terça-feira, janeiro 12, 2010

AUGUSTO NUNES

O Guia do Stalinismo Farofeiro

12 de janeiro de 2010

É claro que o presidente da República assinou sem ler o 3° Programa Nacional de Direitos Humanos. Como faz há sete anos, limitou-se a ouvir o resumo da ópera, recitado por um Alto Companheiro, antes de endossar com garranchos outro hino ao obscurantismo. Se a azia o maltrata até quando confrontado com rótulos de garrafa, é natural que tenha fugido como o diabo da cruz de um papelório com 29.538 palavras.

Mas é claro que sabia o que estava fazendo ─ e fez o que fez com prazer. Nenhuma das principais diretrizes do programa colide com o que o chefe de governo acha, imagina ou pensa. Mais que isso: reduzidas à sua essência, as 71 páginas do documento apenas repetem, sem tantos pontapés no português, conceitos e opiniões que povoam os improvisos de Lula depois do almoço. A diferença está na forma: o que se lê é sempre mais assustador que o que se ouve.

Declamadas pelo palanqueiro compulsivo, as agressões à lógica, à sensatez e à Constituição lembram bravatas de inimputável. A aversão ao convívio dos contrários, o desapreço por valores democráticos, a ojeriza pela imprensa independente, a opção preferencial por alianças fora-da-lei, a institucionalização da impunidade, o ódio à divergência ─ esses e outros sintomas de autoritarismo agudo nem sempre são suficientes para desmascarar o tirano que o portador camufla.

Reunidos num decreto depois de retocados por revolucionários de araque, os mesmos sinais de perigo bastam para anunciar a iminência do naufrágio. O que para Lula é instrumento eleitoreiro vira programa de governo quando transcrito por um Paulo Vannuchi, um Tarso Genro, um Franklin Martins ou qualquer outro devoto de velharias desaparecidas do mundo civilizado há 30 anos.

Em parceria, o presidente que jamais levou um livro no isopor da praia e a Irmandade dos Órfãos do Muro de Berlim produziram um indispensável esboço ideológico do governo Lula. Sob o codinome Programa Nacional de Direitos Humanos, foi lançada no Natal a primeira edição do Guia do Stalinismo Farofeiro.

JANIO DE FREITAS

O governo dos negócios

FOLHA DE SÃO PAULO - 12/01/10


OS NEGÓCIOS DO governo Lula tendem a marcá-lo tanto ou mais, quando se comecem as verificações dos seus feitos sem a pressão da propaganda louvatória, do que os negócios contrários à moralidade e aos interesses nacionais que tanto atacou. Entre outros, as fraudulentas privatizações da Vale e das telefônicas e a compra do Sivam, Sistema de Vigilância da Amazônia, no governo Fernando Henrique Cardoso.
A insistência na escandalosa compra dos caças franceses Rafale é mais um dos negócios a ficarem para o futuro. A vocação, no entanto, vem do começo.
Até hoje não se sabe que negócios imensos justificavam, de fato, as operações parcialmente conhecidas sob o nome impróprio de mensalão, mas não cabe dúvida quanto a negócios e sua dimensão. Marcos Valério não é "homem de negócios" como tantos, é homem de negócios escusos. Sem compromisso político, não entraria em transações tão altas, com envolvimento pessoal e de sua empresa, se o resultado antevisto não lhe cobrisse todo o grande comprometimento financeiro e florisse em lucros dignos de grandes negócios. Ou negociatas.
Marcos Valério ficou como propulsor do que se encobre sob o mensalão. Não foi mais, porém, do que um agente, um operador. O objeto do negócio só podia estar no governo, uma compensação grandiosa por trás do tráfico de dinheiro, operado por Valério, para o governo Lula amarrar a sua "base aliada". Mas não há negócio escuso com governo em que só o lado de fora seja beneficiário, e não, também, pessoas e grupos de dentro do lado governamental.
O recente caso envolvendo Oi/Telemar/BrTelecom, em que empresários fizeram um multibilionário negócio proibido por lei, mas já certos de que Lula mudaria a Lei de Telecomunicações para favorecê-los, esse fica não só na história do governo Lula, mas na biografia verdadeira de Lula.
O negócio da compra de submarinos franceses, com a participação até da empreiteira Odebrecht (contratada na França para burlar a necessidade de concorrência aqui), está embrulhado em sombras, dólares e euros. Mas o negócio com os caças Rafale fala por si e pelo dos submarinos.
A falta de pudor com que o governo, por intermédio de pessoas do nível de presidente da República e de ministros de Estado, se lança em artimanhas medíocres, umas em seguida às outras, para impingir um negócio que até o mais leigo dos leigos percebe ser absurdo, tem lastro histórico: volta à América Latina e celebra a África nos momentos, em ambas, de mais explícita imoralidade governamental.
E lá se vão, nesse arrastão, até pessoas de quem se podia discordar, mas, até aqui, sem desconsiderar sua respeitabilidade. "O barato sai caro" -se isso é a argumentação que o ministro das Relações Exteriores oferece, em Paris, para a compra dos caças, só se pode deduzir que os motivos de Celso Amorim não são mais do que bajulatórios. À vista de uma pretendida candidatura em que a ajuda de Lula será o fator decisivo.
E que lição insultuosa vem dar à FAB o novo ministro de Assuntos Estratégicos, Samuel Guimarães, com o argumento de que escolher um avião de caça "não é como comprar um automóvel, o preço não pode ser o único determinante" (para o repórter Bernardo Mello Franco). Os meses de estudo da FAB entre os diferentes aviões, os milhares de páginas então produzidos, a ponderação das respectivas contribuições para a futura indústria aeronáutica brasileira, tudo isso foi apenas comparação de preço, como na compra de um carro?
Nessa pequenez pelo menos ficou-se sabendo que o ministro de Assuntos Estratégicos compra carro pelo preço. O que é bem coerente com a "aliança estratégica" que o governo Lula não construiu: compra ao governo Sarkozy, no que talvez venha a ser a maior transação comercial já feita pelo governo brasileiro. Mas "o preço não pode ser o único determinante", porque "o barato sai caro".

GOSTOSA

VINICIUS TORRES FREIRE

Estagflação, Argentina e Venezuela

FOLHA DE SÃO PAULO - 12/01/10



ARGENTINA E a Venezuela são os países relevantes das Américas que menos devem crescer em 2010, entre nada e 1%, num ano de provável retomada do crescimento na região. Depois de 2003, 2004, Argentina e Venezuela cresceram a taxas médias estupendas, de 9%, 10% ao ano, em parte sobre escombros de depressão e caos.
A julgar pelo exemplo de casos muito semelhantes da história sul-americana, os dois países vão ter de contar com muita sorte e condições econômicas muito favoráveis no resto do mundo para sair da estagnação. A Argentina insiste no modelo exótico, embora eficiente, que a retirou do pântano onde Carlos Menem e Domingos Cavallo a entalaram, com apoio de FMI e da banca mundial, sob aplauso da maioria dos economistas-padrão. A Venezuela repete de modo impressionante e estúpido a receita de várias revoluções fracassadas da região.
O PIB da Venezuela deve ter caído uns 3% no ano passado, segundo o Banco Central deles -a primeira queda em cinco anos. Mesmo assim, a inflação deve ter ficado em 27%.
Segundo estimativa do próprio Ministério das Finanças, a inflação seria de 22% em 2010, projeção calculada, digamos, antes da desvalorização do bolívar, na semana passada.
O bolívar estava congelado à taxa de 2,15 por dólar desde 2005. Desde a semana passada, o dólar vale 2,6 bolívares para a importação de bens essenciais (comida, remédio, máquinas) e 4,3 para o resto. No paralelo, o dólar anda a 6,2 bolívares.
Hugo Chávez controla o câmbio desde 2003. É preciso licença para fazer importações. Quem não consegue dólares a preço oficial vai ao paralelo. Como a Venezuela importa quase tudo, inclusive comida, a escassez de dólares provoca falta de insumos para as fábricas e/ou os encarece. Além de alguma conspiração "burguesa", que de fato sempre ocorre nessas situações, o câmbio controlado, o tabelamento de muitos preços e de juros provoca desabastecimento e escassez, de bens e crédito. O crédito é apenas 20% do PIB (no Brasil é 45%, e já é pouco).
Na América Latina, múltiplas taxas de câmbio e licenças para importar tenderam a provocar corrupção.
Chávez não está totalmente doido. Prometeu segurar gastos públicos. A desvalorização do bolívar diminui o tamanho relativo da dívida pública, ao menos em relação a receitas. Cerca de metade do orçamento é bancado pela receita do petróleo, em dólares. No ano passado, o valor da receita do petróleo caiu entre 35% e 40%. Neste ano, se o barril ficar em US$ 80, a arrecadação em tese volta aos níveis de 2008.
Mas, dada a intervenção alucinada de Chávez na economia, não há investimento privado, quase -além de controles de preços, há estatizações, que de resto custam caro. A já pequena indústria venezuelana vai sendo devastada. Há medo de corridas bancárias, pois não se sabe qual será o próximo banco a cair sob intervenção estatal (em alguns casos, os saques ficaram bloqueados). Desemprego, inflação e queda da receita do petróleo reduziram o consumo. Na TV, Chávez pede ao povo que denuncie empresas que aumentam preços e ameaça encampar as que o fazem. O povo que tem algum foi às lojas comprar produtos, temendo uma superinflação.

BENJAMIN STEINBRUCH

Pegar carona na recuperação

Folha de S. Paulo - 12/01/2010


SEM ALARMISMO , é preciso olhar com cuidado para a balança comercial brasileira. Seja pela crise mundial, seja por problemas internos, algumas tendências preocupam. A principal delas é que o Brasil vai retornando, ano a ano, à velha condição de exportador de produtos primários. Dez anos atrás, a participação desses itens na pauta de exportações representava apenas 23%. Em 2007, esse peso já havia subido para 30% e, no ano passado, chegou a 42%, praticamente empatando com os manufaturados.
Nessa matéria, houve um retrocesso para o nível de 30 anos atrás.
A dependência crescente de produtos básicos não é saudável. Primeiro porque, ao exportar essas mercadorias, exportam-se também empregos -quando as matérias-primas são processadas no país, há mais investimento produtivo, mais ocupação de mão de obra e maior agregação de valor ao artigo exportado. Segundo porque os preços de itens básicos, principalmente os agrícolas, sofrem grandes oscilações no mercado externo, movimentos que podem levar produtores do paraíso ao inferno (e vice-versa) de uma hora para outra. Os manufaturados têm preços mais estáveis.
Vivemos hoje, apesar da crise mundial, um momento de valorização das commodities. Segundo o índice da "The Economist", a alta média geral atingiu 32% nos últimos 12 meses: as commodities industriais subiram 72% e as agrícolas, 11%.
Em 2009, essa tendência garantiu ainda um bom desempenho à balança comercial brasileira, que teve superavit de US$ 24,6 bilhões. Com a atual concentração de exportações em produtos básicos, porém, uma eventual derrubada de preços das commodities terá graves consequências para as contas externas.
Outra tendência preocupante é a perda de posição no mercado americano. Em 2009, as exportações brasileiras para os EUA tiveram queda impressionante, de 42% em relação a 2008. Grande parte dessa queda se deve, obviamente, à crise de demanda do mercado norte-americano. Mas uma parte do estrago foi feita pela valorização do real em relação ao dólar, que tornou o produto brasileiro mais caro no mercado americano e abriu espaço para os concorrentes, na maioria chineses.
Uma ação essencial em 2010 é recuperar mercados perdidos, em especial o americano. Por menor que seja, haverá recuperação econômica nos EUA e seria tolice deixar de pegar carona nessa tendência. Mesmo com a crise, os EUA ainda importaram US$ 1,5 trilhão em 2009 e vão aumentar esse valor em 2010.
Pela primeira vez na história, no ano passado a China foi o maior comprador de produtos brasileiros, com US$ 19,9 bilhões -os EUA compraram só US$ 15,7 bilhões. A diversificação de mercados é saudável. Mas os chineses são grandes importadores de commodities e o Brasil precisa centrar fogo na reconquista de mercados de manufaturas, como EUA e América Latina.
O próprio secretário de Comércio Exterior, Welber Barral, citou algumas medidas indispensáveis no setor: desoneração das exportações para evitar o acúmulo de créditos estaduais dos exportadores, a ampliação do drawback e a adoção de política comercial mais agressiva.
Isso é importante, mas também é essencial olhar para o câmbio. Após perder muito dinheiro com a valorização do real, alguns setores, como os de calçados, têxteis e móveis, perderam totalmente o apetite exportador. Voltaram-se para o mercado interno, que, felizmente, vai bem. Todavia, não é recomendável colocar todos os ovos na mesma cesta.

BENJAMIN STEINBRUCH, 56, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, presidente do conselho de administração da empresa e primeiro vice-presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo)

GOSTOSAS

RUBENS BARBOSA

Mais do mesmo

O ESTADO DE SÃO PAULO - 12/01/10


Em seu Breviário dos Políticos, o cardeal Mazarino ensina que, numa comunidade de interesses, o perigo começa quando um dos membros se torna muito poderoso. É o que está acontecendo com o Mercosul.

A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, discursando na reunião do Conselho de Presidentes, disse: "É chegado o momento de discutir os desequilíbrios do Mercosul, simplesmente analisando os números de suas economias." Pensando no Mercosul e no Brasil, mas referindo-se à União Europeia (UE), observou que "o grande peso da integração foi carregado pela Alemanha, não por que os alemães fossem mais europeus do que os outros, mas porque o tamanho da sua economia e o peso do seu capital permitiram que as demais nações tivessem a possibilidade de incorporar infraestrutura e desenvolver um potente comércio intrazonal".
A diplomacia da generosidade e a paciência estratégica não são suficientes. O Brasil está-se tornando tão forte que, na visão argentina, tem a obrigação de carregar os parceiros mercosulinos, inclusive a Venezuela.

Sob uma perspectiva histórica, a 38ª reunião do Conselho do Mercosul, realizada em Montevidéu no início de dezembro, poderá ser vista como o momento em que o Brasil passou a admitir a irrelevância do grupo sub-regional para seus interesses econômicos e comerciais, ao contrário do discurso oficial muito positivo do atual governo.
Repetindo a retórica vazia que tem caracterizado os pronunciamentos dos líderes políticos sobre o Mercosul, os presidentes (incluindo Hugo Chávez), em longa declaração conjunta, reafirmaram seus compromissos com os princípios do Tratado de Assunção, entendendo que o fortalecimento do Mercosul é o caminho para uma inserção internacional mais sólida e ferramenta fundamental para o desenvolvimento da sociedade de seus países.

Na realidade, os resultados da reunião foram decepcionantes e apontam em outra direção. O governo brasileiro encarregou-se de esvaziar a reunião com a ausência dos seus principais representantes. O presidente Lula fez um pit stop de dez horas em Montevidéu, pronunciou um discurso de dez minutos, não participou do almoço de despedida do presidente Tabaré Vázquez, do Uruguai, e voltou correndo para Brasília. Em ostensiva coordenação, os ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, não compareceram. O chanceler Celso Amorim tampouco se deu ao trabalho de viajar para o Uruguai, onde se fez representar pelo secretário-geral do Itamaraty, embaixador Antônio Patriota.

Os presidentes da Argentina, Cristina Kirchner, e do Paraguai, Fernando Lugo, aproveitaram para cobrar do Brasil uma ação mais forte para a redução das assimetrias de modo a promover o crescimento dos parceiros. O presidente da Venezuela utilizou, mais uma vez, o Mercosul como plataforma política para criticar os EUA ("vão declarar guerra a toda a América do Sul") e a Colômbia. O secretário-geral do Itamaraty, jejuno nos assuntos do Mercosul, em mais um exemplo da distância entre a retórica oficial e a realidade, afirmou que o bloco terá um período mais promissor, dadas as boas perspectivas de crescimento do Brasil até 2014. O incremento do comércio regional, a partir de julho de 2009, reforçaria essas previsões otimistas. Em sua avaliação, esse novo cenário criaria uma janela de oportunidade para mais uma reflexão construtiva sobre o futuro do Mercosul e sobre as alterações institucionais que devem ser realizadas para enfrentar as novas circunstâncias do cenário internacional; o ambiente positivo favoreceria a integração produtiva e a adequação das questões da dupla tributação da Tarifa Externa Comum (TEC) à necessidade de que o bloco "olhe para fora". Para tanto exortou os países a examinarem suas posições na Rodada Doha e a trabalharem conjuntamente em negociações com terceiros, especialmente na retomada das negociações com a UE por meio de uma necessária abordagem política. Adicionalmente, Patriota observou que o Parlamento do Mercosul será fortalecido com a contribuição do Brasil, que flexibilizou - isto é, cedeu mais uma vez - a posição no tema da proporcionalidade das representações nacionais. Finalmente, advogou a aprovação de concessões tarifárias ao Haiti em alguns produtos têxteis para apoio à sua estabilização econômica e política, proposta vetada pelo Paraguai.
As únicas medidas efetivas tomadas são protecionistas e contrárias ao livre-comércio:
Adiamento da eliminação da lista de exceção da TEC, prevista para desaparecer em 2010 e que agora, por pressão argentina e aceitação resignada do Brasil, deverá ocorrer somente em 31/12/2011. Na realidade, já se pode imaginar que quando chegar essa data acabaremos aceitando nova postergação.

Aumento de tarifas, a pedido do Brasil, para fios e filamentos têxteis de 14% para 18% e para 11 produtos lácteos (leite em pó e tipos de queijo) de 11% para 28%. A pedido da Argentina, para mochilas, malas e bolsas, de 16% para 35%.

A Argentina propôs a ampliação do uso da moeda local nas transações comerciais intrarregionais e a Venezuela saudou a constituição do Banco do Sul, medidas que encontram grandes dificuldades técnicas e políticas para serem implementadas.

Foi aprovado o aumento do orçamento do Fundo de Conversão Estrutural (Focem) para 2010 com maior contribuição do Brasil, apesar das dificuldades criadas pela Argentina para a aprovação do projeto da construção de linha de transmissão entre o Brasil e o Uruguai, em razão da disputa sobre a construção da fábrica de celulose no Uruguai.
Para culminar essa comédia de equívocos, o presidente Lula anunciou publicamente que o Senado brasileiro iria aprovar a adesão da Venezuela ao Mercosul naquele dia, o que só veio a ocorrer duas semanas mais tarde.


Rubens Barbosa é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp

NAS ENTRELINHAS

Chamem o STF

Alon Feuerwerker
Correio Braziliense - 12/01/2010

Adotar o ponto de vista da vítima de violência é a única opção moralmente aceitável. Mas na política isso não funciona. Não há governos humanistas. Se tentarem vender algo parecido, não compre. É falsificado


Por que a tortura é crime hediondo? Porque é ato de violência — física ou psíquica — deliberada contra a pessoa indefesa. Mas, infelizmente, “hediondo” não deve ser lido como inaceitável por todos. Em certos casos a tortura até consegue o aval de alguns. Há por exemplo a dúvida clássica: é tolerável a tortura para colher informações de um prisioneiro que sabe onde, quando e como vai ser cometido um atentado terrorista planejado para matar milhares de inocentes?

Se me fizerem tal pergunta, a resposta virá rapidamente e será clara. Não, a tortura não é justificável em nenhuma circunstância. Tenho a convicção. Mas não precisei de maior coragem para chegar a ela. Meu papel é só escrever colunas sobre assuntos da política. Não fui eleito, nem nomeado, para tomar decisões políticas. Daí minha resistência a emitir aqui certos juízos de valor. Eu prefiro analisar. Para julgar, já existem duas Justiças: a dos homens e a de Deus.

Situações de guerra envolvem alternativas moralmente complicadas. O grupo de guerrilheiros que você comanda está em retirada na selva, tentando escapar de um cerco. Aí, por azar (ou sorte), vocês capturam um combatente inimigo desgarrado. Vão fazer o quê? Levar o prisioneiro junto, arriscando ainda mais a segurança da operação de retirada? Vão deixá-lo para trás, com inteligência (informação) que talvez mais adiante vai ser usada contra vocês? Ou vão executá-lo?

Eu carregaria o prisioneiro comigo. Pois matar alguém indefeso é bem pior do que torturar. O torturado que sobrevive tem a chance de caçar quem o torturou. Caçar para pedir ou fazer justiça, dependendo das circunstâncias. Quem foi morto, não tem. Mas, de novo, essa opinião não me custa nada. Já se eu fosse o oficial da historinha hipotética do parágrafo anterior, e se minha tropa viesse a ser dizimada por causa do que eventualmente decidi, teria que responder — caso sobrevivesse — pelo meu ato.

Qual é a saída? O relativismo? Não. A humanidade evolui, e a pressão pelo respeito aos direitos humanos é um vetor do processo civilizatório. Entretanto, a esfera política não é a mais indicada para operar o tema. Por definição. Vista a coisa pelo ângulo do poder, é fácil distinguir entre o crime hediondo aceitável e o inaceitável. A distinção será sempre política. Na primeira categoria estarão os atos dos nossos amigos. Na segunda, os dos nossos inimigos. O que isso tem a ver com “lutar pelos direitos humanos”? Nada. É só luta política.

Eis uma contradição (há outras) que alimenta o stress por causa do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), decretado pelo presidente da República. Na abordagem da violência, a única opção moralmente aceitável é endossar o ponto de vista da vítima. Mas na política não é assim que funciona. Não há um governo humanista (porque o humanismo ou é 100% ou é de mentirinha). Se tentarem vender algo parecido, não compre. É falsificado.

Daí que talvez seja preciso discutir melhor a Comissão da Verdade, proposta no PNDH. Do jeito que está no texto, ela corre o risco de virar um apêndice do governo, de se interessar seletivamente pela parte da verdade que é conveniente ao poder e degenerar para um instrumento de pressão e vingança políticas. E ainda que em alguns casos o desejo de vingança possa ser legítimo (de um ângulo moral), isso não faria bem à democracia brasileira.

É um debate para o Congresso Nacional, já que o Palácio do Planalto teve pelo menos a sabedoria de definir que a comissão será criada por lei.

Aliás, no estado de direito as coisas devem sempre andar conforme a lei. E felizmente a Ordem dos Advogados do Brasil provocou lá atrás o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia. Inexistem óbices legais para que se abra toda a história do período ditatorial. A dúvida é se a legislação permite processar hoje quem cometeu na época crimes que agora a lei considera hediondos.

À primeira vista não tem muita lógica jurídica, mas a Constituição é o que o STF decide que ela é. Não sou eu que digo, foi o ministro Marco Aurélio quem disse. Eu estava lá e ouvi.

Então, se têm tanto poder, que os ministros da mais alta instância descasquem o abacaxi.

CENSOR

CELSO MING

Chávez reinventa o câmbio duplo

O ESTADO DE SÃO PAULO - 12/01/10


Pressionado pelo enorme crescimento do rombo orçamentário, o governo da Venezuela, presidido pelo coronel Hugo Chávez, decidiu sexta-feira pela desvalorização da moeda, na média de 64%.

O simples emprego do termo "média" mostra uma anomalia. A opção foi pelo câmbio duplo. O câmbio do bolívar é controlado pelo governo venezuelano. Antes, a cotação oficial correspondia a 2,15 bolívares por dólar. No entanto, o câmbio negro negociava o dólar a 6,15 bolívares e tendia à alta porque o dólar era (e ainda é) uma das poucas opções contra a inflação no país. A partir de ontem, empresas e pessoas físicas terão de pagar na compra de moeda estrangeira 4,30 bolívares por dólar quando corresponderem a negócios financeiros, turismo e importações de produtos não considerados essenciais. E a 2,60, no caso de despesas de governo e bens essenciais, como alimentos e fármacos.

O principal objetivo da decisão foi aumentar, em bolívares, as receitas da PDVSA, a estatal de petróleo que, por sua vez, poderá pagar mais impostos, mais royalties e mais dividendos. Melhora, assim, a capacidade do governo de honrar a dívida pública.

A data para entrada em vigor da nova paridade cambial foi escolhida a dedo. Acontece antes da remessa de lucros por parte das empresas estrangeiras, que agora obterão menos dólares por bolívar lucrado, e a sete meses das eleições gerais, com tempo para aumentar as despesas públicas com objetivos eleitorais.

A desvalorização do bolívar provocará dois efeitos comerciais convergentes: encarecerá as importações e, nessas condições, obrigará a população a consumir menos e a trocar o importado pelo produto local. E aumentará as receitas em bolívares dos exportadores, o que também tende a aumentar a produção nacional.

O impacto inflacionário será potencialmente forte e inevitável, apesar da decisão que resguarda o câmbio mais baixo para os bens considerados prioritários. Nesse final de semana houve corrida para comprar bens importados. O presidente Chávez avisa que não há nenhuma razão para o atropelo. Ele argumenta que os atuais estoques não poderão ser reajustados uma vez que foram importados (e pagos) com um dólar mais baixo. E convocou a Guarda Nacional para prender os especuladores.

Essa retórica não tem lá muito nexo. E as ameaças são típicas de um governo voluntarista na condução de sua política econômica. Na economia de mercado, os preços não são fixados pelos custos, mas pela lei da oferta e da procura. De mais a mais, se os estoques têm de ser repostos a preços mais altos, ou o comerciante trata de vender sua mercadoria a preços reajustados ou corre o risco de perder capital de giro.

Nas primeiras análises, os comentaristas preveem um impacto inflacionário de pelo menos 5%, número com que o ministro da Economia, Alí Rodríguez, parece concordar, como registra a agência Reuters.
Uma economia tem de ser muito controlada para que o câmbio duplo funcione. O aumento da inflação tende a jogar contra o objetivo político, já que reduz o poder aquisitivo do consumidor.

As distorções ficam inevitáveis, porque os dois câmbios tendem a se misturar. Nessas condições, a corrupção deve aumentar, uma vez que o importador tentará pagar as compras no exterior pelo câmbio mais favorável e isso cria a necessidade de ganhar a boa vontade das autoridades alfandegárias.

MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO

Plano de direitos humanos desagrada à indústria

FOLHA DE SÃO PAULO - 12/01/10


Empresários da indústria de base começaram a demonstrar insatisfação com o Programa Nacional de Direitos Humanos.
Entre as propostas do plano, há um ponto que sugere a inclusão das centrais sindicais no processo de licenciamento de obras de impacto ambiental comprovado. A medida atrasará os projetos de infraestrutura no país, segundo Paulo Godoy, presidente da Abdib (associação da infraestrutura e indústrias de base).
"Não consigo entender por que inserir um novo agente, sem conhecimento específico sobre o assunto, no processo. Essa discussão está descolada do foco de um plano que tem vistas aos direitos humanos", afirma Godoy.
Na prática, a possibilidade de inclusão das centrais já foi comprovada, pois a medida, inserida agora no programa de direitos humanos, já foi tema de uma portaria conjunta do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama, publicada no "Diário Oficial da União" em agosto de 2009. A portaria dá aos sindicatos participação na elaboração dos Rima (Relatórios de Impacto Ambiental) e do licenciamento para novos empreendimentos das empresas.
Godoy também sugere que a medida poderá tornar-se uma ferramenta de barganha nas mãos das centrais sindicais. "Isso dá margem a arbitrariedades. Que tipo de poder de veto essas instituições teriam? Não há respaldo legal."
Para Carmen Foro, secretária de meio ambiente da CUT Nacional, entidade que deu origem à iniciativa junto ao ministério, a inclusão é uma "conquista, pois vai permitir a intervenção dos trabalhadores em espaços políticos a que não tinham acesso". Foro informa que a partir deste mês as centrais devem começar a elaborar planos de ação. "É da maior importância garantir que os sindicatos possam analisar se as empresas têm políticas ambientais adequadas à saúde dos trabalhadores e das comunidades no entorno."

"É da maior importância garantir que os sindicatos possam analisar se as empresas têm políticas ambientais adequadas"
CARMEN FORO
secretária de meio ambiente da CUT

"A inclusão desse novo ator no já demorado processo de licenciamento ambiental cria mais obstáculos e conflitos"
PAULO GODOY
presidente da Abdib

NA ESCOLA

O Grupo Ometz, dono das redes de escolas de inglês Wise Up, Lexical, You Move e Go Getter, vai abrir neste semestre uma unidade em Bogotá. A inauguração faz parte do processo de expansão internacional da empresa, que alcançou 400 unidades em 2009 e já está presente em Buenos Aires. Também estão previstos investimentos de R$ 28 milhões em marketing para 2010, segundo Flávio Augusto da Silva, presidente do grupo. No ano passado, o grupo faturou R$ 103 milhões, crescimento de 67% em relação ao ano anterior, e superou 65 mil novos alunos. No último final de semana, o grupo anunciou o lançamento de uma nova bandeira, a Wise4U, de ensino à distância.

Emenda constitucional do perfil da dívida interna deve ser o foco

O contribuinte brasileiro deve olhar atentamente para a regulamentação jurídica da emenda constitucional que alongou o perfil da dívida interna, segundo Paulo de Barros Carvalho, titular de direito tributário da PUC-SP e da USP. "Essa decisão poderia mexer com a imagem do país no exterior, caso o Brasil não estivesse vivendo momento histórico tão favorável."
Por outro lado, segundo Carvalho, "a famosa reforma tributária, que não avança nem tem condição de avançar, é algo com que o contribuinte não precisa se preocupar".
"Tratando-se de ano eleitoral, não deverá haver sustos na alta da carga tributária."

LÍDER EM DESISTÊNCIA

O consumidor brasileiro desistiu de comprar, em média, US$ 152 nas festas de fim de ano. Esse valor coloca o Brasil no topo do ranking de pesquisa feita em 11 países. Na média global, o valor das compras não realizadas foi de US$ 109. Os principais motivos apontados pelos consumidores foram a insatisfação com o produto, a falta de desconto, o mau atendimento, a indisponibilidade no estoque e a demora na hora de pagar. O levantamento foi realizado com 4.534 consumidores, entre os dias 25 de novembro e 20 de dezembro, pelas empresas e-Rewards e TNS International, em parceria com a Motorola.

com JOANA CUNHA e ALESSANDRA KIANEK

GOSTOSA

ARI CUNHA

Privilégios

CORREIO BRAZILIENSE - 12/01/10


Deixar a lei de banda é o privilégio dos favorecidos. Esbanjam poder perante autoridades. Está em circulação a notícia de que a maioria da construção de casas na orla pitoresca e bela não tem fiscalização. Autorizações para construção, outra deficiência. A natureza, sentindo-se invadida, pune os responsáveis. Não interessa saber se pobres ou ricos. Nesse caso, se locupletam de construções maravilhosas, em afrontamento aos governantes. Se o rico pode, o pobre não corre atrás. Podendo, aproveita a beirinha. É daí que provêm os erros propositais. Impunidade diante das autoridades. Falta de fiscalização. Desobediência às leis de construções. Impostos sonegados. O mundo se acaba, e os culpados não são punidos. Fraca, a lei dos vivos.


A frase que não foi pronunciada

“Tudo o que vale realmente a pena pode ser divulgado.”
» Fernando Pessoa, pensando em atualizar sua frase.




População sofrida

» Angra dos Reis tem 75% da população localizada em lugar de risco. A situação pode ser considerada grave. Detalhe: a maioria desses moradores, pobres ou ricos, tem assistência às vésperas de eleição. Explica-se: políticos não desejam discutir esse assunto em período eleitoral.

Lula nos três poderes

» Presidente Lula assume poderes sobrenaturais no fim do mandato. No Congresso, mete a colher, usa o poder do cargo e do desejo para dizer como deve funcionar o Judiciário. Quanto ao Executivo, faz de conta que deseja não parar nunca seu poder de governo. Lá há brigas permanentes entre as várias facções. Lula espera sucesso da sua varinha de condão ligada diretamente ao Tesouro.

Assessoria

» Ninguém despreze a assessoria do presidente Lula. Aquela foto despretenciosa do presidente transportando na Bahia um isopor à cabeça deu o maior ibope. Está percorrendo o mundo. Está divulgada em toda parte. Importante é que não se sabe o que havia dentro. Nem é necessário.

Argentina

» Está um tiroteio o país vizinho. A presidenta tentou derrubar o presidente do Banco Central. Ele tem mandato. Avisou que só sai quando terminar seu tempo de lei. O país sofre com a briga do governo, a moeda aumenta e o povo se defende. Cristina Kirchner está sofrendo.

Brasil

» Presidente Lula disse que “nós pagamos as dívidas e temos boa base financeira”. Neste momento, é hora de volver olhos para a dívida interna, que aumenta aos galopes. Ela é a sustentação dos bancos. E isso rende bons reais a eles.

Pausa

» Pelo andar da carruagem, a Câmara Legislativa passa por prova de fogo. Nunca foi tão útil à sociedade brasiliense. Acostumada à política, a população candanga está decidida. Para voltar aos trabalhos, não será fácil.

Descanso

» Feichas Martins compara Arruda a Wenceslau Brás Pereira Gomes e Aureliano Chaves. Todos cresceram politicamente com o apoio incondicional de Itajubá. Arruda só não vai ocupar cargos mais altos do que já ocupou porque não soube contornar as seduções do poder. Isso os mineiros não perdoam, conclui o jornalista.

Precaução

» Vale lembrar a necessidade de cautela no uso de ar-condicionado durante o verão. A limpeza é essencial, já que o aparelho aloja ácaros, bactérias, fungos, vírus e transmissores de doenças. Paralisia facial é o perigo maior para o desequilíbrio da temperatura entre o ambiente interno e externo.

Conseguiu

» Quase 10 anos foram necessários para que uma consumidora tivesse a sentença do processo que encaminhou à 1ª Vara da Fazenda Pública do DF. Seu carro caiu em um bueiro que não tinha proteção. A indenização foi por danos morais, materiais e estéticos. Ela ficou com uma cicatriz na perna.


História de Brasília

“Então volte para o seu lugar, mas pague a passagem”, disse o presidente, ao se despedir do amigo que preferiu servir ao governo paulista. (Publicado em 22/2/1961)

KÁTIA ABREU

Direitos humanos ou gato por lebre?

FOLHA DE SÃO PAULO - 12/01/10


O PNDH-3 é uma tentativa típica de camuflar delírios de dominação autoritária com aparentes manifestações democráticas


HÁ MUITAS maneiras de impedir que o cidadão recorra à Justiça para defender seus direitos. Uma delas, que os brasileiros conhecem bem, foi ensinada aos militares pelo jurista Chico Campos em abril de 1964: consiste em, pura e simplesmente, decretar que é vedada à Justiça apreciar os atos em que o governo ditatorial alegar estar exercendo poderes revolucionários. Agora, estamos diante de uma nova conspiração. Trata-se da ameaça explícita do governo de criar versão própria da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948.
Um pretexto para estabelecer atalhos e criar entraves ao reconhecimento até de direitos humanos consagrados, como a propriedade e a liberdade de imprensa, que, de princípios indiscutíveis, passam a depender de instâncias administrativas ou sindicais, antes que a Justiça possa reconhecê-los ou preservá-los. A propriedade privada, um dos 17 artigos da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, de 1789, perderá a proteção da Justiça brasileira se persistir a versão do decreto.
Outra medida inédita prevê um ranking, dominado por grupos sindicais e administrativos, para avaliar se os órgãos de comunicação podem receber propaganda ou patrocínios, numa confissão tácita de que a distribuição de verbas publicitárias oficiais não é feita por critérios técnicos em que se avaliam a eficácia dos veículos.
Assim, não avançamos. Democracia é privilégio de sociedades desenvolvidas que compreendem o valor da tolerância, a importância dos direitos humanos e a necessidade de respeitar o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
E, no Brasil, justiça, democracia e direitos humanos são valores consensuais. Tanto que, sob o comando do ex-ministro da Justiça José Gregori, nosso país conquistou prêmio internacional, concedido pela ONU, por ter feito, de forma competente, a implantação, em 1996, de um consistente programa nacional de direitos humanos. Em 2002, o segundo programa deu continuidade aos avanços, reconhecidos internacionalmente.
No novo Programa Nacional dos Direitos Humanos, PNDH-3, o desenho é outro: saem a democracia, a justiça, a tolerância e o consenso e entra a velha visão esquerdista e ideológica que a humanidade enterrou sem lágrimas nas últimas décadas, depois de muito sofrimento e muita miséria.
Direitos humanos, na forma aprovada pelo decreto 7.037, parece ser apenas a máscara benigna e traiçoeira que oculta a face terrível dos demônios que grupos radicais e sectários se recusam a sepultar.
Aproveitando-se do sucesso da economia capitalista e globalizada do Brasil, para o que em nada contribuíram as ideias, os valores e a visão do mundo de setores radicais do PT e dos movimentos que o sustentam, atiram aos brasileiros essa plataforma totalitária. Com que propósito?
Duas ideias me ocorrem: uma possível "satisfação", em fim de governo, a velhos aliados da esquerda ideológica ou então, e seria mais grave, uma tentativa de envenenar e dividir a sociedade brasileira com um debate (esquerda revolucionária x democracia) que, no resto do mundo desenvolvido, é coisa do passado, assunto de museus ou de faculdades de história.
O documento, cuja íntegra tem mais de 80 páginas, contém equívocos inaceitáveis. Ali, o agronegócio é considerado instituição suspeita e desprezível. Tanto que até liminares, um dos instrumentos jurídicos mais essenciais no caso de invasões de terra por terem efeito imediato, só poderão ser concedidas depois de realizados procedimentos administrativos e "conciliatórios". Não há prazos previstos aqui, e os procedimentos poderão ser tão numerosos que tornarão inócuas as providências de urgência reclamadas quando há desrespeito ao direito de propriedade.
Cumpre lembrar, a propósito, que o acesso à Justiça com a devida celeridade é um dos direitos humanos garantidos na Constituição a todos nós, brasileiros e brasileiras.
Dificultar a reintegração de posse é estimular invasões de terra. Não podemos esquecer, igualmente, que os procedimentos "conciliatórios" e burocráticos estariam à mercê de integrantes do MST, que hoje controla, acintosamente, postos de comando no Incra e no Ministério do Desenvolvimento Agrário. A Justiça não pode, em nenhuma circunstância, ser refém de burocracia alguma.
Não é por acaso que só as questões específicas que reafirmam os artigos da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, que são parcela mínima no texto, merecem apoio. Os demais pontos não passam de uma tentativa típica de camuflar delírios de dominação autoritária com aparentes manifestações democráticas.

KÁTIA ABREU é senadora da República pelo DEM-TO e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).

JAPA GOSTOSA

LUIZ GARCIA

Retalhos da colcha

O GLOBO - 12/01/10

Por que e para que o presidente Lula assinou decreto criando um Programa Nacional de Direitos Humanos? Em diversos pontos suas metas são pouco mais do que tomadas de posição: consequências práticas dependem de aprovação do Legislativo. E, num ano eleitoral, como já foi dito, é quase impossível que o Congresso faça o jogo do PT e de seus aliados. E há propostas que dependem do Supremo Tribunal Federal, que é bastante cioso de sua independência, e não costuma adotar docilmente as prioridades do Executivo — particularmente quando elas têm odor eleitoreiro.

Uma explicação possível é a de que o programa tem intenções puramente domésticas: seria, por assim dizer, um cala a boca destinado a acalmar as áreas xiitas do PT. As mesmas que, na primeira eleição de Lula, tentaram impor ao candidato um programa de governo radical.

Um dos pontos em que isso parece evidente é o que se refere aos meios de comunicação. O programa inclui “criação de um marco legal estabelecendo o respeito aos direitos humanos nos serviços de radiodifusão e a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de direitos humanos”.

Não se fala em censura — claro, ninguém é idiota — mas o movimento em direção ao constrangimento da mídia é evidente. Na prática, e se fossem práticos, o “marco legal” e o tal ranking intimidariam principalmente os veículos de pequeno e médio porte. Não é bem o que o PT pretende.

Outro ponto curioso é o que se refere ao estabelecimento de “acesso universal a um sistema de saúde de qualidade”.

A proposta não se preocupa com melhoria e ampliação das redes públicas de hospitais, em sua maioria estaduais e municipais: propõe simplesmente tornar mais baratos os planos de saúde privados.

Na verdade, é quase perda de tempo examinar um a um os retalhos dessa colcha. Ela parece destinada quase exclusivamente a acalmar setores petistas e aliados — ou, pelo menos, fazer desaparecer argumentos negativos que prejudiquem a sucessão no fim do ano.

Vamos ver quantas vezes dona Dilma vai falar no programa ao longo da campanha.

SONIA RACY - DIRETO DA FONTE

Corrida contra a paz

O ESTADO DE SÃO PAULO - 12/01/10


O pessoal que produz equipamentos militares está rindo à toa. Só em dezembro estiveram no País, em contatos com Embraer, Avibrás Aeroespacial e outras, quatro delegações - duas da América do Sul, uma da África e uma da Ásia.
Os visitantes foram objetivos: não se discute preço se o prazo de entrega das encomendas for curto.
Outra leitura, preocupante, dessa informação: vem mais conflito por aí?
Velho mas novo?

Roupa Nova
O BNDES vai bancar a restauração e reorganização dos 40.000 volumes da Biblioteca Brasiliana, de Guita e José Mindlin, doada à USP em 2006.
O processo aguarda apenas aprovação da diretoria.

Bem na fita
Guido Mantega chegou lá. Pesquisa com 300 economistas da América Latina, realizada pela América Economia Intelligence, o colocou no topo entre os ministros da Fazenda. Com 7,4, bateu por pouco os 7,3 dados a Andrés Velasco, do Chile.

Grito-denúncia
Nos próximos dias, o Ministério da Justiça vai pegar pesado, nos aeroportos e rodoviárias, em campanha contra o tráfico de crianças.
Uma das ideias é montar, em locais à vista de todos, caixas com tapumes de onde se ouvem gritos de socorro e socos na parede, simbolizando vítimas do tráfico.

Grito-denúncia 2
O que preocupa as autoridades é que a a proporção de denúncias é muito baixa.
O Disque 100 anotou apenas 42 em 2009 e 95 em 2008.

Verde moda
Gloria Coelho monta passarela solar em seu desfile da São Paulo Fashion Week, dia 20, no Shopping Iguatemi.
Com direito a coletor de energia ultratecnológico, a estilista mostra sua coleção inspirada... nos raios de sol.

Quarta via?
Tony Blair está na mira Bernard Arnault, da Louis Vuitton. Não, ele não será convidado para garoto-propaganda da marca.
A aposta é para assumir alto cargo na empresa.

Derretendo
Um paulistano surpreendeu-se, dias atrás, ao ver que o calor do Rio não afastava o pessoal da piscina do Copa. O hotel mantém no máximo, todos os dias, o ar condicionado do restaurante, com vista para a Avenida Atlântica. E ele fica lá, meio vazio.
O pessoal quer mesmo é curtir os 40 graus lá fora.

Correnteza
Alberto Goldman comandou na sexta reunião com o pessoal das represas próximas a São Paulo, para avaliar o nível das águas e as ações a serem desencadeadas em caso de risco de transbordamento.
No sábado, o senhor das águas do governo Serra completou a tarefa, fazendo sobrevoo por toda a região.

Primeiro Mundo
Empresa responsável pelas exposições de Rodin e Chagall no Brasil, a Base 7 está com agenda cheia em 2010.
Deverá trazer mostras de Caravaggio, Giacometti e Botero, além de uma de Tarsila do Amaral.

TropiQUARENTÃO
Gilberto Gil, Rita Lee, Gal Costa e Tom Zé subirão ao palco no Anhangabaú, para festejar - ainda sem data - os 40 anos da Tropicália.
Com eles, herdeiros musicais do movimento, como Lenine, Arnaldo Antunes e Marisa Monte.

Dieta forte
Faustão deixa a sociedade do restaurante japonês Shaya, no Itaim Bibi.
E Marcus Buaiz e Felipe Faria, que continuam no negócio, vão abrir franquia bem longe, em Natal.

Na frente

O Ministério do Turismo de Israel aprovou a concepção criada por Walcyr Carrasco para o núcleo judaico de Caras & Bocas. Vai levar o autor para conhecer in loco a Terra Santa.

A Nestlé, patrocinadora do show da Beyoncé no Brasil, já avisou. Vai fechar alguma balada para uma festa pós-show. A cantora será convidada.

Acontece hoje a pré-estreia do longa O Homem Que Engarrafava Nuvens. No Espaço Unibanco Augusta.

O DJ Diego Moura se apresenta quarta, no club Disco.

A Santa Estação Cia. de Teatro apresenta A Tempestade e os Mistérios da Ilha, sexta, no Espaço Parlapatões.

O MAM abre, hoje, a mostra coletiva Dez Anos do Núcleo Contemporâneo.

Azedou a perspectiva de Thalia vir para o carnaval da Viradouro. A cantora mexicana até aceitou o convite. Desde que a escola carioca mandasse um jatinho particular "buscá-la em casa".

Victoria Beckham admitiu ter hábitos, digamos, extravagantes. Gastou mais de 350.000 euros em um rasante por Milão.

Comentário de gaiato carioca: "Sorte de Lula que não circulou com o isopor pelas praias do Rio. Seria enquadrado no Choque de Ordem..."

GOSTOSA DO TEMPO ANTIGO

ARNALDO JABOR

Consciência social de brasileiro é medo da polícia

O GLOBO - 12/01/10


Nelson Rodrigues previu a onda atual de neocanalhas

Uma das obsessões de Nelson Rodrigues era o canalha. Ele dizia: "Ninguém sai na rua e bate no peito berrando: ‘Eu sou um canalha’". O maior dos pulhas se achava um santo de vitral. Mas isso mudou muito.

Hoje, o canalha se orgulha de sê-lo. Veste-se de canalha, bigode e gravata de canalha, cabelo pintado, carantonhas ferozes.

Antes, o canalha se ocultava pelos cantos, escondido da própria sombra. Hoje, os sem-vergonhas ostentam orgulho pelo que chamam de "realismo político" ou necessidade de alianças. Roubar são ossos do oficio. A pornopolítica tomou conta de tudo e Nelson é que tem fama de pornográfico - logo quem... um moralista que corava diante de um palavrão. Mas, hoje, Nelson, revisto como estilo e como visão de mundo, traz uma lição política.

Filho do jornalismo policial com o fundo talento de Dostoiévski caboclo, Nelson mostrava como um escritor deveria se posicionar diante do texto neste país. Uma vez ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional era que nenhum escritor sabia bater escanteio". Ensolarada imagem esportiva para definir muito literato folgado.

Formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros plásticos e ornamentais e metido no cotidiano marrom do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.

Uma vez ele me disse: "Se Deus perguntar para mim se eu fiz alguma coisa que preste na vida para entrar no céu, eu responderei a Deus: ‘Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!’".

Sua literatura nos ensina o óbvio e isto é profundo numa literatura eivada de ambiciosos engajamentos "corretos" ou cheia de intenções formais desesperançadas que transformam o cinismo debochado numa visão de mundo.

Como criar (querem uns) sem denunciar o "mal latino" e a miséria, como o chatola García Márquez, ou como criar (querem outros) sem babar o ovo de Joyce, Kafka ou Beckett?

Ele foi o primeiro a sacar o futuro dos marxistas de galinheiro do passado, que hoje lutam por boquinhas e roubam no mensalão.

Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na sincronia com os detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia. Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e criou o que podemos chamar de antimetáforas feitas de banalidades condensadas.

Suas comparações sempre nos remetem a um "mais concreto" que denota comicamente a impotência da literatura. Shakespeare tinha isso, Cervantes também. Suas frases famosas nunca aspiravam ao sublime. Exemplos: "o torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil" , "seu ódio era tanto que ele dava arrancos de cachorro atropelado", "seu peito se encheu de um ar heroico como anúncio de fortificante", "a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "o juiz correu como um cavalinho de carrossel", "a virtude é bonita, mas exala um tédio homicida. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera", "o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura"...

Às vezes, ele dá lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. E vem a grande verdade: a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões".

Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era "a épica das irrelevâncias...". E isso é muito saudável num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade.

Em meio a essa crise, dominados pela mídia, sem projeto político claro, "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem", "vivemos amarrados no pé da mesa bebendo água numa cuia de queijo Palmira", "hoje o brasileiro é inibido até para chupar um Chicabon".

E uma das razões para estarmos "mergulhados em negra e cava depressão" é a visão épica, generalista, ideológica ou ambiciosa demais nos projetos e programas e utopias para o Brasil.

Se bem que ele mesmo dizia: "Sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo".

A lição política de Nelson é que talvez as coisas sejam muito mais simples. Não adianta nem nos "atolarmos em brutais euforias" nem vivermos com "complexo de vira-latas", atravessando a "aridez de três desertos".

O Brasil não se salvará com planos messiânicos ou ideias gerais de "epopeias de Cecil B. de Mille", sejam elas epopeias operárias ou epopeias neoliberais.

O "óbvio ululante" é limpar a casa e cuidar do detalhe, do enxugamento do Estado, "chupando a carótida dos chefes das estatais como tangerinas" quando se mostrarem obviamente ladrões ou favorecendo correligionários, como vemos todo dia.

Salvar o Brasil é óbvio, tão simples e puro como a prosa de NR - é só pensar no presente e não sonhar com um futuro impossível. O PMDB, por exemplo, é um partido que extirpou o canalha e instituiu o pragmatismo dos delitos permitidos, de modo a nos anestesiar com a impossibilidade de solução ou de punições.

A extraordinária entrevista de Jarbas Vasconcelos há tempos, que previu tudo que está acontecendo, foi fundamental para o país, teve até o sabor de algo arcaico, nostálgico dos parlamentos do Império.

Seus colegas velhacos até riram da "inatualidade" de seu gesto - que coisa "antiga" denunciar ladrões...

Ao menos, creio que nossa opinião pública está se aprofundando, porque como Nelson dizia: "consciência social de brasileiro é medo da polícia".

O colunista está de férias até 27 de janeiro de 2010. Na sua ausência, republicaremos artigos escolhidos pelo próprio autor.

JOSÉ SIMÃO

PVA! Meu carro é implacável!

FOLHA DE SÃO PAULO - 12/01/10


E fala pro Lula mudar aquele Plano Nacional dos Direitos Humanos para Direitos dos Manos!


B UEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! Sabe qual é a praia predileta dos argentinos em Floripa? PRAIA DA ARMAÇÃO! E sabe por que os israelenses e palestinos se odeiam tanto? Porque ainda não conhecem os argentinos. Rarará. Sacanagem!
E duas manchetes de piada pronta: "Chuva em Atibaia! Rua Amsterdã vira canal". "Odor suspeito em avião fecha aeroporto de Boston!". E esse surto de diarreia no Guarujá? É o ACAGÃO! Rarará. Acagão no Guarujá! E essa: pesquisadora americana afirma que gordo vive melhor. Qual é o nome da pesquisadora? LINDA BACON! Rarará. Além de predestinada, tá legislando em causa própria! E as férias do Lula acabaram. Agora ele já pode começar a viajar. Rarará! E fala pro Lula mudar aquele Plano Nacional dos Direitos Humanos.
Muda tudo. Muda pra Plano Nacional dos Direitos dos Manos. Pra torcida corintiana! O mano não pode ser torturado! E o IPVA, macacada? O IPVA é impagável. E o meu carro é IMPLACÁVEL! IPVA, IPTU, IPI, é tanto IP que eu já to IPERTENSO! IPERTENSÃO! Rarará! E com esse calor um amigo foi dormir pelado no terraço e perguntou pra mulher: "Querida, se eu aparecer pelado no terraço, o que os vizinhos vão pensar?". "Que eu casei por dinheiro." Rarará! E São Paulo tem tanto gay que as bibas já tão chamando a cidade de SÃO PAULA! Rarará!
E volta o rodízio em Sampa. Jangadas e botes nos dias pares e boias e banana-boats nos dias ímpares! E, se continuar chovendo desse jeito, no Carnaval não vai ter carro alegórico, vai ter barco alegórico! E hoje eu vi uma cena incrível: um sem-teto lendo a "Caras"! Pra ele deve ser revista de ficção! É mole? É mole, mas sobe! OU como disse aquele outro: é mole, mas trisca pra ver o que acontece!
Antitucanês Reloaded, a Missão. Continuo com a minha heroica e mesopotâmica campanha Morte ao Tucanês. É que em Porto Alegre tem uma academia com promoção: Barriga TAMQUINHO! Rarará.O cérebro deve ficar como a barriga, cérebro tanquinho! Ueba! Mais direto, impossível. Viva o antitucanês. Viva o Brasil!
E atenção! Cartilha do Lula. O Orélio do Lula. Mais um verbete pro óbvio lulante. "Hímen": aquilo que o companheiro gruda na porta da geladeira. Hímens de geladeira. Rarará. O lulês é mais fácil que o ingrêis. Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje só amanhã. Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno! DIET! Pra evitar olho gordo!

TERRORISTAS

MERVAL PEREIRA

Visões distintas

O GLOBO - 12/01/10


Quando os porta-vozes do governo, oficiais e oficiosos, alegam que o Programa Nacional de Direitos Humanos é apenas uma continuação de um projeto iniciado em 1996 sob o governo Fernando Henrique Cardoso, estão dizendo a verdade, embora queiram com ela encobrir o caráter autoritário do plano apresentado no final do ano passado. O caráter de continuidade do governo tucano, que tanto incomoda os petistas, não foi nem mesmo esquecido quando do lançamento do programa que, além de ser chamado de III Programa Nacional dos Direitos Humanos, deu direito a um pronunciamento, através de vídeo, do autor do I Programa em 1996, o hoje secretário de Direitos Humanos de São Paulo, ex-ministro da Justiça José Gregori

Foi ele quem sugeriu que o governo Fernando Henrique Cardoso, ao lançar o segundo plano, em 2002, ampliasse o seu escopo, adaptando-o à Conferência de Viena de 1993 na qual todos os países, através da ONU, estabeleceram o princípio de que os direitos humanos abrangem, além dos direitos civis e políticos — que foram a base do primeiro plano — os aspectos sociais, culturais e econômicos, e constituem uma unidade.

Como os dois são governos de esquerda — embora o PT trabalhe há anos para empurrar o PSDB para a direita do espectro político brasileiro —, é natural que tenham visões semelhantes sobre questões tão díspares quanto corretamente unificadas sob o guarda-chuva dos Direitos Humanos como o aborto, a proteção das minorias, os meios de comunicação ou a agricultura familiar.

Só que no plano do PT há um viés ideológico e um autoritarismo que não estão presentes nos planos anteriores, embora os temas sejam semelhantes.

O que parece é que, enquanto nos planos tucanos a preocupação com as palavras foi grande no sentido de encontrar os caminhos do consenso e não criar inviabilidades, no atual plano, que tanta polêmica está causando, houve uma tentativa de usar a linguagem para estabelecer diretrizes ideológicas.

O governo tucano, quando elaborou o Primeiro Programa, havia acabado de fazer a Lei dos Desaparecidos, que era o reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão de participação política na luta contra a ditadura, pela qual o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade e concedeu indenização aos familiares das vítimas.

Para sua elaboração, houve momentos de negociações com militares, tanto da parte do então ministro Nelson Jobim quanto da de José Gregori, já então secretário nacional de Direitos Humanos.

A Comissão reconheceu cerca de 450 desaparecidos e mortos pela repressão política, entre eles os guerrilheiros Lamarca e Marighella, o que demandou cuidados especiais.

Na elaboração do Programa dos Direitos Humanos, os cuidados com a questão militar foram grandes, pois sabiam onde as feridas estavam abertas.

O que não impediu, no entanto, que, em decorrência do programa, avanços importantes fossem dados, como a transferência para a justiça comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, o que permitiu o julgamento de policiais militares em casos como os massacres de Carandiru, Corumbiara e Eldorado dos Carajás, e a tipificação do crime de tortura, marco para o combate contra essa ação criminosa do Estado no Brasil.

Gregori hoje continua convencido de que, do ponto de vista do histórico da anistia no Brasil, e até lembrando frases que eram corriqueiras nos comícios da época — “colocar pedra em cima”, “um recomeço” e “reconciliação” —, a anistia era recíproca.

Por razões politicamente interessante para eles, analisa, os militares aceitaram que o então ministro da Justiça Petrônio Portella dialogasse com a oposição para chegar a um texto que fosse aceitável pelas duas partes.

Já o ex-deputado federal e advogado Marcelo Cerqueira, que participou à época de algumas negociações a mando de Ulysses Guimarães, acha que não: “Embora o sentimento geral da época fosse a anistia recíproca, ela não se deu”, diz Cerqueira, que lembra uma frase do jurista Aliomar Baleeiro, que dizia que a vontade do legislador é para ser interpretada por psicólogos e não por juristas.

Segundo a visão de Marcelo Cerqueira, independentemente de convenções internacionais, a Constituição não recepcionou a tortura como crime imprescritível, cabendo às famílias das vítimas o processo por improbidade — uso de aparelho de Estado para o crime — este sim imprescritível.

Para ele, a verdadeira questão é “o direito de de as famílias dos desaparecidos enterrarem os seus mortos”, e por isso os arquivos devem ser abertos e casos como onde foram enterrados os corpos dos guerrilheiros do Araguaia devem ser esclarecidos, deixandose para o Supremo a decisão jurídica sobre a abrangência da anistia e a prescritibilidade dos crimes de tortura.

Voltando ao Programa de Direitos Humanos, mesmo a maneira de elaboração deles foi diferente, neste e nos governos anteriores, denotando cuidados e intenções distintas.

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, dirigido na ocasião por Paulo Sérgio Pinheiro, que também participou da elaboração desse último plano, consolidou as propostas das diversas instâncias em que foram discutidas, mas havia um texto básico elaborado pelo governo.

Agora, o vezo assembleísta do governo petista parece ter invertido as prioridades, transmitindo diretamente as decisões das assembleias para o plano, sem o cuidado político que os temas abordados exigiam.

Embora de ramos da mesma família da esquerda política, e mesmo que o exercício do poder tenha levado o governo Lula a se aproximar em muitos setores mais da social-democracia do que se poderia prever, a visão de mundo de setores da esquerda radical encrustados no governo ainda prevalece em momentos como esse.

Em vez da proteção dos direitos do cidadão, o III Programa Nacional de Direitos Humanos reflete muito mais um desejo de tutela do Estado sobre o cidadão.