sábado, janeiro 12, 2013

Louca para casar? - IVAN MARTINS

REVISTA ÉPOCA


Os jornais dizem que no Japão as moças não querem mais se casar, muito menos ter filhos. Elas preferem a liberdade e a independência financeira proporcionadas pela carreira profissional. O resultado dessa escolha é que as taxas de natalidade do país estão desabando. A cada ano morre mais gente do que nasce. Virou um drama nacional. Logo, logo o Japão terá de importar bebês, como hoje importa ferro e petróleo.

No Brasil não temos nenhum dos dois problemas, pelo contrário. As moças brasileiras ainda querem casar e ter filhos. Um pouco mais tarde do que antes, mas querem. Na minha geração, na classe média, a pressão para casar (ou simplesmente morar junto), começava no fim da faculdade, ali pelos 22 anos. Partia, quase invariavelmente, das mulheres. Agora, tenho a impressão de que elas começam a falar do assunto alguns anos mais tarde. Mas a iniciativa ainda costuma ser delas, e certamente se manifesta antes que façam 30.

Nem sempre as mulheres lidam com esse assunto de uma forma equilibrada, porém. Tenho uma amiga que depois de apenas seis meses de namoro já está em desespero com a recusa do parceiro em se casar. Seis meses... Ela tem 26 anos e o cara tem 30, mas quem escuta ela falar do assunto imagina que ambos têm 10 ou 15 anos a mais. Minha sensação é que a história não vai acabar bem. Diante do comportamento de afogada dela, o sujeito tende a cair fora, e talvez seja melhor assim.

Há poucas coisas que atrapalham mais a vida dos casais do que a sensação de que alguém foi forçado ao casamento. Se você tem pouco mais de 20 anos e sua namorada tenta lhe aplicar uma chave de braço – “ou casamos agora ou vai cada um para o seu lado” – a resposta razoável seria “ainda não estou pronto, meu amor”. Mas não. Muitos cedem à pressão, mesmo cheios de dúvida, mesmo intuindo que essa não é a coisa certa a se fazer. Logo depois do casamento, quem foi posto na parede vai começar a se sentir infeliz, e rapidamente arrumará um jeito de fazer com que o outro se sinta da mesma forma. É o que o escritor americano Philip Roth chamou de “aquele casamento ruim que a gente faz aos 20 anos”. Era mais comum na minha geração, mas ainda existe por aí.

Apesar desse descompasso, é preciso manter a calma.A frustração feminina diante de dificuldade de fazer com que os homens assumam compromissos não acontece apenas quando eles têm 20 anos, e certamente não é somente brasileira. Recebi outro dia um livro chamado Por que você não se casou... ainda, escrito pela roteirista de TV americana Tracy McMillan. Com três casamentos e três divórcios no currículo, além de um filho de 14 anos, ela jura que entende os homens. Diz que sabe o que eles desejam e o que buscam numa mulher para casar. Ficou interessada? Pois a resposta dela é simples: os homens querem mulheres legais.

“Ser legal é ser suave, divertida, gentil e, aham, penetrável”, escreve a casamenteira americana. “Uma garota pode ser gostosa, sexy, poderosa, inteligente, dinâmica e interessante, mas, se não for meiga, a maioria dos homens não vai querer casar com ela.” O contrário da mulher legal, com quem segundo Tracy todos os homens estão loucos para casar, seria a megera, aquele tipo controladora, brava e sarcástica, que assusta os homens com a sua atitude hostil. Como parte dos homens que eu conheço está casada ou foi casada com megeras controladoras, acho essa receita discutível, mas eu posso estar errado.

Minha impressão é que no Brasil de 2013 se vive um problema que vai um bocadinho além das fórmulas de auto-ajuda. Os homens estão ariscos diante do casamento porque a situação dos jovens atraentes (aqueles com quem boa parte das mulheres quer se casar) é extremamente confortável. Sobra sexo, sobram experiências emocionais interessantes, por que ter pressa em trocar isso pela monogamia e pelos prazeres estafantes da vida familiar? É uma questão real e complicada, meio inversa àquela que acontece no Japão. Não sei se as estatísticas captam isso, mas a sensação que tenho nas conversas é que muitos homens estão adiando a decisão de casar para um futuro distante, o que significa pensar no assunto depois dos 30 anos. Isso faz sentido para eles, mas não combina com o relógio biológico das mulheres. Se elas começarem a pensar em casamento muito depois dos 30, pode faltar óvulos para fazer uma família. A história de que os 50 são os novos 30 ainda não vale para a biologia.


Há muitos homens por aí dispostos a se apaixonar e assumir compromissos, mas talvez nenhum deles seja aquele bonitão sexy e másculo que está pegando todas as suas amigas. Esse pode não estar disponível, e escolher bem ajuda a não ficar sozinha. Depois tem a negociação. Morar junto ou casar sempre implica em algum tipo de disputa, mas ela precisa ser conduzida sem desespero e sem truques. Pressionar e iludir pode produzir resultados imediatos, mas explode logo ali na frente. Cativar, envolver e tomar parte funciona melhor, eu acho. Há que ter alguma paciência também. Todo mundo procura uma cara metade, mas as pessoas precisam perceber isso por conta própria. Há gente, porém, que nunca vai perceber - e um dos segredos da existência é saber dar meia volta e renunciar ao se deparar com uma pessoa dessas. Quem quer ser feliz com um parceiro não pode se dar ao luxo de se apaixonar por um drama e gastar anos preciosos da vida correndo atrás de um amor impossível.


"Amor" - RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA


Um título pode dizer muito ou nada. “Amor” é uma palavra batida e banalizada que ganha uma dimensão épica no filme indicado, na semana passada, a cinco estatuetas do Oscar. Amor, do diretor Michael Haneke, Palma de Ouro em Cannes, retrata um casal de octogenários, Georges e Anne, professores aposentados de música clássica. A história narra nossa impotência diante da doença e da morte.

Em duas horas de cinema ou um ano de vida real, dois atores magistrais, Jean-Louis Trintignant, de 82 anos, e Emmanuelle Riva, de 85 (a belíssima protagonista de Hiroshima meu amor em 1959), nos transformam em passageiros da agonia humana. A agonia diante do sofrimento da pessoa que amamos. O que fazer quando o doente nos faz prometer que nunca mais será hospitalizado? Estamos dispostos a adoecer junto? Será a doença mais forte que o amor?

À exceção de uma cena de concerto, o filme se passa inteiro dentro do apartamento elegante e forrado de livros, com um piano na sala de estar. São idosos com cultura, dinheiro e prestígio. Vivem sós – sem empregados, como é o normal na Europa. O que mais nos encanta, quando Georges e Anne ainda estão sadios, não são as conversas sobre literatura e música, mas os olhares amorosos, os gestos de carinho, a cumplicidade nos atos mais cotidianos, como o café da manhã na cozinha.

A rotina se quebra numa dessas manhãs, quando Anne sofre um AVC, acidente vascular cerebral. De repente, ela olha o vazio, não responde. O casal vai ao hospital, mas nós, espectadores, não. Na cena seguinte, Georges e Anne chegam de volta ao apartamento, ela de cadeira de rodas, com o lado direito paralisado e o orgulho ferido. “Quando adoecemos e ficamos imobilizados, passamos a viver entre quatro paredes. O mundo exterior desaparece”, diz Haneke. Nosso olhar profana a intimidade do casal, da cozinha ao banheiro, do banheiro à sala, da sala ao quarto, do quarto ao corredor.

Daí em diante, cama e móveis são adaptados às limitações de Anne. E Georges passa a viver em função dela. Ele se debilita aos poucos, até que Anne sofre um novo ataque, enfermeiras vêm e vão, e a música envolvente de Schubert é substituída por gritos dela: “Mal... mal... mal”. Na tradução literal, “dói... dói... dói”. E mais do roteiro não conto ao leitor, embora Haneke antecipe o final na primeira cena. Talvez para não encorajar ilusões.

O casal tem uma única filha, Eva (Isabelle Huppert), que vive no exterior, em Londres, com o marido, ao jeito das famílias contemporâneas globalizadas, em que os velhos vivem muito mais e os filhos, de longe, não conseguem ajudar sem virar suas vidas pelo avesso. Eva, em raras visitas, chega ansiosa, com muitas perguntas e nenhuma solução. “De que nos serve sua inquietação?”, pergunta o pai, friamente.

É um filme duro, e quem conhece a direção de Haneke – A professora de piano, A fita branca, Caché – sabe que esse austríaco nascido na Alemanha não dá brecha para a pieguice. “Quando escolhemos um tema universal, como amor, velhice e morte, há dois grandes perigos: o sentimentalismo e a autocomiseração. Não é por ser sentimental que alguém tem emoções, não se iluda!”, afirmou o diretor.

Segundo as resenhas dos críticos, eu deveria ter chorado ao ver o filme na tarde fria de Paris na semana passada. Deveria, porque todo mundo chora. Talvez devesse ter soluçado, me acabado em lágrimas. Mas não. Meu pai e minha mãe têm 90 anos, estão no Rio. Meu pai acaba de sair de uma internação no hospital por pneumonia e minha mãe foi diagnosticada há dez anos com Alzheimer. Ela é linda, inteligente e ainda reconhece filhos e netos. Por mais cruel que seja a enfermidade da perda gradual da lucidez, continuam intactos seu instinto maternal e o ciúme que sente de meu pai.

A realidade da minha família é tão mais branda do que vi na tela. Nossos momentos presentes precisam ser celebrados porque não se controla o amanhã. Amor é uma lição de vida, mais que de morte.

Haneke não quis mostrar tudo, muito menos “os horrores e as humilhações” das clínicas de repouso, dos asilos ou das alas geriátricas dos hospitais. “Um filme onde tudo é dito está morto. Devemos nos aproximar ao máximo da complexidade de uma situação e deixar aberta a interpretação, para que o filme não termine na tela, mas na sua cabeça, no seu coração... ou no seu ventre.”

Há quem saia do cinema chocado pelas cenas mais duras do filme. Eu saí envolvida pelas cenas mais ternas. Quando Georges retira do banheiro Anne, já paralisada parcialmente, e a levanta, os corpos enlaçados, em pé, ambos arrastando os pés numa dança trôpega até a cadeira de rodas. Quando ela interrompe uma refeição e pede com urgência os álbuns de fotos da juventude a dois. Quando Georges vê a miragem de Anne tocando piano, o som de Schubert invade tudo e, repentinamente, ele desliga o aparelho de CD. Triste, simples, real e belo
.

Bom dia, tristeza - CLÁUDIA LAITANO

ZERO HORA - 12/01


O David Coimbra vive me dizendo que não gosta de histórias tristes. Devo ter cara de quem adora tragédia porque cada vez que eu recomendo um livro ou um filme no Café TVCOM, meu amigo me olha de um jeito meio desconfiado, como se qualquer sugestão aparentemente inofensiva que eu faço pudesse esconder algum tipo de drama humano lancinante do qual ele prefere manter distância – na vida como na arte.

Sim, eu confesso: encruzilhadas existenciais me interessam. Muito mais do que aventuras nas selvas africanas, crimes perfeitos ou batalhas durante a II Guerra. Mas assim como há filmes de guerra que são obras-primas e outros que são bombas (sem trocadilho), enredos “humanos” nem sempre são profundos, obviamente.

Algumas histórias tristes apenas arranham a superfície das emoções – e a facilidade com que manipulam as reações do público é inversamente proporcional à sutileza com que retratam um determinado sentimento. Melodramas do tipo Uma Janela para o Céu (clássico Kleenex dos anos 70 que costumava extrair hectolitros de lágrimas das plateias), programas de auditório e filmes publicitários estão aí para provar que a fórmula do choro é bem menos misteriosa do que a fórmula da Coca-Cola.

Talvez a origem da desconfiança do David venha da constatação de que algumas histórias tristes praticam uma espécie de estelionato emocional no espectador. É verdade que muitos sairão de Uma Janela para o Céu com os olhos vermelhos, mas satisfeitos pelo efeito catártico do filme: chorar pelo sofrimento alheio de certa forma alivia as nossas próprias mágoas represadas.

O espectador mais exigente, porém, talvez perceba que filmes desse tipo costumam aplicar golpes baixos de sentimentalismo. (Para esses, o sofrimento de estar no cinema acaba sendo maior do que qualquer via-crúcis do personagem. )

Algumas histórias são tão tristes, que nem sequer fazem chorar – e essas são as melhores. É o caso do filme Amor, de Michael Haneke, em cartaz em Porto Alegre. Poucas vezes você vai assistir a um filme tão dilacerante na crueza com que retrata a convivência de um casal de idosos lidando com uma doença debilitante. Nada ali, porém, é gratuito ou foi pensado para fazer você chorar – e talvez o filme seja mais impactante exatamente porque não nos oferece o alívio da lágrima fácil.

Nem todos viveremos as perdas, as dores ou as angústias morais que nos levam a questionar tudo o que sabemos (ou achamos que sabemos) a respeito de nós mesmos e dos outros – e mesmo quando acontece de estarmos muito próximos desse tipo de sofrimento nem sempre teremos condições de extrair algum tipo de sentido disso.

Por que assistir a um filme sobre a dor quando há tantas comédias disputando a nossa atenção e a vida real nem sempre nos dá refresco? Porque há algo a respeito da confusa, dolorosa e inabarcável experiência humana que apenas a grande arte é capaz de nos revelar.

SÓ DÁ O RIO - ANCELMO GOIS


O GLOBO - 12/01


São Paulo vai receber, como se sabe, o primeiro jogo da Copa de 14, mas o concerto de abertura, um dia antes, será... na Praia de Copacabana. Eduardo Paes fechou acordo, ontem, com a Fifa e a Control Room, empresa que organiza a festa.

‘OS TRÊS TENORES’...
Na Copa de 10, na África do Sul, a cerimônia, lembra?, foi no Orlando Stadium, em Johannesburgo, marco da luta contra o Apartheid.

Em mais de uma Copa, a festa contou com Os Três Tenores: Plácido Domingo, Carreras e Pavarotti.

AQUI...
Para o concerto em Copacabana, o presidente da Riotur, Antonio Pedro Figueira de Mello, prevê seis atrações internacionais e seis nacionais.

RECORDE PÚBLICO
Em que pese o “pibinho” na economia, ano passado, a receita de bilheteria dos cinemas brasileiros foi de R$ 1,6 bilhão, um salto de 11,2% em relação a 2011. Houve ainda recorde de público: 146,4 milhões foram ao cinema, crescimento de 2,2%.

Os dados serão divulgados, segunda agora, pela Ancine.

JÁ...
O site Filme B diz que a participação dos filmes brasileiros neste bolo, em 2012, foi de 10,3%.

SAGA CREPÚSCULO...
Aliás, o Brasil foi responsável por quase metade da receita de bilheteria do último filme da saga Crepúsculo, Amanhecer - Parte II, em toda a América Latina. Dos US$ 100 milhões de bilheteria, US$ 45 milhões vieram daqui.

Os números são da IDC, divisão da América Latina do estúdio de cinema Lionsgate, em Hollywood.

CACÁ EM NOVA YORK
O Lincoln Center, em Nova York, vai exibir, veja que legal, entre 12 e 18 de abril, 14 filmes de Cacá Diegues, um dos grandes mestres do nosso cinema. Entre os longas: Xica da Silva, Bye, bye Brasil, Tieta, Orfeu e Deus é brasileiro.
Merece.

AS MULATAS DO LAN
Esta escultura está na exposição “Mulheres de Lan”, que abre, quarta, na Galeria Marly Faro, em Ipanema. Na obra ao lado, a mulata usa uma camiseta do Flamengo, time do coração do cartunista Lan.

DOIS POR UM?
O Procon do Rio autuou a rede Outback. O alvo foi a promoção de bebidas que promete dois copos pelo preço de um.

O chope, por exemplo, sai por R$ 8,35. “Esse preço é o dobro do praticado no mercado. É propaganda enganosa escancarada”, diz o novo presidente do Procon, Rodrigo Roca.

CASAS NOVAS
Cabral comprou 80 casas pré-moldadas para vítimas das chuvas em Xerém.

As obras começam após o carnaval e ficarão prontas em cem dias. Cada uma custará R$ 35 mil. A prefeitura cederá o terreno.

AGORA É OFICIAL
O filme Lula, filho do Brasil, de Fábio Barreto, foi visto na TV Globo por 25,3 milhões de pessoas.

ARTE NA LINHA AMARELA
A Lamsa, concessionária que administra a Linha Amarela, a exemplo do que fez o Metrô, em seus muros no Rio, também investe, veja só, no grafite como fórmula de evitar aquelas pichações que tanto emporcalham a cidade. Desde o fim de dezembro, um viaduto, na altura da Abolição, e as passarelas 1 e 2 (veja acima) da Avenida Bento Ribeiro Dantas, próximo ao Complexo da Maré, na Zona Norte da cidade, foram transformados em extensas obras de arte. A iniciativa faz parte do projeto “Grafiarte”, da própria Lamsa, que reúne estudantes e educadores. Eu apoio.

MULHERES PODEROSAS
A editora Sextante lança, este mês, o livro Por que os homens casam com as mulheres poderosas?, de Sherry Argov. Ela entrevistou centenas de homens e concluiu que as “boazinhas e disponíveis” não são as preferidas.

No Brasil, a escritora americana já vendeu mais de 800 mil cópias de seu best-seller Por que os homens amam as mulheres poderosas?.

RAP DAS ARMAS
Não é apenas no Camboja que o funk Rap das armas, como saiu aqui na terça passada, faz sucesso.

As rádios e bares do Uruguai costumam tocar a música brasileira que fez parte da trilha do filme Tropa de elite. Mas numa versão de reggaeton, aquele ritmo latino.

FALA, MANGUEIRA!
O juiz Rossidelio Fonte, da 36ª Vara Cível do Rio, marcou a eleição da nova diretoria da Mangueira para 28 de abril agora. Neste mesmo dia, como se sabe, é aniversário de 85 anos da escola de Cartola.

No ano passado, a Justiça do Rio anulou a eleição da escola, mantendo a atual diretoria. No mais... moraliza, Mangueira!

Em Havana, sem lágrimas - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 12/01


"Protetorado", informam dicionários, é a definição para as situações em que um Estado é posto sob autoridade de outro, geralmente muito mais forte, sobretudo na política externa.

Exemplos atuais dessa convenção são as Ilhas Malvinas, dependentes do Reino Unido. Ou Porto Rico, assim reconhecido por algumas agências governamentais dos EUA, exceto pelo Departamento de Estado.

Assiste-se a uma inovação nos trópicos - uma subversão do conceito pelo qual o dominador tende a ser o maior e o mais forte: o governo de uma pequena e pobre ilha caribenha passou a ter influência política e militar decisiva sobre uma nação continental sul-americana, com um território oito vezes maior, o triplo de população e uma economia assentada sobre extraordinárias reservas de petróleo.

Essa foi a proeza política concretizada por Cuba dos irmãos Raúl e Fidel Castro na Venezuela de Hugo Chávez.

Alguns historiadores contemplam o fenômeno com assombro. É o caso do mexicano Jorge Castañeda, autor de uma relevante biografia de Che Guevara: "Ser protetorado de uma potência não é muito saudável. Ser de uma ilha empobrecida e envelhecida, com menos da metade de habitantes que o próprio país, é aberrante" - ele escreveu no jornal "Reforma", da Cidade do México, ao analisar as cenas de realismo mágico protagonizadas pelos chavistas em Caracas.

"Algum dia", acrescentou, "alguém terá de explicar como o rumo de uma Venezuela repleta de reservas petrolíferas, com quase 30 milhões de habitantes e uma sociedade civil vibrante e organizada determinou-se sob as ordens de um senhor de nome Ramiro Valdés Menéndez, de 80 anos de idade, durante anos chefe da repressão de Havana, que chegou ao México em 1955 e partiu para Cuba a bordo do Granma, acompanhando Fidel e Raúl Castro e Che Guevara - faz mais de meio século."

Menéndez virou uma espécie de embaixador plenipotenciário de Havana para assuntos venezuelanos. Comanda uma equipe de "especialistas" em operações de espionagem e controle de população civil, a quem Chávez entregou os serviços de emissão de documentos nacionais de identidade, de fiscalização biométrica nos aeroportos, de cadastro eleitoral e registro de votação.

Um dos poucos a ostentar o distintivo de "comandante da revolução", Menéndez é o mais experiente na cúpula militar encarregada dos interesses de Cuba na Venezuela, onde também se destacam os generais Julio Casas Regueiro, ex-chefe de segurança de Fidel e mais recentemente representante de Raúl Castro no Ministério das Forças Armadas; Leonardo Andollo Valdés, vice-chefe do Estado Maior; Erminio Hernández Rodríguez, Humberto Francis Pardo e Alejandro Ronda Marrero (na reserva). Não há números precisos, mas estima-se que sejam responsáveis por operações diversas - desde inteligência militar a assistência social - nas quais estão diretamente envolvidos cerca de 15 mil cubanos, com residência temporária na Venezuela.

As cenas de realismo mágico protagonizadas pelos chavistas em Caracas, na quinta-feira, tiveram um roteiro escrito em Havana. Ali, há exatamente um mês, isolou-se um presidente enfermo, incomunicável. Nesse período, sua grave doença foi tema de 27 informes oficiais - e nenhum permite qualquer conclusão sobre vida ou morte.

Reza o acordo político selado em Havana, sob supervisão do governo Castro, que Hugo Chávez continua vivo. E continua governando, com reconhecimento de governos como o de Dilma Rousseff. Detalhe relevante, acrescentado esta semana pela corte constitucional venezuelana: só Chávez pode decidir sobre sua ausência. Se e quando isso acontecer, a decisão será tomada em Cuba. Sem lágrimas.

Japão, a Grécia da Ásia - ANNE SEITH

O Estado de S.Paulo - 12/01


Durante anos, o governo japonês se manteve tomando dinheiro emprestado mais do que qualquer outro país


Os olhares do mundo financeiro estão voltados para a Grécia e para outras nações da zona do euro extremamente endividadas. Entretanto, a situação do Japão é ainda pior. O montante da dívida do país é imenso e não para de crescer, a ponto de o país precisar gastar 25% do orçamento somente para o seu serviço.

Hoje, Tóquio tornou-se uma meca permanente do consumo, e seus bairros parecem classificados de acordo com os mercados alvos. O distrito de Sugamo, por exemplo, é habitado predominantemente por pessoas idosas. As escadas rolantes da estação do metrô movimentam-se bem devagar, e as lojas do centro comercial de Jizo Dori oferecem artigos como bengalas, creme antienvelhecimento e chá contra dores nas juntas. Por outro lado, o bairro de Hurajuku vive numa agitação frenética, com os adoradores da moda maquiados para se parecerem com os personagens dos Mangá.

Entretanto, esse mundo de brilhos falsos não passa de uma ilusão.

Durante anos, a terceira maior economia do mundo se manteve, sem o menor remorso, tomando dinheiro emprestado mais do que qualquer outro país. Nas últimas décadas, os governos japoneses foram acumulando dívidas de cerca de US$ 14,6 trilhões, o que corresponde a 230% do Produto Interno Bruto, nível de endividamento muito superior aos 165% da Grécia.

Esses gastos desenfreados transformaram o Japão numa bomba relógio - e num exemplo que pode servir de lição para a Europa. O Japão, o país do milagre econômico do pós-guerra, nunca conseguiu se recuperar do colapso da bolsa e da crise imobiliária que convulsionou o país nos anos 90. O governo foi obrigado a ajudar os bancos; as seguradoras faliram. Desde então, as taxas de crescimento anuais têm sido frequentemente insignificantes e a receita com impostos não chega a cobrir a metade dos gastos governamentais. Na realidade, o país se encontra numa espiral inexorável de gastos deficitários.

O fato de essa tragédia desenrolar-se em relativo segredo pode ser atribuído a um fenômeno bizarro: contrariamente às economias carregadas de dívidas da zona do euro, o Japão continua não pagando juros sobre o que toma emprestado. Por exemplo, enquanto a Grécia teve de encarar juros de dois dígitos, os do Japão chegaram a apenas 0,75%.

A própria Alemanha, a economia mais saudável da zona do euro, paga mais.

Dinheiro sem fim. O motivo é simples: ao contrário dos países da zona do euro, em geral o Japão toma emprestado do próprio povo. Bancos e seguradoras nacionais adquiriram 95% da dívida soberana do país usando depósitos de poupança da população em geral. Além disso, os japoneses estão aparentemente tão convencidos de que, um dia, o país conseguirá saldar sua dívida que continuam emprestando ao governo uma quantidade aparentemente infinita de dinheiro.

Os especialistas advertem que esse sistema não poderá continuar por muito tempo. Takatoshi Ito, professor de economia da Universidade de Tóquio, afirma que o Japão poderá se tornar a "próxima Grécia" se o governo não mudar de rumo. Ito e um colega calcularam que, mesmo que o povo japonês investisse todos os seus bens em títulos soberanos, só bastaria para cobrir os gastos oficiais por 12 anos.

Mas quem ajudará o Japão se o país chegar a esse ponto? "Se o Japão for obrigado a procurar investidores no exterior, uma crise da dívida será inevitável", afirma Jörg Krämer, principal economista do Commerzbank, segundo maior da Alemanha.

O homem encarregado de evitar esse desastre ocupa um escritório num edifício que parece uma fortaleza. As paredes do Banco do Japão, o banco central do país em Tóquio, são de pesadas pedras cinzentas decoradas com colunas possantes e frontões. Entretanto, a impressão de uma fortaleza inexpugnável é enganadora. O presidente do banco, Masaaki Shirakawa, de 63 anos - um homem magro com cabelos impecavelmente repartidos -, desistiu das políticas monetárias disciplinadas que seus colegas ocidentais pregam. Shirakawa mantém as máquinas de imprimir dinheiro funcionando para estimular a economia. Desde 2011, o banco lançou programas de emergência de aproximadamente 900 bilhões. Em comparação, os fundos de ajuda financiados pelos 17 países-membros da zona do euro somam apenas 700 bilhões.

Pesando cada palavra. Há algum tempo, os bancos japoneses têm conseguido emprestar dinheiro do banco central a juros perto de zero. Com essa estratégia, Shirakawa faz exatamente o que vários políticos europeus - e particularmente os países desprovidos de dinheiro do sul da Europa - vêm pedindo ao Banco Central Europeu (BCE) que faça: financia o governo. Ele desmente, e os métodos que usa são tortuosos. Entretanto, até o momento, sua estratégia não conseguiu ajudar muito.

"Neste momento, o efeito da nossa política monetária em termos de estímulo do crescimento econômico é muito limitado", admite Shirakawa. O dinheiro barato está parado nos bancos em lugar de fluir para a economia real. "O dinheiro está lá, a liquidez é abundante, os juros muito baixos - e, no entanto, as empresas não usam essas condições confortáveis", diz Shirakawa. "O retorno sobre os investimentos é excessivamente lento".

Shirakawa senta muito empertigado numa cadeira de couro preto com um encosto bem reto e as pernas cruzadas. Ele pesa cuidadosamente cada palavra. O presidente do banco central pretende aposentar-se dentro de poucos meses, mas por enquanto sofre fortes pressões. O governo do recém-eleito primeiro-ministro Shinzo Abe, conservador, deixou claro há poucos dias que espera que Shirakawa imprima ainda mais dinheiro.

O premiê lançou ontem um novo programa de estímulo econômico de US$ 114 bilhões, realimentando a economia japonesa com investimentos públicos no setor da construção. Ao mesmo tempo, Abe quer que Shirakawa injete um volume ilimitado de recursos na economia. Se o presidente do banco central não concordar com esses planos, Abe advertiu que está disposto a mudar a lei e a colocar o banco central sob o controle do governo. É uma ideia que os economistas não levam em consideração.

"Equivaleria ao motorista de um carro ir de encontro a uma parede e pisar fundo no freio antes do impacto", afirmou secamente o economista Krämer. Klaus-Jürgen Gern, especialista em Ásia no Instituto Kiel para a Economia Mundial, fala de "simples inépcia".

Presente eleitoral? Parece que o próprio Shirakawa não sabe qual seria a melhor resposta. Quatro dias depois da vitória eleitoral de Abe, o presidente do banco aparentemente cedeu e aumentou seu programa de compra de títulos soberanos e de papéis em mais 90 bilhões. Os observadores o descreveram como um presente de Natal para o autoritário vencedor das eleições. O dinheiro é apenas um meio que permitirá "ganhar tempo", diz Shirakawa. "Poderá aliviar o sofrimento. Mas o governo também precisa implementar reformas."

Pode ser, mas todos os esforços políticos que foram feitos nas últimas décadas para ativar a economia sobrecarregada de regulamentações falharam. A maneira de operar no setor varejista, por exemplo, tornou-se antiquada. A indústria não se mexeu durante muitas revoluções da Tecnologia da Informação porque o país procura "preservar todos os empregos possíveis por meio de uma exagerada regulamentação estatal", diz Martin Schulz, que trabalha desde 2000 no Instituto de Pesquisa da Fujitsu.

Aparentemente, Abe planeja até mesmo acabar com o plano do seu predecessor de aumentar o imposto sobre o valor agregado em vários estágios, de 5% para 10%.

'Um problema real'. Se isso acontecer, equivalerá a puxar uma carta do meio de um castelo de cartas. Todo o orçamento trimestral do governo atualmente se destina ao pagamento do serviço da dívida. Se Tóquio for obrigado a pagar juros mais elevados, sua montanha de dívidas crescerá ainda mais rapidamente.

Um outro "risco em potencial", é o "volume de títulos do governo japonês detido pelo setor bancário", como observa educadamente Shirakawa. Se os juros de longo prazo subirem consideravelmente, poderão afetar a estabilidade do setor. Isso, na pior das hipóteses, assinalaria o ponto no qual a crise poderia alastrar-se através das fronteiras.

Prever os possíveis efeitos da crise da dívida japonesa é extremamente difícil. Mas o pesquisador Schulz está convencido de que não haverá um "grande colapso". Ele acredita que, tendo em vista a autopreservação, é improvável que os grandes detentores de títulos da dívida japonesa, como os bancos nacionais, possam se livrar desses títulos rapidamente. Essa medida prejudicaria a confiança nos títulos da dívida japonesa e, por extensão, nos bancos que detêm esses títulos. Em vez disso, ele prevê "várias crises menores" nos próximos anos. Ele e outros economistas acreditam ainda que há muito espaço para elevar os impostos para neutralizar a situação.

Entretanto, adverte o economista Krämer, seria importante refletir um pouco sobre os perigos potenciais da crise da dívida japonesa. "O efeito psicológico poderia ser o mais perigoso", afirma. O que aconteceria, por exemplo, se os investidores de repente, perdessem a confiança em outros países enormemente endividados, como os EUA? "O Japão continua uma das maiores nações industrializadas do mundo, e o iene é uma divisa importante para as transações cambiais internacionais", afirma Gern, especialista em Ásia. "Se houver um descontrole geral, o mundo se deparará com um problema concreto". / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

Consensos, competição, preços na China - MARCOS CARAMURU DE PAIVA

FOLHA DE SP - 12/01


Quem já se engajou numa transação comercial na China viu que preço envolve variáveis imperscrutáveis


O TEMA foi tratado em editorial do "China Morning News": enquanto o custo das festas de casamento em Hong Kong aumentou 37% em 2012, a contribuição dos convidados permaneceu entre HK$ 500 e 1.000 (cerca de R$ 260) por pessoa. Não é correto, argumentou o jornal.

Na China, os convidados a um casamento não dão presentes. Oferecem dinheiro, no envelope em que recebem o convite, para ajudar os noivos a custear a celebração. Há uma espécie de consenso quanto ao valor: o que devem dar os amigos mais íntimos, os menos chegados, os que vão à festa sós ou em casal.

Aparentemente, a "tabela" necessita de reajuste. O "China Morning Post" tomou a si a tarefa de levantar o tema, mesmo com o risco de desagradar aos que têm salários baixos e muitos amigos, para quem HK$ 500 por casamento já é caro.

A prática da contribuição "tabelada" é uma proteção, própria de uma sociedade em que buscar sobressair-se é mal visto e, ao mesmo tempo, ninguém quer ficar para trás.

O curioso é observar como ela contrasta com o comportamento no mundo empresarial.

A concorrência entre empresas chinesas é acirradíssima. O mercado é grande, ninguém pode supri-lo integralmente. E, como há uma tendência natural à cópia, quando um produto gera interesse, o número dos que investem para oferecê-lo multiplica-se com rapidez.

Isso explica por que diversas cidades são especializadas: óculos em Shenzhen, Wenzhou e Danyang, porcelana em Jingdezhen, enfeites de toda ordem em Yiwu e assim por diante. Ou porque uma cidade como Xangai passa a ter, de uma hora para outra, um número excessivo de lojas de vinho.

No extremo, avaliam os locais, a empresa destrói os concorrentes e se arrisca a quebrar junto para não perder a venda.

A cooperação empresarial, por sua vez, é reduzida ou nula. Frequentemente, dentro de uma holding, diferentes unidades produzem o mesmo item e concorrem entre si no mercado interno e nas exportações. É o caso das estatais produtoras de máquinas e bens pesados, como trens e equipamentos para aeroportos.

Quem já se engajou numa transação comercial na China viu que o preço envolve variáveis imperscrutáveis. Nos mercados tradicionais de rua, onde a barganha funciona, já se sabe de antemão que cada comprador desembolsa um montante diferente pelo mesmo item.

A prática, no entanto, vai além das feirinhas urbanas. Há diversos mercados atacadistas no país. É comum compradores de fora os frequentarem à cata de alguma barganha para importar. Os atacadistas sabem quem é do ramo e precificam de acordo com o cliente, não com o produto que é vendido.

Como, em geral, os artigos chineses ainda são relativamente baratos, os importadores saem satisfeitos. Mas quem entende a lógica pode obter melhor resultado.

Só vai aqui um conselho: caso se torne amigo do vendedor e algum dia seja convidado para o casamento de sua filha, pergunte primeiro qual é a tabela local. Errar no montante que vai no envelope pode destruir a perspectiva de negócios futuros.

O movimento de um tucano - LEONARDO CAVALCANTI

CORREIO BRAZILIENSE - 12/01


As ações de Geraldo Alckmin para enfrentar a onda contínua de violência em São Paulo foram insignificantes, se não equivocadas ao longo das três gestões no comando do estado. Depois de um semestre marcado pelo aumento no número de homicídios contra civis e policiais, uma nova chacina abriu 2013, com seis mortos e três feridos. Na lista dos investigados, servidores fardados, que deveriam proteger o cidadão. Uma demonstração da fragilidade ocorreu no episódio mais tenso desta gestão — a demissão do secretário de Segurança em novembro —, quando, na despedida, Alckmin resolveu elogiar o camarada, mesmo diante da crise instalada. Agora, algo parece ter mudado na perplexidade ininterrupta do tucano, que, de resto, é tão refém de policiais-bandidos quanto a maioria dos governadores.

Na última terça-feira, Alckmin decidiu adotar uma medida heterodoxa. Desde então, nas ocorrências com lesões corporais graves, tentativa de homicídio, latrocínio e sequestro com risco de morte, os policiais acionam de imediato uma equipe de resgate, o Samu ou o serviço local de emergência. Com o local do crime preservado, comunicam prontamente o comando de operações, que aciona a perícia. Na prática, os policiais estão proibidos de atender vítimas feridas. Na língua dos tucanos, a medida tem o objetivo de dar mais qualidade ao atendimento dos feridos e aprimorar a investigação criminal. É apenas discurso para não acirrar ainda mais os ânimos dos policiais, evidentemente. A intenção é outra: coibir execuções feitas por policiais contra supostos criminosos.

Não é a primeira vez que Alckmin sai com uma ideia, vamos lá, controversa. No início de 2002, o governador apresentou, ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, um pacote de medidas para conter a onda de violência em São Paulo. Entre elas, o homem sugeriu o fim da comercialização dos telefones celulares pré-pagos. Na justificativa, Alckmin disse que o aparelho era largamente usado por bandidos para se comunicar com integrantes de organizações criminosas na cadeia. “Sei que a medida pode trazer sacrifício à sociedade, mas ela é necessária neste momento”, disse o governador, em tom solene, evidentemente. A ação não vingou. A galhofa foi tanta que um humorista chegou a sugerir a Alckmin acabar com o porta-malas dos carros de passeio para, assim, coibir sequestros.

Ambiguidade
A proibição do socorro policial parece inédita na política de segurança e na literatura acadêmica. Em entrevista à esta coluna, João Trajano Sento-Sé, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), disse que a nova proposta de Alckmin é ambígua. “E também perigosa. Eu até entendo a lógica: como há casos de execução — uma prática comum na PM paulista e de outros estados —, é preciso inibir a prática”, afirma o professor. “A questão é que pessoas podem morrer sem serem atendidas. E o impedimento não necessariamente acaba com a alteração das cenas dos crimes”, avalia Sento-Sé. É a repetição da história de proibir a venda dos celulares para a população — tentava-se acabar com um problema sem atacar as causas principais, que, naquele caso, eram as falhas nas revistas íntimas e a incapacidade de combater comandos armados nas prisões.

Para Sento-Sé, um dos maiores desafios dos governadores é aprimorar as polícias científicas — que seriam capazes, por exemplo, de identificar alterações nas cenas dos crimes —, e fortalecer as corregedorias para evitar o corporativismo nas investigações contra os policiais. Além disso, seria preciso incrementar as controladorias externas das atividades policiais, com maior proteção da sociedade e a partir de conselhos comunitários. A maior crítica do professor da Uerj está, entretanto, na definição do próprio papel da polícia. “As iniciativas mais modernas investem na figura do policial como um prestador de serviço”, diz Sento-Sé. Assim, proibir o socorro de vítimas vai contra qualquer política pública de segurança eficiente, que tratam agentes do estado como parceiros da sociedade.

Ao longo da semana, o governador disse em entrevista que não mudará a norma sobre o socorro policial, e assessores garantiram que o bom senso vai garantir o cumprimento da medida. Ou seja, quando não tiver Samu, bombeiros ou equipes de resgate, a própria polícia levará as vítimas até os hospitais. Resta saber se em algum momento outras medidas menos polêmicas e mais efetivas um dia serão adotadas. E se o cidadão estará realmente seguro ao ser abordado por um grupo de policiais.

Da burocracia à eficiência - WALTER CENEVIVA

FOLHA DE SP - 12/01


O burocrata complica o caminho da solução rápida, fere a eficiência e perturba a estabilidade do bom direito


A burocracia é vista, hoje, como realidade operativa entre dois extremos. São os efeitos positivos de sua aplicação, segundo técnicas aperfeiçoadas no século 20, e os negativos, nascidos dela quando, digamos assim, se burocratizou, gerando uma das pragas da vida moderna, na complexidade excessiva das estruturas.

Lembrei-me desse choque contrastante ao ler texto de palestra do ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), proferida em seminário com a Faculdade de Administração Pública de Nordrhein-Westfallen, na Alemanha, publicada pela FGV (projeto nº 15).

Mendes cuida da melhor gestão do Poder Judiciário, a ser aprimorada no Brasil. Anota, com propriedade histórica, o fato relevante, tanto quanto inusitado, de estarmos próximos de um quarto de século sob governos democráticos, para a livre discussão dos nossos problemas e suas soluções.

Entre eles, o ministro do STF inclui a "melhoria constante dos serviços públicos", a ser garantida, entre muitos pontos, pela "autonomia administrativa e financeira do Judiciário". Autonomia compatível com a carga imposta à magistratura nacional: 2,5 milhões de processos nos juizados especiais (os mais recentes da estrutura judicial), 30 milhões de questões exclusivamente tributárias. Lembra, na área penal, as más condições dos presídios, o absurdo em prisões ditas "provisórias". Saúda avanços da eficiência, gerados pelo Conselho Nacional de Justiça, apesar das resistências opostas à correção dos defeitos.

Na mesma publicação, Flávio Vasconcelos, diretor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV (Ebape/FGV), destaca formatos organizacionais e sua evolução. Entende que a atividade judicial eficiente se submete à independência do juiz e à equidade no processo. Deve superar a complexidade dos elementos processuais, para vencer "o desafio de criar um novo modelo de gestão".

Defende ainda "uma administração de perfil gerencial", com "metas específicas para julgamentos em relação a cada tribunal". Invoca a divulgação do resultado anual de cada tribunal, para comparações não distorcidas, de seus níveis de produtividade.

No dia a dia da vida outro dado se impõe. É a velocidade da transformação planetária dos comportamentos dos grupos e dos indivíduos, com as variedades de novas formas, em tempo muito curto. Nesse quadro, o profissional do direito vive o drama da Constituição muito emendada, das centenas de leis publicadas nos três níveis de governo, seguidas por milhões (milhões, veja bem o leitor) de termos nos regulamentos burocráticos.

O ministro Gilmar Mendes, ao apresentar as palestras transcritas na publicação, disse que o intuito de "atender aos ditames da ordem constitucional vigente", mostra a importância da discussão livre, a envolver "soluções viáveis para os complexos desafios" que o Brasil e, em especial, o Judiciário, vem enfrentando. Para mesclar burocracia e eficiência assinala a importância da cooperação germânico-brasileira, que marcou o encontro.

Não se esqueça, porém, que o burocrata, por vezes complica o caminho da solução rápida, desejada pelo bom administrador. Fere a eficiência imprescindível e perturba a estabilidade do bom direito. É dilema a ser resolvido.

Outro samba de verão - CACÁ DIEGUES

O GLOBO - 12/01


Não nos apeguemos muito aos bens materiais, porque no futuro… adeus pertences



O verão é a mais juvenil das estações, um adolescente cruel cheio de energia e de si, certo de que o mundo é mesmo como lhe parece ser. O verão não flue suavemente como a gentil primavera, ele explode em nossa cara, nos enche de porrada para que não pensemos em mais nada.

O verão nos submete, não nos deixa meditar como o inverno soturno, nem nos alimenta como o generoso outono e seus melhores vinhos. Ele nos exige a vida por inteiro e nos dá em troca apenas o fogo de seu sopro entontecedor. Como é que T.S. Eliot não se deu conta de que o verão é que é a mais cruel das estações?

O verão existe para que aprendamos a não subestimar a vida, a suar às gargalhadas. Aprendemos que a felicidade suprema é não ter que escolher, mas simplesmente nos entregarmos. As moças ficam mais bonitas e desalmadas no verão, nunca mais esquecemos o sofrimento com que nos ferem, embora não lembremos de seus rostos ou de seus nomes. Se a primavera produz o amor e a amizade que nos fazem imaginar o paraíso, o verão só produz paixão, uma festa no inferno.

Não tenho saudades de verões passados, tantas coisas ainda estavam mortas dentro de mim, só nasceriam mais tarde. Tenho saudade é de mim mesmo e de meu jovem esqueleto cheio de músculos. Como quando o cinema novo brotou num certo verão e se tornou uma luz no inverno que íamos começar a viver por tanto tempo. No verão, tudo dá certo porque não existe depois, só agora e de uma vez.

Apesar da inevitável dor, todas as esperanças florescem no calor do verão. Não sou otimista e nunca fui pessimista. Acho que as coisas não vão dar necessariamente certo ou errado, elas dependem de nosso poder diante das circunstâncias, de nossa vontade e de nossa esperança diante do acaso que faz o mundo girar. Desde que li o dístico na porta do “Inferno”, nos versos de Dante Alighieri (“deixe de fora toda esperança, você que está entrando aqui”), me dei conta de que o inferno é a ausência de esperança.

As ondas etéreas do verão são generosas condutoras de dopamina, o neurotransmissor que libera o prazer em nosso cérebro. No hemisfério sul, onde vivemos, o verão é a porta do novo ano, podemos curtir nossas expectativas nus na praia, bêbados a dançar em celebrações coletivas. A geografia nos abençoou.

No hemisfério norte, o ano novo chega gelado e sombrio, as famílias se trancam em casa em torno de árvores artificiais e falsas bolas coloridas, com medo da rua e do mundo. Lá, o futuro próximo chega sem luz. Vejam, por exemplo, o verão em sol menor (literalmente!) do compositor italiano Antonio Vivaldi. Ele nunca pega fogo de verdade, abrindo com um allegro non molto e alternando em seguida o mais pungente adágio com um presto que no final se rende à melancolia. Das quatro estações, Vivaldi entendeu melhor de primavera.

O verão pode ser também injusto, omisso, dissimulado, sem coração. O sol que alegra nossas praias e parques, é o mesmo que mata de fome em outras regiões, sem respeito à semeadura, ao trabalho dos outros. O sol em nome do qual o cordelista J.Borges, nascido no sertão nordestino, canta assim: “Sou uma peça bonita / feita pelo Criador / sou quente, clareio o mundo / no sertão sou o terror / porque acabo a lavoura / desculpe, agricultor”.

O sol que mata no nordeste se ausenta covarde dos céus, nos deixa à mercê das águas torrenciais que causam destruição e morte na bela e pobre serra fluminense. Jamais dominaremos furacões, terremotos e tsunamis, a natureza está pouco se lixando para a humanidade. Por isso, temos que aprender a nos organizarmos para negociar com ela nossos limites. E punir sem piedade o dolo eventual de prefeitos, políticos e comparsas municipais que roubam os recursos que deveriam evitar essas desgraças e proteger suas vítimas do verão devastador.

Só se resiste às fúrias do verão com generosidade. Um amigo, o poeta paulistano Sergio Vaz, nos aconselha a não nos apegarmos muito aos bens materiais, porque no futuro… adeus pertences. Sigamos então em frente, serenos em busca da paz, pois daqui a menos de um mês começa o carnaval e nossas esperanças se renovarão.

x x x x x x x

Por falar em verão, o cineasta Luciano Vidigal me conta que, nesse Natal, faltou luz no morro do Vidigal, exatamente como no episódio “Acende a luz”, de Luciana Bezerra, o último do filme “5XFavela, agora por nos mesmos”. Mas dessa vez, segundo ele, os policiais do posto de UPP local ajudaram os moradores a obrigar os funcionários da empresa de luz a permanecer no morro, até que ele se iluminasse para as festas.

E por falar em cinema, o estranho governador de Brasília contratou uma empresa de Cingapura para cuidar, pelos próximos 50 anos, do desenvolvimento da capital do país, criada por dois gênios nacionais, Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Além de burra, essa medida é uma ofensa aos nossos arquitetos e urbanistas, bem como à própria cultura brasileira. É mais ou menos como contratar o melhor diretor coreano para refilmar, digamos, “Deus e o diabo na terra do sol”. Não podemos permitir que isso aconteça, em verão algum de nossas vidas.

Melancolia lusitana - DRÁUZIO VARELLA

FOLHA DE SP - 12/01


Contou uma história de sua infância, que parecia extraída das páginas de Tchekhov


Entrei no táxi, dei o endereço e desejei bom-dia ao motorista.

- E pode havê-lo para algum cristão, com a crise que estamos a passar?

Era um senhor com mais de 70 anos, baixo e atarracado como meu avô materno. Vestia calça mescla, malha grossa, paletó de lã e o boné típico dos portugueses mais velhos. Respondeu com tamanho mau humor que resolvi ser genérico:

- Saiu o sol. Esquentou um pouco em Lisboa.

- Que adianta? Amanhã chove e esfria tanto que não se pode pôr a cara na rua.

Dei o caso por perdido, e fiquei quieto.

Poucos quarteirões à frente, uma passeata mais barulhenta do que numerosa, com apitos, tambores e bandeiras, interrompeu nossa passagem. Eram membros de um sindicato de empregados do setor de diversões. Uma das faixas dizia: "Veja no que deu. Salazar volte, estás perdoado".

Virei-me para o taxista:

- O senhor viveu nos tempos de Salazar. Um país fechado, sem liberdade, não era pior?

- Depende. Metiam-se muito na vida das pessoas, de fato. Na rua, para acender um cigarro com isqueiro havia de se ter uma autorização por escrito. Mas, faziam-no por quê? Para proteger as fábricas de fósforos, que eram do Estado. Dentro de casa, podíamos acender do jeito que entendêssemos.

Em seguida, contou uma história de sua infância, que parecia extraída das páginas de Tchékhov.

Aos sete anos, ele vivia com a família numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, no norte do país, sem energia elétrica nem saneamento; a água precisava ser recolhida de um poço na vizinhança, com corda e manivela. Menino magrinho, era ele o escalado para limpar o poço, o que significava entrar na caçamba e descer ao fundo para executar a tarefa, enquanto o pai manejava a engrenagem.

O problema é que, à medida que o balde descia, o menino era tomado por uma crise de pânico que o fazia tremer de medo de nunca mais sair daquele buraco escuro. Enquanto o pai não o içava de volta, não chegava ao fim o desespero.

Perguntei se, na mesma aldeia, o povo não começou a viver melhor depois da Comunidade Europeia. Respondeu que sim, mas:

- Aos sete anos eu nada tinha, no entanto nada devia. Hoje, meu neto mora numa casa com água, luz e telefone, mas aos três anos já deve 40 mil euros, que é o valor da dívida per capita neste país.

Em seguida, perguntou se havia cabimento conviver com uma taxa de desemprego de 16%; número que chega a 39% na população abaixo de 25 anos. E acrescentou:

- Com um desemprego desses, eu nunca poderia ter me mudado para Lisboa aos 20 anos.

- Sua vida era boa naquela época?

- Diziam que eu era um rapaz bonito. Solteiro, com trabalho e sem responsabilidade, eu vivia para copos e putas.

Passamos por um largo repleto de senhores de idade, baixos, de boné e paletó de lã, como réplicas do meu interlocutor. Conversavam em voz baixa e jogavam baralho; um ou outro mais exaltado talvez falasse de política.

O taxista quis saber se eu conhecia aquele lugar. Eu disse que não.

- Podes ver, há ali uma placa colocada em 1992: "Jardim das Pichas Murchas".

O nome insólito foi dado por um tal Carlos Vinagre, frequentador da "leitaria do Zé, o Patudo", assim batizada em homenagem às dimensões do pé do proprietário.

Como no largo em frente se juntavam os mais velhos das redondezas, o espírito comunitário de Carlos conseguiu que lá instalassem algumas mesas para distrai-los com o dominó e a sueca.

Quando chegávamos ao destino, perguntei se a crise diminuiu o movimento dos táxis.

- Todos dizem que caiu 70%, mas para mim foram 75%. E mais seria, não fosse o turismo.

Os turistas eram os responsáveis pela mudança de seu horário de trabalho. Rodava até mais tarde para transportar o pessoal que vai às casas noturnas. Citou o nome das três mais famosas: uma delas especializada em stripteases e as outras duas em "moças cheias de más intenções". Segundo ele, o movimento da primeira era bem menor:

- Quem quer ver mulheres a tirar a roupa, sem poder tocar-lhes?

A arte da epígrafe - SÉRGIO AUGUSTO

O ESTADÃO - 12/01


Numa pilha de leituras recentes e em perspectiva pego a esmo alguns volumes, e constato: as epígrafes saíram menos de moda do que eu presumia. Ainda bem. Seria um baque para minha bisbilhotice literária vê-las cada vez mais escassas, em desuso, quiçá em extinção.

Depois da capa, da tipologia e dos excertos da contracapa, a(s) epígrafe(s) é (são) o meu primeiro objeto de curiosidade na apreciação de um livro. Outros preferem ir direto às primeiras linhas do autor, mas desconfio que a maioria se dê por satisfeita apreciando as citações, ora familiares, ora esotéricas, frequentemente intrigantes, que as antecedem e, muitas vezes, lhes enriquecem o sentido.

Forma literária simbiótica, meio prefácio condensado, meio resumo, meio contraexemplo, a epígrafe é o vestíbulo do livro. Não lhe é imprescindível, nem abono de qualidade. Grandes autores (Flaubert, Balzac, Eça, Proust, Faulkner, Virginia Woolf, Graciliano Ramos, entre outros) a dispensam ou dela se utilizam com avara parcimônia (caso de Machado de Assis), conduzindo-nos diretamente ao que de fato interessa. E se o que de fato interessa começa com uma frase ou expressão de impacto como “Me chame de Ishmael” (Moby Dick) ou “Nonada” (Grande Sertão: Veredas), nenhuma epígrafe lhe faz falta. Se bem que Herman Melville preceda sua narrativa com um longo preâmbulo “etimológico” recheado de informações sobre baleias, misturadas a uma dezena de citações bíblicas e literárias, passível de ser tomado por uma epígrafe.

Aberturas lapidares como a de Moby Dick e Ana Karenina (Tolstoi, a propósito, garimpava à beça nas Sagradas Escrituras) já inspiraram ensaios e pequenas antologias. As epígrafes só em outubro do ano passado ganharam seu primeiro florilégio: The Art of Epigraph - How Great Books Begin (A Arte da Epígrafe - Como os Grandes Livros Começam), compilado por Rosemary Ahern e editado pela Atria Books (256 págs., US$ 9.99 na edição Kindle). Não é um tratado acadêmico, apenas um compêndio de trechos de prosa, poesia, canções, cartas, diálogos de filmes e peças, provérbios e aforismos, que serviram de epígrafes a obras escritas nos últimos sete séculos.

Chaucer talvez tenha sido o primeiro a exordiar seus relatos (Os Contos da Cantuária) com uma epígrafe. Isso no final do século 14, quando então tinha outro nome (“motto”, mote) e a confundiam com um prefácio. Entre seus precursores mais ilustres figuram Cervantes (Dom Quixote, 1605) e Swift (As Viagens de Gulliver, 1726). A ficção de modernistas glamourosos como Hemingway e Fitzgerald tornou-a popular na primeira metade do século passado.

A Bíblia, Shakespeare e Proust lideram o ranking de citações. Dante, por incrível que pareça, frequenta menos os livros do que Emerson, Borges, Milton e Wilde. Com uma frase (“Vocês são uma geração perdida”), ouvida de um garagista parisiense por Gertrude Stein, Hemingway epigrafou um romance (O Sol Também se Levanta) e batizou uma época. Alguns autores, entre os quais Stendhal e Isaac Asimov, inventaram citações apócrifas, extraídas de obras fictícias. Não era menos fictício o poeta Thomas Parke D’Invilliers, cujos versos preludiam O Grande Gatsby. Fitzgerald o introduzira como um dos maiores amigos do protagonista de seu romance de estreia, Este Lado do Paraíso.

Tentei preencher as lacunas deixadas pela pesquisa de Rosemary Ahern, estendendo-a à literatura de língua portuguesa e espanhola. Também na periferia a Bíblia ganhou disparado. Encontrei trechos do Velho e do Novo Testamento em autores tão distintos quanto Lima Barreto, Octávio de Faria, José Saramago e Marques Rebelo. Outras presenças constantes: Poe, Cervantes, Balzac, Eliot, Montaigne, Tolstoi, Renan, Pascal, Rimbaud, Neruda, Chekhov, Baudelaire.

Mas também é notável, além de gratificante, a incidência de autores de menor ou nenhuma projeção internacional, talentos nacionais e regionais, como, para só citar dois exemplos, o poeta alagoano Jorge de Lima (pinçado por Raduan Nassar para Lavoura Arcaica) e o compositor colombiano Leandro Diaz (que García Márquez, avesso a epígrafes, destacou em O Amor nos Tempos do Cólera). Nas duas vezes em que usou uma epígrafe, Jorge Amado optou pelos versos de um conterrâneo (Gregório de Matos) e por cantigas da zona do cacau da Bahia.

Talvez nenhum outro brasileiro contemporâneo supere a marca de Campos de Carvalho: em quatro livros, cinco epígrafes (Vaca de Nariz Sutil tem duas). Na média supera Rubem Fonseca, que publicou seis vezes mais e só num terço de suas obras pespegou uma citação erudita entre o título e a abertura do primeiro conto ou capítulo, bem ao estilo de seus pernósticos narradores, ou seja, no original, sem tradução: Horácio em latim e Villon em francês, em Feliz Ano Novo, e Carlo Ginzburg em italiano e Joyce em inglês, em Agosto.

Borges é o campeão continental da categoria. Como citado e citador. Contei umas 15 epígrafes em sua obra, metade extraída de autores de língua inglesa, as demais colhidas no Alcorão, no bíblico Jó, no espanhol seiscentista Quevedo, no grego clássico Apolodoro, em Renan, Diderot e na islandesa Saga dos Volsungos. Anglófilo mais que assumido, Borges bisou Yeats (em Tema do Traidor e do Herói e na Biografia de Tadeo Isidoro Cruz) e em O Aleph juntou Shakespeare (Hamlet) e Hobbes (Leviathan).

Minha preferida? Do repertório borgesiano, nenhuma em particular. Tenho especial apreço por uma boutade de La Bruyère, com que o espanhol Enrique Vila-Matas epigrafou Bartleby e Companhia e de que me apropriei para fechar a prosa desta semana com a dose certa de sabedoria: “A glória ou o mérito de certos homens consiste em escrever bem e de outros consiste em não escrever”.

Falando sozinho - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 12/01


RIO DE JANEIRO - Numa fase de muitas idas a trabalho a Nova York, Londres e Paris, nos anos 80 e 90, nunca me acostumei com as pessoas falando sozinhas que via pelas ruas dessas cidades. Não eram mendigos ou bebuns no último furo, o que poderia denotar uma avançada degradação mental -mas homens e mulheres de terno ou tailleur, graves, sóbrios, com pinta de altos executivos. Falavam em tom de voz mediano e regular, como se estivessem decifrando um conceito fenomenológico ou calculando o valor de pi.

Como não via isso no Brasil, exceto nos miseráveis de praxe, deduzi que falar sozinho era uma característica da civilização. Devia ser coisa de gente cujo bisavô tinha sido amigo de Lincoln, Lewis Carroll ou Rimbaud e, desde então, habituara-se a conviver com filósofos, astrônomos e primeiros-ministros dizendo coisas importantes ao seu redor -e era com elas que "dialogava" enquanto atravessava a rua.

Dialogava mesmo, porque eram falas que sugeriam pergunta e resposta, acompanhadas de gestos com as mãos e a cabeça. Eu me perguntava se aquelas pessoas não estariam ouvindo de verdade as vozes que os faziam falar sozinhos.

Bem, passaram-se muitos anos e, de algum tempo para cá, tenho cruzado nas ruas de RJ e SP com homens e mulheres graves, sóbrios, com pinta de altos executivos -e também falando sozinhos. Oba, chegamos à civilização -pensei. Na minha fantasia, imaginei-os descendentes de conselheiros do Segundo Reinado.

Só que, ao me aproximar de alguns, pude escutar o que falavam. Um discutia o Flamengo da véspera; outra contava o que acabara de ouvir na Ana Maria Braga etc. Todos usavam um Bluetooth, o minifone invisível que se acopla à orelha e faz parecer que o sujeito está falando sozinho. Mas não, ninguém estava falando sozinho, e muito menos calculando o valor de pi.

O milagre da renovação - ZUENIR VENTURA


O GLOBO - 12/01
Fiquei imaginando como seria bom chegar a cada junho, mês em que nasci, com o cabelo caindo, a pele enrugada, mas podendo me refugiar em casa aguardando a muda

Telefonei um dia para Rubem - o Velho Braga, que hoje faria 100 anos - perguntando-lhe por que tinha feito das amendoeiras uma de suas musas inspiradoras, se nem brasileiras elas eram, mas indianas, como eu acabara de saber. Discutia-se então a revelação de que, das 600 mil árvores existentes no Rio, 84% eram de origem exótica, e apenas 16%, nativas. Daí que a Fundação Parques e Jardins, à medida que as estrangeiras fossem morrendo, iria substituí-las por espécimes da Mata Atlântica. Não se tratava de xenofobia, como podia parecer; era para poupar o ecossistema da cidade, que, segundo os técnicos, se ressentia com a invasão estrangeira. O exotismo no caso era nocivo. Eu sabia que o flamboyant tinha vindo da França, que a casuarina era africana e a palmeira imperial, portuguesa, não era verdade? Não, não era. A primeira é oriunda de Madagascar, a segunda da Austrália e a terceira do Caribe.

Rubem Braga não caía nessas pegadinhas. Não usava as plantas apenas para fazer crônicas poéticas. Era amante e grande conhecedor de sua alma e humores. Não é à toa que plantou um dos mais surpreendentes jardins suspensos da cidade que o filho Roberto e a nora Maria do Carmo fazem questão de manter e cuidar até hoje. Sua resposta foi que as amendoeiras eram "árvores desentoadas". Nunca estão de acordo entre si. Não se vestem nem se despem por igual. Eram como a gente: cada uma envelhecia com a idade, conforme o dia de nascimento - com a vantagem de que a cada ano fenecem, mas também renascem.

A partir de então passei a olhar as amendoeiras de minha rua com inveja. Fiquei imaginando como seria bom chegar a cada junho, mês em que nasci, com o cabelo caindo, a pele enrugada, mas podendo me refugiar em casa aguardando a muda. Um ano depois faria minha rentrée triunfal, novinho em folha, pronto para admirar as mulheres que, segundo Rubem, em janeiro, sob a influência do verão, "sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; começam a dizer uma coisa e param no meio, seus olhos brilham devagar, elas ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho".

Meu sonho não seria a imortalidade. Nada de estender a vida, como muitos desejam. Se eu pudesse escolher, eu preferiria esticar a juventude. Que a existência humana continuasse limitada aos 70/80 anos, tudo bem, mas que, durante o tempo de duração, eu pudesse compartilhar com as amendoeiras de minha rua o milagre da renovação - todos os anos.

Ueba! Chávez tá na ilha de 'Lost'! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 12/01


E o Chávez não ganhou a eleição, ganhou a escritura da Venezuela, a Chavezuela! Surrealismo mágico!


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! Tocantins: "Ex-prefeito condenado por desvio de verbas". Como é o nome da cidade? Recursolândia!

Mais piada pronta: "Pato foi apresentado ontem, na hora do almoço, no CT do Corinthians". E devidamente comido. No tucupi! É muita piada pronta apresentar o Pato na hora do almoço no Corinthians! Os mano, os psicopatos, comeram o pato!

E eu disse que o vice do Chávez parece o Seu Madruga. Erramos! O vice do Chávez é a cara do Professor Girafales! E eu acho que o Chávez não está na ilha de Cuba. Tá na ilha de "Lost". E o Chávez não ganhou a eleição, ganhou a escritura da Venezuela, a Chavezuela!

Eu adoro a torcida contra o Chávez. Parece que a Venezuela é um Estado brasileiro! E um cara escreveu no Twitter: "A Venezuela parece o SBT, ninguém tira o Chaves".

E eu acho que esta história do Chávez é Gabriel García Márquez puro. Surrealismo mágico! Ele vai aparecer de repente e gritando: "Yankees de mierda, al carajo, mil veces al carajo". Rarará!

E como será o mundo daqui 30 anos? O site Kibeloco mostra as manchetes! Notícias: "Morto há 17 anos, Hugo Chávez é reeleito presidente". Esportes: "Flamengo pode quitar atrasos da gestão Patricia Amorim ainda hoje". "Palmeiras corta custos e jogadores jogarão apenas o primeiro tempo." "Messi vende 20 Bolas de Ouro e compra a Argentina." Rarará!

Entretenimento: "Justin Bieber desabafa sobre sexualidade: 'Não sou gay, sou hétero não praticante'". E esta: "Passageiros encontram cobra na asa do avião da Qantas". A minha sogra prefere a janelinha. E um amigo disse que a dele viaja na asa mesmo. Rarará!

É mole? É mole, mas sobe!

E o Big Bagaça Brasil? Adoro os comentários no site da Globo: "Ivan dispara: 'Acho que danço'". "Nasser dispara: 'Andressa é um problema'." Um dispara e o outro dispara. Tá faltando verbo ou o povo do "BBB" tá treinando tiro ao alvo!

E pra que serve um BBB? Pra enfiar biscoito de polvilho no nariz. O Elieser partiu um biscoito de polvilho e enfiou no nariz! E depois comeu! Aaaaargh! E corre na internet uma foto com a legenda "primeiro treino do Pato no Corinthians". E a foto: um pato enfiando o bico na bolsa duma mulher! Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Raios e trovoadas - MARCELO LEITE

FOLHA DE SP - 12/01


Ninguém precisa ser meteorologista para prever que a mudança do clima produzirá um dilúvio de notícias em 2013, após a estiagem criada pela alta pressão conservadora. O debate vai trovoar porque começam a reunir-se os fatores para uma tempestade perfeita.

Com exceção de 1998, os dez anos mais quentes da história foram registrados neste século. O de 2012 foi o mais escaldante dos EUA, castigado pelo furacão Sandy em outubro. Em setembro, o oceano Ártico bateu o recorde de menor extensão da calota de gelo em sua superfície.

Ganha impulso a guerrilha ideológica contra o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima). O colegiado de centenas de cientistas apresentará em setembro seu quinto relatório de avaliação (AR5), com o estado da arte das previsões para o aquecimento global.

Sua credibilidade sofreu baixas localizadas, como a polêmica sobre as geleiras do Himalaia. No quarto relatório (AR4, de 2007), redatores do IPCC haviam incluído relatórios de ONGs -e não trabalhos acadêmicos- como evidência de sua suposta retração.

Agora, houve o vazamento de capítulos do AR5, documento ainda sigiloso porque em fase de revisão. O texto foi divulgado no blog da jornalista canadense Donna Laframboise, que acusa o painel de reincidir no erro ao citar trabalhos da ONG WWF.

Isso não é proibido pelas diretrizes do IPCC, mas, de fato, parece imprudente. De qualquer maneira, as referências ainda podem ser expurgadas pelos revisores do texto, por ora um rascunho. A versão final sai em oito meses.

A mudança de ventos na negociação mundial sobre o clima, porém, depende menos do IPCC do que das oscilações de temperatura nos países que contam.

Nos EUA, Barack Obama, em seu segundo mandato, poderá animar-se a retomar o tema negligenciado no primeiro. Bom sinal foi ter escolhido para secretário de Estado o senador John Kerry -cuja mulher, Teresa Heinz, é pródiga apoiadora da causa ambiental.

Obama e Kerry ainda enfrentam um Congresso disposto a deitar gasolina no fogo (nunca a imagem foi tão apropriada). Mas logo ganharão um argumento para moderar o patriotismo petroleiro dos congressistas.

Economias como China, Índia e Brasil devem crescer com mais vigor neste ano e, em breve, contribuirão mais que o mundo rico para agravar o esfeito estufa. Será obrigatória sua participação, como exigem os ianques, em qualquer esforço para domar o aquecimento global.

Isso, claro, se nenhum raio lançar esses países, ou a economia mundial, nas trevas.

FLÁVIA OLIVEIRA - NEGÓCIOS & CIA

O GLOBO - 12/01


Colateral 1
Um defensor de Belo Monte diz que a hidrelétrica estaria operando hoje a plena capacidade (11 mil MW), se projeto e obra não sofressem tantas interrupções de 2005 para cá. Hoje, o Brasil está consumindo 11.700 MW de termelétricas, de energia mais cara e poluente.

Colateral 2
Sem mais atrasos, Belo Monte começa a operar em fevereiro de 2015. A usina do Rio Xingu (PA) é a fio d'água. Significa que gera menos nos períodos secos; e mais, nos úmidos. Na Amazônia, a época das cheias começa em janeiro, explica a fonte.

Patentes
Cresceram 6% os pedidos de patentes nacionais e estrangeiros no Brasil em 2012. Foram 33.780 processos, contra 31.765 no ano anterior, segundo resultados preliminares do INPI.Os números são crescentes desde 2010. A alta acumulada beira 30%.

Inovação 1
A Faperj bateu recorde de aplicação de recursos em projetos de ciência, tecnologia e inovação no Estado do Rio, em 2012. Foram R$ 340 milhões, contra R$ 312 milhões em 2011. Os repasses somaram 2,02% da arrecadação tributária. O mínimo são 2%.

Inovação 2
Ano passado, a Faperj lançou 34 editais. Este ano, a previsão é de 45. 

Cabelo
A QOD Cosmetic embarcou oito toneladas de produtos para países árabes este mês. Consumidores da região se interessam por itens para cabelos. E o Brasil é famoso no segmento, diz a fabricante. A empresa gaúcha cresceu 30% em 2012. Este ano, já fechou contrato com Israel.

Cabeleira
A Widi Care, de cosméticos para cabelo, investiu R$ 500 mil em lançamentos em 2012, alta de 25% sobre o ano anterior. Nos últimos 12 meses, chegou a Inglaterra, França e Bulgária. Está em dois mil pontos de venda. Planeja mais 600 em 2013.

Cabeluda
A Skafe Cosméticos, de produtos capilares femininos, quer elevar participação no Rio. A cidade é hoje o quarto mercado da marca, com 12% de participação. Perde para Norte, Nordeste e São Paulo. A Zona Oeste é alvo. A ideia é crescer 8% em um ano.

Livre Mercado
A TIM fez parceria com o Facebook. Clientes pré-pago do plano Infinity Web Modem terão acesso gratuito ao site até 2014. A ação começa 28.

A JLT é responsável pelo seguro de expedição científica à Antártica que pretende levantar US$10 milhões para o Seeing is Believing. É projeto de prevenção contra a cegueira.

O Walmart espera elevar em 15% a venda de sorvetes neste verão.

Paulo Sardinha, da Turbomeca, vai presidir a ABRH-RJ até 2015.

ANP VAI MUDAR RESOLUÇÃO DE CONTEÚDO LOCAL
Novo texto, em consulta pública, propõe que serviços de manutenção de sondas entre na conta de nacionalização
A Agência Nacional do Petróleo (ANP) pôs em consulta pública a proposta de mudança na Resolução 36/ 2007, que trata da certificação de conteúdo local da cadeia do óleo e gás. É a primeira vez que o texto é revisado. A principal alteração é a inclusão da atividade de manutenção das sondas por estaleiros brasileiros no cálculo do índice de nacionalização. Marcelo Mafra, coordenador de conteúdo local da ANP, diz que a ideia é criar um novo mercado para os estaleiros do país, quando as encomendas de novas embarcações e plataformas não forem tão numerosas quanto agora. Hoje, há uma centena de sondas contratadas ou em operação no país. Muitas delas já estão próximas da parada para manutenção. 0 serviço, normalmente, é feito em estaleiros no exterior. Na nova resolução, o operador que optar pela manutenção num estaleiro brasileiro poderá incluir bens e serviços no índice de nacionalização. "Ao incorporar conteúdo local ao serviço de manutenção, esperamos atrair mais contratos para os estaleiros locais", diz Mafra. 0 texto fica em consulta até 14 de fevereiro. Em 5 de março, haverá audiência pública sobre as propostas. A nova resolução deve sair até o fim do trimestre.


65% DE NACIONALIZAÇÃO
É o índice médio de conteúdo local dos contratos de desenvolvimento de produção de óleo e gás firmados pela ANP. A proporção mínima é de 55%. Na atividade de exploração, a faixa vai de 37% a 55%.

ESTRELADO
O ator Samuel L. Jackson é a nova estrela de Hollywood a protagonizar campanha do CCAA. Astros como Bruce Willis, Megan Fox e Mike Tyson já participaram de anúncios do curso de idiomas. No filme, dois brasileiros passam vergonha por não dominar o inglês. Criação da NBS, estreia hoje.

TRANSFORMAÇÃO DE TAIS
A bela Tais Araujo se despede hoje dos cabelos longos que marcaram a personagem Penha, de "Cheias de Charme". A atriz fechou com a L*Oréal, marca com que mantém contrato, um concurso para escolher os novos corte e tom. Internautas votaram até ontem. Houve mais de 1,6 milhão de acessos ao site. A transformação, num salão de São Paulo, será transmitida na web. Venceram o corte 2 e a coloração A (chocolate).

PRAIA RETRÔ
A Auslãnder, de moda jovem, encomendou à Lenny Niemeyer linha de biquínis e maiôs com modelagem retrô para o alto verão. É a 1ª parceria entre as marcas. André Nicolau fotografou a modelo Daiane Conterato para a campanha, que estreia hoje em redes sociais e internet. A grife espera vender 10% mais em janeiro.

MATISSE
Acabou na quarta-feira, dia seguinte à estreia do BBB13, o estoque de 30 almofadas estampadas com pintura de Henri
Matisse na Guilha. As peças decoram a sala da casa. A rede têm três lojas no Rio. 

Petróleo
A LDC, de consultoria e sistemas em comércio exterior, fez aporte de R$ 1,7 milhão em tecnologias e melhoria de sistemas. A empresa carioca prevê crescimento de 30% este ano. Presta serviços no desenvolvimento de plataformas de petróleo.

Tecnologia
A Radix, de engenharia e TI, obteve a certificação CMMi nível 3, do Software Engineering Institute. Investiu R$ 1 milhão em consultoria, mudanças de processos e treinamento. No Brasil, só 19 empresas têm o reconhecimento.

Parceria
A Elekeiroz e a Oxiteno fecharam acordo com o INT. Vão desenvolver produtos. O instituto apoia projetos de quatro empresas nas áreas de energia e saúde. Somam R$ 7,7 milhões em aportes. Mês que vem, receberá R$ 2 milhões da CNI.

Em expansão
A filial do Rio da Starsoft, de tecnologia, cresceu 30% em 2012. Já é efeito da Copa 2014 e dos Jogos 2016, em razão dos projetos em turismo e construção. Este ano, a meta é avançar 40%. A empresa vai destinar 15% do faturamento à tecnologia e à contratação de pessoal.

A indústria sofre o peso da política de encargos sociais - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 12/01


O valor da folha de pagamentos numa indústria é em função do número de pessoal ocupado e do número de horas efetivamente pagas. Mas o valor dos salários pode elevar consideravelmente o valor da folha, o que aconteceu em novembro do ano passado. Naquele mês, o número do pessoal ocupado caiu 1%, em razão do recuo da produção industrial, e o número de horas pagas teve queda de 0,2% (o que reflete um ligeiro aumento da produtividade), mas a folha de pagamentos real aumentou 11,3%, anulando, assim, qualquer ganho de produtividade.

O mês de novembro foi atípico: além de pagar as indenizações ao pessoal que perdeu o emprego, houve o pagamento do 13.º salário e, em alguns setores, de um 14.º salário, em razão dos dissídios.

É a décima quarta vez consecutiva que o número de assalariados recua, um sinal da situação difícil da indústria, que não consegue manter o emprego. Este caiu 1,4% no acumulado do ano, enquanto o número de horas pagas caiu 1,9%. A folha de salários real, no entanto, no acumulado do ano, apresentou crescimento de 3,9%, o que parece se explicar pelas dificuldades em contratar pessoal qualificado.

De fato, dos 19 setores da indústria, 14 apresentaram uma queda de produção maior do que a do nível de emprego. Fica claro que a indústria faz todos os esforços para manter o seu pessoal na esperança de uma retomada da atividade, que se verificou apenas em outubro e não se prolongou. Registram-se algumas exceções, como no setor de material de transporte, de máquinas e equipamentos, de refino de petróleo e da produção de álcool, em que o pessoal empregado baixou menos do que a produção.

O que fica evidenciado no levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre emprego e salário é que uma parte da falta de competitividade da indústria brasileira está no excesso de encargos sobre os salários, especialmente nos setores que ocupam mão de obra intensivamente. Nesses casos, algumas medidas tomadas pelo governo para aliviar os encargos sobre os salários foram positivas, mas certamente insuficientes.

Atualmente, os países da União Europeia que enfrentam recessão são geralmente os que têm uma política de encargos mais protecionista e estão condenados, neste momento, ao que é pior: o desemprego. A produtividade na indústria depende essencialmente de equipamentos mais modernos, mas a competitividade depende de uma revisão da política de encargos, cujo custo - o desemprego - é muito elevado para o Brasil.

Venezuela em seu labirinto - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 12/01


A América Latina parece realismo fantástico. A posse de corpo ausente de Hugo Chávez foi um ritual não escrito na Constituição do país, nem de qualquer democracia. A sensação é de que a ficção de Gabriel García Márquez é, na verdade, uma crônica atemporal da região. O enredo vivido poderia se chamar O Governante em seu Labirinto; O Outono do Coronel; ou Ninguém vê o Coronel.

Deplorável ver o contorcionismo da diplomacia brasileira para justificar que concorda com a solução ao arrepio da Constituição venezuelana, apesar de ter liderado a suspensão do Paraguai do Mercosul. O Itamaraty disse que não cabe ao Brasil julgar a constituição de outros países. Falta saber por que com o Paraguai foi diferente.

Ontem, o presidente em exercício anunciou que vai a Cuba se encontrar com os presidentes da Argentina e do Peru. A Venezuela passa pela inusitada situação de ter o centro do seu poder mais em Havana do que em Caracas.

O motivo que explica a paixão de uma parte do povo venezuelano por Chávez, e a sua longa permanência no poder, não está na economia. O país cresceu moderadamente, e a inflação acumulada nos 14 anos superou 1.500%. O chavismo nasceu dos erros dos partidos tradicionais e das políticas que Chávez adotou aos mais pobres.

Seus pontos fortes foram as políticas de transferência de renda e a melhoria de condições de vida nos barrios , as favelas venezuelanas. A desigualdade caiu a um dos níveis mais baixos da região. Segundo a ONU, o índice de Gini do país é de 0,41 e a taxa urbana de pobreza caiu de 49% para 29%.

Mas tudo em Chávez é contraditório. Ao mesmo tempo em que essa melhoria social acontecia, o país viveu um espantoso surto de violência urbana. Em 1998, antes de Chávez assumir o poder, a taxa era de 20 homicídios por 100 mil, por ano. Em 2012, foram 73 por 100 mil. Em números absolutos, saiu de menos de 5.000 para 21.600 assassinatos por ano.

A Venezuela era governada antes por uma oligarquia. Os erros dos partidos tradicionais, Copei e AD, corroeram a confiança da maioria do povo venezuelano na política. Depois da tentativa de golpe de 1992, o coronel Chávez entrou na política e se elegeu em 1998. A partir de então, mudou sucessivamente as regras eleitorais para ficar no poder.

Carismático e personalista, Hugo Chávez não permitiu espaço para sucessor claro. Só com o avanço do câncer contra o qual luta informou ser Nicolás Maduro o herdeiro escolhido. O chavismo está dividido em facções. Os militares que ele promoveu ao comando das Forças Armadas tutelam o governo. Mas a plúmbea palavra incertidumbre soa mais eloquente para definir o que vive agora a Venezuela.

Chávez decretou intervenções e estatizações de empresas do país ou estrangeiras, fechou empresas de comunicação, incentivou a formação de milícias, gastou fortunas equipando as Forças Armadas. Para controlar o Judiciário, ele aumentou o número de ministros dos tribunais superiores e nomeou os que lhe seriam leais. Para controlar o Legislativo, mudou regras eleitorais usando os plebiscitos convocados em momentos de alta popularidade. Os que perdeu, ele não respeitou, como o que derrotou sua proposta de reeleições sucessivas.

As oposições erraram muito nesse período. Tentaram o golpe de Estado em 2002. Depois, não participaram de uma das eleições. Só recentemente começaram a achar o tom com Henrique Capriles.

O grande dilema da Venezuela hoje é até onde vai o surrealismo da governo. Em algum momento o país precisará saber se a situação é temporária ou irreversível.

De onde pode vir a paz? - DOM ODILO P. SCHERER


O Estado de S.Paulo - 12/01


No início de mais um ano, as esperanças se renovam e também a coragem para alcançar as metas que nos propomos. É bom que seja assim: de esperança em esperança, vamos avançando e deixando marcas no caminho...

Na passagem do ano, juntamente com os votos de felicidade e de paz recebidos, não faltaram os mais variados ritos para "acordar e trazer boas energias" e invocar a paz para o mundo, como se ela estivesse em algum lugar e pudesse ser trazida, prontinha, para o nosso uso e consumo...

A paz é um direito das pessoas, aliás, pouco respeitado. Ela é ferida pelas guerras e pelo seu rastro de sofrimentos, destruição e morte; também é ferida pelos mais variados atos de violência e injustiça contra o próximo, no desprezo e desrespeito à dignidade das pessoas, no estilo de vida egoísta e individualista, que se fecha diante das necessidades do próximo, no descuido ou na exploração insensata da natureza, sem levar em conta o bem comum.

De onde poderia vir a tão desejada paz? Na sua mensagem para o 46.º Dia Mundial da Paz, comemorado pela Igreja Católica todos os anos no dia 1.º de janeiro, o papa Bento XVI dirigiu-se aos "obreiros da paz". Partindo da bem-aventurança do Evangelho - "felizes os promotores da paz; eles serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9) -, o pontífice observa que essas palavras de Jesus, mais que uma recomendação moral, já são uma promessa confortadora para todos os que se deixam guiar pelas exigências da verdade, da justiça e do amor.

A fé cristã traz elementos fundamentais para a edificação da paz: cremos no Deus do amor, do perdão, da misericórdia e da paz; cremos em Jesus Cristo, Filho de Deus, irmão da humanidade, que veio para reunir a humanidade numa grande família de irmãos; ao mesmo tempo, manifestou-lhes os caminhos da verdade, da justiça e do amor, que precisam ser percorridos por todos os obreiros da paz.

Não partilhamos da ideologia da violência, nem da pretensão de solucionar os conflitos mediante o acirramento dos mesmos conflitos; e não acreditamos ser o ódio a força maior do homem, ou que a lógica do convívio social seja ditada pela lei da selva. O homem não é feito para a violência, mas para o amor e a paz. Violência é sintoma de um mal pessoal e social, que precisa ser tratado como verdadeira doença.

No entanto, a paz não está pronta, como um produto de consumo que se possa conseguir por meio de passes de mágica, ou pela imposição da força sobre os outros. A paz é um dom do Alto, enquanto Deus é para o homem o fundamento e a garantia última da justiça, da esperança e da prática do bem. Mas ela também é tarefa do homem, fruto de idealismo e de uma busca tenaz, pessoal e coletiva. Ela se expressa na harmonia interior de cada pessoa, na sua relação com o próximo e com o mundo.

A desordem na vida pessoal é causa da falta de paz, ou da sua perda. A falta de retidão na conduta pessoal não é apenas "questão pessoal", que interessa à vida privada, mas tem repercussão sobre os outros e sobre o convívio social. Com frequência isto fica esquecido: ser bons, justos e honestos é um bem para si e para os outros. Por isso, o cultivo da paz requer dignidade na conduta pessoal e honestidade em seguir os ditames da consciência moral, que aponta para a prática do bem e para a busca da verdade, da retidão e da justiça. Sem isso não há paz consigo mesmo. Nem com os outros.

A paz também precisa ser edificada e cultivada nas relações com o próximo, nas suas mais variadas dimensões. O respeito que se pretende para si mesmo e para a própria dignidade deve também ser dado aos outros. A sensibilidade diante das necessidades e dos direitos do próximo, com o senso da justiça e da solidariedade nas relações sociais, é indispensável para a edificação da paz nas relações humanas. O mesmo vale para as relações entre os povos e as nações. O silêncio dos oprimidos nunca é sinal de verdadeira paz.

A paz depende ainda de nossas relações com o mundo que nos abriga e nos sustenta. O papa refere-se ao cuidado da vida, a começar pelo respeito pleno à vida humana, em todas as suas fases; é impossível haver paz quando não se respeita a pessoa humana, sua dignidade e sua vida. Mas o respeito e o cuidado referem-se também à vida em geral: os maus-tratos à natureza, as atitudes egoístas e individualistas na exploração e no uso dos bens da natureza são uma ameaça à paz. O mundo é a casa de toda a família humana e seu bem comum; quando a casa é descuidada por seus ocupantes, ou não há equidade no seu uso, os conflitos estão às portas...

Não cai do céu essa preciosa paz! Ela requer muitos obreiros corajosos e dedicados, que acreditem na possibilidade da paz e nos meios para alcançá-la. Construtores da paz são preciosos, necessários por toda parte e em todos os níveis do convívio social: nas relações políticas, nas atividades econômicas, nas instituições educacionais, na vasta rede das organizações sociais, religiosas, culturais e artísticas, no mundo da comunicação...

Lamentamos a falta de paz no Oriente Médio e em várias partes da África... Repudiamos, mesmo que apenas timidamente, os notórios fatos de violência acontecidos perto de nós, no ano apenas concluído; e já voltaram a acontecer em 2013! Mas, talvez, nos perguntamos pouco sobre o que levou a tantas tragédias de violência e à perda da paz. Convém que a sociedade inteira se interrogue profundamente sobre a pedagogia da paz, que não é um produto pronto e embalado para o consumo, mas fruto de uma busca lúcida e perseverante, pessoal e coletiva: educar para a paz, desde a mais tenra infância e ao longo de toda a vida, é uma necessidade; a família e a escola têm nisso um papel indispensável.

O ano de 2013, desde o seu início, está confiado aos obreiros da paz. Edificadores e educadores da paz serão reconhecidos como filhos de Deus.