendo colocada à prova a cada semana que passa e cresce o número de casos de Covid-19 no país. Estados e municípios têm feito todo o esforço possível para aumentar a estrutura de atendimento da rede pública, que enfrenta o desafio de ter que continuar absorvendo os pacientes de casos usuais, e ter suporte para atender aqueles contaminados pela nova doença. E dentro desse cenário, a rede hospitalar privada tem, na medida do possível, reunido recursos para ajudar o SUS. Diariamente, a imprensa relata novas ações, como pesquisas de medicamentos sendo feitas em hospitais privados, parcerias para abertura de leitos, doação de equipamentos e insumos, entre outras iniciativas.

Contudo, uma parcela relevante da rede privada hospitalar sofre com as consequências que o coronavírus vem provocando. O cenário é tão preocupante que muitos hospitais de pequeno e médio porte especulam o risco de fecharem as portas durante essa crise, pois os gastos dispararam, mas as receitas estão em queda. Houve a necessidade de investir em treinamento, pois o atendimento aos pacientes contaminados exige cuidados diferenciados. Também existe uma incapacidade em diversas unidades de reposição de estoque devido à dificuldade financeira. Os insumos estão sendo utilizados em grande quantidade e a reposição demanda recursos de que muitos não dispõem.

Para piorar, a pandemia tem inflacionado o mercado de insumos hospitalares. Alguns itens chegam a registrar um aumento de mais de 400% no valor do seu preço. Segundo levantamento da Federação Brasileira de Hospitais, há hospitais que compravam, antes do surto da doença, uma caixa com cem luvas por R$ 16,65 e agora compram por R$ 22,50. A unidade de álcool gel, que antes era vendida por R$8,50, agora sai por R$ 24,90. Mas o que mais chama a atenção é o salto no valor de um caixa de máscaras com 150 unidades, que antes era comprada por R$ 5,20 e agora os preços chegam a variar de R$ 40 a R$ 80.

Esses preços estão fora da realidade das unidades de pequeno porte, que não têm escala para negociar valores com os fornecedores e ficam numa situação difícil: ou se endividam para ter os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ou ficam sem itens básicos para a segurança de seus profissionais e dos próprios pacientes. Por isso, a Federação vem defendendo a criação de uma linha de crédito para essas compras, bem como que haja a autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, em especial os que servem ao diagnóstico e tratamento de pacientes crônicos e os que protejam os prestadores de serviços de serviço na área de saúde.

Há também a suspensão de procedimentos eletivos, resultado direto da política de quarentena. Sabemos que a saúde de muitos pacientes depende da realização de exames e cirurgias que têm sido adiadas, situação esta que também afeta diretamente a sustentabilidade de muitos hospitais. Essas unidades estão registrando perda de receita devido à queda no volume desses procedimentos. Há hospitais no Rio em que o volume de procedimentos médicos caiu 90%. No Ceará, a redução chega a 80% e em Goiás metade dos procedimentos foi cancelada. Essa baixa demanda ocorre porque tanto as operadoras de planos de saúde quanto o SUS estão cancelando cirurgias, exames e consultas eletivas. Soma-se a isso a elevação dos custos, forma-se um cenário nada animador para a sustentabilidade dos hospitais.

E o que talvez a sociedade desconheça é que a rede privada vem registrando um achatamento nos últimos dez anos. Quase 67% dos hospitais fechados estão em municípios afastados dos grandes centros. No desafio de se manter sustentável, são os estabelecimentos de pequeno e médio porte que mais enfrentam dificuldades para sobreviver. Prova disso é que eles representam quase 95% do total de fechados.

É imprescindível que o governo esteja aberto a ouvir o que a rede privada vem pleiteando e, principalmente, que tenha a percepção de como o agravamento de uma crise no setor vai provocar impactos direto no atendimento do SUS. No interior, não são raros os hospitais privados que também são a referência de atendimento, inclusive para pacientes da rede pública. O fechamento desses estabelecimentos vai provocar uma sangria no sistema de saúde, que já sofre cronicamente com a falta de leitos. E isso pode acontecer no pior momento possível para o país.

Adelvânio Francisco Morato é presidente da Federação Brasileira de Hospitais

Vírus revela o país sob os escombros do Mito da Caserna - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 10/04

Correção de caminho durante a pandemia será feita a um custo imenso


O ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, citou o Mito da Caverna no seu Dia do Fico Mais ou Menos (7). Platão é biscoito fino demais para a patuscada em curso. Se a gente quer chegar ao mundo inteligível, precisa pensar o desastre a que está nos conduzindo o Mito da Caserna. Não é um jogo de palavras, mas um erro de caminho. A correção, se vier, será feita a um custo imenso.Dia do Fico Mais ou Menos (7). Platão é biscoito fino demais para a patuscada em curso. Se a gente quer chegar ao mundo inteligível, precisa pensar o desastre a que está nos conduzindo o Mito da Caserna. Não é um jogo de palavras, mas um erro de caminho. A correção, se vier, será feita a um custo imenso.

"Tenho certeza de que a grande maioria dos brasileiros quer voltar a trabalhar. Essa sempre foi minha orientação a todos os ministros, observadas as normas do Ministério da Saúde." É trecho do pronunciamento desta quarta do presidente Jair Bolsonaro. Uma coisa (voltar ao trabalho) exclui a outra ('normas' do ministério). É esperteza rasa.É trecho do pronunciamento desta quarta do presidente Jair Bolsonaro. Uma coisa (voltar ao trabalho) exclui a outra ('normas' do ministério). É esperteza rasa.

É só um modo de tentar se distanciar da montanha de cadáveres. Aproveitou a fala para desfraldar a bandeira da cloroquina e assumir a paternidade das medidas compensatórias em curso. Nem horizonte nem direção. Nos estados, os leitos de UTI vão se apinhando, e a Covid-19 ainda mal visitou os pobres. Não obstante, os governadores são fustigados por milícias verdadeiramente criminosas nas redes sociais.

Como se chegou a esse ponto? Ora, Bolsonaro venceu porque teve mais votos. Fez-se um candidato viável com seu antipetismo estridente, em aliança informal com a Lava Jato, e dois trunfos ditos infalíveis: Paulo Guedes, a cloroquina do mundo das finanças, e o Partido Verde-Oliva.

Durante a campanha eleitoral, em conversas com empresários e outros integrantes da elite econômica, ouvi mais de uma vez que o escandaloso despreparo intelectual de Bolsonaro tomava a conversa: 'Fique tranquilo! Os militares saberão contê-lo'. Havia também a crença de que eles assegurariam a qualidade técnica da gestão. É mesmo?

As Forças Armadas, e o Exército em particular, têm certa ambição de tutela da sociedade que vai além do que lhes garante o artigo 142 da Constituição. A desordem politicida provocada por Sergio Moro e companhia, sob o pretexto de caçar e cassar corruptos, despertou o sentimento adormecido da 'pátria ferida em sua honra', a pedir, então, uma solução fora da política.Sergio Moro e companhia, sob o pretexto de caçar e cassar corruptos, despertou o sentimento adormecido da 'pátria ferida em sua honra', a pedir, então, uma solução fora da política.

Bolsonaro, um formidável vazio de ideias habitado por insultos e anacolutos, abria as portas para a missão salvacionista. Mais uma vez, os corruptos estavam na mira, e a extrema direita se encarregou de ressuscitar a ameaça comunista. Estavam dados os motivos morais para uma nova restauração, como em 1964, mas, desta feita, por intermédio das urnas. Como se isso pudesse existir.

O Mito da Caserna tentava um processo de aggiornamento, com a possibilidade, desta feita, de tutelar também um presidente eleito. Ou capitão não bate continência para general? Bolsonaro sabe que não contará com os militares para o sonhado autogolpe. Mas é mentira que esteja sob vigilância dos generais da razão.

Eles o aconselharam, sim, a não demitir Mandetta, mas o presidente manteve o ministro no cargo porque quis. E porque é o que recomenda o sinistro gráfico dos mortos. Nem tutela nem qualidade de gestão. Militares e Guedes, as duas âncoras garantidoras de Bolsonaro, foram obrigados pelo vírus a se ver face a face e a acertar contas com a mais implacável de todas as verdades reveladas: os fatos. Dada a crise, foram tomados pela paralisia e pela perplexidade.

Está marcada para a próxima segunda (13) a votação no Senado da chamada PEC do Orçamento de Guerra, aprovada na Câmara no dia 3. Fornece ao governo os instrumentos econômicos, técnicos e jurídicos para responder às várias frentes da crise. Antes dela, só havia escuro.

Trata-se de um instrumento originalmente pensado pelo economista José Roberto Afonso, muitos milhares de quilômetros distante do governo. Ele o debateu originalmente com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo. Este, por seu turno, procurou Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, que mobilizou seus pares.

Paulo Guedes e os militares enxergavam não mais do que sombras na caverna. Bolsonaro vituperava contra o mundo. Todos eles sob os escombros do Mito da Caserna.


Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Bolsonaro no divã - NELSON MOTTA

O GLOBO - 10/04

Ele não explicou a relação entre a virilidade e a eficiência da Ciência


Entre os sentimentos humanos, desde Caim e Abel, o ciúme é o mais nocivo, o mais destrutivo e inútil, porque não traz nenhum benefício a ninguém. Até a inveja ou o ódio podem provocar reações como “ah é? então vou mostrar para essa gente quem eu sou” e estimular conquistas legítimas. Mesmo o que chamam carinhosamente de “inveja branca”, que não existe — inveja não tem cor, porque quer a cor do outro —, pode construir e estimular atitudes positivas. O ciúme, não. Porque o ciúme se alimenta do sentimento de posse e da insegurança. Pessoas seguras se garantem. Não se sentem ameaçadas. O ciumento é antes de tudo um inseguro, um fraco.

O ciúme obscurece a razão e leva a desatinos e gestos tresloucados. Não só o ciúme amoroso de homem-mulher e suas variantes. Passional, incontrolável e devastador, ele também envenena as pessoas nas relações de trabalho, de família e na luta pelo poder. Cercado pelo ciúme doentio dos filhos, Bolsonaro é um ciumento patológico, que fica cego de ódio quando se sente ameaçado por qualquer um que brilhe mais que ele e possa lhe fazer sombra e se tornar um concorrente em 2022, ele só pensa nisso.

O ciúme é proporcional à insegurança e, quando associado à paranoia e à ignorância, é nitroglicerina pura. Entre casais pode dar em morte, e na política, em assassinato cultural. Ou suicídio. Tanto simbólico como literal.

Muitas vezes, uma aparência exagerada de macheza e de superioridade esconde um secreto sentimento de inferioridade e fragilidade, que se expressa irracionalmente pelo ódio, a inveja e a violência. Quem é escravo do ciúme não pode ser superior a ninguém.

Quando foi ao encontro de eleitores quebrando o isolamento, Bolsonaro achava que estava dando uma demonstração de coragem e macheza, se misturando ao povo e “combatendo o vírus como homem e não como moleque”, mas não explicou a relação entre a virilidade e a eficiência da Ciência.

Corajoso não é quem não tem medo, esse é um idiota temerário e irresponsável; coragem é enfrentar o medo e vencê-lo.