quinta-feira, abril 29, 2021

O padrão da infâmia - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/04

Há quem sue a camisa tentando ser mais imoral que os Bolsonaros


O senador Flávio Bolsonaro saiu ao pai. Tal como costuma fazer o presidente Jair Bolsonaro, o parlamentar ofendeu a inteligência alheia ao discursar na abertura da CPI da Pandemia. Na ocasião, o senador, com vergonhosa caradura – outro traço paterno –, queixou-se do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, por ter autorizado a instalação da CPI. Disse que o senador Pacheco estava sendo “irresponsável” porque estava “assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos desta CPI, acontecerem mortes de senadores, mortes de assessores, mortes de funcionários desta Casa, em função da covid”, já que “as sessões vão ter que ser presenciais, no momento em que nem todos estão vacinados”. E arrematou: “Por que não esperar todo mundo se vacinar e fazer com responsabilidade esses trabalhos? Por que essa insistência agora, atropelando protocolos, ignorando a questão sanitária? Alguém, em algum momento, vai ser responsabilizado se algo acontecer. Vamos orar para que não aconteça”.

É um acinte. Desde o início da pandemia, os Bolsonaros, com o presidente Jair na vanguarda, fazem campanha sistemática contra os “protocolos” mencionados pelo senador Flávio. O presidente estimula aglomerações, desdenha da vacinação e jamais demonstra preocupação com os doentes nem respeito pelos mortos. Por fim, é Bolsonaro, e não o presidente do Senado, quem defende o fim das medidas de restrição adotadas pelos governadores e prefeitos no momento em que nem mesmo o chamado “grupo de risco” da população está vacinado.

“Alguém, em algum momento, vai ser responsabilizado se algo acontecer”, disse Flávio Bolsonaro, referindo-se a eventuais mortes no Senado em razão do trabalho presencial. Mas “algo” já aconteceu: são quase 400 mil mortes desde o início da pandemia, muitas delas perfeitamente evitáveis, e é justamente para encontrar os responsáveis por esse crime monstruoso que a CPI foi instalada.

O comportamento do senador Flávio Bolsonaro não surpreende. É o padrão da infâmia no governo Bolsonaro – a tal ponto que, numa inconfidência gravada, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, de 64 anos, revelou ter tomado a vacina “escondido”, porque “a orientação era para não criar caso”.

Não se sabe bem a que “orientação” o ministro se referiu, mas, ao dizer que teve que tomar a vacina “escondido”, deixou claro que alguns ministros do governo Bolsonaro não ficam à vontade para se imunizar, pois esse gesto contrariaria a campanha do presidente contra a ciência e contra a vacinação.

“Mas tomei mesmo, não tenho vergonha, não”, continuou o ministro Ramos, que estava numa reunião do Conselho de Saúde Suplementar. “Eu, como qualquer ser humano, quero viver. E se a ciência, a medicina, fala que é a vacina (...), quem sou eu para me contrapor?” E ainda acrescentou que está tentando convencer Bolsonaro a se vacinar, pois o presidente estaria correndo risco de vida. Ou seja, um ministro de Bolsonaro candidamente confirma que, no governo, quem decide alinhar-se à ciência e preservar a vida deve fazê-lo discretamente, para não embaraçar o negacionista militante ocupante da silha presidencial.

Na mesma reunião estava o ministro da Economia, Paulo Guedes, que também teve sua oportunidade para confirmar o assustador padrão do governo. “O Estado quebrou”, disse o ministro Guedes, acrescentando que “todo mundo vai procurar o serviço público” de saúde, pois “todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130”, e “não há capacidade instalada no setor público para isso”. Ou seja, para o ministro que se diz liberal o problema da saúde pública é que os brasileiros desejam viver mais.

A solução para esse problema, segundo o ministro Guedes, seria instituir um “voucher” para que o paciente procure tratamento no sistema privado de saúde. “Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einstein se você quiser”, explicou o ministro, numa escancarada defesa do desmonte do Sistema Único de Saúde – estrutura sem a qual o desastre da pandemia seria muitas vezes maior.

Como se vê, nesse campeonato de desfaçatez, há quem esteja suando a camisa para ser ainda mais imoral que os Bolsonaros. É difícil, mas eles seguem tentando.

domingo, abril 04, 2021

A hora se aproxima - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ESTADÃO - 04/04

Há que juntar as forças capazes de se contrapor a estrebuchamentos autoritários eventuais


A única vantagem que os mais velhos podem eventualmente ter é que já viveram situações difíceis. Elas não deixaram saudades. Os que se aproximam dos 90 anos (questão de três meses no meu caso), passaram pela 2.ª Grande Guerra; viram a migração do Nordeste tocada pela pobreza e, mais tarde, a do Sul, abrindo fronteiras no Oeste e ocupando terras; passaram pelo golpe de 1937, viram outra vez, de lado político distinto, o movimento de 1964 (em ambos os momentos carreiras foram cortadas e, mesmo, vidas ceifadas, às vezes pela tortura) e viram a democracia voltar a ser um valor. A liberdade é como o ar que respiramos: sem nos darmos conta, é dele que vivemos. Basta cortá-lo para aparecerem consequências nefastas.

Daí que eu veja com apreensão o momento atual. O País sofre uma crise sanitária gravíssima (talvez só comparável ao que aconteceu na “gripe espanhola” em 1918-1919); ainda está com as dificuldades econômicas, devidas não apenas à recessão, mas também à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra, as quais, sem que haja dinamismo na produção, mostram com clareza as dificuldades para a obtenção de empregos. E, ainda por cima, temos um governo que não oferece o que mais precisamos: serenidade e segurança no rumo que estamos seguindo.

Nem tudo se deve à condução política do presidente da República. Convém repetir: ele foi eleito pela maioria e disse o que faria... Fez. E não deu certo. Em razão disso, para onde vai o País?

Primeiro, não julgo que seja suficiente distribuir “culpas”. Há várias culpas e vários culpados, interna e externamente. Sejamos realistas: ainda que o presidente fosse capaz de conter os seus ímpetos, não nos livraríamos do vírus que nos atormenta. Mas poderia haver menos mortos. A credibilidade dos que mandam é quase tão eficaz para conter desatinos como a competência dos serviços de saúde para evitar mortes.

A semana que passou dava a sensação (a meu ver, falsa) de que corríamos o risco da volta ao autoritarismo. O símile com situações autoritárias do passado não ajuda a entender as opções disponíveis. Houve, sim, uma forte movimentação de comandos militares. Mas, para dizer em termos simples, trocamos seis por meia dúzia.

Cada chefe militar tem, é natural, suas características e suas manias. Nenhum dos atuais comandantes, antigos ou novos nos postos, imagina que “um golpe” resolva a situação. Não sei o que se passa na cabeça presidencial, mas, ainda que desejasse um “golpe”, com que roupa? Basta ler as declarações dos militares que partiram ou dos que chegaram: quase todos falam em respeitar a Constituição e agir dentro da lei.

Não me parece haver clima, no País e na parte do mundo a que estamos mais vinculados, para aventuras. Dado o porte de nossa economia e a quantidade de questões sociais e econômicas a serem enfrentadas, por que uma pessoa razoável aumentaria as nossas angústias? E as que não são razoáveis? Estas precisam dispor de um clima favorável a suas loucuras, o que não me parece ser o caso.

Sendo assim, aumenta a responsabilidade de cada um dos cidadãos: devemos dizer, com firmeza, sim ao que queremos e não ao que nos assusta. Não é hora de calar, nem de fazer algazarra. Aproveitemos o quanto possível para, com equilíbrio, mostrar a insensatez de concentrar poderes nas mãos de quem quer que seja, pessoa ou instituição.

Defendamos a Constituição da República, que é democrática, e saudemos os políticos que creem que é melhor apoiar quem possa chegar à Presidência sem representar um extremo. Apresentemos aos brasileiros, quanto antes, um programa de ação realista, que permita juntar ao redor dele os partidos e as pessoas para formar um centro que seja progressista, social e economicamente. Centro que não pode ser anódino: terá lado, o da maioria, o dos pobres; mas não só, também o dos que têm visão de Brasil e os que são aptos para produzir.

Quem personificará esse centro? É cedo para saber. É cedo para “fulanizar”, como diria Ulysses Guimarães. Mas é hora de promover a junção das forças capazes de se contrapor a eventuais estrebuchamentos autoritários, antes que surjam propostas que nos levem a eles.

Vejo que alguns políticos se dispõem a agir para evitar que a mesmice predomine. Pelo menos é o que deduzo das declarações recentes de vários líderes da vida brasileira. A eles juntarei minha voz. Sei das minhas limitações e não tenho a ilusão de que, ao escrever que a eles me juntarei, a situação mudará. Mas se cada um dos brasileiros se dispuser a falar e a agir, é de esperar um futuro melhor.

Na política, como na vida, ou se acredita que é possível mudar e obter uma algo melhor, ou se morre por antecipação. Continuemos, pois, vivendo: propondo mudanças, sempre com a expectativa de que elas possam ser realizadas e com elas o Brasil ficará melhor.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA